Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des

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 Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Resumo Este trabalho tem como objetivo apresentar os primeiros passos de uma pesquisa de mestrado que pretende investigar o ensino de Filosofia a partir de uma perspectiva de gênero. Proponho este estudo por entender que não se trata da inexistência de pensadoras ou teorias filosóficas por elas construídas. Ao contrário, ao longo da história, existiram muitas mulheres que se dedicaram produção de filosofia, porém, foram excluídas do que é considerado o “círculo dos filósofos”. Ao realizar esta pesquisa procuro inscrever a ausência do pensamento filosófico feminino na academia e, por conseguinte, na escola básica, no que Michel Foucault, denomina uma ontologia do presente. Isto se justifica pela compreensão de que a filosofia precisa reexaminar como, historicamente, ela mesma, abordou as questões de identidade, desde uma perspectiva de gênero, para tornar possível pensar estas mesmas questões na escola. Por acreditar que apenas a afirmação da filosofia nesse espaço, como disciplina, não garante este tipo de discussão, afirmo a necessidade de reconhecer a relevância deste tema para que sejam colocados em prática estudos e pesquisas sobre ele. Assim, será possível estabelecer um trabalho que contemple a continuidade de formação de professores, a extensão entre escola e universidade. Palavras‐chave: Gênero, Ensino, Filosofia, Tradição Ana Lúcia Bighelini de Oliveira UFSM [email protected] X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.1
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo apresentar os primeiros passos de uma pesquisa de mestrado que pretende investigar o ensino de Filosofia a partir de uma perspectiva de gênero. Este tema de pesquisa surge a partir de questões que se apresentaram durante minha formação como professora de Filosofia e que, portanto, é fruto de uma experiência em primeira pessoa na realidade acadêmica da disciplina. Ao ingressar no curso de Filosofia, acreditava que iria encontrar um universo menos contaminado por preconceitos de classe, cor ou gênero e, quando existissem, imaginava que seriam motivo de debate e reflexão, tanto no ambiente de sala de aula, quanto nos corredores. Ainda no início do curso foi possível perceber que essa não seria a realidade. O departamento de filosofia, representado por seus professores e alunos como reflexo da sociedade é mais um espaço de reprodução dos modelos de exclusão existentes. Logo compreendi que a ambiguidade existente na história da filosofia não está presente em seus conceitos ou teorias, mas nas possibilidades de apropriação das mesmas: a tradição filosófica pode ser utilizada para incitar questionamentos e promover inquietudes a/em quem dela participa, ao mesmo tempo que possibilita que preconceitos sejam reforçados. A apropriação de teorias e conceitos filosóficos, sem considerar o momento histórico no qual foram desenvolvidos, por exemplo, pode resultar numa compreensão descontextualizada e acrítica. Da mesma forma que é possível isolar momentos ou teorias filosóficas e recortá‐las da tradição, pode‐se olhar para a história da filosofia de forma fragmentada, utilizando os mesmo preconceitos já citados, para justificar a exclusão de uma gama de filósofos ou filósofas da parte central desta disciplina. A realidade brevemente descrita acima foi a qual me deparei ao iniciar minha formação como professora de Filosofia. Dos professores que tive contato (cerca de 15), apenas uma era do gênero feminino, e esta, coincidentemente, cedida do Centro de Educação para o departamento de Filosofia. Aliás, naquele meio existe a cultura de que a preocupação com o ensino de Filosofia na educação básica, ou seja, a reprodução do que é desenvolvido na academia, é assunto de competência das mulheres. Enquanto a pós‐
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira graduação e a Filosofia, por ela mesma, são exercícios masculinos por excelência. Nas disciplinas obrigatórias do curso de graduação, pouco ou nada se trabalha acerca da produção feminina. Quando elas aparecem são mencionadas por sua relação com os filósofos, ou seja, Simone de Beauvoir companheira de Sarte, Hannah Arendt amante de Heidegger. Assim, a pesquisa que venho desenvolvendo tem como problemática o ensino de Filosofia e justifica‐se pelo exercício do que Michel Foucault, a partir de Kant, sugere como uma ontologia do presente, a saber: “é uma crítica de nós mesmos, não como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é necessário concebê‐la como uma atitude, um éthos, uma vida filosófica ou a crítica daquilo que nós somos é, simultaneamente, análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem possível” (FOUCAULT, 1994c, p.1396). Desta forma, ao realizar este estudo procuro inscrever numa ontologia do presente a ausência do pensamento filosófico feminino na academia e, por conseguinte, na escola básica de ensino. As mulheres não são consideradas sujeitos autorizados a filosofar ou, até mesmo, que não são aptas para receber a filosofia. Supostamente, por compreender a mulher como refém de próprio útero, o que lhe causaria a “condição” de histeria, a narrativa filosófica masculina, a considerou inapta a praticar o diálogo, método platônico que viria a definir a história do ocidente. As mulheres sofreram ao logo da história forte desdém pela tradição filosófica, pois na história da filosofia são tidas como inexistentes pela academia e, por isso, é incomum tê‐las como referencial filosófico. Proponho este estudo por entender que não se trata da inexistência de pensadoras ou teorias filosóficas por elas construídas. Ao contrário, ao longo da história, existiram muitas mulheres que se dedicaram produção de filosofia, porém, foram excluídas do que é considerado o “círculo dos filósofos”. Algumas, por escolha própria, excluíram‐se deste meio por considera‐lo bastante masculinizado. Nesse sentido, a filosofia precisa reexaminar como, historicamente, ela mesma, abordou as questões de identidade, as questões da condição humana, desde uma perspectiva de gênero para tornar possível pensar estas mesmas questões na escola. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.3
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira A questão que oriente a investigação que realizo, e que na sequencia deste trabalho procuro apresentar de forma breve, é a seguinte: Como a carência de uma filosofia feminina na academia afeta as práticas escolares desde uma perspectiva de gênero? ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS Por compreender os materiais acima relacionados como produções históricas, proponho‐me a realizar uma análise arqueo‐genealógica dos discursos neles contidos. A esteira de Foucault, é importante salientar que o discurso não pode ser entendido separado de uma prática social, assim como não é possível compreendê‐lo como neutro e independente, já que sempre fala sobre determinadas regras, identificando relações que ocorrem internamente ao discurso. Segundo Foucault (2009, p.17) “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”. No entanto, também é reconduzida, mais profundamente, pelo modo como o saber é aplicado numa sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e, de certo modo, atribuído pelos enunciados contidos nos discursos. Inicialmente, me propunha a analisar, em um primeiro momento, os discursos contidos nos documentos referentes às disciplinas dos cursos de graduação em Filosofia, posteriormente lançaria o olhar sobre os livros didáticos desta disciplina e, finalmente, atentaria para a análise histórica das obras da Filosofia. Com o avanço da pesquisa e o contato incial com os documentos dos cursos de Filosofia e os livros didáticos, percebi que nestes materiais encontraria poucos registros sobre o que chamo de Filosofia Feminina. Os livros didáticos investigados, foram os distribuidos pelo FNDE1, a saber, FILOSOFANDO – INTRODUÇÃO À FILOSOFIA, de Maria Helena Pires Martins e Maria Lúcia de Arruda Aranha; FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA, dos 1
Os livros selecionados são distribuídos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para as escolas públicas de Ensino Médio de todo país. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.4
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira autores Gilberto Cotrim e Mirna Fernandes e INCIAÇÃO À FILOSOFIA, da filósofa Marilena Chauí. Estes livros foram escolhidos por uma característica comum: são eles que chegam às escolas públicas de educação básica, e é na escola pública que está o principal alvo desta pesquisa. Nestes materiais foram encontrados alguns nomes de filósofas mais conhecidas como Simone de Beauvoir e Hanna Arendt, dentre os grandes filósofos já anunciados pela tradição. Também não foram encontrados espaços significativos para discussões sobre gênero ou feminismo nos capítulos dos livros. Por compreender que não é necessário discorrer de forma exaustiva sobre os livros didáticos da disciplina, afinal, já existem diversos trabalhos sobre o tema, passo ao próximo ponto: nos documentos refentes aos cursos de graduação em Licenciatura em Filosofia, mais especificamente nas ementas das disciplinas dos cursos, quase nenhum registro da produção filosófica feminina foi encontrado. É importante destacar que foram analisados os documentos dos cursos de filosofia de três universidades, uma universidade pública e duas universidades privadas. Esse recorte foi feito, pois os professores e professoras que atuam nas escolas públicas são oriundos de diversas instituições de ensino superior. A investigação sobre os documentos dos cursos de formação de professores ainda se mostra de vital importância para a pesquisa, já que pretendo encontrar conexões entre a formação dos professores da área e as práticas escolares temáticas de gênero. Porém, com o avanço da pesquisa percebi que algumas questões precisavam de maior atenção: como, por exemplo, se a Filosofia enquanto disciplina pode auxiliar na contrução de uma educação inclusiva de gênero no espaço escolar, ainda atentando aos discursos construidos neste espaço. Ou então, como a prática de professoras e professores de Filosofia, em relação a temática de gênero, é afetada pelos discursos contidos na tradição. Para isso, acredito ser necessário pensar qual o papel da escola em relação aos papéis de gênero e, porque não, de sexualidade. Assim, dou o próximo passo e volto minha atenção para a escola, para a tradição filosófica e, também, para a própria noção de gênero. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.5
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira GÊNERO: UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA Os estudos de gênero são ainda considerados um campo novo e com pouca visibilidade na ciência. Se analisarmos historicamente esta área temática é possível perceber que ela foi antecedida pelos estudos sobre a mulher, associados ao movimento feminista. Então, a partir do final dos anos 1980 é que o gênero deixa de ser um atributo da identidade para ser concebido como categoria de análise útil à compreensão da história das mulheres, assim como a dos homens e de suas relações. As diferentes gerações da luta feminista, conhecidas como as três ondas do feminismo, possuem maneiras diferentes de se pensar sobre o gênero. Estas fases, contribuíram para a compreensão do conceito de gênero e não podem ser vistas de forma linear, mas entrelaçadas a uma história mundial da luta feminista. A primeira onda do feminismo surge na metade do século XIX, e é considerado o surgimento do movimento feminista. É movimento liberal, universalista e humanista das lutas igualitárias das mulheres por direitos que eram reservados apenas aos homens (civis, políticos e educativos). Na Inglaterra, França, Estados Unidos e na Espanha, o início do movimento ficou conhecido como sufragista e tinha como pauta principal a luta contra a discriminação das mulheres e o direito ao voto. De acordo com Alves e Pitanguy, “Iniciou‐se o sufragismo, enquanto movimento, nos Estados Unidos, em 1848. Denuncia a exclusão da mulher da esfera pública, num momento em que há uma expansão do conceito liberal de cidadania abrangendo os homens negros e os destituídos de renda”. (1895, p. 44.) A segunda onda, mais evidentes nos Estados Unidos e na França, tem início na década de 1960, e foi marcada pelo surgimento da luta sobre as igualdades e as diferenças das experiências femininas e masculinas dentro da sociedade. Nos primeiros anos da década de 1980 emerge a terceira onda do feminismo, com fortes influências do pensamento pós‐estruturalista, as feministas se voltam para a questão da diferença, compreendendo o discurso como forma de construção das subjetividades. É aí que o campo de estudos feministas deixa de ter foco no estudo sobre as mulheres e sobre o sexo e passa a prestar atenção nas relações de gênero. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.6
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira A partir das problematizações das teorias e as categorias de gênero presentes no discurso das gerações anteriores, realizadas pelas feministas da última geração é possível perceber que o gênero era definido a partir do sexo como categoria natural e hierárquica, como se houvesse uma essência natural feminina ou masculina presentes na subjetividade, o que fortalece a ideia de existir uma única forma estável e homogênea de ser homem e de ser mulher. Na primeira e segunda ondas, o “sexo” descrevia os características biológicas dos indivíduos, e o “gênero” era compreendido como construção cultural baseadas nas diferenças biológicas, ou seja, para as feministas da época há diferença física e ela é a responsável pelos marcadores e diferenças sociais. Na terceira geração, as feministas se afastaram completamente da ideia de sexo‐gênero, de forma que buscam desnaturalizar e desconstruir tal perspectiva, passando o gênero não ser mais baseado em diferenças biológicas, mas entendido como interação política que ocorre num campo discursivo e histórico de relações de poder. Para Louro, “é necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos”(2007, p.21) Segundo Foucault (1969), o discurso de uma área específica não é caracterizado por um espaço de regularidades, ou seja, o discurso se constitui através de, tanto práticas discursivas quanto práticas não discursivas, e envolvem as “relações que se estabelecem entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistemas e normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização” (Foucault, 1969, p.61). Em “A Ordem do Discurso”, de 1970, Foucault analisa a formação e manutenção dos discursos baseados nas formas de poder e controle social, e afirma que mais importante que o conteúdo dos discursos, é o papel que eles desempenham na construção do mundo que deve ser analisado. Para o filósofo, o discurso dominante tem o poder de determinar o que é aceito ou não numa sociedade, independentemente da qualidade do que ele legitima, produzindo, muitas vezes, uma verdade arbitrária. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.7
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira Quando o gênero passa a ser entendido como uma forma de organização sócio‐
histórica da diferença sexual e como relação política, que ocorre dentro de um campo discursivo de relações de poder, ele é analisado como um efeito da linguagem, produzido e gerado a partir de discursos, e não a partir da biologia. Desta forma, é possível identificar tanto produções discursivas que legitimam desigualdades de gênero e normatizam papéis e lugares de gênero nas relações afetivas, sexuais, acadêmicas e familiares, quanto produções que, ao contrário, podem provocar a partir de uma mudança discursiva uma mudança social, transformando as práticas sociais dentro de um contexto histórico. O gênero, como produção discursiva, não descreve apenas construções sobre corpos materiais, naturais e preexistentes, ele provoca a ideia de que os corpos também são produtos do discurso. Em concordância, Butler (2001) afirma que gênero e corpos são produções discursivas que se constituem a partir do momento exato em que são nomeados e ainda que “discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso” (2001, p. 22). Se tomamos que a subjetividade e as relações de gênero constituem‐se discursivamente, devemos lembrar que o discurso não remete apenas à linguagem simbólica, os discursos, segundo Foucault, são práticas concretas que constituem o sujeito e que se encontram disseminados nas mais diversas instituições na forma de práticas disciplinares e disciplinantes. Para Butler, embora o sujeito esteja sempre exposto a determinados discursos, ele pode, na construção de sua subjetividade, se reconfigurar, não havendo espaço só para a submissão, mas também para resistência ao discurso dominante que o constitui. É neste sentido de subversão dos discursos de gênero dominantes na nossa sociedade, engendrados por designações naturalizadas, heteronormativas, essencialistas e androcêntricas, que está a importância de se estudar os discursos de gênero em determinados contextos sociais, principalmente àqueles que são responsáveis pela formação de profissionais da educação e as próprias escolas. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.8
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira A TRADIÇÃO FILOSÓFICA E OS DISCURSOS SOBRE A MULHER Neste espaço buscarei apresentar como, historicamente, as mulheres foram tratadas pela Filosofia e, posteriormente, demonstrar a existência de uma Filosofia feminina mesmo que essa seja desconsiderada pela tradição. Diotima é uma forte personagem dos diálogos de Platão, uma sacerdotisa. Impedida de participar do diálogo, sua presença é conferida pela voz de Sócrates. Com isso, o filósofo demonstrava que, para ele, o pensamento é feminino, enquanto a voz, ou seja, o corpo que pode estar presente na praça pública é masculino. Segundo Tiburi (2008, p.61), o método da maiêutica é algo além de uma simples metáfora, pois, é a mãe de Sócrates, que pare o filósofo, que é parteira, que serve como um “paradigma profissional” a ele, “ao mesmo tempo que é aquela que ele nunca poderá ser, simplesmente por ser homem.” Segundo a pensadora, esse “poder, assustador, perturbador do corpo feminino, inatingível ao homem, é justamente o que ele buscará controlar. (Ibdi, p.61)” A natureza livre, em Aristóteles, concedeu ao homem o espaço público, o universo da dominação, do poder e da governabilidade. Da mesma forma que confinou a mulher ao mundo doméstico, por sua natureza fraca e limitada. A forma ideológica do machismo é orientado por uma falsa consciência, já que o corpo masculino é compreendido como orientador das bases éticas, estéticas e até metafísicas do poder exercido pelos homens sobre as mulheres. A mulher grega está enclausurada no gineceu e de nenhuma forma participa da vida cultural e política da pólis. Prevalece e regra formulada por Sócrates: "aos homens a política, às mulheres a casa". Por sua vez, São Tomás de Aquino afirmou que "a mulher é um ser acidental e falho. Seu destino é o de viver sob a tutela do homem. Sobre si mesma ela não tem autoridade alguma” (2004, p.62). Ainda, para o filósofo, “por natureza a mulher é inferior ao homem em força e dignidade e por natureza lhe está sujeita, pois no homem o que domina, por sua própria natureza, é a facilidade de discernir, a inteligência” (Ibid, 63). O sociólogo Marcos Rolim (disponível em http://www.rolim.com.br/discur3.htm), afirma que “a lembrança de São Tomás nos é particularmente significativa, pois revela uma tradição X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.9
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira teológica que jamais encontrou dificuldade em amparar‐se em textos bíblicos. A começar pelo mito da criação, encontraremos no Gênesis o símbolo mais evidente do papel secundário atribuído à mulher. Eva não surge senão de uma costela de Adão.” Historicamente, mais próximo de nós, Nietzsche, afirmava que o espaço do homem era a guerra e ele deveria ser educado para tal, enquanto a mulher não seria nada além da recreação do guerreiro. Ela significava tão‐somente o brinquedo mais perigoso do homem. Este chegou a recomendar o chicote para aquele que desejasse ir ao encontro de uma mulher. Nem mesmo Kant, considerado um dos maiores filósofos da história se posicionou fora desta lógica. Claramente, ele valoriza na mulher sua fragilidade, postura sutil e caráter sublime e alto grau de ternura, além de apresentar‐se sempre fiel. Afirma o filósofo que uma mulher se sente pouco embaraçada por ser desprovida de grandes ideias, ou por se mostrar receosa com ocupações importantes ou despreparada para elas. É bela e agrada – e basta. Em contrapartida, exige do homem todas essas qualidades, e a sublimidade de sua alma revela‐se apenas em saber apreciar essas nobres qualidades, tão logo devam encontrar‐se nele. (KANT, 1993, p.62‐63) Ainda em Kant, é possível perceber que é abandonada a distinção entre os gêneros quando o filósofo estabelece a todos os seres humanos, direitos iguais. Porém, na Metafísica dos costumes (Kant,1798), na seção destinada ao casamento, existe a afirmativa de que a mulher deve ser necessariamente subordinada ao marido. Continuando o exercício de busca de mulheres na história do pensamento humano, podemos encontrar diversos nomes, desde as pré‐diótimas mulheres que educavam homens e mulheres e, em alguns casos, possuíam suas próprias escolas, Aspásia, sofista contemporânea de Sócrates, Hipácia, uma matemática alexandrina a Hipárquia, a cínica. Segundo Wuensch (2005, p.103) “é mais fácil encontrar referências generosas a este passado nos escritos renascentistas do que nos manuais de Filosofia que usamos hoje no ensino médio ou na universidade.” Existem ainda, mulheres que recusaram a autodesignação de filósofas. Um exemplo disso é a pensadora Hanna Arendt, que destacou “uma tendência (filosófica) ao X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.10
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira tirânico”, com sua possibilidade e desconectar‐se da realidade, podendo desprender‐se completamente do mundo em que vivemos e ignorá‐lo, tornando a filosofia anti‐política. Outra filósofa que segue essa mesma linha é a autora da obra O segundo sexo, pioneiro manifesto do feminismo, Simone de Beauvoir não aceita se colocar neste círculo sendo tratada nos meios acadêmicos como literata e não como pensadora. Para Wuensch, as pensadoras citadas, e outras tantas, permanecem fora das práticas acadêmicas e escolares, pois, não há uma cultura, ou seja, uma tradição de ensino e pesquisa ou eventos regulares dedicados ao tema. Assim, as pensadoras (no plural) não existem como referências utilizadas nos debates, como problema nas ementas dos cursos, como lembrança ou perspectiva de trabalho no imaginário filosófico. A ausência das pensadoras parece ser o resultado da ocultação ou ignorância de referências às mesmas, um esquecimento produzido ao longo de séculos. (WUENSH, 2005, p. 102) A autora afirma que, a partir disso, se forma um círculo vicioso, onde não se ensina porque não há discussões sobre o tema, não há produção nesse sentido, pois não se discute e, portanto, não se ensina. Segundo ela, é necessário reconhecer a relevância deste tema para que sejam colocados em prática estudos e pesquisas sobre ele. Assim, será possível estabelecer um trabalho que contemple a continuidade de formação de professores, a extensão entre escola e universidade. A escola desempenha um papel importante na construção das identidades de gênero, pois, como parte de uma sociedade que discrimina, ela produz e reproduz desigualdades de gênero, raça, etnia, bem como se constitui em um espaço generificado (LOURO, 2007). É importante, também, salientar, que um dos principais objetivos da escola consiste em ampliar os conhecimentos de alunos e professores, devendo ser um espaço de questionamento, produção de conhecimento, e aprofundamento de toda questão que seja do interesse dos e das estudantes. Nesse sentido, qualquer tema que circule no espaço escolar é passível de problematização. Desta forma, se mostra necessário questionar a formação dos professores e professoras de Filosofia, para pensar em práticas filosóficas na escola básica, que X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.11
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Ensino de Filosofia: a escola como espaço de (des)construção de gênero Ana Lúcia Bighelini de Oliveira contemplem uma perspectiva de gênero. Pois, apenas a afirmação da filosofia nesse espaço, como disciplina, não garante este tipo de discussão. REFERÊNCIAS AQUINO, T. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2004. ALVES, Branca Moreira, PITANGUY, Jacqueline. O que é FEMINISMO. São Paulo : Ed. Abril cultural : Brasiliense, 1985 FIGUEIREDO, V. Por que Hannah Arendt não quis tornar‐se filósofa? In: Mulheres, Filosofia ou coisas do Gênero. Org. Marcia Tiburi e Barbara Valle. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. FOUCAULT, M. A Ordem do discurso. 19. ed. São Paulo: Loyola, 2009. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Org. Guacira Lopes Louro. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001 KANT, I. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Campinas: Papirus, 1993. LOURO, Guacira L. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós‐estruturalista, Petrópolis : Vozes. 2007 ROLIM, M. Elogio às bruxas. Disponível em: http://www.rolim.com.br/discur3.htm (consultado em 29/05/2013) ROSEMBERG, F. Mulheres educadas e a educação das mulheres. In: Nova história das mulheres no Brasil. Org. Carla Pinsky e Joana Pedro. São Paulo: Contexto, 2012. TIBURI, M. As mulheres e a questão Biopolítica. In: Mulheres, Filosofia ou coisas do Gênero. Org. Marcia Tiburi e Barbara Valle. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. WUENSCH, A. M. Sobre as mulheres, pensadoras e currículos de Filosofia. In: Filosofia e Ensino: a filosofia na escola. Org Maria Alice Coelho Ribas et al. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.12
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