UFRJ A CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL COMO MATÉRIA PRIMA DA TEORIA POLÍTICA DE MARX EM 1843 Wellington Trotta Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política. Orientador: Aluízio Alves Filho Rio de Janeiro Dezembro de 2004 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. ii A CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL COMO MATÉRIA PRIMA DA TEORIA POLÍTICA DE MARX EM 1843 Wellington Trotta Orientador: Aluízio Alves Filho Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política. Aprovada por: ___________________________________ Presidente, Prof. Aluízio Alves Filho ___________________________________ Prof. Antonio Celso Alves Pereira ___________________________________ Prof. Charles Pessanha ___________________________________ Prof. Ivair Coelho Lisboa R. N. Itagiba Filho Rio de Janeiro Dezembro de 2004 iii Trotta, Wellington. A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel como matéria prima da teoria política de Marx em 1843./ Wellington Trotta. - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2004. vi, 140f.: 31 cm. Orientador: Aluízio Alves Filho Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de PósGraduação em Ciência Política, 2004. Referências Bibliográficas: f. 129-133. 1. Estado. 2. Política. 3. Idealismo. 4. Materialismo. 5. Hegelianismo e instituições. I. Alves Filho, Aluízio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em Ciência Política. III. A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel como matéria prima da teoria política de Marx em 1843. iv RESUMO A CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL COMO MATÉRIA PRIMA DA TEORIA POLÍTICA DE MARX EM 1843 Wellington Trotta Orientador: Aluízio Alves Filho Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pósgraduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política. O objetivo da presente da presente dissertação é analisar dentro da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, o entendimento de política, Estado e suas instituições no pensamento de Karl Marx em 1843, quando redige suas anotações críticas sobre o livro Filosofia do Direito de Georg Wilhem Friedrich Hegel. Destacase que o centro da discussão é saber a relevância do Estado enquanto elemento capaz de operar a inversão social sobre o político, contraposto ao pensamento político ociental que coloca a dimensão social subordinada à política, com isso destacando o Estado como elemento fundamental dentro da sociedade moderna. Palavras-chave: estado, política, idealismo, instituições. Rio de Janeiro Dezembro de 2004 materialismo, hegelianismo e v ABSTRACT A CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL COMO MATÉRIA PRIMA DA TEORIA POLÍTICA DE MARX EM 1843 Wellington Trotta Orientador: Aluízio Alves Filho Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pósgraduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política. The goal of this research is an analysis of Karl Marx´s thought on politics, State and its institutions, produced during his studies about Georg Wilhem Friedrich Hegel and the legal philosophy in 1843. The objective of the present work is to search State while capable to operate the inversion of the social one on the politician, what politician opposes itself to the thought occidental person, who places the social dimension subordinate to the politics, with this detaching the State as basic element inside of the modern society. Key words: state, politics, materialism, idealism, hegelianismo and institutions. Rio de Janeiro Dezembro de 2004 vi AGRADECIMENTOS Primeiramente desejo agradecer a todo corpo docente do Programa de PósGraduação de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelos conhecimentos construídos e transmitidos através do diálogo, pelas mãos pacientes dos professores Valter Duarte, Izabel de Oliveira, Antônio Celso, Eli Diniz, Aluízio Alves Filho e Charles Pessanha. Agradeço especialmente ao meu orientador, Prof. Aluízio Alves Filho, que no processo de elaboração da presente dissertação, sempre esteve presente e, mais do que isso, nunca se negou a discutir os pontos nevrálgicos da pesquisa, em que, com sua atenção às indagações apresentadas, mostrou-se sempre tranqüilo face ao seu reconhecido cabedal teórico. Agradeço também ao meu segundo orientador, Prof. Charles Pessanha, pelos conselhos oportunos que foram incorporados ao trabalho, sem sombra de dúvida melhorando-o consideravelmente. Agradeço aos amigos de turma André Pellicione, Fabrício Neves e Luis Penteado pelo incentivo nos momentos difíceis em que a pesquisa se completava. Preciso destacar o carinho, a compreensão e as dificuldades pelas quais minhas mulher e filha passaram no processo de elaboração da presente dissertação. A elas e aos meus pais, dedico este trabalho. vii SUMÁRIO Introdução 1 Capítulo 1. Sobre Marx e Hegel: breve histórico 5 Hegel Marx Capítulo 2. O Pensamento político de Hegel 14 Os principais elementos da filosofia hegeliana Filosofia do Direito: o político no sentido de Hegel Família, Sociedade Civil e Estado A Constituição, poderes políticos e o papel da burocracia A burocracia: função do Estado Hegel: propriedade e a propriedade privada O problema da representação política Capítulo 3. Marx e a crítica ao idealismo hegeliano 55 Feuerbach, uma influência decisiva sobre Marx A inversão do método filosófico-especulativo pelo método filosóficohistórico Capítulo 4. O pensamento político de Marx no limite da Crítica de 1843 69 Família, sociedade civil e Estado Constituição Soberania e poder soberano Poder governativo e a burocracia O poder legislativo Marx e a propriedade privada Democracia como oposição à monarquia Conclusão 124 Referências bibliográficas 129 Introdução O propósito que anima a presente dissertação é analisar dentro da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1 o entendimento de política, Estado e suas instituições no pensamento de Karl Heinrich Marx (1818-1883) em 1843, quando redige suas anotações críticas sobre o livro Filosofia do Direito de Georg Wilhem Friedrich Hegel (1770-1831). Destaca-se que o centro da discussão é saber a relevância do Estado enquanto elemento capaz de operar a inversão do social sobre o político, contraposto ao pensamento político ocidental que coloca a dimensão social subordinada à política, com isso destacando o Estado como elemento fundamental dentro da sociedade moderna. Considerando a relevância do tema dentro do pensamento marxista, não faço nenhuma revisão de leitura e muito menos discuto a possível dicotomia entre o jovem Marx e o Marx maduro, muito embora sobre o mesmo problema possa se encontrar, dentre muitos autores, um pensador da importância de Louis Althusser (1918-1990), que considera a produção juvenil de Marx idealista. 2 Ao passar em revista a Filosofia do Direito de Hegel, Marx examina não uma filosofia política ou um dado pensamento político, mas aquilo que pretendia ser a própria conclusão da filosofia, ou a conclusão política da filosofia. Marx acreditava que sua crítica a Hegel se estenderia ao Estado moderno e todas as suas conseqüências, dentre as quais os resquícios de uma medievalidade que ainda se 1 Essa obra foi redigida por Marx em 1843 quando de sua estada em Kreuznach, publicada, porém, após sua morte originalmente em 1927, organizada pelo grande estudioso russo David Riazanov, fundador do Instituto Marx-Engels de Moscou. 2 Os textos filosóficos de Marx de 1841 a 1845, incluindo A Sagrada Família, estão construídos sobre uma problemática idealista, não importa se idealista liberal ou idealista antropológica, que teve Marx que criticar radicalmente para poder estabelecer sua nova teoria da história e a nova filosofia que corresponde a ela. ALTHUSSER, L. Materialismo Histórico e Materialismo Dialético: 40. Althusser propõe em A Favor de Marx, uma classificação quanto à produção teórica de Marx da seguinte maneira: a - Obras da Juventude: 1840-1844; b – Obras da censura: 1845; c – Obras da maturação: 1845-1857; d – Obras da Maturidade: 1857-1883. Idem: 25. 2 sustentava na Europa, sobretudo numa Alemanha envolvida pelas disputas particulares, locais, regionais. 3 Marx, como qualquer outro pensador político, em 1843, na Alemanha, não poderia ignorar a influência dos postulados hegelianos, 4 ainda mais quando tais idéias são disputadas pelos partidários do movimento prussiano e dos que, com a Prússia ou sem a Prússia, têm no professor de Berlim a fundamentação de seus argumentos e movimentos político-partidários. Há em Hegel um projeto político muito claro, e nisso Marx observa sua filiação ao movimento prussiano, que desde o fim do século XVII 5 se constitui numa efetiva e constante força que em torno de si pretende aglutinar todos os estados alemães num processo de unificação política - o que só encontraria resultado em 1871. Destarte o que se tem por fim é compreender se em Marx o Estado é ou não uma construção capaz de superar as contradições existentes na sociedade civil, ou seja, como essa construção supera as contradições e quais os mecanismos adequados à sua consecução, por outra, quais as implicações teóricas para o entendimento de Estado na impossibilidade de tal superação. Na Crítica de 1843, Marx elabora um exame pormenorizado dos parágrafos 261 ao 313 da Filosofia do Direito de Hegel, onde procura na leitura dos mesmos, uma crítica da filosofia política do autor da Fenomenologia do Espírito. Marx ao se debruçar sobre os cinqüenta e dois parágrafos destinados ao estudo do Estado e suas relações dentro da sociedade civil tem por fim não só compreender o pensamento político de Hegel como também investigar a noção de política existente em sua contemporaneidade, considerando que a respeito do Estado moderno o pensamento hegeliano seja paradigmático. Não se pode olvidar de que Marx na sua 3 Além dos males modernos, oprime a nós alemães uma série de males herdados, originários de modos de produção arcaicos, caducos, com seu séqüito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito do tempo. Somos atormentados pelos vivos e, também pelos mortos. MARX, K. O Capital: 5. 4 QUAINI, M. Marxismo e Geografia; SCHILLING, K. História das Idéias Sociais. 5 ANDERSON, P. Linhagens do Estado Absolutista. 3 Crítica de 1843, ao Estado moderno e ao próprio Hegel, está de alguma forma construindo sua noção de Estado e conseqüentemente de política. Visando uma melhor exposição do presente trabalho, dividi-o em quatro capítulos e uma conclusão, a saber: Capítulo 1: Sobre Marx e Hegel: breve histórico Capítulo 2: O Pensamento político de Hegel Capítulo 3: Marx e a crítica ao idealismo hegeliano Capítulo 4: O pensamento político de Marx no limite da Crítica de 1843 No capítulo primeiro, Sobre Marx e Hegel: breve histórico, procuro muito sucintamente apresentar alguns dados biográficos essenciais cujo fim é localizar os dois pensadores dentro de seus respectivos momentos sem me alongar em fatos já exaustivamente conhecidos e explorados. É um histórico peculiar porque apresento Marx até o momento de sua crítica a Hegel. No segundo capítulo, O Pensamento Político de Hegel, trabalho sua Filosofia do Direito extraindo os tópicos mais importantes de sua filosofia política, fazendo relação com sua filosofia através de uma exposição sistemática daquilo que Hegel compreende por filosofia. Procurei restringir-me a essa obra na intenção de buscar o substantivo do sentido de política em Hegel, sem com isso discutir outros textos da mesma natureza de sua autoria, anteriores ou posteriores à sua obra política máxima. É preciso ainda esclarecer que o estudo direto do pensamento político de Hegel está circunscrito à discussão do Estado, portanto, a terceira seção da terceira parte A Moralidade Subjetiva, especificamente os parágrafos citados, embora faço incursões em outros parágrafos quando necessário. Partindo do princípio que apresento um capítulo de situação histórica dos dois personagens deste trabalho e, que em seguida pontuei os postulados políticos e filosóficos de Hegel, não poderia proceder de maneira diferente senão no terceiro capítulo apresentar o Marx até o momento da Crítica de 1843. O que fiz. Nesse 4 capítulo intitulado Marx e a crítica ao Idealismo Hegeliano, trabalhei no sentido de não só demonstrar como também discutir o pensamento de Marx no limite da proposta da dissertação, com isso corrigindo algumas dúvidas que me assaltavam e escurecia o que supostamente conhecia a respeito daquele Marx ainda caminhando na busca de um leme firme e seguro. Certamente tive que me conter quanto ao terceiro capítulo destinado a uma síntese do pensamento de Marx em 1843, para mais adiante trabalhar com suas críticas a Hegel de forma mais aprofundada. E por quê? Pela intenção de pensar discutindo, ou melhor, discutindo de forma reflexiva quando no quarto capítulo, O pensamento político de Marx no limite da Crítica de 1843, cito sua referida obra exaustivamente por meio de recortes. Nesse capítulo apresento o pensamento político de Marx na mesma ordem que construí o de Hegel no capítulo terceiro, isso com o fim de tornar legível e continuado a crítica feita pelo autor de O Capital. Esse capítulo é o mais longo de todos por uma razão muito simples: nele estão os elementos teóricos e críticos do pensamento de Marx em 1843, por isso os detalhei na medida do possível no interesse de tornar claro o intento da dissertação. É longo por ser necessário; é longo por nele estar contido as principais reflexões de Marx em 1843, constituindo a espinha dorsal da presente pesquisa. Desse capítulo extraio as conclusões julgadas pertinentes dentro da Crítica de 1843. Por fim, a conclusão ficou adequadamente reduzida a algumas páginas, onde estão resenhados os conteúdos principais da presente pesquisa. Capítulo 1 Sobre Hegel e Marx: breve Histórico No princípio do século XIX ocorreram grandes transformações nos cenários artístico, filosófico e científico alemão. Foi nesse contexto, tipificado por uma espécie de renascimento que se destacou a obra de Georg Wilhem Friedrich Hegel, que por sua originalidade filosófica inaugurou uma nova época de pensar o social, ou melhor, a relação sociedade e Estado. Pode-se considerar que com Hegel tem início o período contemporâneo da história do pensamento filosófico ocidental e de toda a sua influência no pensamento político. Hegel é um marco definitivo. Pela sua ambição intelectual, por seus vastos conhecimentos, e por seus esforços permanentes em elaborar uma síntese filosófica, passa a posteridade como uma referência fundamental na Filosofia e também na Política. Hegel Filho de um modesto funcionário público do Departamento de Finanças do Ducado de Würtemberg, Hegel nasceu em Stuttgart no dia 27 de agosto de 1770, tendo recebido uma educação não diferente dos jovens de sua época, destacou-se nos estudos de latim e história clássica. Em sua juventude foi influenciado pela literatura de William Shakespeare quando de seu professor Löffler, recebeu um volume das obras do poeta inglês. Hegel, por influência de seu pai e pelos seus méritos enquanto bom aluno, recebeu uma bolsa ducal para cursar Teologia na Universidade Regional de Tübingen. Ao se formar em 1793, recebeu um certificado que declarava ser ele um homem bem-dotado e de bom caráter, bem preparado em teologia, mas sem nenhuma aptidão em filosofia. 6 No Seminário Hegel foi fortemente influenciado por Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) e Johann Christian Friedrich Höelderlin (1770-1843). Este apresentara ao futuro autor da Filosofia do Direito os encantos da Grécia clássica, ao passo que Schelling abriu-lhe uma nova perspectiva filosófica na discussão do 6 DURANT, W. A História da Filosofia: 278. 6 real em relação ao ideal. Afirma-se que Hegel, Shelling e Höelderlin em uma certa manhã, bem cedo na praça do mercado, plantaram uma Árvore da Liberdade em homenagem ao sucesso da revolução francesa de 1789. Isso retrata o impacto positivo de quanto a Revolução animava não só a camada culta alemã, como também sua própria juventude. Embora Schelling fosse mais novo que Hegel, alcançou mais cedo maior reputação que seu colega. Seus trabalhos filosóficos encontram publicações e, de alguma forma ecoam no mundo das letras filosóficas. Hegel, pela sua própria formação, construía a imagem daquele filósofo que pouco a pouco edifica o seu próprio sistema e com isso uma base que em breve se transformará no seu principal elemento de consistência filosófica. Os primeiros escritos de Hegel, os da juventude, passam pelo problema teológico, em que o pensador alemão formula inúmeras reflexões acerca do Cristianismo sempre tendo a cultura grega como norte ideal de organização política. Em tais escritos primeiros, Hegel chega a comparar Jesus com Sócrates, uma vez que humaniza aquele na tentativa de estabelecer um paralelo não só de personalidade como também envolver os aspectos culturais que cada um representou ante suas respectivas culturas. Hegel via no Cristianismo um avanço considerável em relação ao indivíduo face ao Judaísmo que, para ele, era uma religião positiva no sentido de que as normas eram emanadas diretamente de Deus numa prescrição de comportamento a partir de um código exterior aos homens. O Cristianismo se constituía em um avanço justamente por ser inverso ao Judaísmo, pois seu caráter subjetivo proporcionava ao homem um sentido de liberdade individual que ligava os homens dentro de uma comunidade humana. Para Hegel o Cristianismo desenvolve a subjetividade quando os próprios homens, pelo amor uns com os outros, criam um sentido de comunidade que faz lembrar a cidadania ateniense, isto é, o homem pela dimensão do cidadão. Nesse período destacam-se os seguintes escritos de Hegel: 7 a - Fragmentos sobre Religião Popular e Cristianismo (1793/94); b - Vida de Jesus (1795); c - A Positividade da Religião Cristã (1795/96); e d - O Espírito do Cristianismo e seu Destino (1798/99). Estes textos foram publicados depois da morte do autor em um único volume intitulado Escritos Teológicos Juvenis de Hegel. Os primeiros escritos de Hegel são marcados por uma preocupação teológica sem com isso ser uma apologia a teologia. Leandro Konder assinala que: Nos chamados escritos teológicos juvenis, os temas que têm a ver com a teologia são sempre abordados em ligação com as preocupações terrenas, com a história política dos homens. Para o jovem Hegel, o enriquecimento da consciência religiosa dependia do enriquecimento da consciência política. A religião precisava contribuir para que os seres humanos desenvolvessem sua capacidade de agir, de intervir no mundo, transformando-o de acordo com seus desígnios. Ao longo da história do cristianismo, os cristãos tinham rezado muito e atuado deficientemente: tinham ficado numa postura contemplativa, passiva (...). 7 Pode-se dizer que Hegel toma sua cultura religiosa e tenta viabilizá-la a partir da perspectiva do que entende por cidadania ateniense, tentando compatibilizar os elementos do cristianismo com os da filosofia grega. Esta será uma preocupação permanente em sua obra. Mais tarde, na Filosofia do Direito, retomando o tema, seu enfoque é o cidadão como voz do indivíduo, em que o Estado como unidade política é o centro da vida ética coletiva. Hegel por volta de 1800 se transferiu para Jena a convite de Schelling, com o fim de lecionar na mesma Universidade que seu amigo para lá fora levado por Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Esse momento marcou decisivamente a vida de Hegel, pois, na medida que começou a lecionar na referida instituição, deu prosseguimento aos seus estudos filosóficos propriamente ditos. Hegel, após a publicação da Fenomenologia do Espírito, em 1807 - que trata dos movimentos necessários da consciência, do seu despertar até o que poderia se chamar de 7 KONDER, L. Hegel, a razão quase enlouquecida: 7. 8 tomada da essência da realidade -, aprofunda seu conhecimento filosófico e torna sua filosofia cada vez mais abstrata na busca de uma razão universal que não seja fruto de particularidades de simples opiniões, mas um esforço do espírito que se pensa a si mesmo no cenário histórico da consciência. Seguindo a publicação da Fenomenologia do Espírito, Hegel apresenta ao publico em 1813 a Ciência da Lógica, que tem por fim um estudo ontológico, um estudo do ser. Konder em seu livro Hegel, a Razão quase enlouquecida, apresenta uma boa síntese das preocupações contidas nesse volumoso livro de Hegel. A Ciência da Lógica [pondera Konder], trata de esclarecer as relações entre os conceitos fundamentais com os quais a razão precisa trabalhar; e mostra que, assim como o infinito está nos próprios seres finitos e depende da finitude, também o absoluto está nos seres relativos, o universal está nos seres singulares e a essência está nos fenômenos; ao contrário, nutre-se dele: funda nele sua existência concreta. 8 Em 1817 apareceu a primeira versão da obra Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Nessa obra Hegel procurou coroar seu sistema de forma a dividi-lo em três momentos, isto é, em três volumes, assim como na sua dialética tríade. O primeiro momento foi dedicado ao estudo da lógica através de uma grande síntese; no segundo momento desenvolve a sua filosofia da natureza. No terceiro e último momento estuda a filosofia do espírito. Em Berlim, por volta de 1827, Hegel retoma a Enciclopédia e promove algumas modificações com o fim de atender as premissas do seu sistema, sem com isso alterar o sentido originário que lhe dera. No terceiro momento ou volume da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Hegel ensaia o que mais tarde aprofundará com a publicação de sua Filosofia do Direito em 1821, isto é, o estudo do Estado (eticidade), as relações entre universal e particular, como são possíveis as relações no plano político e em que medida o direito efetivaria a liberdade, e a normatividade como dimensão pública, resguardando os homens nas suas relações necessárias. Hegel morre em 13 de 8 Idem: 48. 9 novembro de 1831, aos 61 anos, de cólera. Passou à posteridade como um dos poucos filósofos a alcançar em vida, grande notoriedade pública. Hegel deixa em toda Alemanha uma herança intelectual sem precedentes na história do pensamento ocidental. De suas lições, de seus escritos serão construídas diversas escolas filosóficas. Logo após sua morte seus discípulos e admiradores se dividiram em duas grandes correntes: os hegelianos de direita e os hegelianos de esquerda, assim chamados por David Friedrich Strauss (1808-1874). Os hegelianos de direita tinham na filosofia da religião de Hegel o alicerce de seus princípios filosóficos, ao passo que os hegelianos de esquerda extraiam de sua dialética, o conteúdo crítico de suas conclusões políticas. Segundo Giovanni Reale e Dario Antisseri em História da Filosofia, a divisão de direita e esquerda hegelianas pode ser observada do seguinte modo: No que se refere à política, a direita hegeliana sustentava, grosso modo, que o Estado prussiano, com suas instituições e suas realizações econômicas e sociais, devia ser visto como o ponto de arribação da dialética, como a realização máxima da racionalidade do espírito. Já a esquerda, ao contrário, invocava a teoria da dialética para sustentar que não era possível deter-se em configuração política e que a dialética histórica deveria negá-la para superá-la e realizar uma racionalidade mais elevada. 9 Pode-se ponderar, de maneira sintética, que os hegelianos de direita sustentavam que o Estado prussiano como tal encontrara sua forma definitiva. Em oposição a esses, os hegelianos de esquerda, sustentados pela dialética hegeliana, negavam o Estado prussiano existente. Desse segundo grupo há um segmento de jovens estudantes e professores entusiasmados com a nova situação da Europa e mesmo a perspectiva de um novo Kaiser alemão comprometido com uma liberalização da Prússia. Esse pequeno grupo tornou-se conhecido pela denominação de os jovens hegelianos, que muito ativos procuravam por todos os meios exercer influência no meio político alemão. 9 REALE & ANTISSERI. História da Filosofia, vol. III: 163. 10 Os jovens hegelianos formavam intelectualmente um agrupamento heterogêneo e não constituíam uma base teórica específica ou mesmo uma linha política definida. Seus membros tiravam de Hegel aquilo que interessava às suas teses e formulações políticas. Em função disso muito rapidamente os jovens hegelianos, enquanto movimento político de suma importância, sofreu um processo de descontinuidade. Destacam-se nesse grupo o próprio Strauss, Bruno Bauer (1809-1882), Max Stirner (1806-1856), Arnold Ruge (1802-1880), Ludwig Feuerbach (1804-1872) e Karl Marx, todos pensando politicamente, mas cada um a partir de pontos de vista diferentes uns dos outros. Assumindo desde cedo uma postura eminentemente política, buscando em suas reflexões a representação dos fatos a partir de sua materialidade, Marx, em seus escritos, toma muito rapidamente o sentido de história legado por Hegel e assume definitivamente o plano concreto como esteio de seu pensamento políticofilosófico. Marx Karl Marx nasceu em 15 de maio de 1818, em Tréveris. Recebeu de seu pai influência decisiva pelo gosto polêmico da política. Adotando a fé protestante liberalmente após preferir a carreira de advogado quando se viu impedido do culto judaico face às leis anti-semitas da Renânia, em 1816, Heinrich Marx, um iluminista de primeira hora, leitor de Immanuel Kant (1724-1804), Voltaire (1694-1778), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e outros, insiste para que seu filho não só se inclinasse para o Direito bem como o orientou na busca de uma sólida formação intelectual que de alguma forma pudesse influir na formação de sua postura política. Karl Marx matriculou-se na Universidade de Berlim depois de uma temporada na Universidade de Bonn. Em Berlim, ao chegar em 1836, tomou contato coma a filosofia de Hegel, tornando-se membro do Doktorklub, 10 e desde logo percebeu as vantagens do pensamento político deste em detrimento do 10 Associação dos Jovens Hegelianos. 11 defendido por Kant. Marx se dispõe a estudar o pensamento de Hegel, 11 e de imediato certificou-se que as relações políticas na Alemanha estão muito aquém do que acontece em centros como França e Inglaterra. Marx graduou-se em Jurisprudência, e logo depois obteve em 1841 o doutorado em Filosofia pela Universidade de Jena, com a tese Diferenças das Filosofias da Natureza em Demócrito e Epicuro, em que mesmo apresentando uma abordagem idealista, anuncia algumas diferenças quanto ao restante dos jovens hegelianos, que mais tarde serão radicalizadas pela Ideologia Alemã. Em razão da censura imposta a Bruno Bauer pelo governo prussiano, quando despedido do cargo de professor da Universidade de Bonn, por motivos político, Marx resolveu desistir de ingressar no mundo acadêmico, transferindo assim seus objetivos para a imprensa, onde poderia levar adiante seu projeto crítico da realidade alemã. Nesse sentido, em pouco tempo Marx assume a editoria do jornal Gazeta Renana de Política, Comércio e Indústria (1842-1843) que desferia ácidas análises não só contra o Estado prussiano como também à inteligência alemã. Marx em breve se constituía num objeto de permanente preocupação da censura prussiana, tanto que o mesmo jornal foi fechado e Marx mais uma vez teve que se silenciar, o que fez aproveitando os dias de recém-casado. É nesse período que passa a fazer um exame detalhado da obra política máxima de Hegel, os Princípios da Filosofia do Direito. Nos anos quarenta do século XIX, momento importante da história política européia, especialmente a alemã, vive-se dias de intensa mudança. A Europa assiste a uma ebulição de 1830 a 1848, onde muitos Estados como França, Bélgica, Suíça e outros passam por transformações políticas em razão de suas respectivas burguesias se movimentarem no exercício do poder quando buscam aquele modelo mais eficiente conforme seus interesses. Na Alemanha, particularmente na Prússia, essa mesma burguesia não se faz presente no sentido de resguardar seus 11 MCLELLAN, D. Karl Marx, Vida e Pensamento: 40. 12 interesses. Seus representantes não são orgânicos e, com isso, não há representação política, isto é, a monarquia prussiana está longe ora do modelo francês, ora do modelo inglês. Droz comenta que: El advenimiento al trono del nuevo rey de Prusia, Federico Guillermo IV, en 1840, cuyas primeras decisiones – suavización de la censura, amnistía, publicidad de las Dietas provinciales y creación de una comisión unida que se reunía cada dos años en Berlín – provocaron el resurgimiento de la esperanza, parecía dar la razón a los que especulaban sobre la evolución de Prusia hacia el liberalismo. Pero estas esperanzas estaban basadas en puras ilusiones y Federico Guillermo iba a demostrarlo muy pronto: era un soberano romántico, ligado al concepto de Estado cristiano y germánico, sin contacto con las fuerzas sociales surgidas de la revolución económica, y cuya inhábil política iba a preparar el camino a la Revolución. 12 Como Marx está diante dessa realidade que se apresenta aos seus olhos, a ele não resta outra alternativa senão buscar na crítica política a verdadeira crítica da sociedade, do Estado e da religião. Para isso se debruça sobre a filosofia política de Hegel no intuito de mastigar o Estado moderno, que no seu entendimento era Hegel o maior intérprete, mesmo quando o critica em sua Filosofia do Direito. É, portanto, o próprio Marx que, bem distante de 1843, no Prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política em 1858, assinala os imperiosos motivos que o levaram a retomar Hegel: os problemas reinantes na sociedade civil burguesa e toda relação de causa na dita condições materiais de existência. O primeiro trabalho que empreendi para resolver a dúvida que me assediava foi uma revisão crítica da filosofia do direito de Hegel, trabalho este cuja introdução apareceu nos Anais Franco-alemães editados em Paris em 1844. Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendias nem a partir de si mesma, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de sociedade civil (bürgerliche Gesellschaft), seguindo os ingleses e franceses do século XVIII. 13 Chegando a este ponto, pode-se considerar nesta passagem a chave da compreensão da presente dissertação e seu significado em discutir o pensamento 12 DROZ, J. Historia da Alemania: la formación de la unidad alemana 1789/1871. Vol. 1: 140. 13 MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política (Prefácio): 53. 13 político de Marx nos limites da Crítica de 1843. Isso porque o Estado aos olhos de Marx assume uma perspectiva diferente daquela apresentada pelos pensadores políticos jusnaturalistas. 14 Marx chega a Hegel não para negá-lo simplesmente mas, na medida em que o estuda, demonstrar as incongruências do seu pensamento como as incongruências daquilo que se convencionou chamar Estado moderno. Por fim, Marx estava convencido, e o Prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política mostra, que o seu pensamento político se desloca para um plano material, e que o grande significado da origem desse giro 15 é mais que um ajuste de contas com sua consciência, mas sim um giro decisivo dentro da história não só do pensamento político, científico e filosófico, como um giro dentro dos movimentos sociais que tem em Marx um referencial, um norte intelectual. 16 14 Teóricos ligados ao jusnaturalismo, corrente que defendia a existência de um direito natural que seria anterior e superior ao direito positivo posto. Tal corrente deu origem as seguintes escolas: o contratualismo, o constitucionalismo e o liberalismo Ver BOBBIO, N. Dicionário de Política. 15 Esta expressão foi retirada de José P. Netto, que a utiliza em seu trabalho, A Propósito da Crítica de 1843, numa coletânea de ensaios destinada ao centenário da morte de Marx, organizada por J. Chasin. Esta expressão, embora não revele, Netto com certeza tirou de Kant quando este atribui à Crítica da Razão Pura, um giro copernicano de natureza epistemológica: Até hoje admitese que o nosso conhecimento se devia regular pelos objectos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objectos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objectos, que estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados. Trata-se de uma semelhança com a primeira idéia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imóveis. KANT, I. Crítica da Razão Pura: 19-20. 16 A biografia de Marx já é conhecida por todos aqueles que se interessam em buscar no fundador do socialismo científico, suas argutas interpretações dos fenômenos históricos, que em síntese são fenômenos sociais. Preferi não me alongar em notas biográficas mais específicas com receio de prosseguir num caminho cuja saída seria difícil de encontrar. A vida de Marx por ser extremamente rica pode ser resumida em diversas perspectivas: moral, intelectual e política. Todas essas dimensões, se procurarmos o sentido humano, demasiadamente humano de sua história, encontraremos um sentido épico de vida em que a prática cotidiana da existência está definitivamente subordinada aos princípios teóricos construídos a partir da própria prática revolucionária. Marx, quando muitos dos seus intérpretes se imiscuem em bobinas de contradições, viveu um exemplo de coragem perseguido por poucos. Talvez seja este um dos tantos significados dignos de sua vida. Capítulo 2 O pensamento político de Hegel O projeto prussiano de liderar os estados alemães data especificamente do século XVII com Frederico Guilherme (1640-1688) que, sistematicamente, foi perseguido pelos seus sucessores ora com maior ou menor intensidade conforme as circunstâncias históricas. Após a revolução francesa de 1789, a derrocada de Napoleão, e o enfraquecimento da Áustria, o Estado prussiano intensificou seu projeto político dentro da comunidade germânica. Para isso utilizou o artifício de não só estimular como também chamar para o seu território as melhores cabeças de toda comunidade de língua alemã. Com esse fito fundou a Universidade de Berlim em 1810, tendo a frente como seu primeiro reitor o diplomata e filólogo Wilhelm von Humboldt (1767-1835), mais tarde o filósofo Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) e depois Hegel. 17 Assim o Estado prussiano se consolidava como uma força legítima dentro da cultura alemã, capaz de materializar não só a idéia de uma unidade política como também o sonho de um império forte e efetivo, contrário ao Sacro Império Romano Germânico, apenas uma representação ideal na história germânica. Boa parte da inteligência alemã saudara com entusiasmo o advento da revolução francesa de 1789. 18 Kant embora condenasse os excessos cometidos no período do Terror, não negava o valor histórico do movimento que trouxe para a humanidade um verdadeiro sentido de implementação da liberdade, a maioridade dos homens pela autonomia. Portanto, mesmo sendo saudada por um pequeno, mas expressivo grupo de intelectuais como Adolf von Knigge (1752-1796), Friedrich Gottlieb Klopstock (1724-1803), Goethe e outros assim como os estudantes. 19 A revolução de 1789 não encontrou apoio nas massas populares, pois estas viam os 17 Fichte foi reitor no período de 1810 a 1811, enquanto Hegel ocupou o mesmo cargo entre 1829 a 1830. Dado recolhido do sitio http://www.huberlin.de/hu/geschichte/rektoren. 18 DROZ, J. Historia de las Doctrinas Políticas en Alemania. 19 SCHEID, L. Dois Séculos de História Alemã (política, sociedade e cultura). 15 exércitos franceses como mais um avanço imperial sobre sua pátria. Mais tarde o mesmo Fichte, entusiasta de primeira hora da revolução, simpatizante dos jacobinos, se volta contra a presença francesa na Alemanha embalado pelo renascimento do nacionalismo alemão. Assim como Fichte, Hegel será chamado pelo Estado prussiano a lecionar em Berlim não somente pelo seu já reconhecido valor enquanto filósofo, mas, sobretudo, pelas implicações políticas de suas idéias que na verdade constituíam, ou pelo menos deveriam constituir, os fundamentos de um Estado racional como efetivação de uma idéia, de um projeto existente dentro da própria história alemã, enfim: o Estado prussiano. É nesse contexto que Hegel surge como força emergente e sua filosofia, coroada pelo seu pensamento político, expressa o espírito e a expectativa de sua época. Mesmo não sendo esta dissertação um estudo da filosofia hegeliana enquanto objeto em si, é importante chamar atenção para sua repercussão política dentro do cenário cultural alemão, uma vez que chegou a representar o pensamento de uma perspectiva de mudança do Estado prussiano. Assim compreendendo, julgo necessário apresentar alguns princípios fundamentais que norteiam o pensamento filosófico de Hegel, isso porque o seu pensamento político está subordinado ao plano de sua filosofia como alertam Lefebvre-Macherey. na sua obra Hegel e a Sociedade. Principais elementos da filosofia hegeliana A lógica hegeliana ao contrário de ser uma simples teoria do conhecimento é em verdade uma ontologia. Como tal procura o ser enquanto dimensão do pensamento, identidade absoluta, instância de superação entre objeto e sujeito, ser e pensar. A categoria lógica assume a perspectiva sistemática de explicitação de se conhecer o concreto pelo conceito, como identidade da identidade e da diferença. O conceito é o idêntico que se diferencia a si mesmo no processo lógico da dialética como superação. Nessa relação o sistema se identifica na premissa de que o ser é o 16 pensamento pensando a si mesmo como idéia absoluta. 20 Todos os entes são idéias que existem em razão da representação do Espírito Absoluto, no qual se identificam pensar e ser, conceito e realidade. O absoluto é, por fim, o conceito, e o conceito, a própria identidade. Para Hegel a filosofia se definiria como o conhecimento necessário do conteúdo da representação do absoluto. Sendo assim, o absoluto se confundiria como objeto da própria filosofia, contrariando um postulado fundamental da filosofia kantiana expressa na Crítica da Razão Pura, que consiste na impossibilidade de se conhecer o objeto em si mesmo, o que reduz o conhecimento da coisa pelo fenômeno, pela manifestação exterior do objeto. Ao contrário, para Hegel a lógica teria o papel de compreender o objeto pelo conceito: as condições do conhecimento nem estão arbitrariamente no sujeito muito menos no objeto, mas sim numa estrutura lógica, na idéia, no conceito, por isso filosofia é um conhecimento conceituante. 21 Ressalta-se, ainda, a diferença entre a lógica dialética e a lógica formal: esta se baseia na lógica de Aristóteles, que tem por fundamento o princípio da não-contradição, ao passo que na lógica dialética a contradição não é apenas aceita como também inerente ao próprio movimento do pensamento. Movimento a partir da contradição. A intenção de Hegel é justamente provar que a razão necessariamente se efetiva no mundo e não é apenas uma idéia abstrata. Por isso, sua concepção de conceito difere da tradição filosófica. O conceito que Hegel descreve e concebe está em movimento. Esse conceito é dialético. O motor deste conceito é a contradição. Por isso, o absoluto é percebido no pensamento pela lógica, e não como postulava Schelling, através da intuição. No entendimento de Carneiro Leão: 20 LEÃO, C. Aprendendo a Pensar. 21 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Vol. I: 292. 17 Ser e pensar não se opõem como realidade. Não se pode determinar o dado da experiência sensível como real, contrapondo-o ao pensamento como se o pensamento não fosse real. Abandonar o pressuposto absurdo de que o sensível é o ser e o pensamento é o nada constitui a primeira condição para se pensar logicamente qualquer coisa (...) A essência da abstração não está em se prescindir da matéria sensível, mas na elevação do sensível à estrutura universal do conceito. 22 Com base no exposto, pode-se dizer que o pensamento para Hegel teria a estrutura do universal, condição necessária para o conhecimento do objeto. O pensamento não se configura como algo nadificado, ou melhor, ser e pensamento não se opõem como sentidos opostos em que este se constitui em abstração daquele. Muito pelo contrário, é no pensamento que o objeto encontra a sua dimensão universal, sendo, portanto, concreto, enquanto o sensível apenas revela sua exteriorização como percepção da realidade pensada, porém particularizada. A filosofia hegeliana é antes de tudo um sistema fundado sobre o Espírito Absoluto, 23 que por sua vez é a síntese do espírito subjetivo e do espírito objetivo. Toda filosofia hegeliana é filosofia da identidade, uma vez que este fundamento se expressa na arte, na religião, na história e por fim no mundo ético: no direito, no conceito de Estado. Além do que, por residir a filosofia essencialmente no elemento da universalidade – que em si inclui o particular -, isso suscita nela, mais que em outras ciências, a aparência de que no fim e nos resultados últimos que se expressa a Coisa mesma, e inclusive sua essência consumada. 24 Percebe-se mediante leitura da passagem citada que, para Hegel, o sentido da filosofia está na perspectiva do universal como também é a expressão do universal pelo fato de buscar a coisa mesma, em si, por isso a noção de unidade domina, de certa forma, o seu pensamento, isto é, o universal em si representa a própria totalidade, e, como tal, aquilo que é particular encontra-se como elemento dentro de um sistema, necessariamente. Hegel considera o seu sistema como alternativa à particularidade, ao particularismo filosófico e pretende que tal sistema 22 LEÃO, C. Aprendendo a Pensar: 258. 23 HARTMANN, N. A Filosofia do Idealismo Alemão. 24 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Vol. I: 21. 18 inaugure uma forma de pensar que leve em conta a cultura e sua subordinação ao plano ideal como fio condutor histórico. A verdadeira figura, em que a verdade existe, só pode ser o seu sistema científico. Colaborar para que a filosofia se aproxime da forma da ciência – da meta em que deixe de chamar-se amor ao saber para ser saber efetivo – é isto o que me proponho. 25 Pela leitura do texto supra, Hegel se apresenta como aquele que tem por responsabilidade a construção de um sistema capaz de dar conta da totalidade, visando colocar a filosofia como expressão da verdade. Para Hegel a filosofia não pode se contentar com o papel de mera expectadora, sua importância está determinada pela coisa mesma, o absoluto em si mesmo, pelo saber efetivo. Esse saber efetivo é o saber se processando, se realizando não só para conhecer o centro como para ser o próprio centro: a visão do conjunto a partir do conjunto, dentro do conjunto. Portanto, a filosofia é um modo peculiar de pensar, uma maneira pela qual o pensar se tornar conhecer e conhecer conceituante. 26 Uma opinião é uma representação subjectiva, um pensamento qualquer, uma fantasia que eu posso ter dum modo e outros de outro modo; uma opinião é coisa minha, nunca é uma idéia universal que existia em si para si. Mas na filosofia não contém nenhuma opinião, porque não existem opiniões filosóficas (...) A filosofia é a ciência objetiva da verdade, é a ciência da sua necessidade: é o conceito por conceitos, não é opinar nem deduzir uma opinião de outra. 27 Em Hegel não há espaço para opiniões, tais considerações não pertencem ao mundo da filosofia. Hegel nesse particular inspira-se em Platão 28 quando este estabelece a relação entre doxa e episteme, opinião e ciência. Desse modo o trecho acima assinala a concepção hegeliana de filosofia: a linguagem pela qual a verdade se apresenta como um lógico conceituante, procedimento que se refere a uma nova e específica forma de pensar, que não opera de uma dedução à outra necessariamente, mas por contradição de uma relação à outra. A linguagem 25 Idem: 23. 26 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Vol. I: 40. 27 HEGEL, G. W. F. Introdução à História da Filosofia: 51. 28 Ler PLATÃO. Fedro e Mênon. 19 hegeliana não se estabelece por construir sinônimos para qualificar o que se pensa, procura de maneira peculiar desenhar conceitos por meio de expressões consideradas por ele científicas, precisas no sentido de relacionar adequadamente pensamento e objeto pensado, ou seja, pela reflexão do texto em si. Daí vem seu rigor extremo na exposição de um sistema que busca a natureza do conceito posto pelo conceito. E o conceito posto pelo conceito é um resultado filológico-filosófico que, longe de ser uma armadilha de opiniões, significa a própria verdade por meio de exposições conceituais. A filosofia não é um jogo de opiniões, mas pensamento conceituante. A maneira pela qual Hegel pensa é dialética, e consiste na relação inseparável dos contraditórios com o fim de apreender uma etapa superior que possa daí estabelecer uma síntese. Por isso a filosofia em Hegel é um plano lógico. A lógica tem, segundo a forma três lados: a) o lado abstrato ou do entendimento; b) o dialético ou negativamente-racional; c) o especulativo ou positivamente racional. 29 Esses três lados afirmados por Hegel, não são partes da Lógica e sim momentos do todo lógico-real, o que ele chama de todo conceito ou de todo verdadeiro geral. Dessa forma a dialética de Hegel envolve no primeiro momento um ou diversos conceitos (categorias) fixos – tese. Pensados esses mesmos conceitos surgem contradições no seio de suas relações, fase verdadeiramente dialética ou razão dialética, negativa, que necessariamente nega a anterioridade como movimento de superação – antítese. O resultado dessa dialética é uma nova categoria, superior, que engloba as categorias anteriores e resolve as contradições nelas envolvidas. 30 Esta fase é denominada de especulação, positiva (síntese), ou como sugere Hegel, unidades dos opostos, isto é, a negação da negação anterior que retoma a afirmação negada na totalização de 29 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas: 159. 30 INWOOD, M. Dicionário Hegel: 100. 20 supressão e conservação das duas posições anteriores. 31 O pensamento filosófico de Hegel é um sistema complexo de unidades no qual a mesma estrutura se processa em áreas diferentes do conhecimento. Hegel como um grande filósofo sistemático aplica as mesmas categorias aos mais variados problemas. Sua dialética tríade domina sua forma de apresentar e superar o problema. Pensa sempre no sentido de que o pensamento deve percorrer caminhos cíclicos, ou seja, sempre se realizando em si mesmo na saturação de um conceito que impõe a busca de um outro necessariamente, mais completo não por decorrência, mas como superação das contradições. E essas contradições são superadas logicamente pelas sínteses que promovem na tensão dos opostos, na síntese que gera uma nova oposição. 32 Hegel traça um panorama filosófico que tem por fim ser o limite da própria filosofia, o fim de uma jornada que encontra em si o fechamento de um grande ciclo, o fim da história da filosofia, o sistema que pretende ser o último e o único capaz de dar conta de toda a realidade. Essa ciência é a unidade da arte e da religião, enquanto o modo de intuição da arte, exterior quanto à forma, o seu produzir subjetivo e o fracionar do conteúdo substancial em muitas figuras autônomas são reunidos na totalidade da religião; e o dispersar-se que se desdobra na representação da religião e a mediação dos [elementos] que se desdobram não só são recolhidos em um todo, mas também unidos na intuição espiritual simples, e elevados depois ao pensar consciente-de-si. Por isso esse saber é o conceito, conhecido pelo pensamento, da arte e da religião, em que o diverso no conteúdo é conhecido como necessário, e esse necessário como livre (...) Por conseguinte, a filosofia se determina de modo a ser um conhecimento da necessidade do conteúdo da representação absoluta. 33 31 Nesta configuração, destacamos um primeiro ciclo no qual partimos de uma posição afirmativa ou identitária – o momento da tese – suscetível de gerar sua própria negação que, amadurecida, irá constituir uma segunda posição – o momento diferencial da antítese. A tensão entre tese e antítese vai provocar a emergência de uma terceira posição, ou seja, de um momento da síntese, que é, concomitantemente, negação e afirmação, supressão e conservação das duas posições anteriores. SAMPAIO, L. S. C. Lógica Ressuscitada: 36. 32 Ibidem. 33 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas: 351. 21 Esta passagem é esclarecedora por tratar das formas absolutas, arte e religião, totalizando a unidade na representação do espírito absoluto que só pode ser definido pela filosofia, que em si é a unidade do saber. A filosofia é uma ciência pelo objeto e pelo procedimento específicos: o absoluto e a dialética no desdobramento do pensamento. Pode-se ponderar que, para Hegel, a filosofia representa a verdade no mundo dos homens, por isso que no seu sistema as opiniões constituem um obstáculo ao conhecimento do absoluto. A filosofia se determina de modo a ser um conhecimento da necessidade do conteúdo da representação absoluta, implicando que a filosofia seria aquele saber que explicaria o absoluto na condição de revelar sua dimensão de forma racional dentro das estruturas da lógica, que pesquisando o ser atrelado ao pensamento não como oposição, anunciaria sua identidade necessitante. Completando essa linha de raciocínio, existe uma passagem de Hegel, nos seus Cursos de Estética, que amplia consideravelmente o que ele concebe por filosofia. Para o professor de Berlim, filosofia é uma necessidade por ser representação da verdade. Pois somente a filosofia em seu conjunto é o conhecimento do universo como uma necessidade orgânica em si mesma, que se desenvolve a partir de seu próprio conceito e, em sua própria necessidade de se relacionar consigo mesma como um todo que retorna a si como um mundo da verdade. 34 Por isso a filosofia não pode ser uma opinião como também não pode ser um primeiro resultado da sensação. Hegel pretende mostrar com isso que o seu sistema anuncia uma visão que só pelo conjunto é possível conhecer o elemento. É como se o elemento em si não pudesse ter sua existência determinada, só é reconhecido na representação do todo como realidade primeira. Essa realidade primeira é com certeza o princípio norteador das difíceis elaborações hegelianas, que por determinação do seu conceito não pode buscar o exterior para manifestar o que ocorre no centro do interior. Assim como os conceitos do belo e da arte são 34 HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética: 47. 22 pressupostos necessariamente do sistema da filosofia, 35 a família, a sociedade civil e o Estado também o são, portanto, pensados pelo espírito como realidades em si. Se a filosofia é ciência do absoluto, linguagem do absoluto que se pensa e se mostra exteriormente aos homens pela consciência, a filosofia só pode ser realização do absoluto, por isso não se pode olvidar que a filosofia na sua tarefa esclarecedora tenha por missão precípua, apresentar o absoluto como determinação na história, encontrando no Estado sua relação de efetivação. Esse papel que a filosofia tem no idealismo alemão, 36 a de identidade cultural, portanto nacional, não tem nenhum paralelo na história da filosofia moderna, a não ser que se recue ao mundo grego, onde, sem sombra de dúvida, a filosofia tem um papel relevante na medida em que se cria uma linguagem específica a partir de problemas políticos, e como atesta Jean-Pierre Vernant em sua obra, As Origens do Pensamento Grego, o vocabulário filosófico tem origem na temática política. 37 O idealismo alemão surge então como uma corrente filosófica sem sombra de dúvida impregnada do espírito alemão: a introspecção, o retorno aos valores culturais esquecidos como sentido de afirmação política, a disciplina viva no intuito de se conseguir o objetivo determinado, e a superioridade do seu sistema cultural como um valor sobre o resto da Europa. O idealismo alemão, como assinala Hartmann, busca sua expressão na criação de um sistema de filosofia em que os fundamentos são últimos e irrefutáveis, onde a totalização se efetiva numa reflexão profunda em razão da interiorização, caracterizando assim um sentimento de 35 Ibidem. 36 Os termos idealista e idealismo surgem pela primeira vez com o filósofo alemão Gottfried W. Leibniz (1646-1716), mas é com George Berkeley (16851753), filósofo inglês, que adquire o sentido que nós conhecemos, uma corrente filosófica que reduz toda a existência ao plano do pensamento, isso quando consideramos o pensamento segundo René Descartes (1596-1650). Já o idealismo alemão, é uma corrente filosófica que surge no final do século XVIII sob forte influência da filosofia kantiana. Sua premissa básica consiste na não existência de coisas reais independentes da consciência, do espírito, do ego, do eu. Portanto o que pensamos representa expressamente ao plano do real. No idealismo alemão encontramos diversas formas de se representar o real pelo pensamento, e, dentre elas, se destaca Hegel com o seu idealismo lógico. 37 VERNANT, J-P. As Origens do Pensamento Grego: 34-35. 23 otimismo juvenil. 38 O idealismo alemão procura sintetizar o espírito germânico diante da história, e com isso objetiva promover, face à revolução francesa, uma perspectiva de auto-reconhecimento. A filosofia hegeliana representa a apoteose germânica, missão que o povo alemão tem em si para efetiva realização da maturidade da Europa que soube ser história e consciência de si. A Alemanha tem um projeto e esse projeto só pode ser de natureza universal, a materialização do espírito objetivo, a concretização do espírito como referência, como principio de identidade. Nesse sentido nenhuma outra corrente filosófica foi tão eloqüente quanto a hegeliana, nenhum outro filósofo alemão representou tão bem esse espírito alemão de se pretender universal, a mente filosófica dentro de um mundo comandado pelos mais ingênuos sentimentos. A síntese absoluta da filosofia construída por Hegel reproduz os interesses de uma síntese germânica que não só busca sua unidade como o comando da Europa cristã. Assim como os antigos germânicos se uniam em torno do chefe para a superação dos grandes confrontos bélicos, nos tempos idos, 39 os alemães do século XIX, especialmente os nacionalistas como Hegel, elegiam o império prussiano como a liderança racional para comandar a unificação. A síntese de Hegel é a síntese do espírito na história, no mundo, por isso precisa dos instrumentos do mundo para sua realização enquanto determinação da vontade. Para se libertar desta perdição de si mesmo, e do seu universo, e do infinito sofrimento que lhe é conseqüente – sofrimento de que o povo israelita foi o suporte -, o espírito, fechado em si mesmo no extremo da sua negatividade absoluta, apreende, numa perturbação que é em si e para si, a positividade infinita da sua vida interior, o princípio da unidade da natureza divina e humana, e na consciência de si e na subjectividade aparece a reconciliação como verdade objectiva e liberdade. O princípio nórdico dos povos germânicos é que tem a missão de tal realizar. 40 O princípio da liberdade como valor, segundo Hegel, é de natureza germânica, e como tal significa que o povo alemão deve realizar tal idéia, cumprir o 38 HARTMANN, N. A Filosofia do Idealismo Alemão: 9-10. 39 ANDERSON, P. Passagens da Antiguidade ao feudalismo: 117. 40 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 320. 24 fim para o qual está determinado ou mesmo se determinou como uma imposição a partir da consciência de si, da autoconsciência enquanto determinação de sua individualidade e importância. Talvez esteja aqui a chave para compreender o entusiasmo que a filosofia hegeliana exerceu sobre boa parte da inteligência alemã, sobretudo naqueles jovens por realizar seu papel dentro da história, a luta política por uma Alemanha conforme os novos tempos. Na Introdução de sua Filosofia da História, Hegel monta um quadro onde divide a história universal em quatro grandes momentos, começando pelo oriente, pela Ásia, passando pela Grécia, Roma e terminando a caminhada do espírito no mundo germânico. A história universal vai do leste para oeste, pois a Europa é o fim da história universal, e a Ásia é o seu começo. (...) O oriente sabia – e até hoje sabe – apenas que um é livre; o mundo grego e o romano que alguns são livres; o mundo germânico sabe que todos são livres. 41 Essa divisão tem por fim mostrar que o conceito de Estado foi uma longa maturação na qual o seu elemento formal é a monarquia, onde a liberdade encontra espaço de sua materialização. Em conseqüência, a primeira forma de governo que tivemos na história universal foi o despotismo; depois vieram a democracia e a aristocracia, e, em terceiro lugar, a monarquia. 42 Hegel evidencia a realização do Estado como reino da liberdade pela determinação político-administrativa enquanto monarquia, instância do universal pela concretização da idéia, o espírito tomando consciência de si na história. Então se apresenta o mundo germânico, o quarto momento da história universal; comparado aos momentos anteriores, corresponderia à velhice. A velhice natural é fraqueza, mas a velhice do espírito é a perfeita maturidade e força; nela, ele retoma a unidade consigo, em seu caráter totalmente desenvolvido como espírito. 43 41 HEGEL, G. W. F. Filosofia da História: 93. 42 Ibidem. 43 Idem: 97. 25 Nessa perspectiva político-filosófica de Hegel, o mundo constituído pelo espírito germânico, tem a tarefa de implementação do reino da razão quando efetiva a realização da vontade que, não sendo particular, mas universal, desdobrase na realidade histórica, na concretização do mundo político. Esse mundo político é dominado pela vontade do conceito de direito que se expressa na figura do Estado como reino ético, reino da liberdade não de um ou de poucos, mas de todos. O espírito germânico seria então a liberdade como uma dimensão espiritual, portanto, realidade que se concluiu no momento em que o espírito se determinou comunitariamente. Hegel inverte as determinações do real porque a natureza do seu pensamento é lógico-idealista, isto é, o objeto é uma realização do conceito, portanto lógico-ideal, o pensamento dá as condições de todo conhecimento. Não é o sujeito e muito menos o objeto que se pronunciam na qualidade de se apreender o conhecimento. O conhecimento se realiza como categoria lógica, por isso é sempre um conceito, uma idéia. 44 La proposición que lo finito es ideal, constituye el idealismo. El idealismo de la filosofía no consiste en nada más que en esto: no reconocer lo finito como un verdadero existente. Cada filosofia es esencialmente un idealismo, o por lo menos lo tiene como su principio, y el problema entonces consiste sólo [en reconocer] en qué medida ese principio se halla efectivamente realizado. La filosofía es [idealismo] tanto como la religión; porque tampoco la religión reconoce la finitud como un ser verdadero, como un último, un absoluto, o bien como un no-puesto, eterno.45 O verdadeiro ser não é aquele que se apresenta aos sentidos, mas aquele que é compreendido no pensamento como determinação última, isto é, as coisas são representadas pelo conceito, em última instância é o pensamento como ato que determina a existência da realidade. Isso não quer dizer que os objetos não existam ou não tenham realidade, essa realidade primeiro se afigura no 44 Para o idealista lógico o objecto gesso não existe nem em nós nem fora de nós; não existe pura e simplesmente, necessita de ser concebido. Mas isto tem lugar devido ao nosso pensamento. Formando o conceito de gesso, o nosso pensamento concebe o objeto gesso. Para o idealista lógico o gesso não é, portanto, nem uma coisa real nem um conteúdo da consciência; é um conceito. O ser do gesso não é, segundo ele, nem um ser real nem um ser consciente, mas um ser lógico-ideal. HESSEN, J. Teoria do Conhecimento: 105-106. 45 HEGEL, G. W. F. Ciencia de la Lógica: 136. 26 pensamento como realidade que possibilita o conhecimento. O conhecimento não é um atributo do objeto e sim do sujeito enquanto aquele que pensa conceituando. É preciso assinalar que no idealismo tudo se trata especificamente como algo existente na idéia, nas construções da consciência, no sujeito, isto é, não há coisas reais, independentes da consciência. 46 Filosofia do Direito: o político no sistema de Hegel A Filosofia do Direito de Hegel, mais do que um tratado jurídico-político é teoricamente um tratado ético-político, está na mesma tradição da A República de Platão (428-348 a.C.), a Política de Aristóteles (384-322 a.C.), O Príncipe de Nicolau Maquiavel (1469-1679), o Leviatã de Thomas Hobbes (1588-1679), O Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), enfim, constitui um clássico do pensamento político do ocidente. Seja como for, independente do ponto de vista de cada expectativa, a obra política de Hegel é um marco dentro do pensamento político moderno, uma vez que leva adiante uma crítica do Estado e do próprio liberalismo na possibilidade de fundamentar teoricamente os homens públicos nos negócios públicos. O tema central dessa obra, sem prejuízo para os demais enfoques, está relacionado à efetivação do plano da liberdade como dimensão do direito no sentido da eticidade, 47 em que o Estado assume a instância universal de superação de todas as particularidades. Sendo assim, o Estado em Hegel tem em si a idéia de representar a totalidade político-social, de encerrar em si o mundo público e o mundo privado, a restauração da vida ética na representação grega. Hegel pensa a comunidade no sentido politicamente estatal, legal, normativo, ou seja, por meio da norma jurídica – instrumento jurídico-político – a liberdade atinge sua realização num elo comum a todos. O Estado em Hegel não é só um poder como também uma função. Uma função política no trato da coisa pública que é devidamente pública 46 HESSEN, J. Teoria do Conhecimento: 102. 47 HARTMANN, N. A Filosofia do Idealismo Alemão: 598. 27 para a satisfação do indivíduo dentro do Estado. O pensamento de Hegel é herdeiro da revolução francesa, e como tal tem na lei, portanto na legalidade, o fundamento da nação enquanto sociedade organizada, cujo fim é a liberdade. Na Filosofia do Direito, Hegel pensa uma ordem política onde as instituições, sobretudo as políticas, deveriam funcionar na devida medida em que os interesses universais sejam garantidos dentro dos particulares, delegando aos órgãos públicos a tarefa de, em si, resolver o social por meio do político. Hegel, que para muitos é considerado o grande aristotélico moderno, pensa o homem a partir de uma ordem necessária que o antecede, 48 ou seja, sua possibilidade enquanto homem só é possível dentro do Estado, a polis moderna, cuja finalidade consiste numa eticidade pelo direito, pela normatividade. a) Família, Sociedade Civil e Estado A Filosofia do Direito de Hegel pode ser tomada como uma tentativa de firmar o princípio racional como real, na medida em que a sociedade civil é apenas uma etapa que o espírito objetivo cumpre até se realizar como Estado: a verdade que se volta a si mesmo. A Filosofia do Direito definitivamente traz o pensamento social de 48 Na ordem natural a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós individualmente, pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre cada um de nós individualmente. ARISTÓTELES. Política: 15. Ao chamar Hegel de aristotélico moderno, estou tomando as relações que este pensador promoveu quando vai a Aristóteles no intento de buscar fundamentos para sua filosofia. Observa-se que muitas construções hegelianas têm inspiração aristotélica, a começar pela figura da flor e da semente que Hegel buscou na formulação de ato e potência de Aristóteles, assim como a tese de o todo preceder as partes (uma inspiração platônica). Uma outra formulação que marca profundamente o pensamento político de Hegel é aquela em que Aristóteles anuncia que o homem só conhece sua dimensão na polis, onde Hegel dirá que o homem só percebe sua dimensão no Estado. Estas observações são feitas a partir dos seguintes autores: OLIVEIRA, A. M. Ética e Sociabilidade: 198, no capítulo destinado a Hegel destaca: Hegel, o grande aristotélico dos tempos modernos, antecipa de certo modo, através de sua vinculação a Aristóteles, algumas das intuições fundamentais do pensamento contemporâneo. LEBRUN, G. Hegel leitor de Aristóteles: 57: “Qualquer coisa que se queira pensar a respeito da análise que faz Hegel de Aristóteles nas Preleções sobre a História da Filosofia, um mérito, ao menos, se lhe deve reconhecer: Hegel voltou a fonte; retornou ao texto do Estagirita – e isso com dificuldade, sem haver tradução latina; pôs-se à sua escuta direta com desprezo do aristotelismo escolar. MARCUSE, H. Razão e Revolução: 51: A filosofia de Hegel é em amplo sentido a reinterpretação da ontologia de Aristóteles, liberada esta das distorções do dogma metafísico. RAMOS, C. A Crítica Marxista do Estado Hegeliano: 1, assinala: A crítica ao modelo aristotélico-hegeliano, exposta por Marx, retrata uma outra posição teórica em relação ao Estado. 28 Hegel, sua preocupação com a tentativa de ir ao encontro da história e dela resgatar a dimensão do homem. No entendimento de Hegel, tanto a família quanto a sociedade civil são dois momentos que antecedem o Estado, mas que na verdade são dois momentos da idéia de Estado. Etapas pelas quais o Estado superou como autodesenvolvimento de si na objetivação do plano da liberdade. Família e sociedade civil são reinos particulares diante do Estado, todavia consideradas em si, constituem o desenvolvimento da idéia de liberdade, a passagem do contingente para o racional, isto é, o necessário. Família e sociedade civil são, no entender de Hegel, necessidades onde o espírito no processo toma consciência de si. No primeiro momento a família, substancialidade imediata do espírito, determina-se pela sensibilidade (amor), ou seja, é onde o espírito adquire sua relação com o mundo externo, se apresentando em uma unidade. 49 A família de certa maneira surge como uma relação racional, espírito ético imediato, 50 sentido de superação da natureza, ou melhor, qualidade de promover o conteúdo para além do sujeito e da pessoa, a substancialização de membro, de um dentro de outros: na relação com todos. 51 Na superação da família, Hegel apresenta a sociedade civil como relação de superação do reino das particularidades, ou das unidades particulares, que agora se unem na disposição de encontrarem uma associação mais ampla de resguardar ainda assim, os mesmos interesses particulares. A sociedade civil é a negação lógica da família que ao seu turno será negada pelo Estado como reino ético, logo a sociedade civil é o momento em que os membros da família libertam-se da condição de membros de uma unidade para encontrarem em si no 49 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 160. 50 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Vol. I: 297. 51 WEBER, T. Hegel: Liberdade, Estado e História: 102. 29 aparecimento de pessoas independentes e reconhecidas como tais pela sua maioridade. 52 A sociedade civil assume em si mesma um instante necessariamente fadado à sua superação, isso porque superando o reino das particularidades da família, não consegue ir além de uma superação tímida, que por sua vez acirra essas mesmas particularidades agora em bases não naturais, mas artificiais, nas classes e outras corporações. Eis que o Estado, a universalidade concreta, é absolutamente o fim das particularidades tomadas como centro, cedendo aos interesses gerais. b) A Constituição, poderes políticos e o papel da burocracia Após o advento da revolução norte-americana de 1776, da declaração da constituição dos Estados Unidos da América do Norte em1783, e a eclosão da revolução francesa de 1789, com suas sucessivas fases na qual se destaca a constituição de 1793, o pensamento jurídico-político ocidental amadureceu a idéia de organização política tendo por base uma constituição formal que estabelecesse os princípios reguladores de uma determinada formação social. A constituição como algo necessário à sociedade organizada é um fenômeno que data da Grécia antiga, especificamente da Atenas do período clássico, pois para os gregos o sentido de constituição está relacionado à organização do governo, ou melhor, a sua forma de governo em vista a administração da cidade. Na modernidade a constituição assume também um caráter formal como determinação jurídica de limitação do poder real; as constituições surgem no objetivo de se estabelecer leis em que todos se obriguem ao cumprimento do firmado mediante uma legislação exterior, isto é, de leis dos reis para leis do reino. A constituição deixa de representar forma de governo para se firmar como um conjunto de princípios a constituir um Estado dentro dos seus limites de ação, assume por fim o sentido de um grande contrato social. Todavia essa explicação não é suficiente para dar conta do imenso problema que a produção de mercadorias atingiu depois da revolução industrial e da consolidação da burguesia como nova classe que ora reorganiza os Estados 52 Idem: 112. 30 nacionais. A legislação desponta, através das constituições orgânicas e dos códigos, como novo instrumento de resguardar novos interesses, de firmar o novo conceito de propriedade privada, proteger a circulação de mercadorias, etc. Com a revolução francesa o corolário de que a nação tem na lei o seu fundamento 53 ganha proporção não só de necessidade jurídica como políticoeconômica, visto que desse debate se está construindo aquilo que hoje se costuma chamar Estado de Direito, onde a norma tem em si a dimensão de autoridade suficiente em sobrepor-se aos governantes em favor de uma ordem pública voltada aos interesses coletivos. As novas relações de produção, a expansão da indústria e do comércio, as garantias essenciais ao implemento de novos negócios, aceleram o sentido da lei como algo imprescindível dentro do mundo moderno. Dentro desta modernidade, ao lado da construção do capitalismo e do Estado, é que surge, relacionado a tudo isso, a Constituição como elemento fundamental de personalização política do Estado. Com o conceito de constituição na qualidade de lei máxima de um Estado, em que o próprio Estado deve submeter-se, surge a tese de que a lei é uma determinação de ordem jurídico-político-administativa, ora comandada pelo espírito burguês, pela necessidade burguesa. A Constituição não é, portanto, um puro princípio da razão jurídica, mas o resultado de interesses, necessidades, perspectivas políticas e econômicas. 54 No entendimento de Hegel a constituição marca um momento de pura racionalidade jurídico-política, o momento em que a liberdade está posta pela garantia da determinação da idéia até chegar ao concreto de si, isto é, pelos instrumentos efetivos da normatividade. (...) por Constituição deve-se entender a determinação dos direitos, isto é, das liberdades em geral, e a organização de sua 53 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789, artigos específicos 1º, 3º e 6º. 54 Ler TROTTA, W. A Constituição como determinação de legitimidade. 31 efetivação; e que a liberdade política só pode, em todo caso, formar uma parte dela. 55 Para Hegel a constituição determinaria a racionalidade do Estado, o momento em que são superadas as particularidades da sociedade civil, se organizando num organismo vivo e necessariamente lógico-racional, em que o Estado, na perspectiva de totalidade, é o universal, o centro de uma vida ética tendo o público e o privado como dimensões continuadas pela liberdade de todos. A constituição política é, em primeiro lugar, a organização do Estado e o processo da sua vida orgânica em relação consigo mesmo. Neste processo distingue o Estado os seus elementos no interior de si mesmo e desenvolve-os em existência fixa. 56 No pensamento de Hegel a constituição é a materialização racional do Estado. O momento em que o próprio Estado em si torna-se efetivamente universal concreto dentro de uma dada organização social. A constituição assume o sentido de determinação do Estado moderno, ou seja: a plena configuração de sua legítima existência no limite das relações entre os homens. A Constituição é racional quando o Estado determina e em si mesmo distribui a sua actividade em conformidade com o conceito, isto é, de tal modo que cada um dos poderes seja em si mesmo a totalidade. 57 Tinha Hegel entendido que a constituição seria um elemento essencial do Estado moderno, o que o diferenciaria dos outros momentos desse conceito ao longo da história, por isso que no seu sistema a constituição marcaria o Estado como organismo, como um funcionamento biológico necessariamente, tendo as partes naturais subordinadas ao todo. Hegel não admite a clássica separação entre os poderes interpretada por Montesquieu (1689-1755), pois entende que tal concepção não só dificultaria a unidade do Estado como o colocava em risco pela sua fragmentação. 58 Esse organismo hegeliano é uma determinação de sua lógica mais que outra coisa 55 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Vol. I: 311. 56 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 250. 57 Idem: 251. 58 Idem: 253. 32 qualquer. É a lógica sendo representada pela concretização da idéia. É interessante notar que em Hegel a concepção de poder de Estado difere substancialmente dos seus contemporâneos, que pensam de alguma forma na construção de um Estado racional e efetivamente comprometido com a nova realidade do indivíduo burguês, com a individualidade burguesa, o plano de uma liberdade atomizante dentro de uma ordem política. Hegel na percepção dessa nova realidade, parte do conceito de unidade do Estado, e para tanto não confere à clássica separação dos poderes a importância que tem dentro do pensamento liberal contra o pensamento absolutista. Para Hegel o Estado não poderia se constituir em diversos outros poderes que não fosse o próprio Estado, um poder em si mesmo, visto que qualquer unidade em si e para si além do Estado, levaria a unidade de Estado soberano a se diluir e não efetivar o seu próprio conceito que é a concretização da liberdade. Para Hegel os poderes não constituíam nenhuma determinação fora daquilo que o próprio espírito do Estado atingiu na história. A divisão dos poderes é a cisão do Estado enquanto elemento histórico a permitir que todos os indivíduos sejam livres. O Estado moderno é a maturidade histórica sob a qual os homens se organizam e superam as particularidades no fim de nele buscar o universal. Logo, Estado só existe na medida de sua unidade, de sua universalidade. Pensá-lo dividido em poderes é pensá-lo dominado pelas esferas das particularidades, diluído privadamente. Para Hegel a concepção de separação dos poderes tem em si algo que, devidamente entendida, é importante no sentido da determinação da liberdade pública, mas que para isso é preciso acima de tudo compreender que tal separação não pode passar de um princípio de distribuição de funções, que em si não comprometa a unidade do Estado em sua soberania. Entre as concepções correntes, dever-se-á mencionar a da necessária separação dos poderes. Poderia ser ela uma concepção muito importante, pelo que representa de garantia da liberdade pública, se fosse tomada no seu verdadeiro sentido (...) É nela que se encontra o elemento da determinação racional. O princípio da 33 separação contém, com efeito, como elemento essencial, a diferenciação, a razão na realidade. 59 Na relação que Hegel estabelece entre realidade e pensamento, isto é, a realidade como produto daquilo pensado, a separação dos poderes afetaria de imediato a lógica do conceito, pois nisso consiste todo princípio de universalidade. A separação dos poderes que pensa obstruir desconfianças e arbítrios, na verdade cumpre o papel de particularização do Estado, visto que sua soberania repousa numa unidade realizada no Estado como concreto histórico. A separação entre os poderes acirra as relações entre os mesmos, em que um na medida do possível procurará mostrar-se tão independente que de alguma forma redunde na dissolução do Estado como unidade orgânica. Embora guarde racionalidade, a concepção da independência dos poderes em si mesma não garante a harmonia dentro do Estado como também não garante a liberdade como algo necessário e vital para o indivíduo no século XIX. Sendo assim, para Hegel os poderes são na verdade diferenças substanciais, funções exercidas na lógica do todo precedendo às partes. Para Hegel: 60 Divide-se o Estado político nas seguintes diferenças substanciais: a. Capacidade para definir e estabelecer o universal – poder legislativo; b. Integração no geral dos domínios particulares e dos casos individuais – poder de governo; c. A subjectividade como decisão suprema da vontade – poder do príncipe. Neste se reúnem os poderes separados numa unidade individual que é a cúpula e o começo do todo que constitui a monarquia constitucional. A maneira como Hegel constrói a relação entre as diversas funções de poder dentro do seu entendimento de Estado, passa forçosamente pela sua lógica política, que é a defesa de uma monarquia constitucional tendo no monarca, o instituto da soberania, a própria personificação do Estado, a unidade político-cultural da Alemanha. Pois bem, a argumentação hegeliana tem o sentido de validar sua construção lógica. Isto quer dizer que ao rejeitar a tese da independência entre os 59 Idem: 252. 60 Idem: 253. 34 poderes, Hegel rejeita a ilogicidade de como ela é apresentada. Percebe-se que o pensamento político do professor de Berlim em si se sustenta mais em sua lógica do que em outro argumento político qualquer. A pretensão de Hegel é que o Estado consiga de todo modo manter-se na sua unicidade, tanto assim que pensa a monarquia como elemento político consistente em dar cabo desse projeto. Hegel insiste no ponto de que a tese da separação dos poderes como se apresenta pela discussão de seus defensores, que pensam saber o que dizem pelo entusiasmo, não difere, em si das outras representações que estabelecem no Estado uma verdadeira disputa entre os poderes, quando na verdade o que se deseja é que uma função seja exercida em plena relação de conjunto, uma com a outra, ou melhor, que todas as atividades de poder tenham como princípio o conceito de Estado em cada momento que atue como tal. Cada função exercida deve representar a idéia de Estado, e não a fração de Estado. 61 No entendimento de Thadeu Weber a interdependência dos poderes é apresentada como condição de possibilidade da organicidade do Estado. O conceito inclui em si a unidade da diversidade e a racionalidade da Constituição se dá, na medida em que essa integração se realizar. 62 Essa organicidade, que nada mais é que a unidade do Estado, se apresenta como uma necessária relação entre as diversas atividades do Estado, que em si só pode ser reconhecido em sua totalidade e não pelas suas partes isoladas em si. O Estado é o todo, como todo é anterior às partes, logo, sua integração está relacionada a funcionalidade das partes como unidades ligadas pelo princípio da soberania. O poder do príncipe contém em si os três elementos da totalidade, a universalidade da Constituição e das leis, a deliberação como relação do particular ao universal, e o momento da decisão suprema como determinação de si de onde tudo o mais se deduz e onde reside o começo da realidade. Esta determinação absoluta de 61 Idem: 252. 62 WEBER, T. Hegel: Liberdade, Estado e História: 151. 35 si constitui o princípio característico do poder do príncipe que nós vamos desenvolver em primeiro lugar. 63 O poder soberano, chamado poder do príncipe, na verdade constitui a própria soberania enquanto fundamento do Estado político. Nesse poder Hegel procurou através do monarca centralizar toda a unidade do Estado, identificando na monarquia prussiana o motor da história alemã capaz de levar adiante o seu processo de unificação político-cultural. O poder soberano seria, portanto, a síntese do poder público estatal, nele estando contido as determinações políticas necessárias à unidade de um Estado que tem na vida ética a tarefa de executar o plano da liberdade como autodesenvolvimento do conceito de direito. O poder soberano enquanto sentido da universalidade do Estado se dá em um sujeito específico, na pessoa do monarca. A pessoa do monarca encarna a soberania estatal, sua unidade física apresenta-se como representação daquilo que comumente se chama de unidade política estatal. No parágrafo 277 da Filosofia do Direito, encontra-se uma passagem significativa que demonstra uma preocupação quanto ao caráter universal do Estado, mesmo que depois Hegel se contradiga com sua tortuosa adequação do real tomado como ideal. As diferentes funções e actividades do Estado pertecem-lhe como momentos essenciais e são inerentes às universais e objectivas e embora se liguem, à personalidade particular como tal de um modo exterior e contingente. As funções e os poderes do Estado, não podem, pois, constituir uma propriedade privada. 64 Mesmo não constituindo uma propriedade privada, o Estado e suas respectivas funções são tratados por Hegel como se assim fossem, isso na medida em que destaca um sujeito específico, uma personalidade individual como representação da soberania estatal. Hegel delega ao monarca, a representação da unidade do povo alemão, a condição de chefe eleito para fins de natureza orgânicosocial. Nesse particular Hegel faz lembrar a organização dos antigos germânicos 63 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 258. 64 Idem: 259. 36 que em momentos difíceis elegiam um líder para que este guiasse os guerreiros no intuito de guardar a paz, resolver contendas entre as tribos e combater os inimigos nas guerras externas. 65 Na decisão pode distinguir-se: a decisão, o cumprimento e a aplicação das decisões do príncipe e, de um modo geral, a aplicação e conservação do que já foi decidido, das leis existentes, das administrações e institutos que têm em vista fins coletivos. Esta função de absorção no geral é o domínio do governo e nele se compreendem também os poderes jurídicos e administrativos que imediatamente se referem ao elemento particular da sociedade civil e afirmam o interesse geral na própria interioridade dos fins particulares. 66 Observa-se de imediato a diferença de como Hegel separa as funções de Estado em franca oposição a clássica separação dos poderes dentro da tradição exposta por Montesquieu. O poder governativo é aquele que leva a contento as decisões tomadas pelo poder soberano na pessoa do monarca, e aquelas existentes no interior das leis. O poder governativo seria, portanto, o braço administrativo do poder soberano, poder subordinado à idéia de soberania existente nas determinações legais e ideais do Estado, organizado a partir de uma necessidade que está intimamente ligada à concretização do conceito de direito. Os poderes administrativo e judiciário não são poderes em si mesmos constituídos como independentes e subordinados ao princípio norteador que rege internamente cada vontade particular. Para Hegel o princípio da separação dos poderes traz em si a marca da divisão do próprio conceito de soberania estatal, e nessa razão de ser, tanto a execução dos serviços administrativos quanto os judiciários estão centralizados nos interesses do universal e, dessa forma, vinculados diretamente à soberania como expressão máxima do Estado hegeliano. A execução da justiça prende-se politicamente ao fato de que toda decisão, mesmo que tenha um caráter particular, específico, deve em princípio estar em consonância com o espírito universal, que sem dúvida justifica o fim do Estado, a 65 GIORDANI, M. C. História dos Reinos Bárbaros: 19. 66 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 272. 37 natureza do Estado, e a existência do Estado como instância ideal na realização do direito. Aos olhos do pensamento político contemporâneo qualquer subordinação de um poder a outro seria visto como um forte atentado ao Estado de direito, uma violenta ruptura com os princípios firmados pela democracia, sobretudo ao que concerne à justiça, que tem no poder judiciário uma espécie do corolário do liberalismo, uma salvaguarda dos direitos individuais. Importa ressaltar que Hegel atrelava a administração da justiça ao poder governativo por considerar tal serviço um ato da administração pública e não um serviço particular destinado ao particular. A administração da justiça tem para Hegel um caráter público de máxima relevância, por isso está vinculado ao poder governativo sob orientação direta da universalidade do soberano, pois o seu conteúdo repousa na soberania do Estado. A administração da justiça no pensamento de Hegel tem uma dimensão estatal e primordial. Pode-se afirmar que o poder governativo assume a processualidade da administração pública e que, em Hegel, os serviços públicos não são distintos em si e para si. O serviço público pensado na Filosofia do Direito tem a especificidade única de garantir o universal para todos aqueles que vivem no Estado. Serviço público tem natureza pública e, sendo assim, não pode sofrer solução de descontinuidade, deve estar atrelado ao íntimo interesse do Estado na prestação de superação das particularidades e arbitrariedades. A atomização do poder levaria à extinção daquele Estado politicamente constituído para realizar o plano do direito, a efetivação da liberdade. Hegel destaca que: Assim como a sociedade civil é o campo de batalha dos interesses individuais de todos contra todos, assim aqui se trava o conflito entre este interesse geral e os interesses da comunidade particular e, por outro lado, entre as duas de interesses reunidas e o ponto de vista mais elevado do Estado e de suas determinações. 67 67 Idem: 273. 38 O interesse do Estado é sempre de fundo universal, com isso o poder governativo não pode operar de outra maneira senão como uma expressão de soberania do Estado, e tal soberania visa em si a consecução de fins últimos na superação das diferenças particulares. O poder governativo não pode ser instituído e firmado a partir de princípios próprios, seus fundamentos só podem e devem ser os mesmos daqueles fincados no poder soberano. O poder legislativo é constituído pelas leis enquanto tais, na medida em que elas carecem de determinações complementares e pelos assuntos interiores que são, graças ao seu conteúdo, completamente gerais. Este poder faz parte da Constituição que ele mesmo supõe e que, por conseguinte, está fora das determinações que provêm de si mesmo, embora o seu ulterior desenvolvimento dependa do aperfeiçoamento das leis e do carácter progressivo da organização governamental geral. 68 O poder legislativo em Hegel tem um significado ideal. Mais que um corpo político representado por parlamentares, ele se constitui numa instituição que tem por base o conjunto legal do Estado. Não é uma determinação arbitrária, mas uma determinação legítima, calcada no respeito aos princípios do direito. O poder legislativo está para Hegel assim como a constituição está para os nossos dias de hoje, a caracterização do Estado de Direito, o Estado que se determina por uma construção normativa, sob o império da lei. 69 Em Hegel o poder legislativo se justifica na medida em que sua função está relacionada à atividade segundo a qual o direito precisa ser normatizado, precisa ser efetivado no plano material-legal, para justamente garantir a organização das atividades humanas em suas diversas multiplicidades. Assim, o poder legislativo funcionaria como um centro legislador dos interesses da sociedade com o patrocínio do Estado. Melhor dizendo, o Estado, por meio do poder legislativo, implicaria o universal no seio particularista da sociedade civil, o Estado-legislador. Esta visão de Hegel está intimamente ligada aos acontecimentos de 1789. A revolução francesa ratifica através das declarações de seus artífices, que a nação agora tem por 68 Idem: 278-279. 69 TROTTA, W. A Liberdade como Império da Lei. 39 fundamento a lei, portanto, é o Estado o primeiro a se submeter às exigências legais, normativas, ao conceito do direito: à liberdade. Ao afirmar que o poder legislativo faz parte da constituição, e que ao mesmo tempo ela lhe é pressuposta enquanto elemento de sua determinação, Hegel está pensando em um poder legislativo que constantemente redesenhe a constituição no sentido de aproximá-la do ideal. Mesmo o legislativo fazendo parte dela não quer dizer que seja a própria constituição, pois o que determina uma constituição é mais o espírito do povo que os interesses dos representantes do povo. O poder legislativo deve atentar para os interesses fincados na constituição, nesse documento formal moderno que em si contém todas as determinações do Estado, o universal na superação da sociedade civil atomizada. É o poder legislativo aquele momento responsável em desdobrar a constituição no sentido de superação das contingências, cujo fim deve ser a totalização do Estado como realização da eticidade. Não é, enfim, o poder legislativo aquele que institui uma constituição, mas esta àquele. A constituição em si redunda em princípios pelos quais o Estado se expressa e se realiza, seu conteúdo está no espírito de cada povo que se organiza através desse mesmo Estado. O poder legislativo como totalidade, o que primeiro se faz sentir é a acção dos dois outros momentos: do elemento monárquico, pois a ele pertence a decisão suprema; do poder governamental, pois é ele que delibera graças ao conhecimento concreto que possui e à sua visão do conjunto e dos aspectos particulares, com os seus princípios reais bem estabelecidos e a sua informação daquilo de que os poderes públicos carecem. 70 No sistema político hegeliano o poder legislativo não se determina em si como um poder soberano a partir daquilo que se convencionou chamar de autonomia dos poderes, pois o poder legislativo tem como figura a totalidade da sociedade civil. Nele impera as relações de subjetividade, por isso que dele só pode emanar decisões que, mesmo gerais, não constituem em si a universalidade, o que 70 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 281. 40 só pode se dar na soberania do Estado, pela representação do soberano, do monarca. Sua eficácia enquanto momento do conceito de Estado atrela-se ao poder governativo, porque é esse que tem por fim a consecução do serviço público através da burocracia, da classe estatal. Os três momentos do Estado pensado por Hegel estão intrinsecamente sujeitos à idéia de direito, ao concreto plano de uma ordem ideal de se efetivar o Estado como totalidade da vida moderna. A burocracia: função de Estado Na Filosofia do Direito, Hegel não trata a burocracia dentro de um capítulo à parte ou mesmo em longos parágrafos. Desenvolve o tema quando trata do poder governativo e ao longo da exposição do poder legislativo, na tentativa de demonstrar a superioridade dos servidores do Estado sobre qualquer outro serviço promovido fora do Estado, e apontar que o único titular do universal é o Estado na figura de seus agentes subordinados ao espírito do monarca. Destaca-se que o caráter da burocracia para o filósofo alemão assenta-se à racionalidade do Estado e está diretamente ligado ao espírito da revolução francesa e às estruturas de funcionamento do Estado prussiano, que ao longo do século XVII em diante, desde a reforma de Frederico Guilherme I através da Resolução de 1653, instituiu profundas mudanças na Prússia por meio de uma forte centralização administrativa, levada adiante por seus sucessores, 71 por conseguinte, longe daqueles ideais contidos no espírito revolucionário de 1789. 72 Por fim, o espírito da burocracia se confunde com o espírito do Estado porque para Hegel existe: No funcionamento do governo, dá-se uma divisão de trabalho. Deve a organização das autoridades satisfazer a exigência, difícil embora formal, de, em baixo, a vida social, que é concreta, ser governada de um modo concreto (...) De uma natureza objectiva para si são os actos de governo; pertencem ao que já está 71 72 ANDERSON, P. Linhagens do Estado Absolutista: 280. Item VI da Declaração de 1789: Todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, sendo igualmente admissíveis a todas as dignidades, colocações e empregos públicos, segundo suas virtudes e talentos; item V da Declaração de 1793: Todos os cidadãos são igualmente admissíveis aos empregos públicos. Os povos livres não conhecem outros motivos nas suas eleições a não ser as virtudes e os talentos. RALPH, s/ ref. 41 decidido de acordo com a sua substância e devem ser executados e realizados por indivíduos. 73 A existência da burocracia está determinada pela natureza do Estado, isto é, o Estado como tal e pensado por Hegel é a superação da sociedade civil naquilo que para o filósofo significa o reino das individualidades, de todos contra todos, isso para usar uma expressão de Thomas Hobbes (1588-1679) que Hegel toma como um axioma em defesa de um Estado que compreenda seu papel de abarcar os indivíduos para si. Nesse sentido a burocracia assume materialmente a existência do Estado, sua realidade está determinada como um conjunto de funções e atribuições regulares em que só o Estado por meio do seu pessoal pode exercer. É pela burocracia que o Estado torna-se uma realidade concreta. Pela burocracia os indivíduos são informados que os serviços públicos se encontram disponíveis e de forma plena constituem o próprio Estado. Sendo a vida social, que é concreta, ser governada de um modo concreto. 74 De um modo objetivo, a burocracia para Hegel é a materialização da soberania que se processa através de indivíduos públicos. O Estado, nas suas atribuições, não pode contar com a boa vontade das pessoas e muito menos ficar refém dos cavaleiros andantes, mas instituir um corpo de indivíduos que possa exercer regularmente funções rotineiras de interesses do Estado, de interesses ao reino da sociedade civil, pela ação do Estado. 75 Dessa forma o serviço do Estado exige o sacrifício das satisfações individuai, e arbitrárias, das finalidades subjectivas, mas reconhece o direito de, no cumprimento do dever, e só nele, obter suas satisfações. 76 Claro que qualquer argumento que se tenha em prol da burocracia, não pode ignorar que seu grande intento é manter estável o funcionamento orgânico 73 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 274. 74 Idem: 240. 75 Idem: 275. 76 Idem: 276. 42 das instituições do Estado, e para que isso ocorra a contento, é necessário o mínimo de padronização dos serviços, pagamento em espécie aos funcionários, e uma relação hierárquica das funções, onde na verdade exista comando e obediência no propósito de se chegar a vida social, que é concreta, governada de um modo concreto. Destacando a importância da hierarquia no conjunto das considerações de Hegel, tem-se objetivamente que o papel da hierarquia visa coibir abusos e injustiças por aqueles que, detendo qualquer função pública, se arrogue no direito de extrapolar de sua determinada obrigação (se autodenominando num falso direito), pois estabelece um sistema de relação hierárquica em que o funcionalismo desempenhe suas atribuições baseadas na competência e na responsabilidade direta de seus cargos, submetidos à lei. A preservação do Estado e dos governados contra o abuso do poder cometido pelas autoridades e pelos funcionários, imediatamente consiste, por um lado, na hierarquia e na responsabilidade e reside, por outro lado, no reconhecimento das comunas e corporações impeditivo de que o arbítrio individual se confunda com o exercício do poder entregue aos funcionários, assim completando, vindo de baixo, a vigilância que, vinda de cima, é insuficiente quanto aos actos particulares de administração. 77 Nesta passagem Hegel aponta a importância da burocracia no mundo moderno, e sua relação com o Estado moderno, sobretudo aquele surgido após os escombros da revolução francesa de 1789. A burocracia, pensada como metáfora, é a porta de entrada do Estado moderno. Nela o que se almeja é a imparcialidade da administração pública.Tanto o Estado quanto os seus governados se beneficiam com a estruturação da burocracia, visto que o processo administrativo torna as relações impessoais e nele o sentido de eqüidade transforma a Europa do século XIX, de monarquias absolutas pelas constitucionais. Mais adiante, na avaliação de Hegel, a hierarquia funcionaria como um sistema de atribuições lógicas guardando o fim de estabelecer o equilíbrio 77 Idem: 277. 43 necessário nas relações do público com o privado a não permitir privilégios, corrupção, peculato, prevaricação e toda sorte de problemas que definhariam o propósito de universalidade do Estado. A hierarquia, nesse particular hegeliano, é uma condição lógica, portanto sua atribuição é criar condições para que os serviços do Estado não sofram os impasses tão comuns ao anarquismo da sociedade civil. Dentro de suas contradições, Hegel ergue um conjunto de relações necessárias entre a existência real do Estado moderno com a eficiência da burocracia. Essa relação é tão íntima no seu pensamento, que julga ter solucionado o problema da representação do verdadeiro Estado a partir do ponto de vista lógico, visto que basta se ter um grande quadro tecnicamente bem preparado do ponto de vista moral-intelectual, constituído mediante seleção por mérito, extraído da classe universal (classe média), para se ter efetivamente solucionado os problemas no seio da sociedade civil. 78 É sintomático o discurso hegeliano, enquanto defende o ingresso do indivíduo no serviço público (burocracia) mediante prova e exame de aptidão, em consonância com a revolução de 1789 (§ 291), Hegel busca em Aristóteles fundamento para defender a tese da classe média como classe universal, 79 capaz de em si conter o ponto de equilíbrio virtuoso da mediania, 80 e, além disso, ser o esteio de toda ordem social possível (§ 297). Hegel com isso quis indiretamente dizer que nem na aristocracia e muito menos nas classes populares se encontraria o 78 Idem: 274-278. 79 Existe em todas as cidades três classes de cidadãos: os muitos ricos, os muitos pobres, e em terceiro lugar os que ficam no meio destes extremos. Como é geralmente aceito que aquilo que é moderado e está no meio é melhor, é sem dúvida melhor desfrutar moderadamente de todos os bens proporcionados pela sorte pois nessa condição de vida é mais fácil obedecer à razão [...] de fato, os primeiros tendem para a insolência e para a prática de atos de extrema perversidade, e os últimos se tornam maus e inclinados à prática de perversidades mesquinhas, impelidos para tais ofensas pela insolência ou pela maldade. Outrossim, a classe média é a menos propensa a fugir ao exercício de funções públicas ou a buscá-las sofregamente, e ambas estas atitudes são prejudiciais à cidade. ARISTÓTELES. Política: 143-144. 80 Está, pois, suficientemente esclarecido que a virtude moral é um meio-termo [...] é um meio-termo entre dois vícios, um dos quais envolve excesso e o outro deficiência, e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixões e nos atos. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco: 277. 44 material humano para se formar os verdadeiros paladinos da moralidade pública, e defende claramente o elemento burguês como a verdadeira representação de cidadão, o que de fato está em perfeita sintonia com a revolução de 1789. c) Hegel: propriedade e propriedade privada No sistema de entendimento de Hegel a propriedade privada é uma extensão do conceito de propriedade. Não se pode perder de vista que o sistema hegeliano parte de uma identificação do real na perspectiva do ideal, mais precisamente o real existe no ideal como determinação do autodesenvovimento do conceito, por isso a realidade nunca é uma coisa em si mesma, mas sempre uma exteriorização da idéia no plano histórico. Na relação ideal-real é sempre o real uma determinação do ideal. Nesse sentido Hegel adverte: Deve a pessoa dar-se um domínio exterior para a sua liberdade a fim de existir como Idéia. Porque nesta primeira determinação, ainda completamente abstracta, a pessoa é a vontade infinita em si e para si, tal coisa distinta dela, que pode constituir o domínio da sua liberdade, determina-se como o que é imediatamente diferente e separável. 81 Sem definir o é propriedade, Hegel pelo menos a situa de forma a ser o fundamento da liberdade, o momento em que a pessoa existe como vontade livre, algo de exterior à pessoa que efetivamente a torna em si mesma indivíduo de relação com o mundo externo. A propriedade não determina a pessoa, mas sua relação com outras e nesse sentido, a propriedade efetiva um estado de espírito, uma condição necessária para que o indivíduo seja aquilo que efetivamente deseja ser: livre e determinante de si mesmo. A propriedade não significa uma naturalidade no sentido de ordem necessária, sua relação está suficiente vinculada ao Estado 82 que institui a propriedade como um direito da personalidade, como um direito que distingue a situação do indivíduo no mundo. Hegel está convencido de que a propriedade torna 81 82 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 59-60. E onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas. HOBBES, T. Leviatã: 123-124. 45 o homem independente dos arbítrios de outrem, por isso defende o sentido burguês de propriedade, o de expressão de si mesmo enquanto disposição capaz de autogerância dos seus interesses. Se considerarmos que a propriedade como tal sempre definiu as relações que as pessoas estabelecem entre si, que no seu fundamento separou os que têm daqueles que não têm, colocando estes em posição inferior aqueles, Hegel não tem outra alternativa senão pensar que o melhor para o indivíduo ser em sociedade, está na posse da propriedade, pois o mundo burguês privilegia a individualidade e com isso a mesma torna-se propriedade dos indivíduos. 83 Para Hegel o homem tem o direito de se manifestar através das coisas, através daquilo que produz, daquilo que o identifica na sociedade civil burguesa. Por esse motivo não pode ser impedido de se apropriar das coisas e muito menos de si mesmo. Hegel está defendendo o direito do homem ter como propriedade fundamental as suas qualidades subjetivas: as intelectuais e as morais advindas do processo cultural e, sendo assim, as torna posse jurídica, uma propriedade íntima do espírito, o que identifica e distingue os homens no processo de suas relações sociais. 84 A defesa da propriedade em si é a defesa do homem se manifestar enquanto ser que dispõe a possibilidade de possuir direitos na adequação do dever de respeitar aquilo que não lhe pertence, e de alguma forma impor esse mesmo princípio aos exteriores à sua liberdade. 85 A liberdade só se realiza por meio da vontade humana que, ao seu turno, se origina no espírito (§ 4), e por este motivo a liberdade se assemelha ao exercício da vontade. Logo, vontade e liberdade são sinônimos que para Hegel se efetivam quando ao homem é possível sua realização na propriedade, no momento em que a liberdade é a própria subjectividade. 83 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 60. 84 Idem: 61. 85 Onde não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil. Idem: 124. 46 [Para Hegel] Tem o homem o direito de situar a sua vontade em qualquer coisa; esta torna-se, então, e adquire-a como fim substancial (que em si mesma não possui), como destino e como alma, a minha vontade. É o direito de apropriação que o homem tem sobre todas as coisas. 86 Propriedade em Hegel é antes de tudo um princípio que norteia a liberdade como fundamento do indivíduo. Não é um fim para garantir a posse como construção jurídica ou solução política para debelar carências. Propriedade no sentido de debelar carências constitui-se como um meio para a solução desses mesmos problemas, mas em si mesma a propriedade é o princípio sobre o qual a liberdade se funda. 87 A propriedade é uma categoria que dá a Hegel a possibilidade de pensar, numa etapa primeira do movimento de concreção da pessoa na exterioridade das coisas, o processo graças ao qual a vontade abandona os labirintos de sua subjetividade para aventurar-se nos domínios da imediação do ser. A pessoa determina a sua imediaticidade e a sua individualidade procurando apropriar-se de um mundo que lhe resiste. 88 Como bem se presta esta ilustrativa passagem de Denis Rosenfield, a propriedade, no pensamento de Hegel, é peculiar, e está mais como uma determinação filosófica, portanto lógica, que como uma determinação eminentemente política, de ordem prática como em John Locke (1632-1704). Segundo o pensador inglês a propriedade embora seja um conjunto de bens, vida e liberdade, 89 uma determinação da natureza, não assume, como em Hegel, uma determinação do indivíduo dentro da sociedade a partir de como ela é. Para Locke a propriedade constitui a base de um sistema associativo entre os homens, isto é, os homens deveriam se organizar no melhor governo possível, 86 Idem: 62. 87 Ibidem. 88 ROSENFIELD, D. Política e Liberdade em Hegel: 69. 89 LOCKE, J. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil: 92. (...) e não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros que não estão já unidos, ou pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a que chamo de propriedade. Idem: 88. Por propriedade devo entender, aqui como em outros lugares, a que os homens têm tanto na própria pessoa como nos bens. O grande objetivo da entrada do homem em sociedade consistindo na fruição da propriedade em paz e segurança, e sendo o grande instrumento e meio disto as leis estabelecidas nessa sociedade. Idem: 109. 47 cujo escopo seria a guarda, o uso e a disponibilidade da propriedade sem nenhuma ingerência externa. No pensamento de Locke, sendo a propriedade um direito natural, existe muito antes da própria organização política. Deus criou o mundo para os homens e os fez detentores de toda riqueza existente para benefício daqueles que pudessem usá-la com razão e sobriedade, que explorada pelo trabalho, daria aos homens o sustento e a própria liberdade, visto que o trabalho, o corpo e o produto dessa relação formariam a propriedade de si mesmo. 90 Inversamente para o filósofo alemão, a propriedade não constitui um princípio da natureza, pois esta não é livre. 91 A propriedade é uma das tantas mediações encontradas por Hegel para a expressão da pessoa que é na verdade sujeito, que em si mesmo é abstração (§ 47), e por isso a propriedade assume na sua filosofia política um papel de efetivar o indivíduo na sociedade civil burguesa, a dignificá-lo por meio da manifestação de algo que o apresente de forma concreta. Assim, a propriedade em Hegel não sendo base de nenhum sistema político, se reproduz como esteio para que o homem se manifeste politicamente no seio da sociedade como algo de si e não como algo em si e alheio à sua vontade. Para Hegel os homens não se organizam em sociedade para usufruir a propriedade sob garantias públicas, mas sim na dimensão pôr a termo a liberdade. Em síntese, a propriedade em Locke é uma manifestação da natureza sob a qual os homens por bem procuram vivenciar, ao passo que em Hegel é uma determinação do espírito onde os homens procuram se determinar na liberdade. 92 Para que a propriedade se torne privada, isto é, se torne de uma pessoa, é necessário que, além da vontade de se apossar da coisa (animus), haja por parte desse interessado a possessão da coisa, e que, em contrapartida, não haja nenhum impedimento interposto por outrem, ou seja, que outrem não manifeste também o 90 LOCKE, J. Segundo Tratado do Governo Civil: 51. 91 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 65. 92 Idem: 67. 48 interesse de possuir a mesma coisa. Nessa relação de princípios, parece que Hegel toma de Locke semelhante argumento: Ninguém pode fechar qualquer parte do terreno ou dele apropriarse sem o consentimento de todos os membros da comunidade. 93 Segundo Hegel, assinalado por Rosenfield, são determinações da propriedade: a tomada de possessão, o uso da coisa e a alienação da propriedade. 94 Essas determinações constituem o significado de propriedade privada, pois ao proprietário são garantidos a posse, o gozo e a possibilidade de dispor da coisa no momento em que não mais a desejar, podendo se desfazer da mesma por meio dos instrumentos que dispuser a lei, destacando o contrato como realização do fundamento da propriedade. d) O Problema da representação política e a democracia Não se pode olvidar que a associação entre liberalismo e democracia foi um processo em parte atribuído às lutas que os próprios liberais travaram contra os socialistas no século XIX, 95 isto porque entre liberalismo e democracia nunca houve uma relação natural como hoje se deseja passar. Embora para os liberais a democracia sempre tenha sido vista como uma forma governativa fundamentada na liberdade, seus receios estavam intimamente ligados ao fato de que o preceito de liberdade estaria intimamente ligado a um outro tão ou mais importante: a igualdade. Por isso que os liberais do século XIX ficavam receosos (como ficam até hoje) com o significado real da democracia: liberdade para a manifestação da igualdade. 96 93 LOCKE, J. Segundo Tratado do Governo Civil: 54. 94 ROSENFIELD, D. Política e Liberdade em Hegel: 75. 95 Ao longo do século XIX, a discussão em torno da Democracia se foi desenvolvendo principalmente através de um confronto com as doutrinas políticas dominantes no tempo, o liberalismo de um lado e o socialismo do outro. BOBBIO, N. (org.). Dicionário de Política: 323. 96 Um princípio fundamental da forma democrática de governo é a liberdade – a liberdade, segundo a opinião dominante, somente pode ser desfrutada nesta forma de governo, pois diz-se que ela é o objetivo de toda a democracia. Mas um princípio de liberdade é governar e ser governado alternadamente, pois o conceito popular de justiça é a observância da igualdade baseada no princípio da maioria, e não no do mérito, e se este é o conceito de justiça dominante, a 49 Os liberais do século XIX nunca defenderam a democracia como uma necessidade vital para uma ordem social justa. Preocupavam-se sobremaneira com a liberdade. Liberdade para negociar, possuir propriedade e poder contratar como ato de inteira disposição de si mesmo (vontade). Para um liberal clássico do século XIX, a igualdade era um postulado estranho ao liberalismo, que deveria ser combatido, pois indubitavelmente contrariava os interesses em essência da representação parlamentar da época, que se fundava no voto restrito aqueles que possuíam propriedade. 97 Por ser um grande leitor dos clássicos, atento aos escritos políticos de sua época, e arguto observador dos homens em sociedade, Hegel não poderia ignorar a democracia como um elemento que, após a revolução francesa, tomou uma dimensão de ordem fundamental nos debates políticos de então. Aliás, Hegel sempre viu com reservas a democracia pensada única e exclusivamente como sistema de votos. Compreendia que uma democracia assim não daria conta das necessidades políticas de uma Alemanha dividida. Segundo Herbert Marcuse (1898-1979), em sua obra Razão e Revolução, Hegel escreveu sua Filosofia do Direito em defesa do Estado, isso porque considerava que muitos movimentos pseudodemocráticos alemães 98 representavam ameaça maior à liberdade que as próprias autoridades constituídas, 99 que a exemplo do Terror instituído pelo Comitê de Salvação Pública na França maioria deve ser necessariamente soberana, e a decisão da maioria deve ser final e constituir a justiça, pois costuma-se dizer que cada cidadão deve ter uma participação igual. ARISTÓTELES. Política: 204. 97 Ver MOSCA, G. História das Doutrinas Políticas. 98 Burschenschaften (agremiações estudantis) e os Turnvereine (Clubes de ginástica) Em nome da liberdade e da igualdade entre os homens, o povo estadunidense constituiu-se livremente em uma república com representação pelo voto. Em nome de tais princípios, o povo francês derrubou a monarquia e instituiu uma república que pudesse racionalmente levar adiante os mais simples direitos dos homens. Paradoxalmente, em nome dos mesmos princípios, a pequena burguesia alemã, após a libertação dos estados alemães do jugo francês, através de argumentos liberais e democráticos, propunha ódio aos judeus, católicos, franceses, e fundava o progresso alemão num salvador do espírito germânico, etc. 99 MARCUSE, H. Razão e Revolução: 171. 50 revolucionária, invertia o universal pelo particular. 100 Hegel não vislumbrou na democracia o que a monarquia lhe proporcionava, o princípio da unidade pela autoridade do monarca no projeto de efetivação do universal contra o particular, isso como razão histórica. Diz-se que todos os indivíduos isolados deverão participar nas deliberações e decisões sobre os assuntos gerais do Estado porque são membros do Estado, os assuntos do Estado a todos dizem respeito, todos têm o direito de se ocupar do que é o seu saber e o seu querer. Tal concepção, que pretende introduzir no organismo do Estado o elemento democrático sem qualquer forma racional – obliterando que o Estado só é Estado por uma forma racional -, afigura-se muito natural porque parte de uma determinada abstração: serem todos membros de um Estado, e porque o pensamento superficial não sai das abstrações (...) O membro do Estado é membro de tal ou tal ordem, e só com está determinação objetiva poderá ele ser considerado dentro do Estado. 101 Esta é uma passagem em que Hegel afirma claramente que a introdução do elemento democrático sem qualquer forma racional no interior do Estado não o transforma em algo melhor, e possivelmente o tornaria pior, isso porque o Estado só é Estado em razão de sua racionalidade, e de alguma maneira os defensores do elemento democrático se esquecem ou ignoram esse detalhe. Hegel considera a democracia uma abstração que não tem realidade histórica, não tem relação de concretude para gerar instituições voltadas à satisfação dos interesses da universalidade anunciada pela idéia desenvolvida pelo Estado. Essa idéia posta em processo pelo Estado é o ingresso do homem para si, dentro de suas fileiras, entretanto para isso, Hegel julga que os membros do Estado são positivamente seus membros quando participam dele por meio de uma ordem (determinação objetiva), 102 membros enquanto espécie e não enquanto gênero, pois em sua 100 ALVES, J. L. Rousseau, Hegel e Marx, percurso da razão política: 156. 101 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 288-289. 102 A participação orgânica dos indivíduos na vida política tornou-se uma determinação da Idéia do Estado como vontade substancial. A participação atomística dos indivíduos, pelo contrário, é a determinação de uma filosofia que reduz o Estado a um contrato social. ROSENFIELD, D. Política e Liberdade em Hegel: 250. 51 corporação atinge o universal. 103 O que Hegel julga verdadeiramente é que a monarquia em si é uma determinação histórica germânica, e por fim o elemento decisivo na unificação político-econômica da Alemanha, o que ocorrerá em 1871 por essas mesmas forças. Em uma passagem da Filosofia do Direito, Hegel mostra claramente que a opinião de muitos não significa necessariamente a detenção do universal, mas sim, em muitos casos, apenas o sentido de particularidade, o sentido de uma opinião sobre assuntos que pedem inteiro conhecimento e profundidade. 104 Não são os indivíduos isolados com opiniões isoladas que dinamizam a sociedade civil, mas objetivamente a representação por meio dos mecanismos das ordens, das corporações, das classes, da delegação política. Segundo Rosenfield, não se trata de acusar Hegel de ser contra a democracia. Em seu entendimento o que Hegel se nega a aceitar, é ainda a forma não racional que apresenta a democracia, isto é, em generalidades abstratas. 105 Mais que isso, é a sua origem que repousa nas abstrações particulares, nos interesses puramente pessoais, ignorando que em uma organicidade estatal o que se determina é o universal, não como soma de partes, mas como estas no seio do todo, visto este logicamente preceder às partes. Segundo Hegel a representação parlamentar se dá por competência dos interesses da particularidade dentro da universalidade (§309), ou melhor, não se trata de uma representação a partir de sujeitos isolados, especificamente relacionados a interesses abstratos, mas pelo fato de se firmar como representação de interesses da sociedade no seu conjunto. A representação em Hegel se espelha, sobretudo, no interesse que se move em torno das necessidades da sociedade, por 103 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 289. 104 Ibidem. 105 O problema não é então afirmar que Hegel é contra a democracia, mas, pelo contrário, trata-se de assinalar que ele é adversário de sua forma ainda não racional. A democracia, instituída a partir da pessoa privada, só assegura para ele, portanto, os interesses particulares da particularidade, sendo incapaz de elevar-se firmemente e de um modo duradouro à pratica do que é universal. A participação de todos nos assuntos públicos só tem lugar através de uma mediação que garanta efetivamente a expressão política das relações da sociedade civil-burguesa. ROSENFIELD, D. Política e Liberdade em Hegel: 256. 52 isso entende que a delegação política só pode ser pela inteligência e conhecimento do que constitui a particularidade. 106 Por isso é perigoso afirmar que Hegel é antidemocrático, autoritário ou adjetivos familiares. Em sua época a democracia estava longe de ser como a conhecemos. Sob os pontos de vista formal e material, a democracia deu os seus primeiros passos no mundo moderno pela experiência concreta dos Estados Unidos que, por sua vez, no primeiro momento, ainda se via em debates tremendos para saber que tipo de democracia se queria, e por fim descobrir o melhor caminho para sua institucionalização. 107 Um dos corolários da democracia representativa, o sufrágio universal, institui, por conseguinte a representação política partidária que, aos olhos de Hegel, é visto como verdadeiro celeiro de interesses ligados à contingência e à particularidade. 108 A política partidária para Hegel é uma das formas de participação nos negócios públicos, por sinal acidental e incongruente por não assegurar que todos realmente se assentem nos lugares visando determinações realmente públicas. Como a democracia é um sistema que pressupõe disputa, e disputa leva ao plano dos interesses particulares, um perde enquanto outro ganha, Hegel entende que tal forma de administração da coisa política em nada garantiria a concretização da liberdade como valor universal e muito menos levaria a Alemanha a lugar algum. 109 Para entender o pensamento político de Hegel é preciso situá-lo dentro de seu espírito, é necessário perceber que este filósofo é antes de tudo um metafísico. Por isso não se preocupa em partir de um real específico, mas sim de um real que seja compreendido pela idealidade de si mesmo. O legislativo na concepção hegeliana difere do construído pela contemporaneidade, isto é, um foro de 106 Idem: 257. 107 Ler Os Artigos Federalistas – 1787-1788. 108 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 293. 109 ROSENFIELD, D. Política e Liberdade em Hegel: 257. 53 discussões por vezes intermináveis. Para Hegel a casa legislativa apenas se detém naquilo que for de competência da sociedade civil, e não ultrapassa esses limites, cabendo ao poder soberano a tarefa de sustentar e promover o universal através do poder governativo, pelo seu pessoal devidamente qualificado nos interesses do Estado. Nessa relação entre os poderes governativo e legislativo, Hegel privilegia o primeiro por entender que sua natureza é universal e não particular. 110 A opinião que a consciência vulgar habitualmente perfilha sobre a necessidade ou a utilidade da colaboração das ordens na elaboração das leis, consiste, antes de tudo, em crer que os deputados do povo são os que melhor compreendem o que é o bem do povo e os que melhor vontade indubitavelmente possuem sobre o que ao povo convém (...) Quanto ao primeiro ponto, o que, pelo contrário, é bem verdade é que o povo, na medida em que esta palavra designa uma facção particular dos membros do Estado, representa a parte que não sabe o que quer. Saber o que se quer e, ainda mais, saber o que a vontade em si e para si, a razão, quer, só pode ser o fruto de um profundo conhecimento e de uma intuição que, precisamente, o povo não possui. A contribuição que ao bem geral e à liberdade pública as assembléias de ordem vêm dar, não reside, se nisso reflectirmos um pouco, na sua intuição particular. Com efeito, os altos funcionários do Estado têm necessariamente um entendimento mais profundo e vasto da natureza das disposições e exigências do Estado (...) não precisam de tais assembléias para fazer o melhor e são eles que, nas assembléias de ordens, fazem o melhor. 111 Abusando da extensão da citação, deseja-se com ela exemplificar o que Hegel pensava do legislativo: um momento do conceito do Estado totalmente subordinado ao poder soberano por meio da ação do governativo. Para Hegel o legislativo se configura em um poder auxiliar nas decisões de natureza pública; dele chegam informações sobre as particularidades da sociedade civil que por sua vez 110 Ao se ler Hegel dentro do critério de apatia, por força da observação chegase a conclusão que seu pensamento parece retratar não só o Estado moderno mas também o contemporâneo, sobretudo nos últimos trinta anos, em que cada vez mais o poder legislativo perde, por motivos diversos, o seu papel de legislar em favor do poder executivo, cabendo a este o incremento do universal no seio das particularidades. Por isso, estando certo ou não, se constata perfeitamente que ao legislativo ficou reservado o papel de uma moldura quanto a caracterizar o Estado constitucional. O executivo trouxe para si a tarefa de ser o grande poder no interior das instituições políticas, constituindo-se na própria representação da soberania, portanto, nada mais hegeliano do que o momento atual dos Estados nacionais. Pode-se ler em estudos recentes tais relações. Destaco, entre outros trabalhos, os seguintes: FIGUEIREDO & LIMONGI. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional; e VIANNA, L. V. (org.). A Democracia e os Três Poderes no Brasil: 141-194. 111 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 282. 54 são elevadas à categoria de universal e por fim implementadas como prestação de serviços que o governo entende essenciais ao povo. Aventuro-me a dizer que o poder legislativo tem, para Hegel, apenas a função consultiva, funcionaria como um órgão consultor do poder soberano, quando não, dele se partiriam algumas iniciativas que deveriam ser submetidas ao monarca na qualidade de se verificar o sentido universal do Estado. A representação para Hegel tinha um sentido de bem público e liberdade racional, constituía-se numa instituição, só que não tão importante quanto a soberania do monarca, o regime judiciário, etc. O que na verdade vale dizer é que a representação parlamentar em Hegel possui importância secundária, pois não é o número que define a melhor ação do Estado, mas sim por quem é realizada essa mesma ação do Estado. 112 112 Idem: 283. Capítulo 3 Marx e a crítica ao idealismo hegeliano Influenciado pela crítica que Feurebach faz ao hegelianismo, Marx assevera que o autor da Filosofia do Direito promoveu uma tal inversão na ordem sujeitopredicado, que acabou subordinando a existência do real ao plano lógico, isto é, o objeto surgido a partir do pensamento enquanto instância necessária. Marx, em uma passagem da Crítica de 1843, assinala a diferença fundamental que separava sua perspectiva filosófica da de Hegel. [Hegel] Não desenvolve o seu pensamento de acordo com o objeto; pelo contrário, desenvolve o objeto partindo do seu pensamento, isto é, de algo acabado que se desenvolvera dentro dos limites da esfera abstracta da lógica. 113 Filiado ou não ao idealismo alemão no início de sua formação intelectual, mas certamente influenciado por este na elaboração de seu pensamento, Marx conhecia perfeitamente o significado de lógico em Hegel. Conforme apresentado no capítulo anterior, o idealismo de Hegel não repousa nem no sujeito e muito menos no objeto respectivamente, mas no lógico. Hegel parte do entendimento de que a realidade é uma idéia lógica, portanto o ser das coisas é puramente lógico. 114 Está nas estruturas do pensamento em apreender o ser na clara definição de informar sua realidade. Pelas contundentes críticas de Feuerbach a Hegel, Marx assinala que a lógica hegeliana se relaciona ao sagrado na medida em que assume a qualidade de, em si mesma, dar conta do ideal como real. É por isso que toma de Feuerbach o sentido de que a lógica hegeliana é a teologia reconduzida à razão e ao presente, a teologia feita lógica (...) a filosofia hegeliana é o último lugar de refúgio, o último suporte racional da teologia, 115 para identificar a lógica hegeliana ao misticismo lógico, como inversão das determinações do real. 113 MARX, K. Crítica a Filosofia do Direito de Hegel: 22. 114 HESSEN, J. Teoria do Conhecimento: 102. 115 FEUERBACH, L. Teses Provisórias Para a Reforma da Filosofia: 21-33. 56 A negação da filosofia hegeliana por parte de Marx é uma investida contra todas as formas de pensar o real dentro da tradição da filosofia política alemã. É uma investida contra o reino do ideal concebido como real; é uma investida contra o lógico enquanto refúgio de construções que vão além do dado real. Marx rompe com Hegel porque percebe que sua filosofia não efetiva uma ação politicamente de mudança do real. Romper com Hegel é essencial porque isso significa, acima de tudo, romper com estruturas conceituais comprometidas com um racional compreendido na idéia, mas que absurdamente pretende se passar por pragmático quando procura demonstrar que o real e o racional mantêm relação de conditio sine qua non. Marx rompe com Hegel porque, ao contrário deste, compreende a história como uma construção dos homens, ao passo que Hegel tem a história como a realização da razão através dos homens; nisso consiste toda a diferença de expectativa e o rompimento necessário quanto ao destino político da Alemanha. Marx rompe com Hegel porque a ele não resta outra alternativa, pois suas pesquisas lhe levaram para um caminho que não admitindo volta, pede novas formulações levando em consideração o homem no mundo dentro dos limites desse mundo, ignorando por definitivo a instância metafísica das determinações abstratas. O rompimento de Marx com Hegel é um capítulo muito interessante dentro da história do pensamento ocidental. Mesmo promovendo um giro considerável dentro de suas elaborações teóricas, Marx por muito tempo reconhecerá em Hegel, até seus últimos dias, a sua importância na busca de uma compreensão do indivíduo a partir do social. Por que o rompimento de Marx com Hegel se dá pela Critica da Filosofia do Direito de Hegel? Por que o rompimento definitivo de Marx com a filosofia hegeliana se dá no plano político? É porque, no entender de Marx, em 1843, a política deveria ser a efetivação da filosofia, a realização da filosofia como forma de mudança, é aqui, portanto, que Marx observa o caráter comprometedor da filosofia e, sobretudo, da filosofia política de Hegel: a sua impossibilidade de fundamentar 57 qualquer ação material de transformação político-social. Se os jovens hegelianos tinham em Hegel o teórico inspirador da mudança política dentro da Alemanha, Marx o tinha como um obstáculo à realização de um tal objetivo, primeiro como teórico, depois como político, este como conseqüência daquele. Esse obstáculo político está relacionado ao fato de que Hegel tinha na monarquia prussiana uma realidade. Realidade essa, mesmo que imperfeita, era concreta, havendo, portanto, a partir do existente, a possibilidade de continuar com tal programa e com ele edificar pela racionalidade uma Alemanha que pudesse perante toda Europa, ser um Estado uno, soberano, que por princípio se fundamentasse na universalidade como efetivação da liberdade. Esse projeto aos olhos de Marx não é só inviável como inconseqüente sob o ponto de vista da relação teórica hegeliana. Marx percebe claramente que com a filosofia política hegeliana não haveria transformação efetiva para retirar a Alemanha do atraso em que se encontrava. O Estado que Hegel construíra não passava de um acirramento do que se tinha por Estado e como o mesmo estava constituído enquanto uma oposição à sociedade civil, esta sim, real e concreta, aquele uma construção nem sempre na razão direta de se subordinar aos verdadeiros interesses da sociedade civil. O rompimento epistemológico de Marx com Hegel se dá quando este toma a realidade a partir de conceitos lógico-dialéticos, isto é, compreende a realidade levando em conta as premissas teóricas construídas em seu sistema. Marx alega que Hegel não se submete a olhar a realidade como ela é, muito ao contrário, a submete ao plano de sua lógica, ao logicismo como critério de verificação do real. Marx afirma que Hegel inverte a natureza das coisas, o que é sujeito torna-se predicado e o que é predicado vira sujeito; o que é deixa de ser e o que não é passa a ser. Logo, pondera Marx: A diferença não reside no conteúdo, mas sim na maneira de considerar ou a maneira de falar. Todo este conteúdo apresenta uma forma dupla, esotérica e exotérica. O conteúdo radica na parte exotérica; o interesse da parte esotérica consiste em atribuir 58 sempre ao Estado o desenvolvimento do conceito lógico. Mas é ao aspecto exotérico que cabe a tarefa de realizar o desenvolvimento propriamente dito. 116 Nesta passagem Marx precisa o ponto central que caracteriza a diferença existente entre o sistema apontado por Hegel e aquele que ele julga procedente em sua crítica. Marx constata que as construções hegelianas servem ao propósito de colocar o sistema como uma ordem primeira e imutável onde todo e qualquer objeto estaria submetido. Sociedade civil e família são condições materiais para a existência do Estado, mas no misticismo lógico de Hegel, este existe enquanto síntese (ou especulativo lógico) que superaria dialeticamente as bases reais que são tidas por momentos do próprio Estado enquanto idéia no seu autodesenvolvimento. Hegel, segundo Marx, em sua inversão do real, desloca o sujeito de sua base real e o coloca em condição ideal. O Estado que sob a concreta existência das coisas é o predicado da sociedade civil, pelo sistema místico de Hegel, alega Marx, é o sujeito e a sociedade civil é o predicado, ou seja, a sociedade civil torna-se um elemento do sujeito (o Estado) que a ele deve se subordinar. Por exemplo: Marx: De acordo com Hegel são, pelo contrário, actuadas pela idéia real; não unem as suas próprias vidas dando origem ao Estado, pois constituem um produto da vida da idéia e são a finitude desta idéia; devem a sua existência a um espírito diferente do seu; são determinações por um terceiro e não determinações próprias, estando portanto determinadas como finitude, mas precisamente como a própria finitude da idéia real. 117 Hegel tem a sociedade civil e a família como elementos finitos da idéia que se realiza perfeitamente no Estado. Entenda-se bem: Hegel é um protestante, um cristão, e tem Deus como premissa fundamental em sua filosofia, portanto, sob o ponto de vista lógico e coerente com os seus princípios, Hegel só pode conceber as essências como algo fora dessa realidade, da realidade material. O plano do 116 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 12. 117 Idem: 112-113. 59 idealismo de Hegel é demonstrar racionalmente que a realidade concreta se dá antes na construção do espírito, ou a mente se pensando a si mesma. 118 Obviamente que Marx, ancorado na filosofia de Feuerbach, uma espécie de materialismo (ainda idealista), não poderia aceitar que a sociedade civil e a família existissem enquanto processo do autodesenvolvimento do Estado, como se esse já existisse em realidade na idéia e se processasse por tais caminhos até sua superação como universal concreto. Pois em Hegel o Estado é universal abstrato enquanto potência, que no processo supera as dimensões família e sociedade civil para existir como realidade: conceito que se torna histórico necessariamente. O que mais uma vez Marx negará, e por quê? Porque Marx olhava os objetos, não a partir de si como sujeito que deveria construir o objeto, mas sim das condições materiais do próprio objeto, isto quer dizer que a realidade determinaria em última instância a sua forma de compreender o próprio objeto. O objeto não existe no pensamento como uma realidade em si determinada como uma idéia, o objeto é conhecido pelo pensamento através das relações existentes entre sujeito e objeto. Segundo Marx o conhecimento do objeto nem se dá pela determinação do sujeito muito menos do objeto, mas sim uma relação entre ambos em condições determinadas pela própria realidade. Realidade nesse caso quer dizer concretude, o mundo do palpável, não aquele onde o abstrato passa por concreto, nisso consistindo a mistificação hegeliana. O projeto de Marx, em resumo, seria o de corrigir o esquema da contradição reflexiva e utilizá-la como chave compreensiva do movimento da sociedade moderna. 119 Por isso o sistema hegeliano é insuficiente pela razão que o seu autor alega ter descoberto a dialética: a contradição. O rompimento de Marx com o pensamento de Hegel não foi algo instantâneo, foi um verdadeiro processo. Um dos momentos decisivos da mudança 118 SINGER, P. Hegel: 67. 119 DOTTI. S/ ref.: 15. 60 de perspectiva filosófica operada pelo folósofo-jornalista quando da publicação de seu artigo na Rheinische Zeitung intitulado Debate Sobre a Lei Contra o Furto de Lenha. É nesse artigo que Marx se defronta pela primeira vez com a realidade sócio-econômica que cerca seu mundo político. Pela primeira vez Marx toma contato com uma ordem diferente de problemas daqueles que comumente discutia com seus contendedores, a realidade econômica, que para ele ainda era um mistério. Por isso seu artigo fora decisivo no seu percurso teórico e prático, e pode-se afirmar que daí por diante sua vida também muda. Marx volta-se para um mundo diferente daquilo que constituíra como objeto de suas reflexões, mundo esse não desconhecido por Hegel. Agora de posse dessa realidade e se debruçando sobre a mesma com o seu hábito de tudo ler, de tudo se informar exaustivamente em relação à coisa, Marx começa a se situar em igualdade para o confronto com Hegel. O caminho da política é a instância derradeira para que Marx rompa com Hegel definitivamente. Feuerbach, uma influência decisiva sobre Marx Feuerbach é um pensador que, angustiado pela ferrenha lógica hegeliana, procura insistentemente desarticulá-la acusando-a de um refúgio da teologia. Ao contestar o sistema hegeliano o acusa de impertinente ao que estabeleceu por necessidade de compreensão. Feuerbach contesta o que acaba dominando sua filosofia, a metafísica, pois troca a lógica hegeliana pela intuição como critério de análise do que entende por verdadeiro. Em sua obra Necessidade de Uma Reforma da Filosofia, Feuerbach apresenta a tese de que a filosofia deveria ser renovada necessariamente por conta de destituir o império de Hegel sobre a mente das pessoas, livrá-las da lógica especulativa que obnubilava o céu da Alemanha. A reforma da filosofia só pode ser a necessária, a verdadeira, a que corresponde à necessidade da época, da humanidade. Em períodos da decadência de uma concepção do mundo de alcance histórico, há certamente necessidades contrárias – a uns é ou parece necessário conservar o antigo e banir o que é novo; para 61 uns é imperativo realizar o novo (...) A filosofia hegeliana foi a síntese arbitrária de diversos sistemas existentes, de insuficiências – sem força positiva, porque sem negatividade absoluta. Só quem tem a coragem de ser absolutamente negativo tem a força de criar a novidade. 120 O absoluto que Feuerbach deseja combater é a condição de sua própria filosofia, de seu sistema. O interessante é que o pensamento de Feuerbach contesta um absoluto que por sua vez institui um outro só que diferente, não o absoluto da lógica do pensamento, mas do sensível, do imediato, da intuição. Por sua vez Marx retira de Feuerbach aquilo que lhe parece essencial, a dimensão antropológica, em outras palavras, aquilo que se convencionou chamar de humanismo. Retira Marx, de Feuerbach, sua preocupação em colocar o homem como centro de sua ação, determinação de si mesmo enquanto ser eminentemente voltado para sua realização humana. Tal fato diz respeito ao que se pode considerar o homem e sua materialidade, o homem em si mesmo diante de sua concretude, diante de sua imediaticidade, de sua história. A filosofia de Feuerbach facultou a Marx um material muito rico de possibilidades teóricas, destacando entre muitas o conceito de alienação, aquilo que retira do homem o seu sentido de humanidade e pensar sobre si mesmo. O sentido da filosofia de Feuerbach é um materialismo da existência como crítica ao pensamento especulativo de Hegel. Marx ao tomar ciência do conceito de alienação desenvolvido por Feuerbach, o aplica em seus argumentos contra Hegel, isso com o fito de demonstrar que Hegel subverteu a ordem de importância necessária entre sujeito e predicado, elevou o Estado a condição de sujeito quando afirma o fato de a sociedade civil se tornar predicado. Para Marx tal inversão estabeleceu uma fissura entre os planos social e político, quebrando justamente aquilo que tanto Hegel desejava: a vida ética tomando por base o mundo grego. É a partir de Feurbach que Marx justifica seu ponto de vista assinalando que a inversão hegeliana privilegiou o político sobre o social em bases imaginárias, pensadas em uma perspectiva falsa, na qual o 120 FEUERBACH, L. Necessidade de uma reforma da filosofia: 13-14. 62 Estado burguês seria capaz de em si promover a superação das particularidades da sociedade civil. Mas isso para Marx não passa de alienação, de inversão do real, até mesmo porque a dimensão Estado não poderia superar as particularidades por se ter tornado privado pela monarquia, um sistema familiar. Essa alienação que Marx acusa Hegel de promover quando inverte a relação sujeito–predicado, sociedade civil–Estado, social-político, busca em Feuerbach quando sinteticamente assinala o significado de consciência em sua obra A Essência do Cristianismo. Consciência no sentido rigoroso existe somente quando, para um ser, é objeto o seu gênero, a sua qüididade. De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isso tem ele sentimento de si mesmo – mas não como gênero – por isso faltalhe a consciência, cujo nome deveria saber. Onde existe consciência existe também a faculdade para a ciência. 121 Partindo desse pressuposto de Feuerbach, que o homem pensa a si mesmo não só como indivíduo, mas como gênero - por isso é consciente como tal e sujeito de si mesmo -, Marx mostra a contradição de Hegel quando este no § 35 de sua Filosofia do Direito, assinala que o sujeito é uma pessoa. Se sujeito é uma pessoa, e já que a personalidade é tomada como consciência de si, por que Hegel esvazia essa pessoa na medida que torna a sociedade civil algo fora de si e põe o Estado fundamentalmente como realidade de si? Marx explica, veremos mais à frente, que o Estado para Hegel precisa se impor como uma ordem naturalmente válida acima dos sujeitos reais na qualidade de uma imposição que passa a ilusão de ser o universal necessário na perspectiva de suplantar o reino das particularidades tão afeito na sociedade civil. O Estado é a ordem que aliena os indivíduos porque se lhe retira seu conteúdo social em detrimento do político, do abstrato. Para Marx, Hegel tira do homem a total relação que o mesmo tem consigo enquanto ser consciente, enquanto ser social. O ser político não é em si mesmo uma dimensão menor ou equivocada, pelo contrário, Marx até destaca essa dimensão importante dentro da sociedade civil burguesa, mas pondera que isso não 121 FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo: 43. 63 é tudo, que o ser social em sua verdadeira dimensão é tanto privado quanto público, o político e o social são dimensões necessárias à condição humana; suprimindo um ou outro constitui processo de alienação, ou a não consciência de si mesmo sobre si mesmo, ou segundo Feuerbach, não pensar a si mesmo. A crítica central de Marx à Filosofia do Direito é a de que Hegel mistificou toda a realidade em favor da idéia que se autodesenvolve no plano lógico, como se o Estado fosse uma idéia em si mesma já existente antes dos homens existirem. 122 Nesse sentido Marx vai de encontro à construção teórica do pensamento hegeliano, afirmando que a lógica é uma necessidade em si mesma que toma o Estado para se justificar. A inversão do método filosófico-especulativo pelo filosófico-histórico A idéia é subjectivada. A relação real da família e da sociedade civil com o Estado é concebida como sua actividade interior imaginária. A família e a sociedade civil constituem os pressupostos do Estado; são activas, no verdadeiro sentido da palavra; mas na especulação sucede o contrário. Ora enquanto a idéia é subjectivada, os sujeitos reais, a sociedade civil, a família, as circunstâncias, o sujeito, etc. transformam-se aqui em momentos subjectivos da idéia, não reais, tendo um sentido diferente. 123 Esta passagem representa a condenação de Marx face à dialética hegeliana chamando-a de mistificadora. É, em outras palavras, uma crítica a inversão da determinação do real pelo ideal. 124 122 A esse respeito Marx deveria ter pleno conhecimento, pois na Fenomenologia do Espírito, Hegel desenvolve a tese de que o botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso se-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. (p. 22). Relação de ato e potência, matéria e forma na Metafísica de Aristóteles. 123 124 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 11-12. Critiquei a dialética hegeliana, no que ela tem de mistificação, há quase trinta anos, quando estava em plena moda. Ao tempo em que elaborava o primeiro volume de O Capital. Era costume dos epígonos impertinentes, arrogantes e medíocres, que pontificavam nos meios cultos alemães, comprazerem-se em tratar Hegel, tal qual o bravo Moses Mendelssohn, contemporâneo de Lessing, tratara Spinoza, isto é, como um ‘cão morto’. Confessei-me, então, abertamente discípulo daquele grande pensador, e, no capítulo sobre teoria do valor, joguei, várias vezes, com seus modos de expressão peculiares. A mistificação por que passa a dialética nas mãos de Hegel não o impediu de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional dentro do seu invólucro místico. MARX, K. O Capital: Pósfácio. 64 Esta passagem é uma crítica de Marx ao § 262 da Filosofia do Direito, que de uma certa forma é a base constitutiva de toda a discussão de Marx com Hegel, portanto, vital para a compreensão da tomada de posição por parte de Marx diante dos acontecimentos e sua futura posição teórica. Esse momento é tão importante que Galvano della Volpe (1895-1968), em seu livro Rousseau e Marx a liberdade igualitária, destaca num significativo parágrafo toda a crucial passagem de Marx acima citada, uma vez que está construindo pela inversão da dialética hegeliana, um novo procedimento que vai além de um simples método filosófico. Vale necessariamente a longa transcrição do texto de Della Volpe quando enfatiza a Crítica de 1843 como um texto de suma importância não só para se compreender Marx em 1843, como para compreender a história do pensamento filosófico. [A Crítica de 1843 em relação aos outros textos de juventude] É o mais importante porque contém as premissas mais gerais de um novo método filosófico – sob o aspecto daquela crítica da lógica hegeliana (mediante a crítica da filosofia ético-jurídica hegeliana) com que Marx desmascara as mistificações da dialética apriorística, idealista e especulativa em geral, ou seja, as suas constitucionais petições de princípio ou tautologias substanciais (não meramente formais), conceptuais de tal dialéctica; contrapondo-lhe ao mesmo tempo aquela revolucionária dialética científica para que se apelará explicitamente na Miséria da Filosofia (1847) e que aplicará no Capital, depois de ter tomado consciência específica dela no que se refere aos problemas econômicos na Introdução de 1857 a Para a Crítica da Economia Política (1859). 125 No entendimento do pensador italiano, o sistema hegeliano, filosóficoespeculativo é contraposto pelo filosófico-histórico de Marx, no qual as premissas estão fundadas na observação do desenrolar histórico. Della Volpe, dentro do marxismo, é daqueles pensadores que justifica o estudo da Crítica de 1843 em razão desta revelar de modo significativo a gênese do pensamento de Marx, e sua grande contribuição dentro das ciências humanas, a teoria do materialismo histórico, contraposição ao idealismo e suas ideologias derivantes. Na mesma linha de Della Volpe, Gyorgy Markus, da então famosa Escola de Budapeste acentua a importância da Crítica de 1843, não deixando de destacar o seu caráter de 125 VOLPE, G. d.. Rousseau e Marx a liberdade igualitária: 134. 65 transição de uma perspectiva à outra, isto é, do idealismo ao materialismo, nesse sentido os Manuscritos de Kreuznzch assumem dentro da obra de Marx um rompimento com a sistemática idealista, ou como deseja o próprio Markus, um rompimento paulatino com o método dialético idealista. O único conhecimento que, segundo Marx, pode apresentar-se como verdadeiramente crítico é aquele que segue a lógica específica do seu objeto, do qual torna acessíveis as reais oposições internas (...) em seu trabalho, parte do conhecimento lógico-racional e discursivo, que considera o único capaz de desvendar a lógica da coisa. 126 Nesse sentido Markus salienta que a preocupação de Marx ainda se dá no âmbito do idealismo, mas que de alguma forma suas considerações o distingue não só dos jovens hegelianos como também de Feuerbach, que insiste em apelar para a intuição, o sensível e o coração. Já se coloca para Marx uma explicação materialista da história em que os indivíduos associados a partir das relações que estabelecem e das condições existentes constituem-se em uma organização social, numa ordem política conforme os interesses entre os mesmos indivíduos, e não segundo Hegel, que por conta de seu logicismo mistificador, a sociedade civil é autônoma em relação aos indivíduos que a compõe. Marx mais uma vez acusa Hegel de subordinar a realidade ao seu pensamento. O rompimento de Marx com Hegel não é algo pensado como uma necessidade particular ou escolástica. Tal rompimento se efetua como uma necessidade epistemológica, como uma busca de dar conta de um real que se apresenta como é, precisamente como um fenômeno material que necessita de uma explicação a partir de condições dadas e não obedecendo a uma ordem de sistema filosófico. A Crítica de 1843 representa uma ruptura de caráter práticoepistemológico, uma necessidade imposta fora do sujeito, fora de qualquer relação de continuidade ou descontinuidade teórica. Tal ruptura fora uma necessidade, pode-se dizer, histórica, pois desse momento em diante Marx constrói mediante o dado, segundo o objeto, a representação teórica consentânea, isto é, própria, 126 MARKUS, G. Teoria do Conhecimento no Jovem Marx: 25-26. 66 objetiva, subordinada ao real como se apresenta, contribuindo decisivamente para um novo olhar não só sobre a história como também formula novas bases históricas, formula uma nova ciência histórica. Esta pesquisa procura sustentar que a ruptura de Marx em relação a Hegel marca em definitivo com um modo de pensar que parece ser cíclico dentro da história do pensamento político ocidental. A guisa de um parricídio intelectual 127 operado por Aristóteles em relação a Platão, as rupturas não são operações subjetivas por uma ordem além da realidade do mundo dos homens, mas sim porque as rupturas são na verdade um ponto inflexível quando a forma de pensar e abordar o dado se constitui um obstáculo à realidade, ao que se apresenta enquanto um fenômeno que não pode ser negado ou sublinhado como uma operação do sujeito arbitrariamente. As operações do sujeito são intelectuais nas representações que os mesmos fazem, e não na criação de uma realidade que de alguma maneira está longe da esfera do observador. As operações do espírito têm um limite de imaginação e criação; significa dizer que tanto o sujeito quanto o objeto não são determinações isoladas do conhecimento, mas sim determinações que imperiosamente se constituem na construção do conhecimento. Marx em 1843 está na encruzilhada de si mesmo, ou melhor, busca um caminho cuja finalidade é precisamente conhecer e compreender os objetos, os fatos como são em si e não para além de si como se opera dentro do sujeito arbitrariamente. Romper com Hegel e, conseqüentemente com o idealismo, é uma necessidade imperiosa que Marx não poderia fugir, isso sob pena de não se constituir como pensador político original. Mais precisamente e coerente com a exposição acima: o rompimento não é uma vontade subjetiva de uma observação, 127 Um tipo de crítica que se reenlaça e se alinha, desenvolvendo-as, nada menos que com as críticas mais profundamente antidogmáticas conhecidas pela história do pensamento humano: a crítica aristotélica da platônica classificação apriorística dos gêneros empíricos e a crítica galileiana do ‘discurso a priori’ próprio dos físicos escolásticos de seu tempo. VOLPE, G. d. Rousseau e Marx a liberdade igualitária: 138. Ler do mesmo autor, Lógica Como Ciência Histórica. 67 Marx rompe com a perspectiva hegeliana, e necessariamente com os jovens hegelianos por razões objetivas, concretas e conceituais. Um conceito é pensado ou construído a partir de problemas novos. Por essa razão Marx não poderia pensar algo que estivesse ocorrendo neste instante sob antigas estruturas dentro de um sistema que privilegia uma concepção metafísica tomada como um último momento do espírito. Mutatis mutanti, frisa-se que esse rompimento tem um peso específico muito importante dentro do pensamento político ocidental, talvez tão crucial quanto aquele aplicado por Aristóteles à filosofia de Platão, que implicou efetiva mudança na forma de pensar em todo o ocidente, muito embora o Estagirita tenha carregado consigo muitas determinações platônicas. Esse rompimento de Marx em relação a Hegel se explica historicamente no sentido de que daí por diante se procurará pensar os fatos políticos a partir de uma série de fatores correlatos na medida em que as ações humanas não são determinadas por unidades do pensamento em si ou mesmo por um conceito subordinador, a priori. Com Marx, e a Crítica de 1843 tem esse mérito, a materialidade política é decididamente pensada como uma categoria não metafísica, jurídica, teológica ou lógica, mas doravante insistentemente histórica, não a do historicismo alemão do século XVIII, muito menos a concebida pelo idealismo, mas sim pelas categorias conceituais de um materialismo que Marx procura e que mais tarde será formulado dentro da Ideologia Alemã, para nunca mais cessar de ser modificado. O que Marx procura dentro de sua crítica a Hegel é pensar a política como um evento histórico, por isso explicado sob o ponto de vista da materialidade histórica. A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, um manuscrito de 1843, conjunto de anotações feitas por Marx em Kreuznach, período inicial de sua vida conjugal, publicado postumamente em 1927 pelo pesquisador e erudito russo David Riazanov, constitui-se em uma longa crítica à Filosofia do Direito de Hegel, 68 sobretudo no que tange à concepção de Estado e suas relações com a sociedade civil burguesa, bem como um ensaio para um futuro e paulatino rompimento definitivo com a Filosofia Clássica Alemã, o que acontecerá dentro de um outro manuscrito intitulado Ideologia Alemã. Capítulo 4 O Pensamento político de Marx no limite da Crítica de 1843 Na Crítica de 1843, Marx destaca que, para Hegel, família e sociedade civil encontram no Estado seu fim imanente, e que esse mesmo Estado é uma necessidade externa aos seus pressupostos, o que na verdade leva Hegel a uma contradição, pois como pode o Estado ser externo a algo que de si surgem etapas que devem ser superadas como desenvolvimento do conceito? Porém, criticando o postulado de Hegel, assevera Marx: Assim, entende-se exclusivamente por necessidade externa o facto de as leis e os interesses da família e da sociedade civil deverem ceder, em caso de choque, perante as leis e os interesses do Estado, de aqueles lhe estarem subordinados e da sua existência depender do Estado; ou ainda, o de a vontade e a lei do Estado surgirem à vontade e às leis da família e da sociedade civil como uma necessidade! 128 Família, Sociedade Civil e Estado Família e sociedade civil mesmo sendo realidades empíricas são esferas particulares, relações necessárias em que o Estado em si é o próprio fim a partir de superações dentro das esferas anteriores. Hegel com isso cria um problema antinômico quando assevera que o Estado sendo uma necessidade externa é também um fim imanente. 129 O que é fim em si mesmo não pode ser uma necessidade externa, ou muito menos algo para além de si. Marx com isso afirma que a família e a sociedade civil constituem os pressupostos do Estado, no entanto, no pensamento especulativo hegeliano, estas esferas são atividades interiores, imaginárias, momentos subjetivos da idéia, que guardam entre si relações essenciais. Nas anotações da Crítica de 1843, Marx acusa Hegel de mistificador lógicopanteista por transformar a família e a sociedade civil em predicados, em momentos subjetivos da idéia, do Estado. Marx pondera que para Hegel o Estado 128 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 8. 129 Idem: 9. 70 político não pode existir sem a base natural da família e a base artificial da sociedade civil, pois ambas constituem as condições indispensáveis à sua existência, portanto as duas bases fundam a existência do Estado real, só que em Hegel essas mesmas bases reais estão invertidas, ou seja, não são tratadas como determinantes mas sim como determinadas, o produtor como sendo o produto do seu produto. 130 Este mesmo Estado surgido de uma multidão de homens determinados a viverem com suas famílias no seu interior, esta mesma multidão de homens, matéria do próprio Estado, é tratada pelo pensamento especulativo como uma obra da idéia que os homens deveriam levar a cabo, e não da realidade como ela é a partir dos interesses dos homens dentro de suas realizações como um dado histórico, como uma realização da sociedade. O Estado surge da multidão tal como esta existe enquanto membros da família e da sociedade civil; a especulação enuncia este acontecimento como uma realização da idéia, não da idéia de multidão, mas sim de uma idéia subjetiva diferente dessa mesma realização. 131 No entendimento de Marx, dentro da Crítica de 1843, o Estado é uma realidade que não pode ser desconsiderada, que não poder ser ignorada em razão de condições objetivas, de materialização de interesses dos homens organizados para fins como a racionalidade necessária à própria organização do espaço público, contudo, esse mesmo espaço público não pode desconstituir o espaço privado. Marx discute em síntese, a impossibilidade da subjetividade do Estado, isto é, a impossibilidade do Estado enquanto sujeito, como algo que imprime uma qualidade à realidade das bases concretas como família e sociedade civil. Marx entende que tais bases são sujeitos reais, e o Estado, predicado dessa mesma relação. 130 Idem: 13. 131 Ibidem. 71 Para Marx, o parágrafo 262 da Filosofia do Direito de Hegel é a chave de toda inversão hegeliana do real, o centro de toda concepção mistificadora de sua filosofia do direito: neste parágrafo é formulado todo o mistério da filosofia do direito e da filosofia hegeliana em geral. 132 Nesse processo mistificador em que o Estado se torna sujeito, o espírito em si das esferas particulares como família e sociedade civil, a passagem da família para a sociedade civil, e esta para o Estado são processos onde o espírito em si do Estado, por uma determinação da necessidade lógica passa por tais etapas para depois se realizar como um universal ciente de si, consciente de efetividade como uma idéia que se realizou para o fim a que estava destinado, ou seja, superação das esferas particulares e realização do Estado como universal concreto. Segundo Marx a transição aludida não se dá pela vontade dos indivíduos, mas pela necessidade do movimento lógico, dialético da idéia. Os indivíduos existem para a realização dessa mesma idéia, e não a idéia como realização dos indivíduos. Marx argumenta que Hegel transforma sempre a idéia em sujeito, e o sujeito real propriamente dito em predicado, ou seja, o que se desenvolve é o predicado pela ação do sujeito que em si é sempre o mesmo. 133 Na relação família, sociedade civil e Estado, a tese central defendida por Marx na Crítica não é outra senão a de desmistificar o Estado como uma realidade em si e para si, argumentando que o Estado sendo uma construção dos homens, uma temporalidade, não constitui uma necessidade de ordem lógica ou em si mesma divina. O Estado é um desenvolvimento sim, mas das idéias dos homens que de alguma forma, se organizam para deliberação de interesses e objetivos os mais diversos. Marx considera até como avanço a idéia de Estado, o que não impede de insistentemente vaticinar o grande equívoco de Hegel na construção de seus argumentos na defesa de seu sistema lógico-teológico. 132 Idem: 14. 133 Idem: 13-14. 72 Para compreender a crítica de Marx a Hegel e sua verdadeira natureza, é preciso situar as relações da Alemanha dentro de uma Europa em que muitas nações já estão organizadas sob Estados nacionais, tendo a racionalidade política como uma necessidade para se combater o resquício do absolutismo existente. Por isso Marx entende que: Considerar o Estado político como organismo constitui um grande progresso na medida em que, portanto, não se considere a diferença dos poderes apenas como uma distinção orgânica, mas também como uma distinção viva e racional. 134 Constituição No confronto que estabelece com Hegel, Marx almeja demonstrar que todo pensamento político existente na Filosofia do Direito é um logicismo que não encontra amparo na realidade, nas relações empíricas. Para Marx, Hegel parte da premissa que o Estado sendo uma determinação teológica-teleológica, traz em si mesmo a sucessão da realidade como manifestação da idéia, como manifestação de um idealismo existente no pensamento, no pensamento hegeliano. Marx ironiza Hegel quando este esquece de anunciar que nisso tudo tem indivíduos, seres que constroem realidades a partir da história que representam, por isso Marx afirma que a constituição é uma realidade política e não ideal, porque toda realidade política se organiza no plano concreto e não abstrato, que esse abstrato só tem finitude na Filosofia do Direito, passando por mero capítulo de sua Ciência da Lógica. Nesse sentido Marx entende que Hegel Não desenvolve o seu pensamento de acordo com o objecto; pelo contrário, desenvolve o objeto partindo do seu pensamento, isto é, de algo acabado que se desenvolvera dentro dos limites da esfera abstracta da lógica. Não se trata tanto de expor a idéia determinada de constituição política, mas sim de estabelecer uma relação entre a constituição política e a idéia abstracta, de classificá-la como um elo necessário na história da vida da idéia, o que constitui uma evidente mistificação. 135 134 Idem: 17. 135 Idem: 22. 73 Esta citação é importante na medida em que revela a essência da crítica de Marx ao processo de construção do conceito de constituição, de Estado e do pensamento político hegeliano em geral. Nesse ponto da Crítica de 1843, Marx alude aquilo que diferencia o seu pensamento do de Hegel. Para Marx, a constituição política é uma obra dos homens, e devemos vê-la a partir de como se apresenta, e assim compreendê-la em si sem que a idéia determine sua natureza. As constituições informam o conteúdo político dos Estados, só que não pela determinação da idéia abstrata, mas pela vontade dos homens dentro dos interesses existentes. A realidade não é um dado do pensamento, mas é o pensamento um elemento que pode organizar esta ou aquela compreensão da realidade. Em Marx a história é uma determinação material que substitui a lógica transcendente de Hegel. Ao longo da Crítica de 1843, Marx não se dá por satisfeito em denunciar o misticismo lógico hegeliano. Insiste nesse tópico central de toda sua análise sobre o pensamento político de Hegel. Partindo dessa premissa Marx mais uma vez é taxativo ao acusar Hegel de submeter o real ao ideal, o histórico ao lógico. O aspecto que se torna mais importante é o da lógica e não o da filosofia do direito: o trabalho filosófico não procura encarar o pensamento em determinações políticas, mas sim volatilizar as determinações políticas em pensamentos abstractos. O momento filosófico não é a lógica do objeto mas sim o objeto da lógica. A lógica não serve para justificar o Estado; pelo contrário, é o Estado que serve para justificar a lógica. 136 A política para Marx, em 1843, é um plano real que se constrói a partir e dentro de determinações estritamente reais, ou seja, da sociedade civil que em si é política. A constituição não é uma determinação do espírito universal abstrato, mas do espírito dos homens, das necessidades dos homens, dos interesses dos homens. Cabe, portanto, o pensamento no uso da lógica, verificar as relações existentes no sentido de explicar este ou aquele juízo, e não a justificação da lógica pela 136 Idem: 26-27. 74 existência do juízo para lhe validar. A filosofia do direito não pode ser um parêntesis da lógica. Para Marx a lógica serve para explicar as coisas como elas são, sem que com isso sejam determinadas fora de suas realidades dentro do sujeito; uma explicação é sempre uma diferença específica. O que definitivamente Marx percebe é que em Hegel a constituição política é um corolário da sua constituição lógica, a constituição é um conceito dado. O conteúdo concreto, a determinação real, surge-nos como formal; e a determinação formal absolutamente abstracta aparece como conteúdo concreto. A essência das determinações do Estado não consiste no facto de estas serem determinações do Estado, mas sim no de poderem ser consideradas, na sua forma mais abstracta, como determinações lógico-metafísicas. 137 Na leitura da passagem supre se apreende que a crítica não é só política como também uma manifestação contrária ao que Hegel estabeleceu como parâmetro de suas razões suficientes. Marx observa que, o que Hegel chama de diferenças substanciais (divisão dos poderes políticos) são na verdade diferenças ideais. Um logicismo que precede a própria elaboração da filosofia do direito, do direito político, visto que este não passa de um parêntesis da lógica. O conteúdo concreto é dado pela idéia e não pelas reais condições do plano material em que se encontra envolvido o conteúdo do Estado. A essência do Estado se estabelece a partir do desenvolvimento do conceito, isto é, o que o Estado é em si e o que se determina no desenrolar no plano histórico idealizado. Ao acusar esse entendimento de lógico-metafísico, de mistificação do real, Marx aponta que Hegel submeteu o conceito de constituição à constituição do conceito. A constituição como material do Estado não é uma determinação própria da natureza do Estado, mas a partir do pensamento elaborado, e essa elaboração abstrata é do próprio Hegel que pensa ser o seu sistema a síntese determinante de toda filosofia. A racionalidade da constituição e seu material (conteúdo) são medidos pela necessidade lógica da construção do conceito, absoluta idéia do espírito que se manifesta enquanto espírito objetivo na concretude de um Estado que é a marcha de Deus sobre as 137 Idem: 26. 75 relações humanas. No entanto, ao contrário disso, Marx pensa a constituição como construção efetiva do plano histórico, não determinada pela idéia em si, mas por um arbítrio dos homens em permanente luta. A tese hegeliana das diferenças substanciais substituindo a da independência entre os poderes não obedece tão somente ao aspecto efetivamente político, mas sim, e, sobretudo, ao aspecto de natureza lógico-conceitual, ao que poderia se chamar de plano das relações necessárias que Hegel muito bem entendia como determinações da idéia. Esta tese, que tinha por fim resguardar a unidade do Estado contra sua possível desintegração política, na verdade constitui um argumento lógico para garantir isso sim, a determinação conceitual proposta por Hegel: a unidade do Estado como realidade que está para além dos homens, que, ao contrário, deveria caber aos próprios homens conhecê-la e promovê-la dentro de uma história que tem seu próprio fim. No entanto, como assevera Marx: O Estado não deve diferenciar e determinar a sua actividade de acordo com a sua natureza específica, mas sim de acordo com a natureza do conceito, ora este é o móbil mistificado do pensamento abstracto. Logo, a causa da constituição é a lógica abstracta e não o conceito de Estado. 138 Logo a determinação da divisão de funções dentro do Estado não se dá pela sua natureza política, mas pelo fundamento lógico que dimensiona toda a realidade do pensamento de Hegel. As chamadas diferenças substanciais, a pretexto de (diferentemente da separação dos poderes), garantir a unicidade do Estado, na realidade obedece não à natureza do Estado como tal, mas inadvertidamente aos fundamentos encontrados em uma lógica que é o próprio sistema; o sistema se estruturando a partir de si mesmo enquanto autodesenvolvimento da idéia. Por isso que para Hegel o ser está compreendido no pensamento, visto que em última instância toda realidade não parte do que chamamos real em si, mas o que se 138 Idem: 29. 76 concreta no pensamento como sujeito. Nessa perspectiva não se tem o conceito de constituição, mas sim a constituição do conceito. 139 Soberania e poder soberano Os assuntos e actividades do Estado estão ligados a indivíduos (o Estado só pode actuar através dos indivíduos); não o indivíduo físico, mas sim o indivíduo político, isto é, tomado na sua condição de membro do Estado. É ridícula a afirmação de Hegel de que ‘têm um vínculo externo e acidental com a personalidade particular enquanto tal; ligar-se-ão antes por um vinculum substantiale, por uma qualidade essencial do indivíduo. 140 Um detalhe importante nas considerações de Marx, é que sua análise sempre parte das reais condições de existência dos indivíduos, por isso é peremptório quando afirma que o Estado só pode atuar através dos indivíduos, ou seja, o Estado em si mesmo não tem existência própria, sua determinação não passa de uma criação dos homens, e se o conceito de Estado evolui, se o Estado se transforma ao longo do tempo, é porque os indivíduos evoluem e se transformam no decurso do tempo. Como bem lembra Jürgen Habermas, em sua obra Conhecimento e Interesse, sujeito para Marx [na Crítica] é ser natural, ao passo que para o idealismo a natureza é o próprio sujeito. 141 Quando Marx destaca que o Estado age por indivíduos, indivíduos políticos, sua crítica vai ao coração da monarquia pensada por Hegel. Não cabe a este ou aquele indivíduo fisicamente à representação do Estado, à relação de soberania. Representação e soberania são categorias políticas e como tais devem ser vistas politicamente. Por isso para Marx a posição de Hegel é ridícula ao defender a função de Estado vinculada a uma qualidade específica de um determinado indivíduo, uma espécie de vinculum substantiale. Já se percebe em 1843, no pensamento de Marx, o caráter social dos indivíduos e as chamadas funções de Estado como funções públicas, na verdade políticas desempenhadas por indivíduos 139 Ibidem. 140 Idem: 32-33. 141 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse: 50. 77 políticos em razão de sua qualidade social, pela representação dentro do conjunto da sociedade. As representações políticas enquanto atividades públicas devem ser consideradas conforme a qualidade social e não particular dos indivíduos. 142 Marx defende a tese de que os assuntos de Estado são assuntos políticos, públicos, portanto pertencem a todos e não única e exclusivamente como assuntos de propriedade do Estado. Conseqüentemente a propriedade do Estado é uma propriedade de natureza pública, isto é, está ligada à sociedade como matéria política. Mais uma vez Marx ratifica o entendimento de que o político deve estar submetido ao social, aos indivíduos em sociedade. Sob esta perspectiva a crítica de Marx ainda tem atualidade. Esse Marx da Crítica de 1843, que ainda polemiza entre existência real e ilusória do Estado, nos chama à reflexão quanto ao tratamento que se dá à matéria do Estado. Para este pensador constitui um absurdo assinalar que uma função estatal só o é em razão daquele que a executa ou a ocupa, e mesmo que função de Estado esteja vinculada à determinação em si, sem levar em conta os interesses e a quem representam esses mesmos interesses. Função de Estado é determinada pela natureza social, pela importância social dada pelo conjunto dos indivíduos, e não porque existe uma função que seja estatal exclusivamente em si e para si, como algo dado pelas relações abstratas de uma lógica para além dos indivíduos, com a ilusão de superação de contradições. Marx, afirma que os indivíduos, enquanto representantes dos assuntos e poderes do Estado, sejam considerados de acordo com a sua qualidade social e não com a sua qualidade particular. 143 Qualidade social aqui compreendida como algo concreto, a partir de relações estritamente materiais, onde os homens, a partir de suas contradições, se movimentam no plano histórico. 142 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 33. 143 Ibidem. 78 Esse poder soberano que Hegel identifica como do príncipe, ou melhor, atrelando a soberania do Estado à identidade física ou específica do monarca, com a finalidade de ratificar a universalidade e unidade do Estado, em Marx, pelo contrário, essa tese assume um caráter de particularidade e separação entre o político e o social, uma vez que a representação da soberania estatal vincula-se aos indivíduos em sociedade. O problema da soberania em Hegel tem uma implicação lógica. No seu sistema a soberania tem seu conteúdo na idealidade, isto é, não é uma construção que esteja numa relação direta com as determinações objetivas. Mesmo considerando a soberania como a essência do Estado, Hegel a submete ao idealismo, ao sujeito enquanto encarnação de uma individualidade. O monarca é o centro da soberania estatal porque expressa uma unidade em si mesmo, que pretende guardar o interesse de todos como representante de todos. O Estado então se transforma em predicado objetivo de um sujeito subjetivo. O Estado que é sujeito face à sociedade civil, assume no autodesenvolvimento do conceito, o lado objetivo quando é encarnado pela figura do monarca. Marx, que já criticara exaustivamente o argumento mistificador da lógica hegeliana, apresenta uma indignação ao demonstrar que Hegel, mais uma vez, não tem o Estado como sendo um produto das consciências individuais, dos cidadãos, mas um desdobramento do conceito, por isso que a soberania não tem em si uma configuração popular, não é o povo a determinação última do Estado. Como seria então o idealismo de Estado que em vez de corresponder à real consciência de si dos cidadãos, à alma comum do Estado, fosse uma pessoa, um sujeito? (...) Hegel está interessado em apresentar o monarca como Homem – Deus, como verdadeira encarnação da idéia. 144 Essa verdadeira encarnação da idéia configura uma intenção bastante política de Hegel, pois além de sustentar seu sistema dentro de uma logicidade peculiar, atrela-a ao pragmatismo histórico-político, sustentando e legitimando a 144 Idem: 37. 79 monarquia prussiana dentro de seu objetivo secular de promover e efetivar para os seus interesses, a unificação da Alemanha. Hegel, na sua Filosofia do Direito, pretende tornar possível o seu sistema dentro da lógica política de seu tempo, dentro da lógica política levada a contento pela experiência histórica de diversos países, que por meio da monarquia construíram o que se denominou de Estado nacional. Marx, a seu turno, em 1843, afirma antes de tudo que o Estado é uma idéia produzida pelos homens e não pela autodeterminação do conceito através de um sujeito específico, escolhido pela história que ainda nem existe. Marx ironicamente afirma que Hegel qualifica as características dos monarcas modernos como autodeterminações absolutas da vontade, por isso classifica as ponderações de Hegel como algo fora da realidade e somente encontrando morada na sua cabeça. 145 Marx assinala que para Hegel as determinações do monarca não são supremas, mas sim as determinações supremas da vontade são o monarca, isto é, o monarca se constitui subjetividade-objetivada da idéia em realidade, o que contraria a própria história da formação de uma ordem, do Estado dentro dos limites das circunstâncias materiais sobre as quais se assentam o seu conceito. A vontade do monarca como suprema é uma realidade empírica, ao passo que o monarca representando a suprema decisão da vontade se caracteriza então como um axioma metafísico. [Marx alega que] Hegel confunde os dois sujeitos, a saber, a soberania como subectividade que tem a certeza de si mesma e a soberania como autodeterminação da vontade, privada de fundamentos, como vontade individual, para construir a idéia identificando-a com um indivíduo. 146 O poder soberano em Hegel pretende em si assumir a universalidade do Estado na figura de uma representação para além do seu ser social, especificamente em razão de seu corpo, em razão de sua hereditariedade, isto é, em função de seu posto e condição dada a partir de uma determinada tradição. 145 Idem: 39. 146 Idem: 29. 80 Essa soberania personificada não representa outra coisa senão a própria individualidade político-estatal, o Estado tratado como algo privado, como uma relação de propriedade por parte de uma família. Esta razão personificada só tem como conteúdo a abstração Eu quero. L’État c’est moi. 147 A crítica permanente de Marx a Hegel pode ser resumida assim: Hegel propositalmente, por razões tais como sustentar sua lógica e sua visão política, esqueceu de atentar para a realidade, submetendo-a a a uma férrea construção idealista, transformando o Estado num sujeito, numa subjetividade capaz de autodesenvolvimento independente dos indivíduos, homens estes únicos capazes de autodesenvolvimento por serem na verdade os reais portadores da subjetividade. Portanto, Marx observa que mais uma vez Hegel transfomou predicado em sujeito. Como se o povo não fosse o Estado real! O Estado é abstracto; só o povo é concreto. É curioso que Hegel só após grandes vacilações e reticências tenha atribuído ao concreto uma qualidade viva, como a da soberania, apesar de o fazer sem hesitações para o abstracto. 148 Para o Marx de 1843, só o povo é o Estado real, a única condição para a existência do Estado. Se o soberano é a real soberania do Estado, o soberano deveria poder aparecer extrinsecamente como um Estado independente sem o povo. 149 O monarca não pode ser a real soberania do Estado, se assim fosse não precisaria de um povo para representar, bastaria sua existência para configurar a si mesmo como o próprio Estado. Ora, como um Estado só existe em razão de um determinado povo que o constituiu como unidade de si, o Estado como autodeterminação não tem nenhuma procedência lógica, real ou mesmo histórica. A soberania é um predicado que só existe em relação ao Estado, e este somente em relação ao povo real, uma multidão de homens que por força de sua unidade 147 Idem: 41. 148 Idem: 44. 149 Ibidem. 81 histórica se constitui em um ordem para fins associativos, políticos e, sobretudo, sociais. Já vimos que a subjectividade é o sujeito e que o sujeito é necessariamente indivíduo empírico, uno. Hegel só demonstrou aquilo que é evidente: que a subjetividade existe unicamente como indivíduo corporal. E é claro que o indivíduo corporal não se concebe sem o nascimento natural. 150 No interior das análises feitas por Marx em relação a Hegel está um problema de ordem epistemológica, isto é, nela está contida a natureza do próprio conhecimento e a determinação de sua própria validade como origem. Em Marx o sujeito não é a idéia que parte como algo em si, e sim aquele ser que nasce naturalmente de outro ser humano. Dessa forma o sujeito por excelência é o próprio ser humano e, por isso, o Estado não pode ser sujeito em si. É óbvio que a soberania é um predicado do Estado, é claro que a soberania é uma abstração do Estado, portanto essa mesma soberania não está vinculada ao corpo do monarca. Se Hegel objetiva a soberania de um Estado a partir do soberano individual, corpóreo, o fez fundamentado em premissas místicas: não materiais e que acabam por inverter a determinação do real. Marx não condena o fato de Hegel defender a monarquia como um sistema político válido e sustentável, sua crítica está definida em razão dos argumentos que Hegel usa para defender tal sistema político. O que Marx reprova definitivamente são os princípios formulados pelo filósofo na construção de seu pensamento político, onde submete a filosofia do direito ao plano de uma lógica para além dos fenômenos estritamente políticos, reais. Soberania não é uma formulação encontrada na objetivação do monarca, soberania é uma condição do Estado moderno que tem sua determinação na sociedade que o constituiu. Soberania é um predicado abstrato que tem sua base na população, no conjunto de indivíduos se relacionando socialmente. Soberania é um conceito abstrato, porém um conceito construído pelos indivíduos em sociedade. 150 Idem: 50. 82 Nega-se que a decisão suprema nasça e Hegel afirma que o monarca é a decisão suprema nascida: mas quem duvida de que a decisão suprema no Estado esteja ligada a indivíduos reais corporais e, portanto, à naturalidade imediata? 151 Hegel nega o Estado enquanto extensão da sociedade e determinado pela vontade dos sujeitos reais. Em Marx, ao contrário, o Estado é uma abstração que parte dos indivíduos, do concreto, mas que, por sua vez, se torna real na medida em que é movimentado pelos mesmos indivíduos concretos, reais. De facto, é apenas no caso da pessoa moral (sociedade, família, etc.) que a pessoa abstracta dá à sua personalidade uma verdadeira existência. Mas Hegel concebe a sociedade, a família, etc., a pessoa moral, não como a realização da pessoa empírica real, mas sim como uma pessoa real que, no entanto, ainda só contém a personalidade de uma forma abstracta. É por esta razão que em Hegel a pessoa real não se transforma em Estado, enquanto que este se torna em pessoa real. Em lugar de o Estado ocorrer como realidade suprema da pessoa, como suprema realidade social do homem, é um único homem empírico, uma única pessoa empírica, que ocorre como realidade suprema do Estado. 152 Pelo exposto, pode-se concluir, ao menos preliminarmente, que Marx em 1843 tem na soberania a razão de Estado, o cume da realização política baseada numa racionalidade dentro dos parâmetros reais, e que tudo isso se atrela ao fato do homem ser, enquanto ser social, a fonte da existência do Estado. Marx não discute o poder soberano sendo entregue aos indivíduos, mas sim como ele é levado a um único indivíduo, e em que circunstância é legitimada na pessoa daquele que é tido como a encarnação da soberania estatal. O poder soberano só pode ser exercido pelos homens, mas pelos homens em virtude de seu papel social, e não por uma vontade universal. Em Hegel a soberania se confunde com o poder soberano e por isso quem a exerce é o monarca. No Marx da Crítica de 1843, o poder soberano é exercido pelos homens na qualidade de ser social. A representação da soberania repousa na sociedade que é exercida por homens, e, por fim, os poderes devem ser submetidos aos indivíduos em sociedade. 151 Idem: 54. 152 Idem: 64. 83 O Poder governativo e a burocracia Na sua investigação inicial ao poder governativo de Hegel, Marx desfere um duro golpe contra as argumentações preliminares do filósofo ao observar que aquele limitou-se a referir a situação empírica existente em alguns países. 153 Para Marx, Hegel apenas confere conteúdo ao poder governativo sem conceituá-lo devidamente. Hegel não desenvolveu o poder governativo. Mas mesmo supondo que o tenha feito, não demonstrou que esse poder seja mais do que uma função, uma determinação do cidadão; limitou-se a deduzi-lo enquanto poder particular, separando, e considerando os interesses particulares da sociedade civil como interesses que se encontram fora do universal em e para si do Estado. 154 Na realidade o poder governativo, mesmo sendo executado diretamente pelo Estado, tem no entendimento de Marx um aspecto secundário em relação ao poder soberano. Segundo sua crítica, Hegel apenas o transformou em função do exercício da soberania estatal. Os poderes não se constituem em outra coisa senão em funções de Estado, cabendo ao Estado o poder efetivo. O poder governativo assume definitivamente entre o Estado soberano - titular do universal - e a sociedade civil, uma relação de mediação, o ponto onde o poder público interfere na sociedade civil na intenção de seus propósitos. O poder governativo é tão somente uma função no respeito ao todo, e esse todo é um organismo que tem nas partes um prolongamento de si, e pode ser anunciado como o todo precedendo as partes. 155 Hegel pensa o poder governativo como instrumento de políticas públicas, e assim o submete diretamente à soberania do monarca. O que Hegel nos diz sobre o poder governativo não merece o nome de exposição filosófica. A maioria dos parágrafos poderia encontrar-se literalmente no código civil prussiano; no entanto, a administração propriamente dita é o ponto mais difícil da exposição (...) O poder governativo não será mais do que a administração, que ele desenvolve sob o nome de burocracia. 156 153 Ibidem. 154 Ibidem. 155 Para maiores esclarecimentos, ler os diálogos de Platão, o Sofista e o Político. 156 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 69. 84 O ponto fundamental da oposição de Marx a Hegel, neste particular, se refere ao fato do poder governativo ter se constituído em uma legislação civil, o que de fato é, só que aqui Hegel a relaciona dentro de seu sistema jurídico-político, enfatizando de forma objetiva o papel que a burocracia tem enquanto mediação do geral no particular. No entendimento de Hegel a burocracia assume a verdadeira natureza do Estado enquanto agente provedor na satisfação das necessidades comuns. O poder governativo não pode ser outra coisa quando se trata do sistema hegeliano, pois o substantivo de sua idéia política já está traçado quando elabora o seu conceito de soberania. Para Marx o que Hegel chama de poder governativo não é mais do que a administração pública dos serviços do Estado, portanto a própria burocracia, que inclusive administra diretamente a justiça. Esse poder não se constitui em um poder a parte, mas como instância da administração pública diretamente ligada ao governo e supervisionada pelo soberano. 157 Marx observa que a burocracia em Hegel não recebendo conteúdo de definição específica, não alude aos exames necessários ao seu ingresso. Outro ponto que Marx bem observa é quanto a natureza da função do burocrata, que em última instância não passa de um dever, mas que deve ser pago em dinheiro para suprir suas necessidades. 158 Em síntese, Marx resenha o pensamento hegeliano quanto ao exposto na Filosofia do Direito no trato da burocracia. No entanto, o que interessa mais do que outra coisa é conhecer suas críticas ao modelo hegeliano de burocracia e o obscuro conteúdo da mesma em sua época, visto que fora vítima do espírito burocrático quando redator da Gazeta Renana. Uma de suas primeiras formulações relaciona-se ao fato de constatar que a burocracia é na verdade uma corporação do Estado, assim como a corporação em si 157 Ibidem. 158 Idem: 69-70. 85 é algo relativo à sociedade civil. Pois o espírito de toda corporação é a burocracia assim como a corporação é a materialidade da burocracia, isto é, a burocracia dirige os negócios do Estado como uma corporação de interesses particulares com a ilusão de pública. A burocracia adquiriu, a princípio, um interesse à parte, um interesse que concretamente não existe para o fim que geralmente fora concebida, mas que na verdade se aplica como em si. A burocracia (como as corporações) não forma outras conexões senão as que difundem um espírito de associação, que nem sempre representam o significado real do representado. 159 Onde a burocracia for o novo princípio, o interesse genérico do Estado começa a converter-se num interesse à parte e, por conseguinte, num interesse real; e luta contra as corporações do mesmo modo que toda a conseqüência luta contra a existência dos seus pressupostos. 160 Nota-se, desde logo que Marx destila todo seu sarcasmo contra o argumento de que a burocracia surge como a expressão do interesse público, do interesse do Estado. Para Marx, Estado e burocracia possuem princípios diferentes, ou que pelo menos deveriam ser uníssonos, mas que empiricamente representam coisas distintas e contrárias aos interesses dos governados. Neste sentido, sendo a burocracia o espiritualismo das corporações, luta para que suas existências se percam em seu favor, em favor de uma verdadeira corporação que possa, satisfazendo os interesses do Estado, superar sua materialidade quando em si não representa mais a sociedade civil. Por isso Marx afirma que o mesmo espírito que cria a corporação na sociedade cria a burocracia no Estado (...) A burocracia é o formalismo de Estado da sociedade civil. 161 O Estado interfere ou age na sociedade civil por meio da ação burocrática, por ação dos seus funcionários, apenas na formalidade de uma ilusão espiritual. Na crítica de Marx o que se denota é uma voraz oposição ao espírito burocrático que invade o cenário político de sua época. A burocracia em si mesma é 159 Idem: 70. 160 Ibidem. 161 Ibidem. 86 destituída de qualquer valor caso a ela não atribuirmos nenhum, por isso que Marx na crítica do sistema político hegeliano, primeiro parte de uma análise de sua metafísica para depois chegar ao que pretende: demonstrar os equívocos teóricos e práticos do real submetido ao ideal. [Marx denuncia que] A burocracia é o formalismo de Estado da sociedade civil. É a consciência do Estado, a vontade do Estado, o poder do Estado enquanto corporação, isto é, como sociedade particular, fechada no Estado (...) A burocracia é portanto obrigada a proteger a generalidade imaginária do interesse particular a fim de proteger a particularidade imaginária do interesse geral. 162 A citação acima representa a síntese do significado de burocracia contido na Crítica. No entender de Marx a burocracia se configurava na realidade política alemã, sobretudo pela caracterização que teve no modelo prussiano, não como um modelo de prestação de serviço do Estado na figura do interesse geral. Antes de tudo, fora a mesma burocracia prussiana que fechara a Gazeta Renana e outros importantes periódicos naquele período turbulento da década de quarenta do século dezenove. Como vítima direta da burocracia, Marx pôde observar o estrago que o espírito burocrático dispensa a qualquer sociedade que pretende ter o Estado como instrumento de suas realizações. E é nessa linha de raciocínio que Marx acusa a burocracia de pretender para si, tomando da sociedade civil, o papel de consciência do Estado, pelo menos daquele Estado que se constitua como a grande representação do que se deveria ser. Marx não tinha outros adjetivos para exprimir o total desconforto que o Estado prussiano impunha a aqueles que viviam sob suas leis, feitas sem levar em conta os interesses do povo. Diante dessa perspectiva, afogado num Estado absolutista, Marx confronta-se com uma burocracia que expressa realmente toda sua relação de particularidade estatal, situando-se e posicionando-se como uma corporação qualquer, que visa especificamente um interesse particular. Por tais motivos Marx fora taxativo ao enunciar que a burocracia é de fato o próprio poder 162 Idem: 71. 87 do Estado na medida em que expressa todo seu conteúdo simplório, atendendo somente aos interesses particulares, por isso a burocracia é naturalmente fechada. A burocracia se constitui no espiritualismo do Estado porque o Estado não tem nenhum conteúdo em si, assim como a própria burocracia. Esse conteúdo em si é aquele construído pelos titulares da burocracia e do Estado. O formalismo do Estado, a burocracia, é o Estado enquanto formalismo; e foi deste modo que Hegel o descreveu. Como este formalismo de Estado se constitui em poder real e se transforma em seu próprio conteúdo material, é evidente que a burocracia é um conjunto de ilusões práticas, ou seja, é a ilusão do Estado. O espírito burocrático é um espírito totalmente jesuítico, teológico. Os burocratas são os jesuítas e os teólogos do Estado. A burocracia é a republique prêtre. 163 Portanto, para Hegel, a burocracia assume o papel de mediação entre o Estado e a sociedade civil. Enquanto mediação necessária, a burocracia implica na materialidade de uma abstração política que é o Estado. Sua peculiaridade é transformar o abstrato em concreto, revelar o espírito do Estado no interior da sociedade civil como existência de si na realização de uma ordem legal, que por fim tem como dimensão passar como realidade empírica sem nunca ter sido na verdade uma idéia humana, um dado natural. Esse espírito é essencialmente o conteúdo que transformou a burocracia em algo que está além de si. Este além de si que é o espírito da burocracia, o cerne do pensamento burocrático, transformou-se no conteúdo do Estado, passou a configurar como essência da realidade do Estado, centro intelectual, vivo e independente de toda produção estatal, abstração metafísica que Marx denomina de espírito jesuítico, teológico, o braço armado e inteligente do Estado. E por que a burocracia é um conjunto de ilusões práticas? Justamente porque é a ilusão do Estado. Pode-se tomar a liberdade de dizer que a burocracia é a ilusão da ilusão do Estado, o simulacro político da modernidade política, pois se o Estado é uma ilusão à qualquer transformação social, a burocracia como produção 163 Idem: 72. 88 dessa ilusão é a cópia da cópia, uma espécie de mimese platônica. 164 Sendo assim, Marx quando discute o espírito da burocracia não se esquece de pensar o significado do próprio Estado como se apresenta em pleno século XIX, que, por incrível que pareça, não constitui o que se espera de um Estado, que por mais que tenha mudado não tem em si o interesse geral como interesse de sua base real, o povo. E se o povo não é a base real, concreta do Estado, esse mesmo Estado só pode ser uma ilusão à mesma realidade, que por sinal não percebe que a burocracia enquanto produção dessa ilusão não pode ser outra coisa senão uma ilusão construída para ratificar a primeira, única condição da existência da segunda. O espírito burocrático é um espírito totalmente jesuítico, teológico. Os burocratas são os jesuítas e os teólogos do Estado. A burocracia é a republique prêtre. Nessa afirmação Marx trabalha com um conceito que parece duplo. Em um momento acusa o burocrata de ser um jesuíta, um teólogo com funções especificas de ordem política, de função eminentemente pública, voltada para os assuntos terrenos como se estivesse executando os divinos. Nesse sentido imprime um tom grave de atitude política, procurando com isso afirmar que o burocrata de Estado é um homem que serve religiosamente aos interesses do Estado sem ao menos pensar se suas atitudes são ou não corretas, ou fundadas na razão, ou pelo menos no interesse geral. 165 164 165 Cópia das Idéias. REALE, G. História da Filosofia Antiga. Uma burocracia, uma vez plenamente realizada, pertence aos complexos sociais mais dificilmente destrutíveis. A burocratização é o meio específico por excelência para transformar uma ação comunitária (consensual) numa ação associativa racionalmente ordenada (...) Onde quer que a burocratização da administração tenha sido levada a cabo, cria-se uma forma praticamente inquebrantável das relações de dominação (...) O funcionário individual não pode desprender-se do aparato do qual faz parte. Em oposição aos honoratiores, que administram honorifica e acessoriamente, o funcionário profissional está encadeado à sua atividade com toda a sua existência material e ideal. WEBER, M. Economia e Sociedade: 222. Esta passagem da obra cit. de Weber aponta o quanto Marx, em 1843, percebia muito bem o papel da burocracia no Estado moderno. Salvo engano, não encontrei nenhum trabalho que tratasse da relação aqui aventada, por isso estou impondo a mim mesmo, um estudo mais aprofundado desta relação com o fim de demonstrar a importância do trabalho teórico como matéria prima dentro da Ciência Política. 89 Assume o burocrata um sentido religioso do dever, e tem esse mesmo dever como credo, elegendo o estatuto da burocracia como a bíblia de suas ações e pensamentos. Em um outro sentido, bem original, Marx imprime um tom pejorativo ao afirmar o espírito burocrático de jesuítico, o que o chama essencialmente de intriguista, dissimulador, visto que das intrigas que os jesuítas promoviam nas cortes, onde exerciam influência decisiva, construíam suas relações e objetivos políticos. No sentido grave ou pejorativo, Marx valora o espírito burocrático como uma força contra o povo que deveria ser o fim último de toda e qualquer administração pública. A burocracia é a republique prêtre, isto é, uma república de sacerdotes, de defensores de alguma coisa que transcende a si mesmos enquanto indivíduos. Desse modo, a burocracia não pode ser outra coisa senão a inversão do conteúdo do Estado. A burocracia em si assume o Estado e transforma o que é formal em real e, por conseguinte, inverte o real pelo formal. Portanto, conclui-se que o espírito burocrático se formou na medida em que se criou todo um aparato cujo fim é a dominação do público pelo privado, a inversão que possibilitou mascarar a realidade por uma falsidade tida como necessária e universal. A burocracia quando assume o Estado para si o transforma em propriedade particular, com isso destruindo o Estado real que ao mesmo tempo ilude os inferiores com sua ação mascarada de naturalidade. Em si a burocracia é contrária ao real conteúdo do Estado, ela é contrária ao próprio Estado criado como refúgio de liberdade, ainda que essa liberdade seja a formalmente pensada por Hegel. O espírito burocrático é o carcereiro do Estado moderno. Nele todas as idealizações de se erigir um ente de razão, que possa pôr um basta ao reino do homo homini lupus estão, segundo a leitura de Marx, sepultadas. O Estado é por assim dizer um refém da sua própria criatura. Desmistificando: na medida em que o Estado moderno é transformado pelas ações dos homens, e quanto mais os 90 homens se instruem e procuram lançar mãos sobre o Estado, os que já estão de sua posse criam sempre tremendos obstáculos à consecução de tal fim, e a burocracia, mesmo que pensada no plano da lógica da finalidade do Estado, se presta ao processo de espiritualização do Estado, isto é, a cumprir o seu escopo mistificador. Aos seus olhos [de Hegel] a burocracia é a finalidade última do Estado. Dado que a burocracia assume como conteúdo os seus objectivos formais, entra sistematicamente em conflito como os objectivos reais. É assim obrigada a dar o formal como conteúdo e o conteúdo como formal. Os objetivos do Estado transformam-se em objectivos da burocracia e os objectivos da burocracia em objectivos do Estado. A burocracia é um círculo ao qual nada pode escapar. Esta hierarquia é uma hierarquia do saber. 166 Esta hierarquia é uma hierarquia do saber porque se serve de si para si mesma sem tomar o menor conhecimento da real finalidade do serviço público. A burocracia se passa por Estado na medida em que este é absorvido pelo formalismo burocrático, e o formalismo burocrático é um espírito sem nenhuma essência, a não ser sua ausência de realidade. Por este motivo Marx constrói o seu pensamento político, pelo menos até agora, refletindo o caráter administrativo do Estado, sobretudo o prussiano, em profundo sentimento de negatividade. Não é um Estado que serve, mas que somente se serve dos seus princípios reais para vivenciar plenamente os formais, deles erigindo a modernidade liberal. A burocracia constitui o Estado imaginário, paralelo ao Estado real, é o espiritualismo do Estado. Tudo tem, portanto, dois significados, um real e outro burocrático, assim como o saber é duplo; um real e outro burocrático (o mesmo acontece com a vontade). Mas o ser real é tratado de acordo com o ser burocrático, irreal, espiritual. A burocracia possui o ser do Estado; o ser espiritual da sociedade é a sua propriedade privada. O espírito geral da burocracia é o segredo, o mistério, guardado no seu seio pela hierarquia e no exterior pelo seu carácter de corporação fechada. 167 Esta passagem da Crítica contém um dos mais férteis conjuntos de considerações de Marx concernente à burocracia e ao poder governativo, é o âmago de sua crítica ao Estado hegeliano. Nela repousam muitas indicações 166 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 72. 167 Idem: 73. 91 teóricas que Marx mais tarde elaborará de forma a definir seu pensamento político. Por exemplo: na citada passagem enfatiza a burocracia como a espiritualidade do Estado ao mesmo tempo em que chama essa mesma espiritualidade de irreal, imaginária, o que por sua vez menciona como um dado fantástico do pensamento religioso, que está para além de uma concretude finita, e por isso seu pensamento, por oposição, se funda na materialidade social, nas relações sociais como elas se dão sem nenhuma associação com o duplo irreal-imaginário. Marx batiza o Estado dominado pela burocracia não só de irreal, imaginário como também de espiritual, inexistente, uma vez que o seu significado fora apropriado pela essência do conteúdo burocrático, pela formalidade, pelo vazio de si que se expressa pelo religioso mistério do segredo, 168 protegido nas fileiras da hierarquia, que em Hegel tem o argumento de em si promove a defesa do público contra o privado, sob a vigilância da lógica, mas que em Marx assume um disfarce do formalismo de Estado contra o que deveria ser o Estado real. Marx afirma que a opinião pública, isto é, o conhecimento de algo pelo conjunto da sociedade civil, ao tomar ciência do espírito do Estado e, por sua vez revelá-lo inteiramente, assume perante esse mesmo espírito o status de grande inimiga, pois a burocracia, o mistério, aparece como premissa maior do verdadeiro espírito do Estado, e com o conhecimento de tal descoberta o interesse geral não 168 O poder da burocracia plenamente desenvolvida é sempre muito grande e, em condições normais, enorme (...) Toda burocracia procura aumentar mais ainda esta superioridade do profissional instruído, ao guardar segredo sobre seus conhecimentos e intenções (...) Tendencialmente, a administração burocrática é sempre uma administração que exclui o público. A burocracia oculta, na medida do possível, o seu saber e o seu fazer da crítica (...) O conceito de ‘segredo oficial’ é sua invenção específica, e nada é defendido por ela com mais fanatismo que precisamente esta atitude, para qual não há motivos puramente objetivos fora daquelas áreas especificamente qualificadas. WEBER, M. Economia e Sociedade: 225-226. A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, escrita em 1843, por Marx, só fora publicada em 1927, enquanto Max Weber faleceu em 1920, salvo engano, sem nunca ter tido contato com os apontamentos de Marx. Destaco este fato por uma razão muito simples: as considerações dos dois pensadores acerca da burocracia, embora com enfoques diferentes, guardem entre si relações importantes e curiosas. No momento estou separando material considerável no intuito de publicar sob forma de um artigo. 92 pode fazer parte desse Estado burocrático, uma vez que, não sendo real, é apenas uma ilusão. 169 A opinião pública, que é o conhecimento dos negócios públicos por parte do povo, é inimiga da burocracia pelo simples fato de se opor à natureza do espírito burocrático, isto é, sua total despreocupação com o público e seu atrelamento ao privado. Como a opinião pública tem por objetivo tomar ciência da realidade pública, o seu interesse só pode ser diferente do particular, por isso o seu intento é sempre o interesse geral. Ressalta-se que ao falar de opinião pública, Marx se apóia em princípios democráticos que retira das leituras do Contrato Social. 170 A supressão da burocracia só é possível quando o interesse geral se transforma realmente em interesse particular e não, como, afirma Hegel, simplesmente no pensamento, na abstração, onde tal só poderia acontecer quando o interesse particular se transformasse realmente em interesse geral. Hegel parte de uma oposição irreal e chega conseqüentemente a uma identidade imaginária que na realidade não é mais do que uma oposição. A burocracia é uma identidade deste tipo. 171 Poder Legislativo Quando Marx em 1843 revê seu pensamento político em face de acontecimentos importantes como o endurecimento da censura prussiana e os graves problemas políticos pelos quais a Alemanha passa, toma como base crítica a Filosofia do Direito de Hegel, e a faz depois de uma longa leitura sobre a revolução francesa de 1789, 172 particularmente sob suas anotações quanto à Convenção que se dispunha 169 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 73. 170 ROUSSEAU, J. J. O Contrato Social: 69. 171 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 74. 172 . Foi durante esta análise [crítica à Filosofia do Direito de Hegel] que Marx começou no Verão de 1843, a dedicar-se a um estudo profundo da Revolução Francesa e das suas origens, lendo em especial a História de França na Época Revolucionária de Wachsmut, o Contrato Social de Rousseau, O Espírito das Leis de Montesquieu, donde destacou essencialmente a idéia do papel importante das relações nas constituições dos Estados (...) Leu as Memórias de Levasseur de la Sarthe, que expunham a luta entre os Girondinos e os partidários da Montanha, os processos verbais oficiais da Convenção, as obras de Babeuf (...) Os discursos de Robespierre e Saint Just, assim como as obras dos grandes historiadores burgueses franceses, que sublinhavam o papel das lutas de classes na ascensão da burguesia francesa e que descobriam nessas lutas a chave da história da França. VILHENA, M. V. Raízes Teóricas da Formação Doutrinal de Marx e Engels: 19-24. 93 a publicar, mas não o fez. Pela influência da história francesa, o Estado que Marx tem em perspectiva política e crítica é o Estado francês, que se desenvolve a partir de condições materiais com homens reais e não como uma construção metafísicofilosófica bem ao feitio do idealismo. 173 Na Crítica de 1843, no tocante ao poder legislativo, Marx destaca que as grandes iniciativas de mudanças sempre partiram do poder legislativo, afirmando que a grande revolução de 1789 foi uma iniciativa do mesmo poder, isso em razão do seu caráter geral, sua expressiva relação com a totalidade representada, o que sempre se deu de maneira contrária com o poder executivo, em que todas as iniciativas de mudança sempre tiveram um sentido conservador, particular. 174 Como Hegel não esclarece quem são os construtores da constituição do Estado, Marx aproveita para mais uma vez assinalar sua diferença em relação ao professor da Universidade de Berlim, insistindo na participação dos sujeitos reais na elaboração da constituição que regerá o Estado. Nesse momento de suas anotações percebe-se mais uma vez no seu pensamento, os efeitos da revolução francesa e os fundamentos de uma democracia para além de uma simples representatividade. Marx aponta a constituição como um fruto não só político, mas acima de tudo social. Mas a constituição também não se fez sozinha; as leis que necessitam de um desenvolvimento complementar exigem sempre que alguém as elabore. É preciso que exista ou tenha existido um poder legislativo anterior à constituição e fora dela. É necessário que exista um poder legislativo fora do poder legislativo real, empírico, dado. Mas não pressupomos um Estado existente, responderia Hegel; o autor era apenas um filósofo do direito que desenvolvia a espécie Estado. Não podia medir a idéia com o que existe, mas sim medir o que existe com a idéia. 175 Marx nesta passagem deixa claro que um Estado constitucional é aquele que antes de tudo possui uma constituição elaborada por homens, e não uma constituição existente em e para si, a partir da idéia. Sendo assim, Marx tem o 173 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 88. 174 Ibidem. 175 Idem: 84-85. 94 poder legislativo como aquele capaz de pensar a vida constitucional de uma população organizada politicamente dentro de um Estado, mas, para tanto, é preciso que os homens se constituam como verdadeiros artífices da vida política de seu Estado, e que esse mesmo Estado seja a representação daquilo que a sociedade deseja. Frisa-se que para Marx, ainda em 1843, o político deveria ser determinado pelo social, isto é, a sociedade deveria dentro de seus interesses organizar e comandar as instituições políticas, e não estas a sociedade, pois tais instituições são sempre um reflexo da sociedade e, desta forma nada mais justo que o político sendo determinado pelo social. Talvez essa excessiva crítica ao político venha do fato de todo pensamento político alemão se determinar pela idéia de que bastaria uma reforma no seio do Estado para que todos os problemas sociais fossem definitivamente resolvidos, o que Marx considera uma ilusão. Na interrogação que faz a Hegel, na relação entre poder legislativo e constituição, sobretudo pelo fato desta não ser uma resultante daquele, segundo o filósofo de Berlim, Marx não fica satisfeito com as explicações hegeliamas, que sempre tergiversam sem nada esclarecer em que medida a constituição é posta e o real papel do legislativo no momento de sua elaboração. O que fica para Marx é que Hegel não sustenta um argumento político, porém uma desculpa lógica para salvaguardar o seu sistema interpretativo das coisas. Marx rejeita toda explicação idealista que desconsidera o papel dos homens na elaboração do mundo político, na construção e reconstrução dos Estados. 176 É certo que se modificaram constituições inteiras devido a terem surgido novas necessidades, a se ter esterilizado o estado de coisas existentes, etc.; mas foi sempre necessária uma revolução formal antes do aparecimento da nova constituição. 177 A partir das lições apreendidas dos acontecimentos da revolução de 1789, Marx relaciona mudança estrutural ao advento das revoluções tipificadas por 176 Ibidem. 177 Idem: 87. 95 violentas, que para sua legitimação obriga-se a mudar a constituição que não mais atende aos novos interesses. Portanto, Marx compreende, ao contrário de Hegel, que as transformações sociais são sempre precedidas de transformações no mundo real, no mundo dos homens, ao passo que na realidade ideal as transformações se apresentam de forma tranqüila. Marx faz lembrar que as mudanças realmente se efetivariam de forma tranqüila caso o progresso fosse realmente o princípio, o movimento norteador das constituições, e o povo fosse de fato o grande princípio da constituição. 178 Se um Estado se efetiva a partir de uma constituição, se a existência do Estado moderno, portanto constitucional, está devidamente encarnada na idéia de uma ordem legal onde o próprio Estado se subordina para fins da liberdade, então essa constituição não pode ser obra de um, de alguns ou de muitos, 179 ou do autodesenvolvimento do conceito. Deve ser, isto sim, obra da vontade do povo expressa no poder legislativo. Para Marx o povo deve sempre impor uma nova constituição, pois a constituição se converte em algo de ilusório quando deixa de ser a real expressão da vontade popular. 180 É interessante salientar que o poder legislativo para Marx tem importância na medida em que a ele se atribui o caráter da representação da vontade popular, ou como ele afirma na Crítica, vontade geral, 181 isto porque é fortemente influenciado pelas leituras que fizera do Contrato Social de Rousseau. 182 Todavia, o que se percebe é um Marx numa batalha teórica consigo mesmo, pois no momento 178 179 180 Idem: 88. Ler PLATÃO. O Político: 240; e ARISTÓTELES. A Política: 91. MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 89. 181 A primeira e mais importante conseqüência decorrente dos princípios até aqui estabelecidos é que só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com as finalidades de sua instituição, que é o bem comum (...) Ora somente com base nesse interesse comum é que a sociedade deve ser governada. Afirmo, pois que a soberania não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se, e que o soberano, que nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo. O poder pode transmitirse; não, porém, a vontade. ROUSSEAU, J. J. O Contrato Social: 43-44. 182 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 88. 96 em que elabora sua crítica ao liberalismo, não aceitando seus pressupostos estritamente políticos e atomizantes, toma a democracia (veremos mais adiante) como uma verdade política, só que levada para o seio da sociedade, por isso toma Rousseau emprestado. Mas, mesmo assim, não converte a democracia rousseneana em credo específico na condução do seu raciocínio. O ponto a se destacar na discussão com Hegel acerca do papel do poder legislativo, o que para Marx vai além da elaboração de uma constituição, está registrado em uma passagem belíssima e extremamente significativa na compreensão que Marx tem do legislativo e sua idéia quanto às produções políticas do poder executivo: O poder legislativo fez a Revolução Francesa: de um modo geral, fez grandes revoluções orgânicas genéricas em todas os lugares onde dominou em toda a sua particularidade. Não combateu a constituição, mas sim uma constituição particular e envelhecida, dado que o poder legislativo era o representante do povo, da vontade geral. Pelo contrário, o poder governativo fez as pequenas revoluções, as revoluções retrógradas, as reacções; não fez da revolução uma constituição oposta a uma outra mais antiga mas sim algo que se opunha a toda a constituição, pois o poder governativo é o representante da vontade particular, da vontade subjectiva, do aspecto mágico da vontade. 183 Em si o poder legislativo não é contrário à determinação da constituição, mas tão somente àquela que não mais atende aos reclames do interesse geral, como Marx identifica sendo a vontade do povo. 184 As relações conflitantes entre legislativo e constituição são conflitos, segundo Marx, de natureza interna do conceito de constituição. O conceito de constituição não pode excluir de si a primordialidade do poder legislativo, visto que deste poder parte a própria constituição enquanto certidão de existência do Estado moderno. Desse entendimento pode-se concluir que o poder legislativo não é um simples ratificador do poder soberano, muito menos uma moldura de um falso Estado constitucional na elaboração de normas secundárias. Sem sombra de dúvida que em Marx o poder 183 Ibidem. 184 Idem: 96. 97 legislativo assume o papel de construir, enquanto vontade popular, a ordem política de um dado Estado. 185 O legislativo em Marx parte de uma racionalidade especifica. Não é por raciocínio lógico que Marx assume a importância do legislativo dentro da sociedade, o legislativo não é em si uma logicidade política que se sustenta como algo dado e posto antes mesmo de sua existência real entre os homens. O legislativo é uma construção dos mesmos homens para um fim específico que é a construção de uma ordem política que tenha por fim o próprio povo e, por conseguinte, o progresso desse mesmo povo. O legislativo é o operador de mudanças: na lógica das transformações progressivas ou revolucionárias. O legislativo como contraposição ao executivo é o espelho desse caráter geral que tem em si, porque de alguma forma sempre expressa as expectativas de um maior número de indivíduos, ao passo que o poder governativo ou executivo expressa somente a vontade do Estado apartado do ser social. Esse poder governativo que pretende levar o universal à sociedade, se coloca fora dela na medida que dela não tira seus elementos constitutivos, sendo apenas a ilusão da representação do Estado político. O poder legislativo por representar as expectativas dos sujeitos reais, portanto o povo, em Marx assume um característico peculiar: a defesa da tese de que o interesse geral não pode existir em si como algo que antecede às próprias necessidades dos homens. O interesse em si só existe na medida em que o 185 O grande objetivo da entrada do homem em sociedade consistindo na fruição da propriedade em paz e segurança, e sendo o grande instrumento e meio disto as leis estabelecidas nessa sociedade, a primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder legislativo; como a primeira lei natural fundamental que deve reger até mesmo o poder legislativo consiste na preservação da sociedade e, até o ponto em que seja compatível com o bem público. LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo Civil: 92. Pode parecer que Marx faz de Locke o substantivo do seu discurso em favor do legislativo, assim como o fez o célebre pensador inglês. Porém, o poder legislativo para Marx, na Crítica de 1843, deve levar em conta o interesse do povo, isso por ser o legislativo o próprio povo se expressando voluntariamente. Ao contrário de Locke, cujo poder legislativo visa garantir a expressão da propriedade na sociedade civil, em favor dos proprietários de terra, para Marx o legislativo seria o termômetro de uma ordem social que em si mesma deve ser o fim político da sociedade. Ainda ao contrário do jusnaturalista inglês, Marx não via o poder legislativo como algo oriundo de uma ordem natural das coisas, mas a própria sociedade civil no interior do Estado. 98 interesse para si, o formal, é construído pelos homens em sociedade. Para Marx o interesse geral, que tanto Hegel apregoa como algo em si e para si, não tem nenhuma forma específica se não levar em consideração o empírico, o real. Dessa forma o poder constituinte existente no legislativo (os elementos de assembléia), só pode manifestar o interesse geral a partir daqueles que representa, e não tendo por ordem natural o que existe na idéia encarnada no Estado através de uma unidade singular constituída pelo monarca. Marx rejeita a qualidade constituinte do legislativo se não tomar por base o real interesse geral. Sendo assim, quando Hegel fraciona o interesse geral na sua equação do em si e para si, separando conteúdo e forma, está isso sim afastando o povo da construção do interesse geral como se fosse possível um dado interesse geral existir em si mesmo como alguma coisa vindo dos céus. Para Marx o misticismo abstrato separou o em si do para si, o interesse geral do povo. 186 [Segundo Marx] O interesse geral é elaborado mesmo sem ter em conta o interesse do povo. O interesse real forma-se sem a intervenção do Povo. O elemento constituinte é a existência ilusória dos assuntos do Estado como assuntos do povo, é a ilusão de que o interesse geral é de facto interesse geral, assunto público, a ilusão de que o interesse do povo é assunto geral. Nos nossos Estados, assim como na filosofia do direito de Hegel, as coisas chegaram a um ponto tal que a frase tautológica o interesse geral é interesse geral só pode aparecer como ilusão da consciência prática. 187 Nota-se na leitura da passagem acima que Marx não se engana com o discurso de que o interesse geral, tão apregoado pelos Estados modernos, seja realmente o interesse do povo, portanto interesse público. Marx parte da análise do real, de que os interesses de Estado são interesses da classe política que o comanda, por isso o verdadeiro interesse geral não se determina pelo político, mas somente pelo interesse do social, o existente no interior da sociedade. Conforme citação acima Marx está convencido de que as mudanças não partirão do Estado, mas sim no momento em que a sociedade tomar o Estado para si e o transformar 186 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 96. 187 Ibidem. 99 como predicado de si mesma. Conclui-se que o poder legislativo e sua prerrogativa constituinte não estão a serviço do interesse geral, entretanto estão sim vinculados aos interesses particulares no interior do Estado. A análise de Marx é ímpar quando tomada em 1843 e posta nos nossos dias de hoje. Mesmo considerando as mudanças ocorridas de uma sociedade para outra, ou até mesmo de um Estado para outro, observa-se na contemporaneidade o entendimento do Estado como ente metafísico, um ser que não parte da sociedade mas que tem natureza e determinação próprias. Entretanto, Hegel, mais do que os seus contemporâneos, descreveu o Estado em sua complexidade, quando pensava ter construído o Estado ideal, metafísico nos limites do seu idealismo lógico. Esse Estado, mesmo não querendo, tem nas suas colunas o em si de Hegel, uma realização intuída pelos elementos que o formam. Os elementos do judiciário, do legislativo e do executivo são burocracias do interesse de Estado que se maquiam de interesse geral, quando na verdade constituem em interesses particulares tomados por públicos. Como ilusão de que a determinação política em si constitua a verdade da coisa em si, levou sem dúvida, Marx a não ter mais ilusões quanto à natureza do Estado enquanto instituição voltada aos interesses daquele povo que o instituiu. A Crítica representa dentro do pensamento de Marx, um momento decisivo, o da ruptura paulatina face às ilusões liberais da política alemã. Tanto assim que nos nossos Estados, assim como na filosofia do direito de Hegel, as coisas chegaram a um ponto tal que a frase tautológica o interesse geral é interesse geral só pode aparecer como ilusão da consciência prática. 188 Isto porque Marx chega a conclusão de que: O elemento constituinte é a ilusão política da sociedade civil. A liberdade subjectiva surge em Hegel como liberdade formal (de facto, é justo que o que seja livre seja feito livremente, que a liberdade não reine como instinto natural inconsciente da sociedade), precisamente porque não representou a liberdade objectiva como realização, manifestação, da liberdade subjetiva. O 188 Ibidem. 100 sujeito real da liberdade adquire um significado formal porque o autor deu como conteúdo presumido ou real da liberdade um representante místico. 189 Marx associa liberdade formal à liberdade material. Para ele o poder legislativo deveria ser o próprio poder constituinte em suas determinações, isto é, funções constituintes ao elaborar uma constituição e conseqüentemente leis necessárias à sua implementação. Para Marx, liberdade objetiva, portanto concreta, é aquela em que os indivíduos se articulam no poder legislativo e nele se fazem presentes nas decisões de interesse público. Marx, na Crítica de 1843, não pensar liberdade objetiva ignorando a subjetividade dos indivíduos. Liberdade só é possível quando todos se manifestam igualmente no escopo de valer o interesse geral tomando-o como interesse do povo. A liberdade material não é uma prerrogativa de um, a do monarca. Não é o monarca livre que garante a liberdade objetiva das subjetividades, mas somente quando os sujeitos se expressam livremente na discussão da coisa pública em torno dos interesses públicos. Marx entende que o homem genérico é aquele contemplado na sua privacidade e na sua ação com os indivíduos, dessa forma a liberdade é interação dentro da sociedade, e essa interação pode ser manifesta no legislativo se ele não for mais uma ilusão política. Marx assinala a liberdade formal defendida por Hegel como passo decisivo, porém ressalta que a liberdade é uma realização dos indivíduos. Após a derrocada do império napoleônico no primeiro quartel do século XIX, o debate político em curso na Europa volta-se para a construção de um novo Estado constitucional. Nesse contexto Hegel toma um caminho bastante original ao apontar o poder legislativo como aquele que deveria ceder espaço a uma ação efetiva por parte do poder executivo através de sua burocracia, inspirado no soberano. Hegel, ao contrário de Benjamim Constant (1767-1830) e dos liberais ingleses, cria um sistema de órgãos dentro do Estado de caráter estritamente 189 Ibidem. 101 técnico-corporativista em que o mais importante é a ação afirmativa do Estado por meio do serviço público. 190 Ao comentar o destaque que Hegel oferece às assembléias, levando em consideração o executivo-legislativo, Marx pondera que as mesmas são supérfluas, e que sua figuração é apenas formal, sem conteúdo. Em contrapartida chama a atenção para o fato de que Hegel, na descrição do Estado moderno, no momento em que trata da sua filosofia do direito, identifica a verdadeira realidade dos assuntos gerais: o verdadeiramente real é tratado como formal, e o formal como real. 191 Não devemos dignificar Hegel por descrever o ser do Estado moderno tal como existe, mas sim por dar como ser do Estado aquilo que existe. O facto de o racional ser real está precisamente em contradição com a realidade irracional, que é sempre o contrário daquilo que exprime o contrário daquilo que é. 192 Considerando que Marx deseja uma oposição política dentro de uma Alemanha ainda feudal em suas estruturas mais peculiares, não vislumbra, como Hegel, a racionalidade prussiana como real possível, até porque os momentos de um e de outro são diferentes entre si. Na época de Hegel havia toda uma proposta para modernizar as estruturas políticas prussianas tendo a frente o monarca. De um lado os liberais, de outro os conservadores, e por fim, Hegel com seu sistema que não se posicionava nem como liberal e muito menos como conservador. 193 Já Marx, em sua época, só tomou conhecimento de um Estado conservador, e pior, sem perspectiva de mudança política, que de fato não representava importância alguma, visto que perdera a ilusão de transformações reais a partir das transformações políticas. Motivado pelo estudo minucioso da filosofia política de Hegel e da realidade política de seu tempo, Marx apesar de acusar Hegel de metafísico, percebeu que o 190 TORRES, J. C. B. Figuras do Estado Moderno: 31. 191 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 98. 192 Ibidem. 193 Ler LOSURDO, D. Hegel, Marx e a Tradição Liberal: liberdade, igualdade, Estado; e DROZ, J. História de las Doctrinas Políticas em Alemania. 102 autor da Filosofia do Direito, mais do que seus contemporâneos, soube tratar da realidade política de seu tempo, isso porque em razão de relações lógicas, possibilitou a análise do real e do formal, muito embora tenha invertido as mesmas sob o véu místico de suas conclusões. Ora, o que Marx ainda assinala, é que Hegel, ao tratar do legislativo com certa indiferença, relegando sua importância ao plano inferior dentro das instituições políticas, objetivamente demonstra que o Estado moderno, mesmo apregoando a crucial importância do sistema representativo, inspirado no constitucionalismo inglês, na verdade em si não representa o conteúdo que o Estado moderno aparenta ter. Em síntese, Marx muito embora afirme que o legislativo foi crucial nas grandes mudanças no passado, e por isso tem na revolução de 1789 o seu exemplo maior, hoje repousa num grande formalismo de Estado, numa grande ilusão democrática, a não ser que o legislativo abra suas comportas à efetiva participação do povo enquanto vontade geral. O poder legislativo que tanto marca o Estado moderno com sua tipicidade, proporcionando novos contornos práticos, é visto pela Crítica de 1843 como uma grande barreira às transformações pelas quais a sociedade clama, ou pelo menos aqueles insatisfeitos com as estruturas de um Estado que contempla a representação política a partir do critério de propriedade. Marx considera: O elemento constituinte não é mais do que a mentira sancionada, legal, dos Estados constitucionais, pois afirma que o Estado é o interesse do povo ou que o povo é o interesse do Estado. Esta mentira torna-se patente quando se analisa o conteúdo. Estabeleceu-se como poder legislativo precisamente na medida em que o poder legislativo tem como conteúdo o universal, está muito mais relacionado com o saber do que com a vontade, é a força metafísica do Estado, enquanto que aquela mentira, como força governamental, etc., deveria resolver-se imediatamente ou então se transformar numa verdade. 194 O poder legislativo tem sido um problema muito interessante para os cientistas políticos, ainda mais no tocante à sua natureza e relação com a sua base existencial, que para Marx no fundo se estabelecia mais ao nível metafísico que concreto. E por quê? Porque embora o poder legislativo se fundamente no interesse 194 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 100. 103 do povo, e por isso sua razão de ser como representante deste povo, ao longo de sua existência se apresentou como alguma coisa desvinculada de sua própria idealidade, visto que nem legisla e muito menos representa, por isso não passa de uma instância metafísica, dimensão que se basta a si mesma numa realidade que nada tem a ver com o mundo concreto dos homens. Pensado como um poder que pudesse falar a voz do povo, o poder legislativo, em raros momentos de exceção dentro da história, sempre se distanciou dessa tipificação ideal e se constituiu numa aparente realidade onde falseia um Estado que tem por interesse geral o povo. A denúncia de Marx apresentada em 1843, ainda hoje parece real. É que o poder legislativo na sua dimensão constituinte, travestido de legalidade, aos poucos perde o seu grande intento que é ser a voz daquele que na verdade é o seu titular, portanto se desvinculou dos interesses do povo e passou a ter um interesse especificamente particular, e tomando-o como geral, obstrui por inteiro aquilo que o qualifica como universal. O elemento constituinte do poder legislativo não passa de uma maquilagem a esconder as reais relações políticas que visam a excluir o povo de interferir no interior do Estado. O elemento constituinte é sim uma formalidade para mostrar um Estado moderno ainda com a cabeça na idade média, é o que pensa Marx estudando a Filosofia do Direito de Hegel e sua proposta política para a Alemanha do século XIX. A ilusão que Marx assinala na sua Crítica de 1843 vincula-se ao fato de que o poder legislativo não participa efetivamente dos negócios de Estado, se afasta e não interfere no processo de legislação voltada para o interesse geral como objeto natural de todo Estado que se tem por constitucional. O poder legislativo nessas relações e condições de poder se mostra como algo desprovido de si, negativo para si; o que não é fácil de se perceber por esconder sua existência na idealidade metafísica de falsas representações. 104 Marx está no momento, no centro em que se discute a natureza do sistema parlamentar e sua eficácia como forma de se obter uma maximização de soluções para o interesse público, só que esse interesse público, visivelmente no caso alemão, não é sinônimo de interesse do povo. O interesse do povo só é interesse geral na medida em que o interesse do monarca se manifesta favoravelmente ao seu conteúdo, até porque o parlamento na Alemanha não existe como importância política, e de longe não tem a mesma atuação que o parlamento inglês. Marx identifica no parlamento, e nisso não distingue a nacionalidade, a ilusão de que a sua existência ratifique a contemplação do interesse geral. A simples existência do parlamento não confere ao Estado moderno o seu status de Estado constitucional, até porque um verdadeiro Estado constitucional deve levar em consideração o interesse geral como o verdadeiro interesse real do povo, ou seja, formalmente o interesse do Estado não é outro senão o interesse do povo, uma vez que o povo é o fim último do Estado real. 195 O poder legislativo é construído de uma maneira muito diplomática! o que se depreende da posição falsa, ilusória e sobretudo política que o poder legislativo ocupa no Estado moderno (de que Hegel é intérprete). Daqui deduzimos evidentemente que este Estado não é um verdadeiro Estado na medida em que as determinações do Estado de que faz parte o poder legislativo devem ser ali consideradas não em para si, não teoricamente mas praticamente, não como poderes independentes mas sim como poderes afectados por um contrário, não segundo a natureza da coisa mas sim de acordo com as regras da convenção. 196 Como se observa acima, o poder legislativo é ilusório na medida em que não exerce seu papel conforme o convencionado pelos próprios homens. O poder legislativo de fato tem sido a chancela moral-legal para que o Estado, como é, passe por ser um Estado que não é, ou seja, Estado constitucional, legal, moderno e de direito. Para o Marx da Crítica de 1843, não existe um Estado ideal com poderes estatais ideais, o que existe é a possibilidade de se construir uma ordem política calcada nos interesses daquele que em última instância é o próprio fim da 195 Ibidem. 196 Idem: 130. 105 existência do Estado, o povo, mesmo que para isso seja acusado por alguns de rousseauniano, o que não constitui nenhum demérito. Porém, na análise da Crítica de 1843, Marx ao se valer de algumas categorias do pensador genebrino, as usa mais como instância crítica ao monarquismo prussiano à formalidades políticas conjeturais. Marx e a propriedade privada No momento da Crítica de 1843, nos instantes em que procura compreender o Estado moderno, Marx, segundo David Mclellan, não dispunha de uma teoria própria (materialismo dialético) sobre a propriedade e as relações que esta tem no plano político. Marx se vale das leituras que tem de Moses Hess (1812-1875) e outros críticos do capitalismo que estudava. 197 Mesmo que tímidas, tais leituras forneciam um bom material para uma tentativa de se analisar com eficácia não somente o conceito de propriedade em Hegel, porém o conceito burguês de propriedade, o que fará anos mais tarde com Friedrich Engels (1820-1895). No entanto, o que nos interessa é examinar o conteúdo de sua crítica a Hegel e o significado que a propriedade tem na sua concepção política em 1843. Na Crítica de 1843, Marx não faz uma apreciação específica da concepção de propriedade em Hegel, o que realmente faz é, através dela, uma severa oposição às mediações formuladas no § 304 da Filosofia do Direito, quando o filósofo de Berlim mais uma vez trabalha com a mediação dentro de suas proposições junto aos proprietários fundiários, que a exemplo dos burocratas, desempenhariam uma função política relevante na defesa dos valores universais estatais contra as particularidades da sociedade civil. 197 MCLELLAN, D. Karl Marx, Vida e Pensamento: 67. 106 Esses proprietários rurais não estavam sujeitos ao morgádio, 198 aos sabores da sorte da indústria, bem como da utilização do Estado para enriquecimento pessoal. 199 Aos proprietários fundiários, possuidores de propriedade por herança e proibidos de qualquer outra transmissão que não fosse pelo mesmo mecanismo (morgádio), tinham por tarefa representar o sentido de universalidade dentro do Estado através da Câmara Alta, onde os seus lugares estariam reservados pela propriedade (morgádio) que dispunham, e por não objetivarem nada mais do que a representação. Assim mais uma vez Hegel, assinala Marx, sustenta uma instituição medieval por uma outra, porém burguesa. Segundo a crítica de Marx, Hegel na construção de suas mediações, fez de sua lógica o fundamento de sua filosofia política. O papel das mediações é o de sempre relacionar o universal com o particular num jogo onde constantemente se muda de universal para particular e vice-versa. No caso específico da classe dos fundiários, um particular torna-se universal pela representação política que Hegel lhe empresta por meio da universalidade estatal agindo na sociedade civil, por isso que a propriedade tem fundamento de estabilidade, o que Marx, a partir dessas considerações tecerá toda sua crítica. A primeira observação que Marx faz quanto ao sentido de propriedade destina-se a demonstrar que dentro da relação lógica de Hegel, a propriedade privada é a propriedade fundiária, visto que expressa além do seu caráter jurídico de inalienabilidade, uma constituição política que medeia o detentor do bem ao status de classe representativa do universal, que por privilégio, em razão da 198 Derivado de majoratus, da baixa latinidade, era o vocábulo empregado na terminologia do Direito antigo, para indicar vínculo instituído a certos bens, a fim de que se transmitissem seguidamente aos sucessores, com a mesma imposição, sem se poderem vender ou dividir. O morgado, assim, apresentavase perpétuo e indivisível, e tinha por objetivo manter os bens assim vinculados para conservação do nome esplendor da família. O herdeiro do morgado era o primogênito. E a este , por extensão, também se dava a denominação de morgado. E designava, ainda, o direito de suceder nos bens vinculados ou que constituíam o morgado. SILVA, P. Vocabulário Jurídico. Vol. III. 199 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito: 287. 107 propriedade fundiária, dispõe de uma condição ímpar dentro da sociedade pensada por Hegel. 200 Marx ainda destaca que a constituição política para a existência política de tais representantes é sem sombra de dúvida a propriedade da terra, a propriedade privada em si. A representação parlamentar não se faz politicamente, mas sim pela propriedade, mediação que em si não é política e sim jurídico-econômica, portanto, constitui uma contradição no pensamento lógico de Hegel, que sempre privilegia o político em detrimento do social, enfatizando sempre que este é uma determinação daquele, já que a vida universal é somente a encontrada no Estado. Nisso assevera Marx que: A propriedade da terra é a propriedade privada no sentido mais elevado desta expressão, é a propriedade privada propriamente dita [...] A constituição política, na sua expressão mais elevada, é a constituição da propriedade privada. O sentimento político mais elevado é, portanto, o sentimento da propriedade privada. O morgadio é apenas o fenômeno externo da natureza interna da propriedade agrária. 201 A citação acima expõe o que realmente a propriedade privada tem de realidade nas construções políticas: serve para alienar a pessoa da sua condição de ser para a condição acidental de ter. A propriedade fundiária, nesse caso a propriedade privada por excelência, é elevada à condição de constituição política por determinar como e em que medida esta ou aquela classe participa dos negócios do Estado. É pela propriedade privada-fundiária (morgádio) que o Estado dignifica uns e não outros, elevando os seus detentores à categoria de representantes políticos no Estado e, por conseguinte, os não possuidores de propriedade à exclusão dos mesmos negócios do Estado. É pela determinação da propriedade privada que o Estado deixa de ser o Estado que deveria ser para simplesmente ser o Estado que é, isolado do universal. Marx, por fim, identifica na propriedade privada o grande divisor de águas no mundo político, o grande entrave para que o Estado como é pensado, venha algum dia se orientar pelo universal. A constituição 200 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 150. 201 Idem: 150-151. 108 e o sentimento políticos são manifestações da propriedade, da propriedade privada. O morgadio é apenas uma construção jurídica medieval para garantir o bem de uma família, para garantir-se na posse de sua expressão de ser, a terra. Ressalta-se que a figura jurídica de indisponibilidade do bem pela preservação da herança (morgádio), guarda a essência da propriedade privada fundiária, que em si mesma vai além de si para possuir o ser político do próprio Estado. Partindo dessa premissa, se o morgadio se constitui como elemento fundante de mediação política, não é porque o Estado assim compreende, mas sim por uma simples questão de realidade social. É a propriedade privada a alma da sociedade civil, conseqüentemente o cerne político de toda organização estatal. 202 O Estado em si mesmo não se determina como um autodesevolvimento do conceito, ao contrário, está vinculado à propriedade privada como ser apartado da sociedade. Mesmo que Hegel tenha pensado numa determinação abstrata para por fim ao reino da individualidade da sociedade civil, retirou dessa mesma sociedade civil aquilo que mais a identifica em sua natureza individualista, a propriedade privada. Nesse particular, para Marx, Hegel caiu na armadilha de suas construções lógicas. Foi buscar para mediar o universal com o particular, aquilo que mais personifica o individual, a mesma propriedade privada. Marx, taxativo proclama o morgadio como o superlativo da propriedade privada, a propriedade privada soberana, a que realmente em si mesma se basta e tem um conteúdo metafísico, o que constitui uma realidade acima de qualquer outra determinação, seja política ou mesmo lógica. 203 Marx apresenta o conteúdo do Estado: Mas qual é o conteúdo da constituição política, do fim político, qual a finalidade desse fim? Qual é a sua substância? O morgadio [...] Qual é o poder do Estado político sobre a propriedade privada? O próprio poder da propriedade privada, o seu ser conduzido à existência. Que resta ao Estado político em oposição a este ser? A ilusão de determinar exactamente onde ele próprio é determinado. É certo que rompe a vontade da família e da sociedade, mas fá-lo apenas para dar existência à vontade da propriedade privada que 202 Idem: 73. 203 Idem: 153. 109 não tem família nem sociedade e reconhecer esta existência suprema do Estado político, como a suprema existência moral. 204 Nesta passagem Marx mostra o conteúdo do Estado moderno, que é tido por alguns como a suprema racionalidade moral da sociedade, que por si mesmo é o fundamento lógico do direito, a fonte real de toda legislação racional da sociedade moderna. 205 E ao contrário Marx acredita que o Estado visto como elemento determinante não passa de uma ilusão diante da real determinação que é a propriedade privada, tanto que sua justificativa apresenta o Estado não na qualidade de um ideal e sim na condição de uma sociedade política apartada da sociedade real. Para Marx o morgadio é a condição de liberdade dos camponeses proprietários, pois nela encontra a supremacia do direito privado sobre o direito do Estado, mostrando toda a verdade da natureza da propriedade privada sobre o interesse público: o espírito do Estado distanciado dos não propietários. No morgadio Hegel construiu uma mediação que visava estabelecer um dado equilíbrio na relação Estado e sociedade civil, procurando por meio da propriedade fundiária eleger os seus proprietários à total independência face aos elementos de riqueza da burguesia como do erário do Estado (§ 307), isso com o fito de só ter por princípio o universal. Só que no entendimento de Marx, o sistema de Hegel colocou o Estado e toda sua universalidade refém da propriedade privada. Se o morgadio em tese é a independência da aristocracia rural, em contrapartida é a alienação da universalidade do Estado ao interesse de classe. Marx faz lembrar que a independência da política é um acidente da propriedade privada e não a substância do Estado político. 206 A propriedade privada deu por meio do morgadio instrumento para que uma determinada classe tomasse o Estado como particular. O Estado político não é 204 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 153. 205 O juspositivismo é uma corrente teórica dentro do direito que, em oposição ao jusnaturalismo, defende a primazia do direito positivo sobre um suposto direito natural. O positivismo jurídico assevera que todo direito é uma produção da norma jurídica, e esta uma criação do Estado, logo o Estado é sua fonte suprema. 206 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 164. 110 independente em si, muito menos um ser do interesse geral como vimos anteriormente. O Estado para Marx é uma ilusão moderna, pensado como sujeito que se autodetermina. Hegel pensa assim hibridamente. Pelo morgadio sustenta a existência da aristocracia dos yunkes, por outro lado elege o conceito de propriedade burguesa (uso, gozo e disponibilidade) para mediar a pessoa com o exterior no seu processo de liberdade, e surrupia a disponibilidade da mesma propriedade privada em favor de um absurdo que é inalienabilidade do morgádio como condição de garantir a passagem da propriedade à geração seguinte, na intenção de perpetuar o equilíbrio no interior do Estado. Hegel cria um quebra-cabeça lógico de elementos feudais com burgueses. Procura dentro de sua filosofia aprisionar o real e dele apresentar novas representações. Como fim do seu pensamento filosófico, e por extensão a totalidade que representa, Hegel elege a síntese como a apoteose final do pensamento que se pensa a si mesmo, só que disso tudo Hegel cria as armadilhas para si, ignorando que a realidade lógica de seu sistema é uma coisa completamente diferente do que ocorre na lógica da realidade. Embora os elementos feudais existam na Alemanha ao lado dos burgueses, isso não confere a Hegel, sob o ponto de vista dialético, afirmar a imutabilidade de tal momento histórico. Por outro lado, para Marx o que existe de real é a sociedade se movendo nas suas contradições internas, e por elas se acomodando ou transformando conforme as forças, os interesses e as necessidades em jogo, desenvolvidas nas condições objetivas, definidas pelas condições matériais de existência. Por isso: Nos seus matizes particulares, o comércio e a indústria são propriedade privada de corporações particulares. Os cargos da Corte, a jurisdição, etc., são propriedade privada de classes particulares. Os diferentes Estados são propriedade privada de príncipes particulares, etc. A utilidade para o país, etc., é propriedade privada do soberano. O espírito é propriedade privada da cúria. A minha actividade de acordo com o meu dever é propriedade privada de outra pessoa (...) A soberania, a nacionalidade, é propriedade privada do Imperador. 207 207 Idem: 167. 111 O trecho da Crítica acima não deixa dúvida quanto ao papel da propriedade privada dentro do Estado moderno segundo Marx. O interesse particular acima do geral: o Estado como propriedade privada de determinadas classes particulares. 208 Marx entende que o Estado moderno deveria ter em si o fim pelo qual fora pensado e constituído, o interesse geral. No entanto, na constatação real dos fatos, o que se percebe é o interesse particular como predomínio de política pública. A contradição está entre os fundamentos pensados do Estado moderno e sua realidade objetiva. É flagrante, portanto, que o Estado esteja apartado da sociedade civil, quando privilegia os interesses particulares em detrimento dos públicos. Nas análises que constrói sobre a relevância do morgadio dentro da Filosofia do Direito, Marx conclui que o Estado pensado por Hegel, que por sinal é o mesmo que se manifesta na contemporaneidade, tem como seu conteúdo político o contrário da determinação social. O Estado como propriedade privada do soberano, do príncipe, é uma ilusão para aqueles idealistas que julgam ser o seu objetivo o povo e suas necessidades. Celso Frederico afiança na sua afirmação que Marx ainda não dispunha de conhecimentos econômicos suficientes para ombrear com Hegel no sentido de demonstrar seus equívocos. 209 No entanto, Marx com seus conhecimentos insuficientes conclui: o Estado político é uma abstração no tocante ao seu fim, e uma realidade ao seu contrário, ou seja, para Marx o Estado é um ente metafísico para o povo e um ser concreto para as classes com representação e voz no seu interior. No morgadio, o facto de a propriedade privada estar em relação com a função pública transforma-se no facto de a existência do Estado ser uma inerência, um acidente da propriedade privada imediata, da propriedade agrária. Deste modo, aparece nos postos mais elevados do Estado como propriedade privada, enquanto que esta deveria aparecer aqui como propriedade pública. Em vez de fazer da propriedade privada uma qualidade do cidadão, Hegel faz 208 O sentido de classe aqui dado por Marx não é o mesmo encontrado em suas obras posteriores a partir da Ideologia Alemã, um sentido dicotômico economicamente determinado. 209 FREDERICO, C. O Jovem Marx, as origens da ontologia do ser social: 52. 112 da qualidade do cidadão, da existência do Estado e da mentalidade pública, uma qualidade da propriedade privada. 210 Se Marx não cansa em afirmar que Hegel é o grande intérprete do Estado moderno, mesmo o construindo por vias metafísicas, é justo, no entanto, afirmar que o Estado moderno é um acidente da propriedade privada, e que também o cidadão é um atributo da propriedade privada. Na Crítica de 1843, Marx está seguro quanto ao fato da propriedade privada assumir o centro das relações entre os indivíduos em sociedade, como também a determinação dos papéis sociais dos mesmos indivíduos. Se, em última análise, o Estado é um acidente da propriedade privada, pode-se ponderar que a propriedade privada é sem sombra de dúvida a grande determinação política do Estado moderno. As considerações de Marx no tocante à propriedade privada são muito importantes na medida em que apresentam o Marx de 1843 pensando o Estado moderno como acidente da propriedade privada, portanto, contrário ao entendimento do Estado enquanto universal concreto. Isso porque a sua existência política tem por fim a garantia de privilégios específicos: A propriedade privada, é a existência genérica do privilégio, do direito como excepção. 211 Esse direito como exceção constitui a alma do Estado moderno, o interesse que promove a existência do Estado e mostra toda sua particularidade. Democracia como oposição à monarquia Muitos estudiosos discutem o conteúdo do pensamento de Marx quanto ao caráter da democracia no interior da Crítica de 1843. Para Marilena Chauí, 212 Marx, segundo Althusser, se apropria de Baruch Espinosa (1632-1677) com a intenção de se contrapor a Hegel, isso em razão das leituras que Marx fizera do Tratado Político Teológico, que mais tarde fora publicado como mais um dos manuscritos de sua juventude, em que se observa a forte influência do filósofo holandês no seu 210 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 170. 211 Idem: 167. 212 CHAUÍ, M. Marx e a Democracia (o jovem Marx leitor de Espinosa): 257-292. 113 pensamento político quando na defesa da democracia ser uma associação entre os homens. Já João Lopes Alves assinala que o fervor democrático de Marx está relacionado diretamente a leitura do Contrato Social de Rousseau durante o processo da Crítica de 1843. 213 Alves assegura que: Marx opõe uma defesa apaixonada e eloqüente da democracia real (num sentido próximo do de Rousseau, mas por ventura mais percuciente) como solução qualitativamente distinta das soluções políticas configuradas pelos Estados enquanto estruturas de poder separadas da vontade directa do povo. 214 Segundo Jean-Yves Calvez 215 Marx não pode ser visto como um democrata aos moldes dos constitucionalistas do século XIX, preocupados em discutir sobre os moldes do figurino governativo e do equilíbrio dos poderes. 216 Para este autor Marx tem a democracia como instância crítica da sociedade civil e do Estado burgueses, buscando com isso a integração das relações reais dos homens entre si. Na mesma linha de preocupação, Celso Frederico 217 se apóia no argumento de que a democracia defendida por Marx na crítica à monarquia constitucional de Hegel tem seu fundamento maior na inversão que Marx faz da relação sujeito-predicado, se aproveitando das críticas feitas por Feuerbach à filosofia hegeliana e sua inversão de caráter teológico. Para Frederico a democracia defendida por Marx tem em si uma base empirista porque o empirismo como corrente de pensamento desabona o universal por considerá-lo abstrato. 218 Por conseguinte, a democracia desempenharia papel importante na medida em que constituiria um sistema de relações reais contra um de relações ideais. 219 Para Celso Frederico, Marx pensa democracia como um movimento de homens com 213 ALVES, J. L. Rousseau, Hegel e Marx, percurso da razão política: 197. 214 Idem: 189. 215 CALVEZ, J-Y. O pensamento de Karl Marx. 216 Idem: 248. 217 FREDERICO, C. O Jovem Marx, as origens da ontologia do ser social. 218 Idem: 82-83. 219 Idem: 86. 114 relações concretas em oposição à monarquia hegeliana de configurações ideais movidas pela lógica. Além de tudo isso, democracia, no pensamento de Marx, pode assumir uma instância crítica da nova sociedade industrial que se avizinha. A democracia pensada por Marx na Crítica, deve ser estudada por um motivo bem simples: seu conceito não está restrito a qualquer corrente política ou lógica, mas a determinação do real que passa pela desmistificação de que o político em si mesmo se bastaria para dar conta de toda realidade. Qualquer outra formação política constitui uma determinada forma política particular. Na democracia o princípio formal é simultaneamente o princípio material. Constitui antes do mais a verdadeira unidade do universal com o particular. Na monarquia, por exemplo, e na república considerada simplesmente como forma particular do Estado, o homem político tem uma existência particular ao lado da do homem não político, do homem privado. 220 Marx não está preocupado em fazer, como muitos, um estudo sistemático das formas de governo, muito menos repensar todo trajeto intelectual realizado pelo pensamento ocidental a partir da filosofia política desde os gregos antigos até o momento em que estuda sistematicamente a Filosofia do Direito de Hegel. Concretamente Marx só retoma à tradição platônico-aristotélica 221 porque a proposição hegeliana nela se assenta, e a partir dela Hegel opta pela monarquia, segundo seu entendimento metafísico, por estar associada ao espírito do povo. Como não está também interessado em enunciar uma nova classificação das formas de governo, a exemplo de Montesquieu, 222 Marx se interessa somente em mostrar que a monarquia não se configura numa constituição capaz de em si 220 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 46. 221 Essa tradição assinala de um modo geral, guardadas as diferenças entre si, que as formas clássicas de governo são a monarquia, a aristocracia e a democracia. Em Platão a temática é desenvolvida nos livros VIII e XIX da República, e no Político. Já em Aristóteles a matéria é tratada na Política, nos livros IV e VI. Segundo Aristóteles o termo constituição é sinônimo de governo, governar é constituir (Política, liv. III, cap. V). 222 Montesquieu na sua obra Do Espírito das Leis, classifica as formas de governo em monarquia, república e despotismo, tratadas ao longo da obra, e especificamente no livro V. 115 abarcar particular e universal, muito pelo contrário, privilegia para si as formas particulares de existência em detrimento desse universal contemplado, e o exemplo disso é a propriedade privada com todo o seu sistema particularista como espírito do Estado. Marx compreende que, tanto na monarquia como na república, a vida material dos homens está distanciada da vida política, havendo uma cisão que de um lado o homem é cidadão (político), do outro é privado, isto é, em seus assuntos individuais. Marx, a partir disso, e tendo em mente a Grécia antiga, assim como Hegel, pensa o homem genericamente, contemplando-o como cidadão e como homem privado, que sua atividade política se torne uma condição de homem privado, que os assuntos do Estado sejam assuntos dos homens em sociedade, constituídos como assunto político, mas em si mesmo tendo caráter privado, assunto de cada um e de todos. O que sem dúvida a monarquia não permite em razão dos seus princípios. No entendimento de Marx a democracia tem em si as condições essenciais de fundir o particular na perspectiva do universal, ou melhor, afirma que o particular na democracia toma dimensão de universal pelo fato de ser contemplado como interesse de todos, e não um universal abstrato, tirado de um individuo específico pela condição de seu nascimento e tradição (monarca). Na democracia o homem encontra sua unidade porque nessa forma associativa seu interesse é levado em consideração por se identificar como o fim do Estado político. Para o Marx da Crítica de 1843, a democracia não é apenas uma formalidade políticoadministrativa, mais do que isso seu objeto é a inclusão de todos os homens numa sociedade onde o social se torne objeto do Estado e este instrumento daquela. Na democracia o Estado não é um fim em si mesmo, mas tão somente uma expressão dos interesses dos homens manifestamente sacramentados como prestação de um serviço público. No conjunto de suas considerações Marx afirma que na democracia o princípio formal é simultaneamente o princípio material. Isto 116 é, a constituição não é outra coisa senão uma determinação dos homens em sociedade, e para isso é necessário que se compreenda que o povo, titular do interesse geral, seja concretamente visto como o construtor da ordem política que guarde o universal dentro das particularidades enquanto expectativas. Marx está convencido que a democracia é a verdadeira oposição à monarquia, isso porque nesta o seu conteúdo é uma verdadeira contradição aos princípios que anuncia. Hegel tem na monarquia o esteio da unidade-universalidade do povo alemão. Marx ao contrário, tem na monarquia a tradição de privilégios que barra o homem nos assuntos do Estado, nos assuntos políticos, nos assuntos que concernem ao homem enquanto ser social. Tanto na república quanto na monarquia o homem tem uma vida política particular por justamente se manter preso às formas particulares de organização estatal. Monarquia e república são constituições que não levam em conta o homem sendo capaz de determinar-se no instante que determina sua ação política, que é, por sinal, o mesmo homem nos espaços público e privado. Na democracia, alude Marx, o homem encontra-se na condição de universal na medida em que exerce uma ação efetiva de participação nos negócios do Estado, nos negócios públicos. Como se percebe, para Marx democracia é uma constituição em si mesma voltada para o plano da sociedade em oposição ao centralismo monárquico. Hegel parte do Estado, concluindo que o homem é o Estado subjetivado, por isso defende a monarquia. Marx, ao contrário, na defesa da democracia como forma governativa, parte da realidade concreta, o homem, e conclui que o Estado é o homem objetivado. 223 Nessa inversão que opera, tendo por fundamento Feuerbach e sua crítica empírica a Hegel, Marx acentua que a democracia tem em si um plano de realidade diferente da monarquia, já que esta se determina como uma má espécie de forma governativa, pois não tem em consideração os indivíduos concretos nas suas relações sociais. Na democracia o Estado é o homem objetivado 223 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 46. 117 por uma questão muito cristalina, nele a sociedade se expressa como sua determinação e não pautado em critérios subjetivos de hereditariedade, nascimento, família, propriedade ou qualquer outra forma excludente. O Estado é o homem objetivado porque não existe em si, mas para além de si, no homem e para o homem. Marx apela para o sentido histórico de Estado e nisso se vale das melhores tradições quando estas estão enunciando a defesa do indivíduo contra uma abstração que em si mesma não tem nenhuma realidade própria. Só que a defesa do indivíduo, contrária ao liberalismo - nisso manifesta as mesmas preocupações de Hegel -, parte da idéia de que o indivíduo é uma dimensão política como ação na ordem coletiva, por isso que o indivíduo não é naturalmente uma formação para si, mas social.O que tem realidade própria é o homem. É por isso que ele cria as religiões, as leis, as constituições e por fim o Estado. Em sentido específico, Marx observa que: A democracia constitui a essência de todas as constituições políticas, o homem socializado como constituição política particular; está para as outras constituições assim como o gênero está para as outras espécies, com a única diferença de que o próprio gênero surge como existência, e portanto como uma espécie particular, relativamente às existências que não correspondem à essência. 224 Sendo assim a democracia surge como essência de todas as constituições por ser ela forma e materialidade em si, tomando o homem como seu artífice, como seu produtor, e, sendo assim a democracia não é uma determinação política, mas obviamente social. Sua construção não é uma abstração, muito menos um conteúdo que visa uma realidade acima dos homens concretos. Marx assinala que a democracia só pode ser a essência das constituições políticas por serem as constituições políticas um fim maior, o interesse geral. Nessa etapa do pensamento de Marx a democracia é, sobretudo um princípio. Em razão disso não é repetitivo afirmar que Marx não se preocupa em pensar democracia na esfera da idealidade, mas como Rousseau, no mundo dos homens. 224 Idem: 46-47. 118 Em relação ao exposto, considera Calvez: Na aparência, Marx é certamente democrata. É-o mesmo mais sinceramente do que a maior parte dos constitucionalistas dessa época, que se limitavam a discutir sobre os moldes do figurino governativo e do equilíbrio dos poderes (...) Para ele, democracia não é um regime político determinado, nem tão-pouco, uma teoria filosófica, orientada à constituição do único mundo político possível. Como realidade concreta, a democracia aos olhos de Marx, devia ser para além de todo e qualquer regime particular, a reconciliação da sociedade civil ou seja a reconciliação da esfera das relações reais dos homens entre si, com a do Estado como esfera que é das suas relações abstractas. 225 Pode-se evidenciar que, para Calvez, Marx assume a democracia sob diversas perspectivas, ora um escopo, ora uma necessidade, ora um princípio, porém sempre com o sentido de amalgamar os indivíduos em sociedade na superação das particularidades. Consoante à idéia do texto supra, Calvez não fez por menos em colocar o pensamento de Marx como uma vanguarda de toda teoria democrática de seu tempo, retomando o genuíno significado de democracia, que em princípio é uma invenção 226 grega para solucionar problemas gregos, que de uma certa forma fora transfigurada quando tomada pelos liberais, e por assim dizer, a partir de interesses, transformaram a democracia em algo que está longe da sua essência e do seu tempo. 227 Motivo de sobra para que se ignore Rousseau como importantíssimo pensador político, uma vez que o genebrino foi ao princípio da democracia como genuinamente fora pensada pelos gregos, colocando a vontade geral como sua única determinação. O soberano é o povo reunido para deliberar segundo os seus interesses. 228 Por fim, não é difícil concluir que Marx ao trabalhar democracia enquanto interesse geral, escolha as teses roussauneanas para descaracterizar a monarquia como constituição política eficiente, segundo Hegel. 225 CALVEZ, Jean-Yves. O pensamento de Karl Marx: 248. 226 Ler: GLOTZ, G. A Cidade Antiga; JAEGER, W. Paidéia; VERNANT, J. J. As Origens do Pensamento Grego. 227 Ler SÁ, F. Opinião pública e política: a apropriação de um conceito. 228 ROUSSEAU, J. J. O Contrato Social: 44. 119 Convencido de que o interesse do Estado não pode ser outro senão o interesse geral, Marx conclui afirmativamente o valor da democracia na perspectiva de unir os aspectos formal e material de uma constituição: Na democracia, a própria constituição surge apenas como uma única determinação, a autodeterminação do povo. (...) A democracia é o enigma decifrado de todas as constituições. Nela, a constituição existe não apenas em si, de acordo com a sua essência, mas também de acordo com a sua existência, com a sua realidade que constantemente se refere à sua base real: o homem real, o povo real; e que surge simplesmente como sua própria obra. 229 O que existe de concreto no conjunto das afirmações acima? É que a democracia , como bem diz Marx, realiza o plano da essência política: o homem é quem determina a sua realidade. Na democracia, essência e existência não constituem planos antagônicos e não há separação nesses dois conteúdos, o que existe verdadeiramente é que um se realiza no outro. A existencialidade corresponde ao significado da essencialidade, isto é, a constituição realiza no real aquilo que os homens pensam no conteúdo social, nisso consiste o político como objetivação do social. O ser político não é outra coisa senão ser social. Quando Marx anuncia que a democracia decifra o enigma das constituições, é porque a democracia em si é a constituição real para o povo real. Sendo o povo a finalidade da administração pública, este se torna capaz de a si mesmo se determinar como elemento constituinte de sua ordem política, a superação antagônica entre: sociedade civil e Estado. Para Marx, a democracia atingindo o universal como realidade, na medida que toma os homens enquanto seres de relações concretas entre si, acabaria efetivando às avessas o tão sonhado universal do modelo hegeliano de Estado. A democracia como essência das constituições seria a própria constituição que romperia consigo mesma, isto é, alcançaria a nulidade do político na efetiva participação de todos nos negócios da sociedade. A construção da democracia é a 229 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 46. 120 desconstrução do Estado, o seu término, a decodificação dos enigmas de todas as constituições. 230 Conforme a leitura de Marilena Chauí: A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições porque decifra o mistério da política, compreendendo a origem humana social do poder e sua alienação quando poder e sociedade se separam, a política se autonomiza e absorve a vida social. Ao contrário de sua pior espécie, a monarquia, a democracia além de ser o que aparece – isto é, livre produto dos homens – também aparece como é – ou seja, momento particular da vida de todo o demos. Isto significa, como dizia Espinosa, que nela o povo além de obedecer apenas a si mesmo, essa obediência possui limites. 231 Na perspectiva da democracia ser o enigma decifrado de todas as constituições, de todas as formas de organização política, e por fim sendo a democracia uma determinação social que reúne homens sob um fim comum, segundo Espinosa, 232 o Estado como se apresenta tanto para Marx em 1843, quanto para a contemporaneidade, está longe de ser a expressão do interesse geral. Marx ora pensa no Estado que está sendo apresentando e afirmado por Hegel, portanto um Estado que não tem em si o fim último dado pelo social, mas sim a partir de uma abstração instruída, concluída sem considerar os indivíduos. Marx nega o Estado que, desfigurado de sua função, não se constitui pela democracia. Por isso que Chauí na citação acima associa Marx a Espinosa, que por ser um grande leitor do pensador holandês, a exemplo deste, compreende que os homens decidem viver em comum sob as mesmas leis, mas não decidem sentir e pensar em comum. Como poder popular de todos, preserva a autonomia do social e de cada um. 233 230 Ibidem. 231 CHAUÍ, M. Marx e a Democracia, o jovem Marx leitor de Espinosa: 289-290. 232 O direito de uma sociedade assim chama-se Democracia, a qual, por isso mesmo, se define como a união de um conjunto de homens que detêm colegialmente o pleno direito a tudo o que estiver ao seu poder. ESPINOSA. Tratado Teológico Político: 240. Pelo que precede, é manifesto que podemos conceber diversos gêneros de democracia; o meu desígnio não é falar de todos, mas de me cingir ao regime em que todos os que são governados unicamente pelas leis do país não estão de forma alguma sob a dominação de um outro, e vivem honrosamente, possuem o direito de sufrágio na assembléia e têm acesso aos cargos públicos. Idem: 363. 233 Apud CHAUÍ, M. Marx e a Democracia, o jovem Marx leitor de Espinosa: 290. 121 Pode-se preliminarmente afirmar que a democracia para Marx tem uma representação mais crítica do que propriamente efetiva. Na dimensão em que está apresentada, a democracia se apresenta em antítese à monarquia quando esta afirma postulados que, não sendo seus e sim da democracia, os defende sob o ponto de vista a iludir aqueles que nela acreditam. Por isso Marx vaticina: A democracia é a verdade da monarquia, mas a monarquia não é a verdade da democracia. A monarquia só é democracia na medida em que for inconseqüente consigo mesma. 234 A democracia nesse sentido é usada como instância lógica para demonstrar que Hegel e sua estrutura estatal são inconseqüentes internamente. Marx chama atenção para o dado de que sendo o povo concreto e o Estado uma abstração, sua existência é algo concebida pela vontade humana e não em razão de si mesmo. Celso Frederico lembra ainda, comentando a citação acima, que a democracia é o rompimento do homem com suas representações construídas no intuito de aliená-lo de si mesmo, destruindo as mediações que tiram de sua alma, sua condição sócio-política. A democracia é quem insere o povo nos negócios do Estado, tornando o Estado um negócio da sociedade civil. 235 Nesta dimensão Marx adianta que Os assuntos gerais do Estado são os assuntos públicos, o Estado enquanto assunto real. A discussão e a decisão são a realização do Estado como assunto real. Pareceria evidente que todos os membros do Estado tivessem uma relação com o Estado considerado seu assunto real. A noção membro do Estado já implica que sejam um membro do Estado uma parte do Estado, e que este os considere como uma parte das suas partes. Se existem como uma parte do Estado, é evidente que a sua existência social é já a sua participação real no Estado. 236 Na medida em que todos participam do Estado como assunto real, ou melhor, quando o Estado for realmente assunto da sociedade civil pelo processo da discussão e decisão do povo, este na verdade se colocará como assunto de si mesmo. Isto é, todos se situarão no Estado pela participação nos negócios públicos, 234 MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 45. 235 Idem: 48. 236 Idem: 179-180. 122 então o elemento democrático existirá como algo inevitável e necessário à existência da sociedade civil como objeto de si mesma. Nessa direção Marx aponta mais uma vez a democracia como a essência das relações invertidas da sociedade moderna, e não o Estado moderno montado para afastar a sociedade civil de sua determinação. Marx toma a democracia para mostrar que o Estado moderno está longe de ser ou significar uma instância administrativa dos negócios públicos. Para ele este mesmo Estado não passa de uma negatividade da sociedade quando pensamos nas formalidades políticas para afastar os indivíduos das decisões de seus interesses, como se as decisões de Estado não implicassem em interesses voltados à sociedade civil. Marx exorciza a monarquia e as demais formas de Estado quando não se leva a contento o papel do indivíduo nos assuntos do Estado. Não cabe discutir o número dos participantes nas discussões ou decisões dos Estados, deve-se, isso sim, discutir o princípio democrático da sociedade civil se transformando em sociedade política, isto é, em sociedade real onde se possa participar do poder legislativo de uma forma tão geral quanto possível. 237 Considerar a democracia como uma propriedade do liberalismo constitui não só um erro histórico como também um equívoco de entendimento. O discurso democrático é uma apropriação do conteúdo democrático, uma relação entre o interesse de participação e de como participar das decisões de Estado, uma vez que cada decisão política tem em si uma decisão de ordem social, pois até agora nunca se decidiu alguma coisa que não tivesse o ser humano como objeto mediato ou imediato. A democracia não resulta apenas de fórmulas para quantificar o processo decisório, sua natureza específica determina que se tenha em vista os interesses gerais com os particulares, que se respeite os interesses gerais enquanto interesse de cada um, e que a instância governativa não seja um movimento em si, sujeito de si mesmo. O Estado não é um ser como o homem, a pedra, a árvore ou o sol. O 237 Idem: 181. 123 Estado é uma construção dos homens na história, que pode ser lido de diversas maneiras, nunca, porém, como uma determinação em si, nunca como algo em si, uma idéia absoluta. Concluindo, a democracia no entender de Marx, no momento da Crítica de 1843, naquele passo que decide tomar a história como fundamentação do seu raciocínio, tendo o indivíduo como seu construtor, não é um plano ideal, mas racional como negatividade do Estado, do Estado abstrato, uma vez que Marx percebe que pode existir um Estado real, desde que obviamente fundido na sociedade civil, que por fim não subsiste mais como Estado político, porém a própria sociedade civil nele operando. Nota-se de saída a grande influência do pensamento de Rousseau nesse momento, bem como a de Espinosa, que defendem a autonomia dos indivíduos na sociedade e a construção da lei como relação objetiva da manutenção dessa autonomia. Mesmo criticando os contratualistas e o direito natural, Marx guarda os princípios de uma democracia real: a relação direta entre povo e poder que tanto os liberais criticam por não haver mediações, como se a democracia fosse as mediações, privilegiando forma contra conteúdo. Marx apropria-se de Rousseau não só contra Hegel como também contra os liberais e conservadores alemães. Move-se com o entendimento de democracia rousseaneana na intenção de demonstrar que as relações políticas modernas não devem e não podem excluir o povo; se modernas não são medievais, se não são medievais não são instituições particulares. Em síntese, o político e o privado são instâncias umbilicais. Na medida que pensa democracia, Marx é levado a pensar a sociedade civil penetrando em massa e se possível integralmente no poder legislativo, no interior do Estado. 238 238 Ibidem. Conclusão A inversão do político pelo social é mais uma operação que Marx, calcado nas análises feuerbachianas de negação da dialética hegeliana, promove em relação ao pensamento político de Hegel. Quando propõe a tomada do político pelo social, Marx está assinalando que o Estado em si não passa de uma abstração e como tal para existir depende exclusivamente de sua base material que é a sociedade civil. Para Marx, se existe algum sujeito e, além disso, autônomo, esse sujeito é a sociedade civil, que em si mesma ainda tem como núcleo primitivo a família. Nesse particular, assim como Hegel, identifica seu ponto de vista com o de Aristóteles, que tinha na família o entendimento de célula fundamental da sociedade. Nota-se, desde logo, que Marx pretende subordinar Estado à sociedade civil apelando para o sentido de que a sociedade civil é quem realmente determina o próprio significado de Estado, e que dela parte todas as mudanças já construídas na história; mudanças aqui entendidas como transformação da realidade, isto porque as mudanças operadas pelo Estado são na verdade apenas lutas internas no seu centro, que nada resulta em benefício para os indivíduos. Por isso Marx está convencido que do Estado os indivíduos só receberão alguma coisa se materialmente a sociedade avançar para dentro de suas estruturas, mas para isso é necessário que não se guarde a ilusão do Estado como autêntico representante da universalidade, aquele instrumento de superação das vicissitudes encontradas na sociedade civil. É a sociedade civil dentro dos seus limites que pode e deve reverter tais vicissitudes: essas relações obscuras, apresentadas por Hegel, quando na construção do seu sistema político, retrata a essência do Estado moderno. A posição que Marx defende não encontra em seu pensamento nenhuma formalidade efetiva de concretude. Não estabelece ao longo da Crítica de 1843, nenhuma referência ou um plano formal de como os indivíduos poderiam romper com essa alienação promovida pela inversão do real pelo ideal. Claro que a defesa da democracia é um fator fortemente instrutivo que Marx aponta na dissolução do 125 estado de coisas. Ao que parece Marx não estava nem sequer um pouco preocupado com tal problema, pois para ele no fundo a problemática não se resumia tão somente numa questão totalmente empírica, pois que seria necessário antes romper com a alienação imposta pelas condições reais existentes que ratificavam a todo instante a natureza autônoma e, portanto, subjetiva do Estado. As conclusões que Marx chega ao final da crítica da filosofia política de Hegel podem até ser identificadas como posição panfletária, pode até ser atribuída a Marx uma visão idealista no momento em que ratifica o pensamento rouseauneano quando apela para o interesse geral como medida de analisar se o Estado na sua relação com os indivíduos, leva a termo aquilo que ficou determinado como fim necessariamente universal. Todavia, não se pode afirmar que suas posições sejam panfletárias quando da construção de sua tese da inversão do político como instância determinada pela sociedade civil, porque no final de tudo a política deveria ser uma atividade pública, só que invertida, é tomada privadamente. A inversão do político pelo social é mais um gancho lógico que Marx opera dentro do terreno hegeliano. Opera na ação imediata em que mostra a dimensão política descolada da sociedade real. Marx não pensa o social como categoria estritamente lógica, embora o faça como procedimento para se opor a Hegel. Marx pensa o social enquanto contraponto. Sendo assim, nessa inversão do político pelo social, as mediações são obrigatoriamente repensadas. Enquanto Hegel usa as categorias da Ciência da Lógica para pensar o conflito particularidades e universalidade, sociedade civil e Estado, isto é, usa a lógica para pensar politicamente, Marx usa a categoria crítica para mostrar que o filósofo de Berlim promove na realidade aquilo que politicamente não deseja, a atomização do conteúdo do Estado. Segundo Marx, Hegel promove tantas contradições que acaba usando a propriedade privada, particularmente o morgadio, para garantir o ingresso de uma classe específica da sociedade civil no centro do Estado; aponta o legislativo como o 126 eixo da universalidade, mas impede o acesso de todos quando barra o número (povo) enquanto elemento democrático. Sustenta o Estado como o reino da reconciliação, e ao menor piscar de olhos sustenta a burocracia como espírito do Estado. Enfim, Marx assinala que ao separar a moral do Estado, Hegel mostra a moral do Estado moderno: a ilusão racional. Para Hegel os fenômenos históricos são essencialmente políticos porque o desdobramento da história tem por instância última o Estado. Como o Estado é o centro da vida política, a história marcharia sem sombra de dúvida para essa realização. Hegel, que tinha no Estado a pretensão da vida ética, o momento da história em que o espírito voltando-se para si mesmo compreenderia a totalização da existência, pensa política no sentido grego do homem participando dos negócios da cidade, ativamente inserido numa ordem cuja preocupação não poderia ser outra senão a plena efetivação de si no conjunto de interesses da coletividade. Destarte Hegel pensa e monta sua idealização política tendo por excelência a liberdade que só pode ser real no interior do Estado como comunidade ética, como princípio de uma relação que transformaria a sociedade na integração dos indivíduos ligados pela cultura e pela expectativa comum de uma vida livre. Hegel tem no Estado a totalidade que absorveria num só plano, o chefe de família e o cidadão, incluindo-os em uma ordem necessária e logicamente pronta para romper com a atomização do individualismo burguês que grassa na Europa. Hegel pensa romper com o individualismo na fusão sociedade civil e estado político no Estado moderno. Para Marx a iniciativa de Hegel ficou comprometida na medida em que utilizou os elementos que procurava combater: a política, o individualismo burguês, a propriedade privada, o direito privado, a moral privada e a ausência do povo nos negócios do Estado. Ciente dos objetivos de Hegel e suas contradições, Marx apela para o sentido de inverter as proposições de Hegel, isso por também perceber que logicamente as construções hegeliamas estarem, a princípio, montadas numa 127 inversão a priori, ou melhor, Marx insiste para que Hegel olhe a materialidade como ela é, e a compreenda refletindo pelo processo da inversão do ideal pelo real, que assume a qualidade de real absoluto. Ao sentir o real, Hegel converte em idealizações porque só essas são reais porque a experiência não é condição de universalidade, por isso que as abstrações para Hegel constituem um plano concreto. Para Hegel concreto e abstrato são concepções bem distintas da tradição filosófica. Marx, entendendo essas peculiaridades hegelianas, inverte também logicamente o sentido do real, o que faz e procura demonstrar as contradições do sistema político hegeliano. A inversão do político pelo social, sendo uma dedução lógica, não é uma conclusão intelectual como o sistema hegeliano. Embora Marx trabalhe com categorias lógicas, usando especificamente o contingente, o acidente, a essência, a aparência, jogando muitas vezes com estas categorias para demonstrar as dificuldades, as aporias em que Hegel se enfronha, Marx assevera que o social como o político -, não é categoria lógica que pode sofrer deduções arbitrárias a partir do discurso. Olhando para a história, sem querer interferir como os idealistas tanto fazem, Marx identifica que o político como dimensão de atividade pública, restringia-se a pequenos grupos que, de posse dos interesses sociais, chegam ao Estado e a partir dele promovem seus interesses privados. Todavia, caso se queira realmente a instalação do interesse geral como atividade precípua do Estado, este deveria ser submetido à dimensão social. O Estado que se construiria paulatinamente ao desenvolvimento do capitalismo não alimentava nenhuma relação de preocupação com os interesses que não fossem os da aristocracia e mais tarde os da burguesia. Tanto é que os grandes teóricos de sua construção nunca pensaram sua relação a partir daqueles que não possuíssem propriedade ou renda para se caracterizarem como indivíduos aptos e congregados com os interesses do público, deixando uma massa enorme de indivíduos ao largo das preocupações como assuntos de Estado. Ao deparar-se 128 diante de uma constituição política regida por tais princípios, não restou a Marx senão admitir o Estado como uma ilusão, uma alienação do ser social. Como toda conclusão é sempre provisória, dada a possibilidades de revisão, entende-se aqui pelo resultado da pesquisa, que na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx está caminhando firmemente na construção de elementos teóricos que possam de alguma forma responder a natureza do Estado moderno e suas implicações objetivas no seu entendimento de política. Marx encontra-se num momento intelectualmente importante, qual seja, o de decidir o seu rumo. Para tanto rompe com as perspectivas anunciadas pela filosofia alemã. Por isso que rompendo com essas formas ilusórias de representação do real é que Marx anuncia o plano de uma dialética materialista como uma nova concepção teórica capaz de explicar a totalidade da realidade e como servir de instrumento para a transformação de uma dada realidade. Marx, na Crítica de 1843, inicia esse giro inaugurando novas formas de pensar e construir esse real invertido por força do idealismo. Por isso que sua teoria política, já nesse instante nega a natureza ideal do Estado, e a partir dessa determinação esse mesmo ente abstrato não pode ser outro senão ilusão. Uma ilusão que não tem em seu conteúdo os sujeitos reais na perspectiva do interesse geral como norte soberano de qualquer associação política, desde que comandada por todos, inclusive. Referências bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. __________. A Transformação da Filosofia Seguida de Marx e Lenine Perante Hegel. Lisboa: Editorial Estampa, 1981. ALTHUSSER, Louis e BADIOU, Alain. Materialismo Histórico e Materialismo Dialético. São Paulo: Global Editorial, 1979. ALVES, João L. Rousseau, Hegel e Marx, percurso da razão política. Lisboa: Livros Horizonte, 1983. ALVES FILHO, Aluizio. A ideologia como ferramenta de trabalho e o discurso da mídia. Revista Comum, vol. 5, nº 15, 2000. 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