as circunstâncias no universo da física: um estudo da

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 33 – Gramática e construção discursiva: estudos da Língua Portuguesa e uso.
AS CIRCUNSTÂNCIAS NO UNIVERSO DA FÍSICA: UM ESTUDO
DA TRANSITIVIDADE NA PERSPECTIVA DA LSF
Wellington Vieira Mendes1
RESUMO
A Gramática Tradicional sempre reservou aos adjuntos adverbiais um papel acessório,
tendo em vista não ser um complemento do verbo, desempenhando papel secundário
num sistema de transitividade dicotômico: verbos transitivos versus verbos
intransitivos. Na perspectiva da Lingüística Sistêmico-Funcional (LSF), o contexto e as
escolhas é fundamental à construção do sentido e, desse modo, os sintagmas adverbiais
passam a ter papel que vai além de simplesmente conferir esta ou aquela circunstância
ao verbo (HALLIDAY, 1985; EGGINS, 1995). Este trabalho objetiva, pois, analisar o
valor que essas circunstâncias desempenham no sistema de transitividade concebido
pela LSF, notadamente em textos das ciências ditas exatas. Para tanto, o primeiro
capítulo do livro O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (2002), constitui
o corpus a partir do qual se faz a análise das circunstâncias do sistema de transitividade.
Como em tal texto há um relevo para a função ideacional (HALLIDAY, 1985),
constatou-se que as circunstâncias de localização temporal e espacial ocorrem com
maior freqüência no corpus, considerando-se que tal produção, ao representar
experiências abstratas e/ou de mundo, configura relações que somente poderiam ser
materializadas mediante a presença de tais circunstâncias.
PALAVRAS-CHAVE: blog, transitividade, circunstâncias.
1. Considerações iniciais
Este artigo, apresentado no simpósio “Gramática e construção discursiva:
estudos da língua portuguesa em uso”, do II Simpósio Mundial de Estudos em Língua
Portuguesa, em Évora/PT., discute as circunstâncias do sistema de transitividade,
concebido pela Linguística Sistêmico-funcional e tem, desse modo, duas motivações
1
Universidade do Estado do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Avançado Profa. Maria
Eliza de Albuquerme Maia – CAMEAM/Departamento de Letras – Programa de Pós-graduação em
Letras. Rua Dr. Luís Carlos, 3465 – Apto. 6 – D. Elizeu, em Assu/RN – Cep: 595650-000 – Brasil. Email: [email protected]
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principais: primeiramente se sugere uma reflexão acerca da construção de sentidos em
texto de ciência ditas exatas; depois, implica que o sentido pretendido pelos
produtores/interlocutores deste ou daquele texto decorre de uma série de
conhecimentos, de habilidades e de condições em que o as circunstâncias de
leitura/produção textual parecem ser essenciais. Na verdade, esse jogo da linguagem
verbal tem papel de destaque na vida humana, sobretudo porque é através dela que se
pode expressar o pensamento (ou mesmo construí-lo), interagir, criar, dar sentido às
coisas do mundo interior e do mundo exterior.
Assim, embora tenha sido a linguagem objeto de interesse e de curiosidade em
diversos e contínuos períodos da experiência humana, os estudos de caráter científico
sobre esse tema datam da segunda década do Século XX. Mais recentemente, as
diversas incursões pelos estudos da linguagem têm trazido importantes contribuições
para o trabalho de reflexão e compreensão dos fenômenos ligados à comunicação
verbal.
Neste estudo, todavia, não há interesse em discutir o universo de tais fenômenos,
inclusive porque não haveria tempo (e/ou espaço) para tanto, ou pior ainda não se
chegaria a nenhum concluso, em razão da generalidade que tal discussão poderia
configurar. Logo, o intuito aqui é mais específico e remete diretamente ao título que se
mostra destacado e à discussão sugerida no início destas considerações: Como o sentido
é construído no texto? Que papel as circunstâncias desempenham nos textos de física?
Para não responder estas (e outras) perguntas de maneira apressada e imprudente, é
importante, neste ponto, situar o leitor sobre a organização do estudo, que se apresenta
no curso destas poucas páginas, e poderá tratar com mais propriedade as indagações
antes explicitadas e/ou surgidas a posteriori.
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Como o objetivo do trabalho proposto é analisar o valor que as circunstâncias
desempenham no sistema de transitividade concebido pela LSF, notadamente no livro O
universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (2002), o texto está dividido em duas
partes principais, quais sejam: a) discussão teórica sobre a transitividade na perspectiva
da Lingüística Sistêmico-Funcional (LSF); b) análise de ocorrências das circunstâncias
do sistema de transitividade presentes no corpus, constituído pelo primeiro capítulo do
referido livro. Embora a transitividade na LSF englobe outros aspectos como processos
e participantes, neste trabalho, tais aspecto serão analisados em função das ocorrências
e do valor das circunstâncias.
Para bem apresentar as questões teóricas aqui levantadas, o texto faz referência
às concepções de Halliday (1985), Butt (2001), Halliday & Matthiessen (2004), bem
como, à recente publicação de Furtando da Cunha & Souza (2007) e Ghio & Fernández
(2008).
2. Transitividade e circunstâncias no universo da física: um pouco de teoria
Esta seção, como já foi dito antes, abordará a noção de transitividade na
perspectiva da LSF. Além disso, também se apresentará o livro O universo numa casca
de noz, de Stephen Hawking (2002), de modo que o leitor melhor compreenda o escopo
pretendido para análise. Para tanto, a seção está organizada em dois itens: a
transitividade e o recorte selecionado para análise.
2.1 Transitividade na Linguística Sistêmico-Funcional (LSF)
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A gramática tradicional compreende a transitividade como sendo uma
propriedade exclusiva do verbo, estando associado a esse processo a noção de regência,
e de valência. Em outras palavras, os verbos que regem sintagmas nominais são
classificados como transitivos e, nos casos em contrário, são considerados intransitivos
(quando a enunciação não vai além do verbo), e os advérbios e/ou adjuntos adverbiais
são classificados como termos acessórios.
O funcionalismo norte-americano, entretanto, compreende a transitividade como
sendo um processo que engloba toda a oração, não se limitando apenas à ação
perpetrada pelo sintagma verbal. Compreende ainda que tal processo possa ser escalar,
de forma que uma oração venha a ser considerada mais ou menos transitiva, como se
pode depreender da proposta da Lingüística funcional norte-americana (HOPPER E
THOMPSON, 1980).
Na perspectiva da LSF, a transitividade é concebida como uma base de
organização semântica, em que a classificação não se limita à oposição já apresentada e
conhecida da gramática tradicional entre verbos transitivos e intransitivos. Nessa
concepção, as orações são classificadas em tipos que denotam diferentes transitividades,
a partir da identificação de três papéis de transitividade, a saber: i) processos; ii)
participantes; iii) circunstâncias (BUTT et al., 2001). Se se desejasse fazer uma
analogia mais próxima da Gramática Tradicional, poder-se-ia dizer que esses papéis
correspondem aos verbos, substantivos e advérbios, respectivamente. A partir de então,
segue-se uma breve explanação acerca de cada um deles.
Os processos são classificados, nessa noção de transitividade, em seis tipos
(materiais, mentais, relacionais, verbais, comportamentais e existenciais) e, de modo
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geral, configuram ações, estabelecem relações, expressam sentimentos, denotam o dizer
e o ser, tendo em vista sua materialização através dos verbos. No entender de Furtado da
Cunha & Souza (2007):
O mundo das experiências é altamente indeterminado e essa indeterminação
reflete-se no modo como a gramática constrói seu sistema de tipos de
processos. Assim, em um mesmo texto podemos ver experiências
construídas no domínio da emoção com um processo mental (...); ou no
domínio da classificação (...). (p. 56)
A análise do entendimento das autoras citadas permite vislumbrar a concepção
defendida por Halliday e Matthiessen (2004) de que há um continuum entre os
processos, que por sua vez, fundamenta-se no princípio da indeterminação semântica,
no qual os processos são tidos como indistintos. Essa observação se faz importante
porque, deste ponto em diante, será apresentada a classificação dos processos, a partir
das concepções dos autores mencionados há pouco:
I) materiais – processos responsáveis pela expressão de ações de mudanças
perceptíveis (processos do fazer).
II) mentais – processos ligados às crenças, aos valores humanos, ao modo de
perceber o mundo (processos do sentir).
III) relacionais – processos que estabelecem relações entre entidades, seja
identificando, seja classificando.
IV) verbais – processos que expressam o dizer e situam-se entre os relacionais e
mentais.
V) existenciais – processos que representam a existência de algo e se exprimem
frequentemente através dos verbos haver e existir.
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VI)
comportamentais
–
processos
responsáveis
pela
expressão
dos
comportamentos humanos (caracteres físicos e psíquicos).
É importante ainda registrar que os três primeiros processos são tidos como
principais, e os últimos como secundários, no entender de Halliday e Matthiessen
(2004). E, embora tais processos tenham sido apresentados sem os participantes, não se
pretende de modo algum oferecer ao leitor uma visão cartesiana da transitividade na
perspectiva funcionalista. Assim, por uma questão de apresentação, os participantes
passam a ser conceituados a partir de agora.
Em breves linhas, pode se dizer que participantes são os elementos que se
realizam através dos sintagmas nominais, podendo associar-se aos processos de forma
obrigatória ou não. Os processos materiais são o que comportam um maior número de
participantes: ator (obrigatório); meta, extensão e beneficiário (opcionais).
Para sintetizar, a Tabela 1 apresenta os participantes associados a cada tipo de
processo, como também o faz Furtado da Cunha e Souza (2007):
Tabela 1: Processos e Participantes
Participantes
Processo
Obrigatórios
Opcionais
Material
Ator
Meta, Extensão e Beneficiário
Mental
Experienciador e Fenônemos
Relacional
Portador e Atributivo / Característica e Valor
Verbal
Dizente e Verbiagem
Receptor
Existencial
Existente
Comportamental
Comportante
Behaviour
Fonte: (FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007, p. 60, adaptado para este artigo)
O último componente do sistema de transitividade são as circunstâncias. Esse
componente remete às condições de realização dos processos, podendo ocorrer
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livremente em todos eles. Geralmente expressam extensão temporal, localização
espacial ou temporal, modo, entre outros. Na Gramática Tradicional, correspondem aos
advérbios ou locuções adverbiais. Para melhor compreender a classificação proposta por
Eggins (1995), abaixo se reproduz o quadro de Furtado da Cunha & Souza (2007):
Tabela 2 – Tipos de circunstâncias
Tipo de circunstância
De extensão
- Duração espacial
- Distância temporal
De causa
De localização
- Tempo
- Lugar
De assunto
Significação
Constroem desdobramentos do processo
em espaço (a distância no espaço no qual
o processo ocorre) e tempo (a duração no
tempo durante a realização do processo)
Constrói a razão pela qual o processo se
atualiza
Constroem a localização espacial e
temporal na qual o processo se realiza
Exemplos
Nadou 4 quilômetros
Caminhou por sete horas
Não fui ao trabalho por causa
da chuva
Pedro acordou às sete horas
Mauro caminha na praia
Relaciona-se aos processos verbais e é Discutiam sobre política
um equivalente circunstancial da
verbiagem
Constrói a maneira pela qual o processo é Almoçamos tranqüilamente
De modo
atualizado
Constrói a significação de ser ou tornar- Vim aqui como amigo
De papel
se circunstancialmente
É uma forma de juntar participantes do Amélia foi ao cinema com o
De acompanhamento
processo e representa os significados de namorado
adição, expresso pelas preposições “com” João saiu sem o filho
ou “e”, ou de subtração expresso pela
preposição “sem”
Fonte: (FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007, p. 61)
As circunstâncias, de acordo com Ghio & Fernández (2008, p. 101), é o papel
menos obrigatório nas construções de processos materiais. Na verdade, quando tratam
desse elemento, as autoras o fazem como se este fosse um apenas um participante
restrito a esse tipo de processo. A classificação apresentada é feita através de exemplos
que se realizam apenas nos processos materiais e, quando explicam os demais
processos, as circunstâncias, embora presentes vez ou outra, não são mencionadas como
papel passível de ocorrência diversa em todos os processos.
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Butt et al. (2001, p. 64), por outro lado, compreendem as circunstâncias como
sendo responsáveis por “iluminar” os processos de alguma forma, podendo, entre outras
coisas, localizar o processo no tempo ou no espaço, sugerir o modo como o processo se
realiza, ou oferecer informações sobre a causa do processo. De acordo com os autores,
esse papel do Sistema de Transitividade se realiza através de grupos adverbiais, grupos
nominais e frases preposicionais.
Em linhas mais gerais, a transitividade – nesta perspectiva – considera os três
aspectos antes explicitados: a) processos; b) participantes; c) circunstâncias. A seleção
de cada um dos elementos desse conjunto imprime a compreensão das experiências que,
por conseguinte, permitem a construção dos sentidos (FURTADO DA CUNHA &
SOUZA, 2007).
2.2 As circunstâncias em O universo numa casca de noz: justificando escolhas
O interesse pelo material selecionado para este trabalho decorreu principalmente
da necessidade de compreender como as circunstâncias do sistema de transitividade da
LSF contribuem para a construção de sentidos em textos de ciências que são
convencionalmente tratadas como exatas. Ora, como sentidos nos textos de física, por
exemplo, remetem frequentemente a situações delimitadas especial e temporalmente, a
realização de circunstâncias, mais do que simplesmente conferir um papel acessório ao
valor semântico do verbo, podem configurar sentidos que somente se recuperam através
de tais circunstâncias.
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Assim, a escolha de O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking
(2002), intenta, a título de experimentação, comprovar/refutar essa proposição de que,
nos textos de física, as circunstâncias desempenham papel fundamental à construção de
sentidos, não sendo possível sua omissão. O livro de Hawking está organizado em sete
capítulos que tratam especialmente da teoria da relatividade geral (em detrimento da
relatividade restrita), bem como, da teoria dos quanta, ambas relacionadas às
descobertas de Albert Einstein.
Para análise, selecionou-se apenas o primeiro capítulo do livro Uma breve
história da relatividade, que dá conta de explicar como Einstein estabeleceu os
fundamentos das teorias apontadas há pouco. Tal seleção decorreu da necessidade de
definir uma amostra representativa de todo o texto de Hawking (2002). Esse recorte,
portanto, apresenta mais de 34 mil palavras e 658 ocorrências de circunstâncias, cuja
análise se apresenta, brevemente, na seção a seguir.
3. Transitividade e circunstâncias no universo da física: um pouco de prática
A transitividade na perspectiva da LSF, como já foi afirmado ao longo deste
texto, é entendida como responsável pela materialização da experiência humana, quer
seja no plano real/material, quer seja no plano da consciência. Assim, o enfoque não
está direcionado apenas ao verbo (como se vê na gramática tradicional), mas, ao
contrário, para toda a construção sintática, tendo em vista ser a transitividade a
gramática da oração, capaz de expressar conteúdos ideacionais e cognitivos
(FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007).
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Para exemplificar esse sistema de transitividade, já descrito no primeiro item da
seção anterior, foram analisadas as ocorrências de circunstâncias no primeiro capítulo
do livro O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (2002).
Mais de 96% das circunstâncias no corpus estão associadas aos processos
materiais, ou seja, aqueles que são responsáveis pela expressão de ações de mudanças
perceptíveis, que ocorrem no plano concreto, no plano das experiências do mundo, ou
também no plano de fenômenos abstratos.
3.1 Circunstâncias de localização temporal e espacial
Como foi anteriormente apontado, as circunstâncias de localização temporal e
espacial como o próprio termo já indica, expressam ou situam, no tempo e no espaço, a
realização dos processos (verbos). O intuito aqui é justamente compreender como esse
tipo de circunstância se apresenta nos críticas texto de física.
Na primeira parte do capítulo em análise, todas as circunstâncias são de
localização especial e temporal. Como o texto, nesse primeiro momento, dá conta de
narrar a trajetória do cientista Albert Einstein, o valor dessas circunstâncias é essencial
para a construção dos sentidos pretendidos pelo autor.
Tabela 3 – Exemplos de circunstâncias de localização no corpus
Ocorrências no corpus
Albert Einstein [...] nasceu em Ulm,
Alemanha, em 1879
[...] sua família mudou-se para
Munique
Em 1894, [...] a família mudou-se
para Milão.
Seus pais acharam que ele deveria
Processo/Participantes
Material /ator: Albert
Einstein
Material/ator: sua família,
meta: sua família
Material/ ator: a família
A segunda oração é uma
Circunstâncias
localização espacial/ localização
temporal
extensão espacial
Localização temporal/ extensão
espacial
Localização espacial
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ficar em Munique...
Mais tarde, ele completou sua
educação em Zurique, Suíça,
graduando-se pela prestigiosa Escola
Politécnica Federal [...], em 1900.
Dois anos depois, ele enfim obteve
uma vaga de assistente no
departamento suíço de patentes, em
Berna.
oração projetada de um
processo mental “achar”
Material/ator: ele, meta:
sua educação
Localização temporal,
localização espacial,
Material/ ator: ele, meta:
uma vaga de assistente
Localização temporal,
localização espacial
Nas ocorrências analisadas, os processos expressam ações concretas,
perceptíveis no plano físico. Logo, a exigência das circunstâncias decorre dessa
necessidade de situar (espaço/tempo) os processos/participantes em questão, não sendo,
portanto, possível atribuir às circunstâncias um papel meramente acessório.
É importante ainda observar que, nesse texto, algumas circunstâncias
desempenham outro papel, além daquele que lhe é factualmente atribuído, dentro do
fluxo dos acontecimentos: seqüenciador/organizador textual (mais tarde, dois anos
depois – sistema temático).
A segunda parte do texto apresenta o percurso dos estudos de Einstein,
apontando para o surgimento da teoria da relatividade geral, e sua contribuição para os
estudos sobre a origem do Universo.
Nessa parte, os processos que ocorrem são, a exemplo do que ocorre na parte anterior,
em grande frequência materiais:
[1] ...o aparato se move através do éter com velocidade e direção
variáveis.
Em [1] o processo “mover” apresenta duas circunstâncias, a saber: extensão
espacial e modo, respectivamente. Embora o processo remeta frequentemente a ações
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perceptíveis no mundo material, as circunstâncias, nesse caso, também configuram
ações físicas que são, até certo ponto, abstratas.
A gramática tradicional atribui aos advérbios e adjuntos adverbiais um caráter
acessório. E mais, Ghio & Fernández (2008, p. 101) reforçam essa posição quando
afirmam que “La circunstancia es el menos obligatorio de los roles participantes en los
processos materiais”.
Todavia, o sentindo, no recorte a seguir, seria possível sem a presença de
circunstâncias (em negrito)?
[2] Esperava-se que a luz se movesse com uma velocidade fixa/
através do éter, mas, se você se movesse através do éter/ na mesma
direção da luz, ela pareceria mais lenta, e, se você se movesse na
direção oposta/ à da luz, ela pereceria mais rápida.
Neste trecho, as circunstâncias de localização e modo são essenciais à
compreensão do texto, afinal todas as ações expressas pelos processos (sublinhados)
somente são ampliadas pela determinando do onde, quando, como ocorrem as ações.
3.2 A forma das Circunstâncias: os sintagmas terminados em -mente
É necessário observar que os sintagmas adverbais terminados em –mente nem
sempre podem ser considerados como circunstâncias no sistema de transitividade da
LSF (cf. FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007 e GHIO & FERNÁNDEZ, 2008),
comportando-se como recurso avaliação/apreciação no sistema de modo (metafunção
interpessoal), conforme se verifica a seguir:
[3] Einstein modificou precipitadamente as equações originais...
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[4] Ela foi confirmada espetacularmente em 1919...
Em [3] e [4] o que seria considerado como adjunto adverbial pela tradição
gramatical, ou seja, como modificador do verbo, expressa, pela concepção do modelo
funcionalista, avaliação no sistema de modo, já que o locutor expressa claramente sua
apreciação (espetacularmente) ou mesmo depreciação (precipitadamente), através
desses sintagmas, geralmente derivados de adjetivos/qualificadores.
Nesses casos, os sintagmas não podem ser considerados circunstanciais, tendo
em vista não modificarem a materialização dos processos e, ao mesmo tempo,
modificarem toda a oração. Tal afirmação não implica, por outro lado, que todos os
sintagmas terminados em –mente expressem sempre avaliação. Na ocorrência a seguir,
o processo é modificado pela circunstância “totalmente”:
[5] A teoria da relatividade é agora totalmente aceita pela
comunidade científica [...]
O processo “aceitar” implica a forma como “a teoria da relatividade” é tratada
pela comunidade científica, no texto de Hawking (2002). O emprego da circunstância
expressa essa relação, não funcionando como modificadora de toda a oração, como
ocorria em [3] e [4]. Aqui, a circunstância também não tem a mobilidade que é possível
nos casos. Assim, talvez seja possível afirmar que as circunstâncias, diferentemente dos
adjuntos modais terminados em –mente (no sistema de modo), são mais bem expressas
depois dos processos (ou no meio, em caso de tempo composto). Isso poderia, inclusive,
ser aspecto capaz de distinguir expressão modalizadora, expressando avaliação, de
circunstância, ampliando a materialização das ações.
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4. Considerações finais
Os estudos mais recentes compreendem a transitividade não como um processo
que tem seu ponto de partida e de chegada no verbo. Aliás, esse entendimento
reducionista presente na Gramática Tradicional não dá conta da diversidade de sentidos
que se podem apresentam nos enunciados, cuja classificação se limita a transitivo ou
intransitivo. Em decorrência dessa importância dada aos verbos, os sintagmas adverbiais
são classificados como acessórios.
Nos mais variados gêneros discursivos, uma gama particular de sentidos pode
advir do uso, das escolhas, das funções que determinado termo denota no contexto de
uso real da linguagem. Assim, o objetivo maior deste trabalho foi analisar o valor que as
circunstâncias desempenham no sistema de transitividade concebido pela LSF,
especialmente em textos de física.
O papel desse sistema de transitividade, já explorado em gêneros como o
editorial (SOUZA, 2006), cumpre a função de externar as experiências mundanas,
vividas tanto no plano interior, quanto exterior; e contribuiu para a construção do
sentido em diversos gêneros discursivos.
Os tipos de circunstâncias encontradas no corpus indicam, entre outras coisas, a
necessidade de localizar espacial e temporalmente a materialidade das ações, que são
frequentemente expressas através de processos materiais. No caso das circunstâncias de
localização espacial, é possível dizer que mais do que demarcar uma posição física,
indicam por vezes a posição ocupada por leitor/escritor.
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Por último, convém afirmar que as diversas maneiras de expressar significados
ideacionais, materializadas pelos tipos de processos, participantes, sugerem que as
circunstâncias têm papel preponderante na construção de sentidos nos textos de ciências
exatas.
Referências
BUTT, D. et al. Using Functional Grammar: An Explorer’s Guide. Sydney: Macquarie
University, 2001, p. 2-11.
EGGINS, S. Na introduction to Systemic Funcional Linguistics. London: Pinter
Publishers, 1995.
FURTADO DA CUNHA, M. A.; SOUZA, M. M. de. Transitividade e seus contextos de
uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.
GHIO,
Elsa;
FERNANDEZ,
Maria
Delia.
Lingüística
Sistêmico-Funcional:
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