ESTUDO DE CASO Volvo do íleo em torno de cordão fibroso do divertículo de Meckel Wendel dos Santos Furtado, Diego Antonio Calixto de Pina Gomes Mello, Vitorino Modesto dos Santos, Wilian Pires de Oliveira Júnior e Walter Ludvig Armin Schroff RESUMO Relata-se o caso de um homem com 16 anos de idade que apresentou torção do íleo ao redor do cordão fibroso que unia um divertículo de Meckel à cicatriz umbilical. Embora esse divertículo constitua o defeito intestinal congênito mais comum, seu volvo axial é considerado um fenômeno raro. No período pré-operatório, não se estabeleceu o diagnóstico, o qual foi caracterizado na laparotomia. A correção cirúrgica do volvo e a exérese do divertículo foram realizadas com sucesso. Palavras-chave. Divertículo de Meckel; remanescente fibroso do ducto onfalomesentérico; volvo de íleo; tratamento. ABSTRACT Wendel dos Santos Furtado – médico, titular do Colégio Brasileiro de Ciurugiões, Departamento de Cirurgia, Hospital das Forças Armadas, Brasília-DF, Brasil Diego Antonio Calixto de Pina Gomes Mello – médico-residente de Cirurgia Geral, Hospital das Forças Armadas, Brasília-DF, Brasil Vitorino Modesto dos Santos – médico, doutor, Departamento de Medicina Interna, Hospital das Forças Armadas. Professor da Universidade Católica de Brasília, Brasília-DF, Brasil Wilian Pires de Oliveira Júnior – médico-residente de Cirurgia Geral, Hospital das Forças Armadas, Brasília-DF, Brasil Walter Ludvig Armin Schroff – médico-residente de Cirurgia Geral, Hospital das Forças Armadas, Brasília-DF, Brasil Correspondência: Vitorino Modesto dos Santos. Hospital das Forças Armadas. Estrada do Contorno do Bosque s/n, Cruzeiro Novo, CEP 70.658-900, Brasília-DF. Telefone: 61 39662103. Fax: 61-32331599. Internet: [email protected] Ileal volvulus around the fibrous band of the Meckel’s diverticulum A 16-year-old male patient presenting with an ileal volvulus around the fibrous band that connected to the Meckel’s diverticulum to the umbilicus is reported. Although this diverticulum constitutes the commoner intestinal congenital defect, its axial volvulus is considered a rare phenomenon. Preoperative diagnosis was not obtained, and was characterized during laparotomy. Surgical correction of the volvulus and the diverticulum resection were performed with success. Key words. Meckel’s diverticulum; fibrous remnant of the omphalomesenteric duct; ileal volvulus; treatment 142 • Brasília Med 2012;49(2):142-146 Recebido em 1-5-2012. Aceito em 15-6-2012. Os autores declaram não haver potencial conflito de interesses. INTRODUÇÃO O divertículo de Meckel foi inicialmente relatado por Fabricius Hildanus (1650) e depois por Ruysch (1730). Littré (1745) encontrou o divertículo intestinal em uma hérnia inguinal e Johann Friedrich Meckel descreveu sua anatomia e embriologia em 1809.1-4 Wendel dos Santos Furtado e cols. • Volvo do íleo e divertículo de Meckel O divertículo ileal ou de Meckel é a alteração congênita mais frequente do trato gastrointestinal.1,5 Ocorre na região antimesentérica do íleo, a uma distância que varia de quarenta a cem centímetros a partir da junção ileocecal em direção proximal.1-8 Sua incidência na população pode alcançar 2% a 4%1-3,5,7,8 e, na maioria dos casos (94% a 96%), não há complicações.1,2,4 O divertículo é mais frequente em homens,1,2,4 e a maioria tem em média 2,9 cm de extensão e 1,9 cm de diâmetro.6 Aquele com mais de cinco centímetros de comprimento é classificado como gigante.4,6 É possível que o risco de sofrer torções esteja aumentado nos divertículos mais longos.4,6 Sua origem embrionária baseia-se na persistência do ducto onfalomesentérico ou ducto vitelino, um constituinte do cordão umbilical.2,7 A não obliteração do ducto pode causar: fístula entre o umbigo e o íleo,1,4 com prolapso em 20% dos casos;7 divertículo de Meckel, em virtude do não fechamento da extremidade proximal do ducto; formação do seio umbilical, quando a extremidade umbilical do ducto não se oblitera;7,9 cordão fibroso entre o umbigo e o íleo;1,4,7 ou associação dessas alterações, usualmente o divertículo de Meckel ligado ao umbigo por um cordão fibroso. Relata-se o caso de um divertículo de Meckel com torção ao redor do cordão fibroso, fenômeno considerado raro.3,4,10,11 anormalidades. Abdome com timpanismo normal, ruídos hidroaéreos diminuídos, sem visceromegalias palpáveis. Havia dor à palpação superficial e profunda na fossa ilíaca direita e na região periumbilical. A pesquisa do sinal de Blumberg teve resultado duvidoso. Os exames laboratoriais revelaram leucocitose com desvio à esquerda (19.200/mm3 e 6% de bastões) e leucocitúria (12 a 15 leucócitos por campo). A radiografia de abdome mostrou níveis hidroaéreos na fossa ilíaca direita. Iniciou-se antibioticoterapia (gentamicina 240 mg e metronidazol 1 g) e foi realizada laparotomia com hipótese de apendicite aguda. O apêndice encontrava-se normal. Havia grande quantidade de líquido seroso na goteira parietocólica direita e sinais de isquemia de alças do íleo terminal, em virtude de rotação ao redor do resquício fibroso do ducto onfalomesentérico, que conectava o divertículo de Meckel à cicatriz umbilical (figura 1). Após a correção do volvo intestinal, as alças rapidamente recuperaram a cor normal, o que descartou a necessidade de enterectomia. Foram realizadas apendicectomia e extirpação do divertículo de Meckel e do cordão fibroso aderido à cicatriz umbilical (figura 2). Realizou-se também enterorrafia na área do íleo terminal. O exame histopatológico da peça cirúrgica não revelou tecidos ectópicos ou tumor no divertículo ressecado. RELATO DO CASO Homem, com 16 anos de idade, referiu que desde a infância sentia cólicas abdominais, além de náuseas e alteração do trânsito intestinal, que cessavam sem outras complicações. Relatou que, havia um dia, teve pela manhã intensa dor abdominal em cólica na fossa ilíaca direita, associada a anorexia, vômitos, diarreia, disúria e febre. Não teve outros sinais ou sintomas. Procurou pronto-socorro, onde foram realizados exames complementares. Ao exame físico, estava em regular estado geral, acianótico, eupneico, anictérico, com discreta desidratação, frequência cardíaca de 110 bpm e temperatura axilar de 38ºC. O exame do tórax não revelou Figura 1. Demonstração do trajeto do divertículo de Meckel entre o íleo terminal e a cicatriz umbilical. Brasília Med 2012;49(2):142-146 • 143 ESTUDO DE CASO O achado de dois casos de divertículo de Meckel em sessenta pacientes (3,3%) com síndrome de Turner levantou a hipótese de haver relação causal entre essas entidades.14 Entretanto, como a frequência desse divertículo na população geral pode alcançar 4%,1,3,5,7,8 a relação pode ser apenas casual. Estudos com maior número de casos poderiam esclarecer a natureza da associação. Figura 2. Espécime cirúrgico mostra a grande extensão do divertículo. O doente evoluiu sem complicações, tendo alta hospitalar cinco dias após o procedimento cirúrgico. DISCUSSÃO O conduto onfalomesentérico do feto une o intestino médio ao saco vitelino, e qualquer segmento ou a totalidade do canal fetal pode persistir e ocasionar ou não sintomas. Vane e colaboradores avaliaram 217 crianças com anomalias do ducto vitelino; 132 (60%) tiveram diagnóstico de divertículo de Meckel durante laparotomia e ocorreu volvo em nove (6,8%).12 Mais de 30% das crianças tinham sintomas. Os autores sugeriram ressecção eletiva de remanescentes vitelínicos logo que fossem identificados para evitar complicações, incluindo-se enterorragia, bem como obstrução intestinal causada por intussuscepção, volvo ou herniação.12,13 O divertículo de Meckel desenvolve-se quando há persistência da extremidade intestinal do conduto onfalomesentérico. Situa-se na região antimesentérica do íleo terminal, usualmente a cerca de quarenta centímetros da junção ileocecal.1 Tratase de um divertículo verdadeiro2,7 que, na maioria dos pacientes, é assintomático e constitui diagnóstico incidental.1,5 144 • Brasília Med 2012;49(2):142-146 Encontra-se tecido ectópico no interior do divertículo de Meckel em 50% dos casos, geralmente mucosa gástrica ou tecido pancreático.1,2,4,5,7,8 Pode ocorrer ulceração péptica na mucosa ileal, manifestada por dor, sangramento e perfuração.1,2 Além disso, em até 3,2% dos casos de divertículo de Meckel, podem ser detectados tumores benignos ou malignos, a exemplo de fibroma, neurofibroma, leiomioma, hemangioma, lipoma, carcinoide, tumores do estroma gastrointestinal, adenocarcinoma e sarcoma.2-5,7 Hemorragia digestiva é a complicação mais comum e predomina na infância, associada com úlcera péptica no íleo originada na mucosa gástrica ectópica.1-5,7 A segunda complicação relacionada com o divertículo é a obstrução intestinal, mais comum em adultos.1-5,7 A obstrução pode se originar da invaginação e, mais raramente, da torção intestinal em torno de um divertículo aderido à parede abdominal pelo remanescente fibroso do ducto onfalomesentérico ou de hérnia de Littré.2-4,7,13,15 Nos adultos, o diagnóstico é mais difícil e deve ser considerado em doentes que apresentem náusea, vômito ou sangramento gastrointestinal. Apendicite é o diagnóstico pré-operatório mais comum nos casos de divertículo de Meckel complicado.1,3,7,8 A radiografia simples de abdome pode mostrar sinais de obstrução intestinal ou de pneumoperitôneo em casos com perfuração. A radiografia contrastada pode não detectar enchimento do divertículo em virtude de sua obstrução por edema. A ultrassonografia revela sinais de diverticulite e pode descartar apendicite, cisto de duplicação entérica e volvo intestinal.16 O ecodoppler colorido pode revelar hiperemia na parede diverticular e seus vasos nutridores. A tomografia computadorizada é muito útil para a confirmação do diagnóstico.5,7,8 Wendel dos Santos Furtado e cols. • Volvo do íleo e divertículo de Meckel O tratamento ideal para o divertículo de Meckel assintomático permanece controverso.1 Alguns autores indicam sua ressecção, já que a probabilidade de complicação pós-operatória é de 1% e, em longo prazo, a taxa de complicação desse divertículo pode alcançar até 6%.7,9 Acrescenta-se que a taxa de mortalidade associada com o divertículo de Meckel complicado é, também, estimada em 6%.7 A laparoscopia ou a laparotomia constituem abordagens utilizadas para tratar o divertículo de Meckel complicado. A modalidade cirúrgica em pacientes com quadros agudos complicados depende do tipo de persistência onfalomesentérica. Os remanescentes de base estreita podem ser tratados com extirpação da lesão mais oclusão do defeito intestinal.7 Quando a base do divertículo de Meckel é larga ou há processo inflamatório ou isquêmico afetando o íleo adjacente, a melhor opção consiste em enterectomia com reconstrução primária. Nos casos com envolvimento tumoral, devem-se ampliar as margens e realizar enterectomias mais amplas.7 Freitas e colaboradores recomendaram a realização de enterectomia segmentar com anastomose primária término-terminal, como técnica mais apropriada para remover o divertículo de Meckel e um eventual tecido ectópico no segmento intestinal próximo.1 Motta e colaboradores descreveram oito casos de pacientes operados por abdomen agudo causado por complicações do divertículo de Meckel em um serviço de emergência em Brasília.2 Em somente um paciente houve suspeita de diagnóstico de divertículo de Meckel no pré-operatório. As principais complicações foram obstrução (62,5%) e perfuração (37,5%). Predominaram pacientes do sexo masculino (87,5%) e as idades variaram de 6 a 42 anos, com mediana de 23,2 ± 13,9 anos. A distância medida da base do divertículo até a junção ileocecal variou de 23 a 80 centímetros, com mediana de 38,3 ± 19,5 cm. Deve-se salientar que ocorreu apenas um caso de volvo do divertículo associado com perfuração e peritonite generalizada, e houve necessidade de ressecar trinta centímetros da alça intestinal. O paciente tinha dez anos de idade e foi submetido à apendicectomia seis meses antes.2 Relata-se um caso de divertículo de Meckel complicado com volvo em paciente com 16 anos de idade, em conformidade com a literatura, cuja média etária na ocasião do diagnóstico é de aproximadamente 21 anos.1 O diagnóstico não foi estabelecido no período pré-operatório, confundindo-se com apendicite aguda, seu principal diagnóstico diferencial.1-5,7 De fato, a obstrução do divertículo de Meckel pode causar diverticulite, clinicamente indistinta da apendicite.1,4 Mesmo não havendo sinais ou sintomas característicos de obstrução intestinal, durante a laparotomia observou-se que o paciente apresentou torção axial de alça do íleo em torno do divertículo.3,4,10,11,13 Após a redução do volvo, as alças mostraram-se viáveis e optou-se pela preservação do íleo. A técnica escolhida foi ligadura do divertículo com fechamento do defeito intestinal remanescente, em concordância com a literatura.1,4,7 O exame anatomopatológico do espécime cirúrgico constatou quatro camadas na parede do íleo, achado que caracteriza os divertículos verdadeiros,8 além de descartar a presença de tecidos ectópicos.1,2,4,6 O diagnóstico clínico de afecção do divertículo de Meckel é usualmente difícil em virtude de a lesão causar quadros de abdome agudo inflamatório não característicos, seja ao exame clínico, seja com exames complementares.1,9 O volvo axial do divertículo de Meckel é considerado complicação muito rara.3,4,10,11 Entretanto, tendo em vista a potencial gravidade dessa condição, que inclui a gangrena,3,4,10,13 a anomalia congênita deve constar dos diagnósticos diferenciais de abdome agudo grave. Exames de imagem do abdome, laparoscopia ou laparotomia exploradora são úteis para esclarecer diagnósticos duvidosos9-11 e prevenir eventuais graves consequências de intervenções tardias. REFERÊNCIAS 1. Freitas LAM, Jorge A, Aloísio DAC, Silva AGB. Divertículo de Meckel: conduta no achado incidental. Rev Col Bras Cir. 1998;26(1):11-14. 2. Motta LACR, Albuquerque MH, Neves RAS, Montenegro R, Almeida WM. Divertículo de Meckel como causa de abdômen agudo cirúrgico. Rev Bras Cir. 1982;72:287-90. 3. Osborne MP, Hamilton G, Shalley M. Axial volvulus of Meckel’s diverticulum. Postgrad Med J. 1978;54(636):692-3. Brasília Med 2012;49(2):142-146 • 145 ESTUDO DE CASO 4. Seth A, Setr J. Axial torsion as a rare and unusual complication of a Meckel’s diverticulum: a case report and review of the literature. J Med Case Rep. 2011;5:118-21. 5. Chandramohan K, Agarwal M, Gurjar G, Gatti RC, Patel MH, Trivedi P et al. Gastrointestinal stromal tumor in Meckel’s diverticulum. 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