A CÁPSULA ENDOSCÓPICA NO DIAGNÓSTICO DO DIVERTÍCULO DE MECKEL Prof. Carlos Saul Prof. Gastroenterologia do Depto. Clinica Médica FAMED UFPEL Prof. Felix I. dos Santos Prof. Cirurgia do Depto de Cirurgia Geral FAMED UFPEL História clínica: J.B.M. , masculino, 22 anos , branco, natural de Pelotas, RS Hígido, desenvolvimento normal. Obeso (IMC 32). Sem sintomas ou doenças prévias anteriores, exceto infecções de vias aéreas superiores e rinite alérgica. Sem sintomas digestivos, hábito intestinal normal. Sem história familiar de doenças do trato digestivo. Quadro atual: Quadro de anemia nos últimos 10 meses com sangue oculto nas fezes positivo, já verificado em dois exames anteriores, nos últimos 10 meses. Um episódio de discreta melena. Procurou o serviço de Gastroenterologia por apresentar cansaço, desânimo e por apresentar , no dia anterior, novo episódio de melena Ex. físico: Anemia. Sem outras alterações. Exames laboratoriais efetuados no mesmo dia do atendimento foram todos normais (incluindo provas de função hepática, renal, testes de coagulação, glicemia e outros que compõem a rotina laboratorial de atendimentos em gastroenterologia) , exceto a série vermelha do hemograma que mostrou anemia , com hemoglobina de 9,8 g/dl e hematócrito de 28%, com contagem normal de plaquetas. Diante do raciocínio clínico de hemorragia digestiva, provavelmente alta , o paciente foi submetido a endoscopia digestiva alta, que foi negativa para lesões ou sangramento digestivo, em esôfago, estômago e nas porções iniciais do duodeno. Diante deste resultado , no dia subsequente o paciente teve seu cólon preparado e dois dias após se submeteu a uma colonoscopia. Colonoscopia foi negativa para lesões ou sangramento também, mas durante o exame se verificou a passagem de secreção enegrecida , em pequena quantidade e algumas raias de sangue pela válvula íleo cecal, advinda do delgado. O exame do íleo terminal não mostrou lesões. Diante dos achados da investigação o raciocínio clínico indicava provável fonte da hemorragia situada no intestino delgado, caracterizando a chamada Hemorragia Gastrointestinal Obscura (HGIO). Foi indicado exame endoscópico do Intestino Delgado com a Cápsula Endoscópica. A cápsula utilizada foi o mod. PillCam SB2, da empresa Given . A cápsula não mostrou alterações gástricas e nem no intestino delgado e médio. Mais além a cápsula foi temporariamente retida no íleo distal onde identificou um segundo trajeto, uma espécie de segunda luz intestinal a este nível , com aspecto endoscópico correspondendo provavelmente a abertura de um divertículo, com uma estenose parcial a este nível. Também entre a luz do íleo e este local de abertura de um provável divertículo, a cápsula visualizou uma lesão ulcerada que, ao cabo de poucas horas de exame continuado, mostrou discreto sangramento ativo das bordas da ulceração. Algumas horas após a cápsula avançou pelo íleo e foi finalmente passada ao cólon. Imagens do íleo distal observadas pela cápsula: D U D ID “Duplo lúmem “ no íleo distal correspondente a abertura do divertículo(D) e a luz normal do íleo distal (ID). Úlcera localizada entre a luz do íleo distal e a abertura do divertículo (U). U U Úlcera identificada entre a abertura do divertículo e a luz do íleo distal (U), que , ao cabo de 5 horas de exame com a cápsula , demonstrava discreto sangramento ativo. Com os dados desta enteroscopia realizada pela cápsula, a suspeita clínica , embasada nos dados clínicos e nos exames endoscópicos até então efetuados , passou a ser de um divertículo de Meckel , com sangramento devido à ulceração evidenciada junto da abertura do divertículo. Para melhor elucidação diagnóstica desta possibilidade foi efetuada tomografia computadorizada do intestino delgado com contraste (enterotomografia computadorizada), que confirmou a suspeita diagnóstica. Divertículo de Meckel Com a confirmação desta suspeita diagnóstica , que se coaduna perfeitamente ao quadro clínico apresentado pelo paciente, foi indicada a ressecção cirúrgica deste divertículo, seu posterior exame histopatológico para verificação da presença de mucosa gástrica ectópica ácido secretora no interior do divertículo, e a retirada da estenose local já evidenciada . O transoperatório ( cirurgia vídeolaparoscópica) confirmou a presença de grande divertículo, situado no íleo distal , aproximadamente a 40 cm. da válvula ileocecal, que foi ressecado juntamente com a área onde havia a ulceração e a estenose parcial. Enteroanastomose (“boca a boca”) refez o trânsito do íleo. Como o divertículo, seu mesentério e a gordura mesenterial formavam um volume muito grande, o mesmo não pode ser retirado pelo portal da videolaparoscopia. O cirurgião no transoperatório abriu pequena janela na grande curvatura gástrica, colocou o objeto da ressecção no interior do estômago, fechou esta janela na grande curvatura e ainda no transoperatório o material ressecado foi retirado por endoscopia alta. D D Orifício aberto na grande curvatura gástrica para colocação do divertículo ressecado(D) e posterior retirada endoscópica do divertículo ressecado. O material retirado foi enviado para exame anatmopatológico que confirmou tratar-se de um divertículo de Meckel com mucosa gástrica ectópica , ácido secretora, no interior do divertículo. A B AP: (A) Transição mucosa intestinal/mucosa gástrica. (B): Mucosa gástrica no interior do divertículo. Paciente teve alta no 3º dia PO. Controles anuais não mostraram mais anemia. Estado geral muito bom. Assintomático. Comentários: O Divertículo de Meckel, descrito por Johann F. Meckel em 1809, é um divertículo que se forma na borda antimesentérica do íleo, aproximadamente a 40 cm. da válvula ileocecal. É um remanescente da porção proximal do conduto onfalomesentérico. É também chamado de “Apêndice ileal”. É um divertículo verdadeiro, pois tem todas as camadas do íleo. Muitas vezes cursa por toda a vida sem sinais ou sintomas clínicos, e os casos que costumam ter manifestação clínica são aqueles em que , no interior do divertículo há mucosa gástrica ectópica e esta mucosa produz secreção ácida que pode vir a provocar o aparecimento de ulceração, em geral , junto da abertura do divertículo, no íleo. Esta ulceração pode provocar dor abdominal imprecisa, pode provocar sangramento , com melena, enterorragia ou anemia de causa obscura, e pode também provocar estenose inflamatória no local da ulceração. Mais remotamente, mas possível, pode promover perfuração do íleo. Estas manifestações, quando ocorrem, costumam afetar pacientes muito jovens, em geral sadios e assintomáticos do ponto de vista digestivo. No caso que aqui relatamos o paciente não apresentou dor ou outras manifestações , que não uma anemia de causa obscura , com duração já de quase 1 ano, e, quando questionado, relatou episódios esparsos de melena. Nos exames utilizados na investigação inicial o hemograma confirmou a anemia, e a pesquisa de sangue oculto nas fezes confirmou a perda sanguínea pelo tubo digestivo. Hemorragia gastrointestinal obscura é a nômina que se dá a casos com sangramento digestivo não reconhecidos pela endoscopia digestiva alta e pela colonoscopia. Nestas situações a origem do sangramento no intestino delgado é a mais provável. A enteroscopia com cápsula, introduzida na propedêutica a partir de 2002 em nosso meio, veio trazer substancial contribuição no diagnóstico das lesões do delgado. Até então o intestino delgado, em seus aproximadamente 6 metros de extensão, era , por assim dizer , “um buraco negro” na investigação digestiva. Desde o aparecimento cápsula endoscópica, se abriu esta que representava a última fronteira da investigação digestiva, permitindo, através da cápsula, a visualização direta da mucosa de todo o intestino delgado. Desde 2006 o exame do intestino delgado pela cápsula endoscópica é considerado ( ACG, ASGE, ESGE,OMED ) o primeiro e mais importante exame diagnóstico na suspeita de doenças do delgado, e a mais frequente e principal indicação é a hemorragia digestiva de causa obscura, hoje praticamente sinônimo de hemorragia do intestino delgado. Milhões de exames efetuados pelo mundo toda com esta moderna tecnologia atestam sua importância , segurança e altos índices de sensibilidade, especificidade, e valores preditivos. Prof. Carlos Saul Prof. Felix I. dos Santos