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RAWLS: O PODER
DE SOBERANIA
NA SOCIEDADE DOS POVOS
Renato Fagundes de Oliveira
Resumo: a proposta do artigo é a de mostrar a concepção de
poder soberano à luz da sociedade dos povos, tal como idealizada por
Rawls. Com base nos conceitos de soberania estabelecidos pela tradição
filosófico-jurídica, o artigo dá ênfase à concepção de soberania regulada
pelos princípios dos direitos humanos e de justiça, tal como formulada
por Rawls em ‘O direito dos povos’
Palavras-chave: soberania, direito dos povos, sociedade dos povos,
direito internacional, Rawls
A questão da soberania é de suma importância para a discussão da
coexistência pacífica e a busca de uma convivência democrática
entre os povos em nossa contemporaneidade. Tem-se mostrado
necessário alcançar uma solução para o estado de tênue equilíbrio na paz
mundial, em que a guerra, mais francamente que as relações comerciais
ou diplomáticas, tem sido um instrumento de dominação dos mais fortes
sobre os mais fracosa. A guerra friab, que transpassou o século XX, foi um
exemplo desse total abandono dos povos à própria sorte e força militar.
Nela, os povos foram obrigados a sujeitarem-se à tutela de duas potências
mundiais hegemônicas. Ficando evidente o total desrespeito à soberania
de países do terceiro mundo por países desenvolvidos, em defesa de seus
interesses, e o que ficou patente é o estado de naturezac, a saber, onde não
há lei ou ordem constituída, os indivíduos agem segundo suas forças, no
palco das relações internacionais (ABBAGNANO, 2000).
A Sociedade dos Povos é uma proposta de John Rawls para nivelar as
desigualdades entre os povos integrantes, em uma sociedade mundial regida
por um direito próprio, o Direito dos Povos, funcionando como o lugar
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onde as desigualdades de poder e riqueza devem ser decididas por todos os
povos que debatem suas mútuas relações, agindo guiados por um princípio
de justiça distributiva (RAWLS, 2001). Nossa discussão neste artigo centra-se
na mutabilidade do poder de soberania na Sociedade dos Povos. Resta-nos
pensar se o poder soberano pode ser mantido ou deve ser reformulado e
quais os princípios necessários para ajustar-se à Sociedade dos Povos, nos
termos propostos por Rawls em The law of peoples.
DO DIREITO DOS POVOS
O Direito dos Povosd provém da expressão latina ius gentium, o
Direito das Gentes, dos romanos, que seria o Direitoe que todos os povos
teriam em comum. Rawls, todavia, usa o termo em uma acepção diversa,
e, com essa expressão, o filósofo quer designar os princípios políticos
particulares para regulamentar as relações políticas mútuas entre os povos,
estando, pois, na base da comunidade ou da Sociedade dos Povos onde
ele teria eficácia.
A obra O direito dos povos, de Rawls, trata na primeira parte de
sua teoria ideal: apresenta o direito dos povos como parte do que Rawls
chama de uma utopia realista. Segundo o filósofo, uma “filosofia política
é realisticamente utópica quando estende o que comumente pensamos ser
os limites da possibilidade política praticável e, ao fazê-lo, nos reconcilia
com nossa condição política e social” (RAWLS, 2001, p. 15); em seguida,
o autor argumenta porque emprega povos em lugar de Estados, explicitando o que ele chama de as duas posições originais, que seriam a aplicação
dos princípios da justiça nacional para sociedades liberais e a extensão da
concepção liberal ao direito dos povos; a outra parte diz respeito ao Direito
dos Povos às nações entre si; concluindo com a idéia de razão pública e da
possibilidade da sociedade dos povos.
Esse conceito de direito refere-se propriamente ao Direito interno dos
Estados. E, no âmbito internacional, refere-se ao que Rawls chama de Law
of Nations ou direito das nações (RAWLS, 2001), termo que ele substituirá
por Law of peoples ou Direito dos povos, ainda a ser formulado (RAWLS,
2001). Essa mudança terminológica deve-se ao fato de o autor entender
que os povos são todos os indivíduos pertencentes a sociedades liberais ou
a sociedades hierárquicas bem ordenadas, ou seja, aqueles países que não
vivem em uma democracia, mas que são sociedades razoavelmente justas,
e não apenas aos cidadãos de uma sociedade liberal. Por direito das nações
compreende-se o conjunto das normas legais existentes com validade e apli802
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cabilidade na órbita internacional: tratados, convenções e acordos firmados
efetivamente pelos sujeitos de Direito Internacional.
Nos Collected Papers, Rawls (apud ROUANET, 2002, p. 38) resume
do seguinte modo a diferença entre o Direito dos Povos e o das nações:
por fim, assinalo a distinção entre o Direito dos Povos e o direito das
nações, ou direito internacional. Este último constitui uma ordem legal
existente, ou positiva, por mais incompleta que seja sob certos aspectos,
carecendo, por exemplo, de um efetivo de sanções tais como as que
normalmente caracterizam o direito interno – dos países. O Direito
dos Povos, por contraste, é uma família de conceitos com princípios do
direito, da justiça, e do bem comum, que especificam o conteúdo de
uma concepção liberal de justiça elaborada de forma a se estender e
aplicar ao direito internacional. Fornece os conceitos e princípios pelos
quais esse direito deve ser julgado.
E prossegue, no Direito dos povos:
a razão pela qual uso o termo ‘povos’ é para distinguir o meu pensamento
daquele a respeito dos Estados políticos como tradicionalmente concebidos,
com seus poderes de soberania incluídos no Direito Internacional (positivo) pelos três séculos após a Guerra dos Trinta anos (1618-48). [E por
fim:] com ‘Direito dos Povos’ quero referir-me a uma concepção política
particular de direito e justiça, que se aplica aos princípios do Direito e
da prática internacionais (RAWLS, 2001, p. 3).
DA SOCIEDADE DOS POVOS
A sociedade dos povosf é o termo criado pelo filósofo para indicar todos
aqueles povos que seguiriam os ideais e princípios do direito dos povos em
suas relações recíprocas. Esses povos, por terem governos próprios, poderiam
ser democráticos, liberais e constitucionaisg ou não liberais, mas, como ele
denomina, decentes (RAWLS, 2001). O termo decente serve para descrever
sociedades não liberais, mas que possuam instituições que cumpram certas
condições específicas de direito e de justiça política, e que levem seus cidadãos
a possuir um direito razoavelmente justo.
O direito dos povos coloca os povos democráticos liberais e decentes
como os atores da sociedade dos povos, de maneira análoga aos cidadãos que
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são os atores na sociedade nacional. Assim, esses povos seriam os cidadãos da
sociedade dos povos. Os povos liberais possuem três características elementares: governo constitucional razoavelmente justo, que serve seus interesses
básicos; cidadãos unidos por afinidades comuns, as quais seriam inexistentes
entre eles e outros grupos, nações. Tornando a cooperação recíproca mais
disposta e espontânea do que em relação a qualquer outro grupo, além de
desejar ter um mesmo governo exclusivo, o que gera um sentimento de nacionalidade; uma natureza moral. O primeiro é institucional. O segundo é
cultural. E o terceiro exige uma ligação firme com uma concepção política
de direito e justiça (RAWLS, 2001).
É fato necessário, na sociedade dos povos, que os povos liberais estejam
unidos por afinidades comuns e desejem estar unidos por um governo democrático (RAWLS, 2001, p. 32). O direito dos povos parte da necessidade de
afinidades comuns. E quando essas afinidades ocorrem, procedem da linguagem
e/ou da história e uma cultura política comuns. Entretanto, tal confluência é
rara, pois nem todos estariam ligados por uma linguagem e memórias históricas
comuns. A sociedade dos povos, para tanto, deve formular princípios políticos
razoavelmente justos que permitam lidar com uma grande massa de povos, quiçá
todos, e, ao seu tempo, torne possíveis tais afinidades (RAWLS, 2001).
Ora, assim como os cidadãos das sociedades nacionais, os povos liberais
têm um caráter moral e devem ser razoáveis e racionais. O seu procedimento racional é organizado e expresso em suas manifestações democráticas,
eleições e votos, leis e políticas de governo, sendo limitadas na perspectiva
do razoável. Assim, devem os povos liberais oferecer termos de cooperação
justos a outros povos, como membros de uma coletividade de ajuda mútua.
Um povo honraria tais termos na certeza de sua reciprocidade.
Afirma Rawls (2001, p. 33):
os povos liberais têm certo caráter moral. Como cidadãos em uma sociedade nacional, os povos liberais são razoáveis e racionais, e a sua conduta
racional, enquanto organizada e expressa nas suas eleições e votos, nas leis
e políticas do seu governo, é similarmente limitada pela sua percepção do
que é razoável. Como cidadãos razoáveis na sociedade nacional oferecem-se
para cooperar em termos imparciais com outros cidadãos, os povos liberais
oferecem termos de cooperação justos a outros povos. Um povo honrará
esses termos quando estiver seguro de que outros também o farão.
O ponto central de unidade dessa sociedade dos povos é uma doutrina
contratualista que tem duas características próprias, a posição original e o
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véu de ignorância. O autor, em Uma teoria da justiça, ao descrever sobre a
doutrina contratualista, utiliza a teoria do contrato como ponto de partida
para alcançar a elevação da igualdade mediante princípios universais de
justiça distributiva. Inspirado em Locke, Rousseau e Kant, Rawls (2001)
elevará a um maior nível de abstração o contratualismo clássico, buscando
uma definição racional do princípio universal de justiça – justiça distributiva
entendida como eqüidadeh.
Valendo-se de uma fictícia situação de igualdade, numa hipotética
condição pré-social denominada posição original, os homens livres e racionais operariam a escolha dos princípios básicos de justiça, fundamento da
futura sociedade política e dos posteriores entendimentos. Segundo Rawls
(2001, p. 185),
Um cidadão [...] considera sinceramente como a concepção política de
justiça mais razoável, uma concepção que expresse valores políticos dos
quais também possamos pensar razoavelmente que outros cidadãos, como
livres e iguais, poderiam endossar. Cada um de nós deve ter princípios
e diretrizes aos quais recorremos [...] e uma maneira de identificar esses
princípios e diretrizes políticos é mostrar que seriam pactuados naquilo
que chamamos posição original.
Tal negociação não tem bases históricas. Trata-se de um artifício
heurístico utilizado como recurso de representação. Como recurso de representação, a posição original celebra um acordo no qual representantes de
cidadãos livres e iguais definem os termos da cooperação social e estabelecem
princípios de justiça eqüitativa. A posição original é uma histórica construção
filosófica e Rawls (1997, p. 162) argumenta que “as condições encontradas
na descrição da posição inicial são as que aceitamos de fato”.
Entretanto, o contratualismo concebido pelo filósofo contém um
elemento novo, um plus, ao fazer cair sobre os indivíduos um constrangimento adicional: o véu de ignorância. Diz Rawls (2001, p. 39):
a posição original com um véu de ignorância é um modelo de representação para as sociedades liberais [...] a posição original inclui o véu
de ignorância, ela também modela o que consideramos como restrições
adequadas às razões para adotar uma concepção política de justiça.
Isso significa que só é possível conceber a igualdade incondicional
da situação inicial se os indivíduos desconhecerem totalmente sua situação
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particular e a dos outros, se não souberem exatamente nada acerca do que
seriam, de suas características pessoais e do contexto social no qual se inseririam. A marca principal dessa situação consiste no fato de ninguém conhecer
sua posição na sociedade, sua classe ou status social, bem como a parte que
lhe caberá na distribuição do conjunto de bens e capacidades naturais, tais
como inteligência, força e habilidades. O véu da ignorância é a garantia de
que o acordo será feito em absoluta situação de igualdade.
Contudo, as partes não são iguais – visto que os homens são naturalmente desiguais – apenas desconhecendo as diferenças existentes entre
elas na situação da posição inicial. Disso decorre que a negociação jamais
possuirá qualquer sentido usual, utilitário; ao contrário, será completamente
referenciada pelo significado social de justiça. O contratualismo de Rawls
recorre à idéia kantiana de homem racional. Rawls (2001, p.160) declara:
A idéia da posição original, tal qual me refiro, é o conceito de uma posição original interpretada da forma mais filosófica possível, com vistas
à sua utilidade na teoria da justiça. Assim, a teoria da justiça, que, ao
mesmo tempo é uma teoria da sociedade, está ligada à teoria da escolha
racional, pois procura investigar [...] os princípios que seriam adotados
de forma racional, dada uma situação contratual.
Portanto, as idéias de posição original e de véu de ignorância conduzem ao raciocínio de que, nessa situação, os homens, por desconhecerem a
posição que ocupariam na sociedade, bem como a parte que lhes caberia na
distribuição do conjunto de bens e capacidades naturais, como inteligência,
força, habilidade, não poderiam criar regras desiguais, eliminando-se, por
conseguinte, da negociação do contrato social, a obtenção de qualquer tipo
de vantagem pelos contratantes.
Esse modelo de origem de sociedade busca tornar a sociedade mais
justa para um maior número de pessoas, dentro dos povos, e na sociedade
dos povos, torná-la mais justa para um maior número de povos. Claro está
que o modelo de sociedade assim caracterizado espelha-se no contratualismo igualitário, concebido nos moldes liberais. A melhoria da situação dos
indivíduos que se encontram em pior situação na pirâmide social revela-se
meta imperiosa a ser implementada. Os termos do contrato devem preceituar normas justas e eqüitativas que redundem em vantagens para todos,
garantindo-se aos menos favorecidos acesso a bens e recursos necessários.
Ponto importante que deve ser lembrado ao se tratar da sociedade
dos povos é o fato de ela não se tratar de um Estado mundial. Essa idéia
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é rejeitada por Rawls no diapasão de Kant e contempla a idéia de que o
direito dos povos gerará princípios que abrirão espaço para diversos modos
de associações e federações para instrumentalizar a cooperação internacional,
simplesmente por temer que esse Estado mundial redundasse num despotismo global ou num império frágil, dilacerado pela guerra civil. Segundo
Rawls (2001, p. 33)
inicialmente, podemos supor que o resultado de elaborar o Direito dos
Povos apenas para sociedades democráticas liberais será a adoção de
certos princípios de igualdade entre os povos. Esses princípios, suponho,
também abrirão espaço para várias formas de associações e federações
cooperativas entre os povos, mas não afirmarão um Estado Mundial.
Aqui, sigo o exemplo de Kant na ‘Paz Perpétua’ (1795) ao pensar que
um governo mundial – com o que me refiro a um regime político unificado, com poderes jurídicos normalmente exercidos por governos centrais
– seria um despotismo global ou, então, governaria um império frágil,
dilacerado pela guerra civil freqüente, quando várias regiões e povos
tentassem conquistar liberdade e autonomia políticas.
DO CONCEITO TRADICIONAL DE SOBERANIA
Rawls (2001, p. 33) afirma que “os povos carecem da soberania
tradicional”. A análise do conceito tradicional de soberaniai é sedimentada
na doutrina jurídica e na tradição filosófica. O Estado contemporâneo caracteriza-se quando uma população estável convive em um território bem
delimitado com autoridade soberanaj. Não há convergência em relação à
origem do termo soberania. Esse pode provir do latim medieval superanus e/ou
superanitas, para referir-se à autoridade mais elevada em um campo privado.
Entretanto, entende-se também que o termo parece provir remotamente do
latim medieval superanus e, proximamente, do francês souveraineté. De um
ou de outro modo, o termo provém do latim e sua inclusão na terminologia
do direito público moderno se deu pela palavra francesa.
Podemos defini-la como “a qualidade do poder supremo do Estado
de não ser obrigado ou determinado senão pela sua própria vontade, dentro
da esfera de sua competência e dos limites superiores do Direito” (MENEZES, 1996, p. 148). Em complemento, temos o conceito de Le Fur, como
“a qualidade do Estado de não ser obrigado ou determinado senão pela sua
própria vontade, nos limites do princípio supremo do Direito e conforme
o fim coletivo que está chamado a realizar” (MENEZES, 1996, p. 148).
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Menezes (1996, p. 148) assim a conceitua: “a qualidade que o Estado possui, na esfera de sua competência jurídica, de ser supremo, independente e
definitivo, dispondo, portanto, de decisões ditadas em último grau pela sua
própria vontade e que pode impor inclusive pela força coativa”.
A soberania pressupõe a independência externa e uma supremacia
interna. Significa dizer a não subordinação externa e a limitação interna à
vontade do povo. Ela é una, ou seja, indivisível, inalienável e imprescritível.
A soberania constitui-se na supremacia do poder estatal no âmbito interno
e no fato de encontrar, perante o âmbito externo, somente Estados igualmente capazes de se autodeterminarem. Destarte, Estado soberano é aquele
que não se encontra adstrito a ordens e interferências de outro Estado. Ou,
como apregoa Bastos (1995, p.153),
soberano é pois, todo poder que não encontra limites, quer na ordem
interna, quer na externa. Traduz-se na possibilidade de impor unilateralmente deveres aos cidadãos e conferir competências ao Estado, sendo
certo ainda que estas competências podem ser redefinidas a qualquer
tempo [...].
Entretanto, é fundamental ressaltar que tal soberania não deve ser
entendida como um poder absoluto, desprovido de quaisquer limites, mesmo
porque um poder assim jamais existiu. Todo o poder está condicionado a circunstâncias de ordem diversas como econômica, demográfica, social, cultural.
Circunstâncias essas que não podem ser manipuladas unilateralmente. Até
mesmo no âmbito externo os Estados também se limitam reciprocamente,
na exata medida em que respeitam a soberania uns dos outros.
DAS TEORIAS DO PODER SOBERANO
Problema dominante neste tema é o que diz respeito à fonte do poder
de soberania e, conseqüentemente, ao problema da sua titularidade. Para
as teorias carismáticas do direito divino (sobrenatural ou providencial) dos
reis, o poder vem de Deus e se concentra na pessoa sagrada do soberano.
Para as correntes de fundo democrático, a soberania provém da vontade do
povo (teoria da soberania popular) ou da nação propriamente dita (teoria
da soberania estatal).
Conforme a teoria da soberania absoluta do rei, o seu teórico Bodin
(apud MALUF, 1999, p. 73) sustentava: “a soberania do rei é originária,
ilimitada, absoluta, perpétua e irresponsável em face de qualquer outro po808
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der temporal ou espiritual”. Os monarcas acreditados como representantes
de Deus na ordem temporal, em decorrência disso, neles se concentravam
todos os poderes que não admitiam limitações.
Segundo a teoria da soberania popular, que teve como percussores
Altuzio, Marsílio de Pádua, Francisco de Vitória, Soto, Molina, Mariana, Suarez e outros teólogos e canonistas da chamada Escola Espanhola
(MALUF, 1999), o poder público vem de Deus, que é sua causa eficiente,
que infunde a inclusão social do homem e a conseqüente necessidade de
governo na ordem temporal. Mas os reis não recebem o poder por ato de
manifestação sobrenatural da vontade de Deus, senão por uma determinação
da onipotência divina. O poder civil corresponde à vontade de Deus, mas
promana da vontade popular.
Contudo, a teoria da soberania nacional ganhou corpo com as idéias
político-filosóficas que fomentaram o liberalismo e inspiraram a Revolução
Francesa. Pertence a teoria da soberania nacional à Escola Clássica Francesa, da qual foi Rousseau o mais destacado expoente. Desenvolveram-na
Esmein, Hauriou, Paul Duez, Villey, Berthélemy, sustentando que a nação
é a fonte única do poder da soberania. A coroa não pertencia ao rei, o rei é
que pertencia à coroa. O rei é depositário, mas não proprietário. A soberania
é originária da nação, no sentido estrito de população nacional (ou povo
nacional), não do povo em sentido amplo. A soberania é una, indivisível,
inalienável e imprescritível (MALUF, 1999).
Para a teoria da soberania do estado, que pertence às escolas alemã e
austríaca, as quais divergem fundamentalmente da Escola Clássica Francesa, o princípio é o de que a soberania é a capacidade de autodeterminação
do Estado por direito próprio e exclusivo. Essa teoria acata o pensamento
filosófico de Ihering, segundo o qual a soberania é, em síntese, apenas uma
qualidade do poder do Estado, ou seja, uma qualidade do Estado perfeito.
O Estado é anterior ao direito e sua fonte única. O direito é feito pelo e para
o Estado; não o Estado para o direito. A soberania é um poder jurídico, um
poder de direito e assim como todo e qualquer direito, ela tem a sua fonte
e a sua justificativa na vontade do próprio Estado. Seu expoente máximo,
Jelliinek, parte do princípio de que a soberania é a capacidade de autodeterminação do Estado por direito próprio e exclusivo (MALUF, 1999).
DO PODER DE SOBERANIA NA SOCIEDADE DOS POVOS
Como foi dito, o poder soberano, em sua acepção tradicional, é um
elemento constitutivo do Estado contemporâneo. Constitui uma supremacia
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do poder estatal no âmbito interno e no fato de encontrar, na órbita externa,
somente Estados igualmente capazes de se autodeterminarem. Destarte,
Estado soberano é aquele que não se encontra adstrito a ordens e/ou interferências de outro Estado ou qualquer outra espécie de organização.
Rawls (2001) afirma que os povosk, leia-se não Estados, mas povos,
necessitam da soberania tradicional, entendida como o direito de guerrear,
em nível externo, e de autonomia em relação ao seu povo no âmbito interno,
devendo, portanto, ser restringido à luz do direito dos povosl. Contudo, ele
critica a autonomia derivada do poder soberano, conferida aos Estados no
lidar com seu povo. Diz: “...pela minha perspectiva, essa autonomia está
errada” (RAWLS, 2001, p. 34). A primeira etapa do Direito dos Povos – que
é a base da sociedade dos povos, ou a maneira de sua efetiva realização – é
a elaboração de princípios de justiça para a sociedade nacional. Segundo
o autor,
esse Direito dos Povos [...] restringirá a soberania ou autonomia política
interna de um Estado, o seu alegado direito de fazer o que quiser como seu
povo dentro de suas fronteiras. Assim, ao formular o Direito dos Povos,
um governo, como organização política de seu povo, não é por assim dizer,
o autor de todos os seus poderes. Os poderes [...] só são aceitáveis dentro
de um Direito dos Povos razoável (RAWLS, 2001, p. 34).
Entendemos, então, que Rawls defende a soberania para os povos
que, aliás, ao menos de maneira formal, são os titulares legítimos do poder
soberano na maioria das constituições contemporâneas, ventiladas pelas teorias de fundo democrático, acima mencionadas, as quais afirmam ora que a
soberania provém da vontade do povo (teoria da soberania popular), ora da
nação propriamente dita (teoria da soberania estatal). Assim a Constituição
brasileira de 1988 (apud GOMES, 2004, p. 19) dispõe a esse respeito: “Todo
o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos dessa Constituição”. Entretanto, não a soberania
tradicional como vimos, mas uma soberania condicionada, reformuladam.
Essa idéia causa um estranhamento, pois, compreender a soberania
como um poder absoluto em nível interno, significa dizer que não há condicionamentos políticos de ordem alguma, salvo, é claro, que todo poder
está condicionado a circunstâncias de ordem diversas como econômica,
demográfica, social, cultural. Circunstâncias essas que não podem ser
manipuladas unilateralmente. Absoluto, aqui, quer dizer a faculdade de se
governar do modo como se deseja, nas limitações naturais. Rawls, ao afir810
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mar que o direito dos povos restringirán o poder soberano interno, nega a
concepção de soberania imposta pela tradição filosófica, segundo a qual o
poder soberano não pode ser restrito nunca.
Na órbita internacional, Rawls (2001) também entende que o direito
dos povos deve negar aos Estados o direito tradicional à guerra, a qual seria
aceitável somente em um Direito dos Povos razoável. A conduta dos povos
deve ser razoável e racional (RAWLS, 2001). O seu procedimento racional
é organizado e expresso nas suas manifestações democráticas, eleições e votos, leis e políticas de governo, sendo limitadas na perspectiva do razoável.
Assim, os povos liberais devem oferecer termos de cooperação justos a outros
povos, como membros de uma coletividade de ajuda mútua, a sociedade
dos povos. Como argumenta o filósofo:
Além disso, essa reformulação está de acordo com uma mudança drástica
e recente no modo como muitos gostariam de que o Direito internacional
fosse compreendido. Desde a Segunda Guerra mundial, o Direito internacional tornou-se mais estrito. Ele tende a limitar o direito de guerrear
de um Estado a casos de autodefesa (também no interesse da segurança
coletiva) e a restringir o direito de soberania interna de um Estado [...]
o essencial é que a nossa elaboração do Direito dos Povos se ajuste a essas
duas mudanças básicas e lhes dê uma fundamentação lógica adequada
(RAWLS, 2001, p. 35).
Apesar de a sociedade dos povos (que estaria fundamentada no direito dos povos, o qual ainda não foi formulado) ser uma proposta, uma
alternativa ao estado de natureza no qual estão mergulhados os Estados em
nível internacional, podemos, segundo Rawls, já vislumbrar uma limitação
prática ao poder soberano na Sociedade dos Povos. In verbis:
em vista desses interesses fundamentais, os povos liberais limitam o direito
do Estado de fazer guerras de autodefesa (se o permite a segurança coletiva)
e o seu interesse pelos Direitos Humanoso leva-os a limitar o direito de
um Estado à soberania interna (RAWLS, 2001, p. 54).
Os direitos humanosp são uma limitação objetiva do poder soberano
dos Estados na sociedade dos povos. Rouanet (2002, p. 64) afirma que
assim, Rawls considera que ‘os Direitos Humanos básicos expressam um
padrão mínimo de instituições políticas bem-ordenadas para todas as
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pessoas que pertencem, como membros de pleno direito, a uma Sociedade
dos Povos justa. Não seria aceitável um Direito dos Povos que ficasse aquém
desse padrão mínimo e uma sociedade, seja ela liberal, seja hierárquica,
não pode ser aceita na Sociedade dos Povos se não der sua adesão pelo
menos a esse padrão mínimo.
O padrão mínimo é aquele criado com o fim de atender às condições
mínimas para que se considere um sistema jurídico como justo. Este deve
expressar uma noção de bem comum e no qual se acredite que as pessoas
encarregadas da administração das leis possuam um compromisso sincero
com esse bem comum, respeitando-se e valorizando-se valores como a vida,
a liberdade e a propriedade. Segundo Rouanet (2002, p. 71),
a defesa dos Direitos Humanos é vista por Rawls como fazendo parte
de uma mudança de valores no mundo contemporâneo, provavelmente
provocado pelo trauma das duas guerras mundiais do século XX [...] a
‘guerra não é mais um meio admissível de política do Estado. Justificando-se apenas a autodefesa. A soberania interna dos Estados passa a
ser limitada. Um papel dos Direitos Humanos é precisamente especificar
limites para essa soberania’.
Rawls (2001) faz distinção entre direitos humanosq e direitos constitucionais ou de cidadania democrática. O grau de generalidade dos direitos
humanos faz com que se tornem universalmente aceitáveis, o que imporia
sua aplicação aos países envolvidos. Diz o filósofo:
uma classe especial de direitos de aplicação universal e dificilmente
controversos em sua intenção geral. São parte de um Direito dos Povos
razoável e especificam limites à instituições locais requeridas de todos os
povos sob esse direito. Nesse sentido, especificam a fronteira externa de
um direito local das sociedades admissível como tal numa Sociedade dos
Povos justa (RAWLS apud ROUANET, 2002, p. 71).
Esses direitos entendidos dessa maneira servem de modelo para a
Sociedade dos Povos da seguinte forma: são uma condição necessária para
a legitimidade de um regime e da decadência da sua ordem legal; por estarem presentes, são também suficientes para excluir intervenção justificada e
forçosa por outros povos, seja por sanções econômicas ou por força militar;
colocam um limite para o pluralismo entre os povos (RAWLS, 2001).
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Logo, compreendemos que a soberania ante a sociedade dos povos
não subsiste em seu modo tradicional, mas deve ser reformulada. Em âmbito
internacionalr, os direitos humanos têm ocupado um papel cada vez mais
importante, servindo de forte instrumento de pressão de povos e países,
contra a política que se baseia no equilíbrio de poder e no poder de pressão
e de coação econômica e armamentista que denuncia o flagrante estado de
natureza das relações internacionais.
Assim, os direitos humanos atuariam, se não como meio jurídico,
ou lei positiva, pelo menos como fator moral de negociação e coerção,
funcionando, dessa forma, como um meio já efetivo de uma limitação da
soberania dos Estados, como um direito dos povos primitivo, inicial. Os
direitos humanos funcionariam também como proteção da própria soberania
dos Estados e povos mais fracos, mitigando, assim, o estado de natureza das
relações internacionais.
CONCLUSÃO
O direito dos povos dispõe os povos democráticos liberais e decentes
como os atores da sociedade dos povos, de maneira análoga aos cidadãos que
são os atores na sociedade nacional (RAWLS, 2001). Os povos seriam os nacionais da Sociedade dos Povos, a qual, conforme uma doutrina contratualista,
representa a sociedade civil, onde os homens, vivendo antes num estado de
natureza, de liberdade absoluta e violência, abdicam de parte de sua liberdade
em nome da segurança de uma instituição que os proteja. Os contratualistas
clássicos, que só se referiram à sociedade interna, chamam essa instituição,
criada com o pacto, de Estado. Aqui, em nível externo, Rawls chama essa
instituição de Sociedade dos Povos. Ele eleva a um maior nível de abstração o
contratualismo clássico, buscando uma definição racional do princípio universal
de justiça – justiça distributiva entendida como eqüidade, tal como formulada
pelo filósofo em Uma teoria da justiça. Nas palavras do autor,
Uma teoria da justiça tem esperança de apresentar as características estruturais de tal teoria (do contrato social), a fim de fazer dela a melhor
aproximação dos nossos julgamentos considerados de justiça e, portanto,
dar a base moral mais adequada para uma sociedade democrática. Além
disso, a justiça como equidade é apresentada ali como uma doutrina
liberal abrangente (embora o termo ‘doutrina abrangente’ não seja usado
no livro), afirmada por todos os membros da sociedade bem ordenada
(RAWLS, 2001, p. 234, grifo nosso).
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O poder soberano deve ser compreendido, no contexto da sociedade
dos povos, não mais estritamente na sua acepção tradicional. A sociedade dos
povos prescinde da soberania tradicional que deve ser reformulada, segundo
os princípios do direito dos povos, que ainda não está construído, mas que
prevê nos direitos humanos uma limitação atual e objetiva. Seu titular,
como vimos, são os povos. Rawls defende a soberania para os povos. Essa
reformulação tende a limitar o direito de guerrear e restringir a autonomia
interna ao lidar com seu próprio povo por intermédio dos princípios de
justiça criados para as sociedades nacionais.
É um novo poder soberano. Um poder, como já dito, que causa um
certo estranhamento porque restringe o poder soberano. O poder soberano
reformulado, com base no direito dos povos que Rawls (2001) entende como
os princípios políticos particulares para regulamentar as relações políticas
mútuas entre os povos, é menos amplo em todos os aspectos e tem por
finalidade proteger a liberdade desses povos, cuidando para que não sejam
dominados externa ou internamente. Esse poder soberano visa proteger a
liberdade e nivelar as desigualdades entre os povos integrantes, em uma
sociedade mundial regida por um direito próprio. Assim, as desigualdades
de poder e riqueza devem ser decididas por todos os povos que debatem
suas mútuas relações de forma democrática.
A reformulação proposta por Rawls pressupõe, assim, uma mudança
drástica no Direito internacionals. Ela tende a limitar o direito de guerrear dos
Estados e povos a casos de autodefesa ou no interesse da segurança coletiva,
bem como restringir o direito de soberania interna dos Estados, possuindo
não apenas uma força moral, mas coercitiva que e de fato vislumbrasse a
liberdade e amenizasse as desigualdades entre os povos. Portanto, o que se
espera do Direito dos Povos criado como Constituição dessa sociedade,
guiada pelos princípios da justiça eqüitativa é que ele possa, eficazmente,
promover a igualdade e a justiça em todos os soberanos povos dela participantes, promovendo desse modo o fim do estado de natureza existente nas
relações internacionais e a sua substituição pela Sociedade dos Povos.
Notas
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Exemplo dessa dominação é a recente ocupação do Estado iraquiano: “refere-se
ao envio de tropas estadunidenses e internacionais a este país no ano de 2002,
por decisão do presidente norte-americano George Bush. O pretexto da ocupação, inicialmente, foi achar armas nucleares que, supostamente, o governo
iraquiano teria em estoque. O que, segundo Bush, representavam um risco ao
seu país, abalado desde então pelos atentados terroristas de 11 de setembro de
2001. O presidente Bush tomou a decisão de invadir o Iraque sem a aprovação
do Conselho de Segurança da ONU. Em 2003, após um ano de ocupação,
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entretanto, o presidente Bush muda o discurso ao dizer que a ocupação faz
parte da libertação de países e a promoção da Democracia e da Paz mundial.
Em 2004, o presidente iraquiano Saddam Hussein é capturado e mantido
preso num local não revelado. Seus filhos são mortos numa emboscada em
Bagdá. O verdadeiro motivo da ocupação são os abundantes poços de petróleo
do Iraque” (WIKIPÉDIA, 2005b).
“A guerra fria é a designação dada ao conflito político-ideológico entre os
Estados Unidos, defensores do capitalismo, e a União Soviética, defensores do
socialismo, compreendendo o período entre o final da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) e a extinção da União Soviética (1922-1991). Chamada de ‘fria’
já que não houve quaisquer combates físicos, embora o mundo todo temesse
a vinda de um novo combate mundial, por se tratarem de duas potências com
grande arsenal de armas nucleares” (WIKIPÉDIA, 2005a).
“A condição que Hobbes atribuiu ao estado de natureza, a guerra de todos
contra todos: ‘enquanto vivem sem um poder comum ao qual estejam submetidos, os homens encontram-se na condição que chamamos de guerra, e
tal guerra é de um homem contra outro’ (Leviatah, I, 13). Isto acontece
porque, sendo iguais por natureza, os homens também têm os mesmos desejos,
e desejando as mesmas coisas procuram preponderar uns sobre os outros. A
fundação do Estado, de um poder soberano, é o único meio de sair da condição
de guerra, própria do estado de natureza” (ABBAGNANO, 2000, p. 701).
A conferência que deu origem à obra O direito dos povos foi proferida por
Rawls em Oxford, em 12 de fevereiro de 1993, recebeu o título de O Direito
das Gentes e foi publicada pela primeira vez no volume On human rights: the
Oxford Amnesty Lectures (SHUTE; HURLEY,1993). Em 1999, a referida
conferência foi incluída nos Collected Papers de John Rawls, organizados por
Samuel Freeman (Harvard University Press). Revisto, The law of peoples, foi
editado como livro em 1999, junto com o texto The idea of public reason Reviseted, que surgiu originalmente na University of Chicago Law Review, 64, em
1997 e foi subseqüentemente incluído nos Collected Papers de John Rawls.
“Em sentido geral e fundamental, a técnica da coexistência humana, isto é, a
técnica que visa a possibilitar a coexistência dos homens. E como técnica da
coexistência, o Direito se concretiza em conjunto de regras (nesse caso leis
ou normas), que têm por objeto o comportamento intersubjetivo, ou seja, o
comportamento dos homens entre si” (ABBAGNANO, 2000, p. 278).
Segundo Rawls (2001, p. 162), “A Sociedade dos Povos é possível”. E essa
possibilidade encontra-se dentro da filosofia política “realisticamente utópica”,
ou seja, daquela filosofia política que alarga o que geralmente se pensa serem
os limites da política real. Diz o autor: “Nossa esperança para o futuro baseiase na crença de que as possibilidades do nosso mundo social permitem a uma
sociedade democrática constitucional viver como membro de uma Sociedade
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dos Povos razoavelmente justa”.
“A proposta de Rawls é a de demonstrar a viabilidade dos princípios da justiça
como eqüidade a ‘todas’ as sociedades, com o argumento de que esses princípios
não são dogmáticos, não são etnocêntricos, não são únicos, antes, são princípios
que fornecem uma concepção razoável de como organizar a sociedade, tomando
por base a doutrina do contrato social, concebida pelo liberalismo e o regime
que lhe corresponde: o constitucionalismo” (FELÍCIO, 2004, p. 1957-77).
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A justiça como eqüidade transmite a idéia de que os princípios da justiça são
acordados numa situação inicial que é eqüitativa. “Na justiça como eqüidade
a posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria
tradicional do contrato social. Essa posição original não é, obviamente, concebida como uma situação histórica real, muito menos como uma condição
primitiva da cultura. É entendida como uma situação puramente hipotética
caracterizada de modo a conduzir a uma certa concepção de justiça” (RAWLS,
1997, p. 13).
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Beviláqua (apud MALUF, 1999, p. 75) nos ensina que “soberania é noção de
Direito Público Interno, mas aparece no campo do Direito Internacional, quando
o Estado já está constituído, e, conseqüentemente, já se apresenta com a sua
qualidade de soberano”. E continua Beviláqua: “o Direito Internacional respeita
a soberania, acata-a e o reconhecimento de um Estado pode (enquanto subsistir
essa prática) ser interpretado como declaração que os outros fazem, de que na
qualidade de soberano, pode ter ingresso na comunhão internacional”. Reza
De Plácido e Silva (1999, p. 763): “No conceito jurídico, entende-se como o
poder que se sobrepõe ou está acima de qualquer outro, não admitindo limitações, exceto quando dispostas voluntariamente por ele, em firmando tratados
internacionais ou em dispondo regras e princípios de ordem constitucional”.
Segundo Pinto Ferreira (apud MENEZES, 1996, p. 148), “a soberania é um
poder de decisão em última instância, é esta capacidade de impor a vontade
própria em última instância, necessariamente relacionada ao monopólio da
coação legal, constitui a sua autêntica essência ideológica”.
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Destaca-se, entre nós, a definição do eminente civilista Clóvis Beviláqua (apud
MALUF, 1999, p. 50): “O Estado é um agrupamento humano, estabelecido em
determinado território e submetido a um poder soberano que lhe dá unidade
orgânica.”
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A definição de povos segundo Felício (2004, p. 1957-77) é: “é reveladora do
fato de que, a diferença entre Estados e povos é enorme. Para Rawls, é o Estado
quem quer converter a sociedade à ‘sua’ religião. É ele quem quer aumentar o seu
império, conquistar território, ganhar prestígio e glória e aumentar a sua força
econômica. Portanto, os povos não só diferem dos Estados, mas se vêem ameaçados em sua segurança, pelo caráter expansionista do Estado contemporâneo. Os
povos têm direitos, um direito evidentemente coletivo, o da autodeterminação,
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no entanto, esses direitos, acaba no exato momento em que ele se constitui em
Estado. Os direitos coletivos dos povos que são o direito a um governo próprio,
aos recursos naturais, ao território, à própria cultura, à liberdade, se encerram
no confronto com a soberania do Estado. Estes direitos acabam por se reduzir
ao direito de se constituir como Estado e, ironia do sistema, se extinguem no
exato momento em que se constitui em Estado”.
Diz o filósofo: “o termo ‘povos’, então, tem a intenção de enfatizar essas características singulares dos povos como distintos dos Estados, tal como tradicionalmente concebidos, e destacar o seu caráter moral e a natureza razoavelmente
justa, ou decente, dos seus regimes. É significativo que os direitos e deveres
dos povos no que diz respeito à sua chamada soberania derivam do próprio
Direito dos Povos, com os quais concordariam juntamente com outros povos
em circunstâncias adequadas. Como justos ou decentes, as razões para a sua
conduta estão de acordo com os princípios correspondentes. Não são movidos
unicamente pelos seus interesses prudentes ou racionais, as chamadas razões de
Estado” (RAWLS, 2001, p. 35).
Segundo Rawls (2001, p. 35), “Devemos reformular os poderes de soberania à
luz de um Direito dos Povos razoável e negar aos Estados os direitos tradicionais
à guerra e à autonomia interna irrestrita.”
Afirma Rawls (2001, p. 35): “Esse Direito (dos Povos) restringirá a soberania
ou a autonomia interna de um Estado, o seu alegado direito de fazer o que
quiser dentro de suas fronteiras”.
“Os Direitos Humanos desempenham um papel especial no Direito dos Povos, na medida que restringem as razões justificadoras da guerra e põe limites
à autonomia interna de um regime. Assim, refletem as duas mudanças básicas
e historicamente profundas na forma como os poderes de soberania têm sido
concebidos desde a Segunda Guerra Mundial” (FELÍCIO, 2004, p. 196364).
Segundo Rawls (2001, p. 103): “Os Direitos Humanos são uma classe de
direitos que desempenham um papel especial num Direito dos Povos razoável:
eles restringem as razões justificadoras da guerra e põem limites à autonomia
interna de um regime.”
“Os Direitos Humanos, por serem distintos dos direitos constitucionais ou dos
direitos da cidadania democrática liberal, eles estabelecem um padrão necessário,
mas não suficiente, para a decência das instituições políticas e sociais. Ao limitarem o Direito nacional de sociedades com boa reputação em uma Sociedade
dos Povos razoavelmente justa, a classe especial dos Direitos Humanos tem
três papéis, quais sejam: seu cumprimento é condição necessária da decência
das instituições políticas de uma sociedade e da sua ordem jurídica; seu cumprimento é suficiente para excluir a intervenção justificada coercitiva de outros
povos, por exemplo, por meio de sanções diplomáticas e econômicas ou, em
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casos graves, da força militar; e, eles estabelecem um limite para o pluralismo
entre os povos” (FELÍCIO, 2004, p.1964).
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“A noção de direitos de cidadania vem ganhando cada vez mais densidade e
visibilidade e se a área de intersecção entre Direitos Humanos e cidadania tem
se expandido de forma sistemática, é porque vem se ampliando cada vez mais
o espectro de relações que ela (a cidadania) passou a englobar. A intensificação
das relações internacionais em escala intercontinental, a ameaça do potencial de
destruição atômico, o surgimento de uma consciência ecológica e o enfrentamento dos problemas relativos à preservação do meio ambiente, tudo isso vem
contribuindo para a emergência de uma idéia de interesses compartilhados no
âmbito do planeta” (FELÍCIO, 2004, p. 1959).
19
“No § 58 de ‘Uma teoria da justiça’ indiquei de que modo a justiça como equidade pode ser estendida ao Direito internacional para o propósito limitado de
julgar os objetivos e limites da guerra justa [...]. Devemos reformular os poderes
da soberania à luz de um Direito dos Povos razoável e negar aos Estados os
direitos tradicionais à guerra e à autonomia interna irrestrita. Além disso, essa
reformulação está de acordo com uma mudança drástica e recente no modo
como muitos gostariam de que o Direito internacional fosse compreendido.
Desde a Segunda Guerra Mundial, o Direito internacional tornou-se mais estrito
[...] tende a limitar o direito de guerrear de um Estado a casos de autodefesa e
a restringir o direito de soberania interna dos Estados” (RAWLS, 2001, p. 4,
35).
Referências
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BASTOS, C. R. Curso de teoria do estado e ciência política. 3. ed. São Paulo: Saraiva,
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De PLÁCIDO SILVA E. Vocabulário jurídico. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999.
FELÍCIO, C. B. de F. Da idéia de direito dos povos ao ideal de uma cidadania
cosmopolita: em torno do legado de john rawls. Revista Fragmentos de Cultura,
Goiânia, v. 14, n 11, p. 1957-1977, nov. 2004.
GOMES, L. F. (Org.). Constituição da república federativa do Brasil. São Paulo:
RT, 2004.
MALUF, S. Teoria geral do estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
MENEZES, A. Teoria geral do estado. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
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WIKIPÉDIA. A enciclopédia livre. Guerra fria. Disponível em: <http://pt.wikipedia.
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pt.wikipdia.org/wiki/ocupaçãodoiraque>. Acesso em: 22 mar. 2005b.
Abstract: this paper intens to discuss the notion of sovereign power in the society of the peoples
idealized by Rawls. Based on the concepts of sovereign found in the philosophical/legal tradition,
this work emphasizes the notion of sovereign controlled by human rights and fairness principles,
according to Rawls The law of peoples.
Keywords: sovereign, the law of peoples, the society of peoples, intenational law, Rawls
Artigo apresentado à Universidade Católica de Goiás, em abril de 2005, como exigência
parcial para obtenção do título de especialista em Filosofia Política, sob a orientação do Prof.
João da Cruz Gonçalves Neto.
RENATO FAGUNDES DE OLIVEIRA
Especialista em Filosofia Política pela Universidade Católica de Goiás. Graduado em Filosofia
e em Direito. Advogado. E-mail: [email protected]
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