Sobre a influência do pensamento oriental na metafísica da vontade

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Sobre a influência do pensamento oriental na metafísica da
vontade de Arthur Schopenhauer – um estudo introdutório
______________________________________________
Daniele da Silva Faria1
Resumo:
Esta comunicação pretende discorrer acerca da influência do pensamento oriental na filosofia de
Arthur Schopenhauer, tendo em vista compreender as dificuldades envolvidas na argumentação
schopenhaueriana acerca da relação entre as doutrinas do próprio filósofo e do pensamento
oriental na obra intitulada O mundo como vontade e como representação. O filósofo
Schopenhauer foi o primeiro pensador ocidental a fundamentar seu sistema filosófico numa
síntese entre princípios orientais (filosofia vedanta) e ocidentais (a teoria das Idéias de Platão e a
dicotomia fenômeno/coisa-em-si kantiana). Em primeiro lugar, trataremos do conceito de
Vontade (Wille), pois é a partir dessa noção que surge a pessimista concepção schopenhaueriana
de mundo como sofrimento. Tendo investigado questões acerca da natureza e da
cognoscibilidade da Vontade, não de modo a esgotar o assunto, mas com o propósito de
esclarecer os conceitos que servirão de base para a pesquisa aqui proposta, discursaremos acerca
da influência do pensamento oriental no sistema filosófico de Schopenhauer expondo dois
pontos de vista opostos: os de Bryan Magee e Moira Nicholls.
Palavras-Chave: Vontade. Pessimismo. Filosofia oriental. Princípio de individuação.
Introdução aos princípios da filosofia schopenhauriana
O filósofo Schopenhauer foi o primeiro pensador ocidental a fundamentar seu
sistema filosófico numa síntese entre princípios orientais e ocidentais (conceitos
desenvolvidos por Platão e por Kant). Como influência oriental, Schopenhauer tem em
vista, sobretudo, a filosofia vedanta, que fundamenta os dogmas de algumas formas das
religiões hindu e budista da Índia: “A filosofia de Kant, portanto, é a única cuja
familiaridade íntima é requerida para o que aqui será exposto. – se, no entanto, o leitor
já freqüentou a escola do divino Platão, estará ainda mais preparado e receptivo para
me ouvir. Mas se, além disso, iniciou-se no pensamento dos VEDAS (cujo acesso
permitido pelo Upanixade, aos meus olhos, é a grande vantagem que este século ainda
jovem tem a mostrar aos anteriores, pois penso que a influência da literatura sânscrita
não será menos impactante que o renascimento da literatura grega no século XV), e
1
Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de
[email protected]. Orientador: Profº. Dr. Oswaldo Giacóia Júnior.
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recebeu e assimilou o espírito da milenar sabedoria indiana, então estará preparado da
melhor maneira possível para ouvir o que tenho a dizer”2.
Nesse sentido, veremos que seu modo de pensar pode ser caracterizado como
uma filosofia de cunho pessimista, na medida em que afirma o mundo empírico como o
pior dos mundos possíveis, ou seja, um lugar onde o que é permanente é sofrimento e
felicidade, ou alegria, são estados efêmeros3. Mas por que a vida teria mais sofrimento
que felicidade? O filósofo diz ter captado, através da intuição intelectual, a essência do
mundo e essa essência ele chamou de Vontade (Wille), pois se assemelharia muito com
a vontade humana, quer dizer, essa essência metafísica do universo tem por
característica visceral desejar incessantemente, querer infinitamente. E ao gerar o
mundo fenomenal, e todas as coisas que nele existe, a Vontade objetivou-se em diversos
graus, quer dizer, em certos objetos ela está mais presente enquanto coisa-em-si do que
em outros. Essa essência primordial não pode ser múltipla, uma vez que multiplicidade
está subordinada a determinações espaço-temporal e causais, quer dizer, às formas puras
de intelecção e ao princípio de razão, portanto, só pode ser una4. Enquanto essência do
universo, ela não transcende o mundo aparente, mas manifesta-se nele como se lhe
servisse de uma outra face. Os fenômenos são objetivações da Vontade, a qual os
enxerga como se mirasse um espelho: “o único autoconhecimento da Vontade no todo é
a representação no todo, a totalidade do mundo intuído. Este é a objetidade, a
manifestação, o espelho da Vontade”5. Aprofundemos-nos ainda um pouco mais nos
fundamentos dessa filosofia.
A Vontade Metafísica
Como fora dito, o filósofo pressupõe em sua filosofia alguns princípios
estabelecidos por Platão, como a distinção entre as coisas visíveis e as inteligíveis (o
2
SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Como Representação. Tradução de Jair
Lopes Barbosa. São Paulo: editora UNESP, 2005. p. 23.
3
“Schopenhauer nos descreve o imenso terror que se apodera do ser humano quando, de
repente, é transviado pelas formas cognitivas da aparência fenomenal”. NIETZSCHE, F.W. O
nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução de Jacó Guinsburg. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
4
“Todas as partes da natureza se encaixam, pois é uma Vontade UNA que aparece em todas
elas”. SCHOPENHAUER, A. Op. Cit., p. 226.
5
Idem ibidem, pg. 232.
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que Kant também pressupõe com os nomes de fenômeno e coisa-em-si). As coisas
visíveis – isto é, a multiplicidade - num constante devir, proporcionariam o
conhecimento que não pode ultrapassar o nível da opinião (doxa). Por sua vez, aquilo
que é, logo, que nunca se transforma, são os arquétipos, ou seja, as Idéias, que são unas,
quer dizer, para cada tipo fenomenal existe uma Idéia, como se fosse um paradigma, a
partir do qual ele é derivado. Mas elas ainda não são a coisa-em-si. Embora o mundo
seja cópia e sombra das Idéias, estas, por sua vez, são objetidades da Vontade, ou seja,
são as manifestações da Vontade mais próximas da Vontade-em-si do que quaisquer
representações, pois as Idéias, bem como a Vontade, são eternas e imutáveis, dessa
forma, entre o mundo fenomênico e o numênico existem as Idéias - elas são
cognoscíveis, a Vontade não.
Para esse pensador, o mundo consiste em dois aspectos - nos quais notam-se
algumas semelhanças – o mundo como vontade e como representação. Enquanto
representação o mundo é representação de um sujeito, ou seja, o mundo enquanto
fenômeno é aparência, objeto, para um sujeito, nisso consiste a existência fenomênica, a
relação entre sujeito e objeto. Para conferir realidade objetiva a essa afirmação é preciso
complementá-la com uma outra: “o mundo é vontade”, ou melhor, “o mundo é minha
vontade”. Embora denominada com o nome de um fenômeno muito semelhante a ela,
ou seja, a vontade humana, a Vontade, enquanto em-si, em certa medida, nos é
desconhecida. A Vontade é um impulso cego e age sem qualquer fim, uma vez que os
fenômenos são condicionados, a Vontade não pode sê-lo, portanto, trata-se de uma coisa
sem fundamento, ou seja, incondicionada, livre. A causa e as origens desse impulso para
o filósofo são algo irrespondível.
Toda experiência sensível se submete a uma estrutura a priori (princípio de
razão) que está presente em cada indivíduo, que por sua vez é sujeito de conhecimento.
À essa estrutura, composta basicamente pelas categorias (ou formas) do pensamento e
pelas intuições puras do espaço e do tempo (as quais possibilitam a recepção da
diversidade empírica), submete-se o mundo fenomênico. O princípio de razão não nos
permitiria conhecer as coisas em si mesmas, não nos permitiria ter acesso à essência das
coisas, apenas à sua aparência. Portanto, não é através desse princípio que chegaríamos
a “conhecer” a essência.
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Assim como afirma Platão, para Kant o mundo se dividiria em dois lados: o
fenomênico (aparência) e o numênico (em-si). A metafísica de Schopenhauer se baseia
nessa dicotomia, mas o que no sistema filosófico kantiano é inacessível, Schopenhauer a
princípio, afirma ser cognoscível, em parte, através da “experiência da vontade
individual”, ou seja, é no agir do próprio corpo que a Vontade se manifesta e através
desses atos podemos conhecê-la, uma vez que o indivíduo no qual ela se manifesta é
sujeito do conhecimento e sujeito do querer. Mesmo se manifestando nos atos de um
corpo – os atos desse corpo são os mais próximos dos próprios atos da Vontade – não
podemos alcançá-la completamente, isto é, não podemos conhecer a vontade em si, pois
no momento em que, misteriosamente, manifesta-se no indivíduo, para poder conhecêla, ele tem de submetê-la ao menos, a uma das formas dadas a priori na intuição: o
tempo.
A metafísica da vontade se origina na experiência interna e externa,
encontrando-se no “ponto certo” (rechter Punkt) que é o corpo. O corpo como fonte de
conhecimento demonstra a especificidade do pensamento de Schopenhauer e a ruptura
com a tradição, cujo cerne espiritual agora se concretizara. As ações do corpo são as
próprias ações da vontade, o conhecimento desta se daria através da experiência interna
da mesma. Dessa forma, a metafísica da vontade se fundamenta no mundo da
experiência possível, e Schopenhauer demonstra ainda mais sua inovação no que diz
respeito ao modo de filosofar, situando o fundamento de sua própria metafísica na
experiência do mundo e no autoconhecimento, isto é, no conhecimento da vontade
individual no fenômeno do corpo6.
Assim como o mundo, o corpo também pode ser interpretado como
representação e vontade. Sendo representação ele é regido pelas leis do princípio de
razão suficiente que regem todos os objetos fenomênicos; por outro lado, corpo pode ser
visto como o único lugar no qual a Vontade enquanto essência pode se expressar
podendo ser conhecida, em parte, através de suas ações. As escolhas são atos que
passaram pelo crivo da razão, entretanto, uma vez que a Vontade constitui o caráter de
cada indivíduo, na medida em que se apresenta no mesmo, cabe à ela “permitir” que a
6
“A metafísica da vontade elege o corpo como o ponto certo do entrelaçamento da experiência
externa e interna, lugar onde o sujeito do conhecer e o sujeito do querer se identificam”.
RODRIGUES, E. V. F. Ética e teleologia na filosofia de Schopenhauer. Campinas: SP: [s.n.],
1999. p. 22.
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escolha feita através da razão seja efetivada. Portanto, a razão seria regida pela Vontade
e o fundamento de cada escolha dos indivíduos seria inconsciente. Ao contrário dos
outros sistemas filosóficos nos quais a razão ocupa o trono e impera sobre todo o mundo
– e conseqüentemente o homem é o rei, pois ocupa o mesmo lugar, visto que é o único
ser racional – na sistematização de Schopenhauer, a razão está subordinada à vontade
cega e indeterminada. Mas o filósofo não descarta o uso da razão, pois é através da
inteligência, satisfazendo a vontade individual, que é possível conhecer ao menos em
parte, a essência do mundo.
A Vontade, tal como essência, caracterizar-se-ia como um impulso cego,
irracional e infinito, isto é, um impulso que atua sem razão, sem um objetivo prédeterminado, que apenas quer e esse querer não tem fim. Ela manifestaria seu querer em
todos os objetos existentes no mundo, variando apenas em seus graus de manifestação, a
saber, desde o reino mineral, passando pelos reinos vegetal e animal até o homem - seu
grau mais elevado de objetivação. Em todos esses reinos a Vontade pode contemplar a
si mesma como a um reflexo no espelho, mas é no homem, no único ser capaz de
abstrair seus conceitos, imaginar, sorrir e chorar, que a Vontade encontra sua mais
perfeita objetivação.
Uma das causas que provocam sofrimento no mundo é essa diferenciação nos
graus de manifestação da Vontade. Os reinos, bem como as forças naturais (químicas,
elétricas, mecânicas e orgânicas) lutariam entre si pelo domínio da matéria, do espaço e
do tempo7. Tendo conhecimento dessa luta constante, seria impossível acreditar que a
felicidade é um estado duradouro, uma vez que se trata de um momento, de um estágio
do querer incessante da vontade. Uma vez satisfeito um desejo, há felicidade, uma vez
não satisfeito, há sofrimento e quando nada quer, há tédio8.
Apenas em alguns poucos momentos da vida, o homem pode descansar desse
tormento que é a vida. Durante a apreciação estética, em contato com alguma obra de
7
“Assim, em toda parte na natureza vemos conflito, luta e alternância da vitória, e aí
reconhecemos com distinção a discórdia essencial da Vontade consigo mesma. Cada grau de
objetivação da Vontade combate com outros por matéria, espaço e tempo”. Idem ibidem, p. 211.
8
“Uma tal cercania é como se fosse um apelo à seriedade, à contemplação com abandono de
todo querer e sua indigência: mas justamente isso confere a uma tal cercania solitária e
profundamente quieta um traço de sublime; pois, visto que não oferece objeto algum, nem
favorável, nem desfavorável à vontade ávida de ansiar e adquirir, permanece ali apenas o estado
da contemplação pura, e quem não é capaz desta será sacrificado com ignomínia vergonhosa ao
vazio da vontade desocupada, ao tormento do tédio”. Idem ibidem, p. 276.
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arte ou em contato direto com a natureza, o homem encontra um quietivo para a
vontade. Nesse momento, o conhecimento se separa da vontade e o homem deixa de ser
um indivíduo (ilusão que seu conhecimento produzia) para se tornar puro sujeito de
conhecimento e sem vontade, desinteressando-se pelo sensível, libertando-se do querer
imediatista da sensação. É nesse sentido que a arte ajuda o homem a se desprender do
sensível e a música, para o filósofo, por depender menos da matéria do que todas as
outras manifestações artísticas, seria a mais elevada dentre todas, pois proporcionaria o
maior desprendimento do mundo sensível. Contudo, a arte liberta o homem da vontade
somente temporariamente, cessada a apreciação artística, o homem torna a desejar, logo,
a sofrer.
A libertação completa do jugo da vontade se dá apenas através do ascetismo. O
santo se livraria definitivamente da ilusão da individuação renunciando voluntariamente
às duas fontes primordiais nas quais a vontade se manifesta, a saber, na sexualidade e na
fome. A partir da negação e da supressão de toda volição, o santo se desprende do
mundo sensível e de todo sofrimento9.
Schopenhauer nos diz que enquanto puro sujeito do conhecimento, o homem
tem a experiência da vontade. Então constata a natureza sofredora dessa essência
metafísica do mundo. Sua experiência interna da vontade somada à sua experiência
externa, fazem-no verificar que a vontade infinita e eternamente insatisfeita subjaz ao
mundo todo inclusive a ele mesmo e que todo sofrimento tem raiz na natureza infinita
da vontade. Nesse momento, todo sentimento de alteridade perde significação, o
princípio de individuação (chamado pelos hindus de Véu de Maia – terminologia que
Schopenhauer também utiliza) que fornecia a ilusão do “eu” e do “não-eu” não faz mais
sentido. É essa visão mística da unidade essencial do mundo que dará sentido para o
agir moral10.
9
Sendo a vontade fonte de todos os males, a contemplação artística e a negação da vontade são
investidas de caráter ético, pois libertam o homem (no caso da apreciação artística, não
eternamente) do sofrimento causado pela volição.
10
Sendo a individuação fenomênica uma ilusão, origem do erro do egoísmo, a verdade
metafísica apareceria na supressão da diferença entre o eu e o não-eu e a experiência da
compaixão efetivaria e fundamentaria a ética. “A compaixão vê-se investida, portanto, de uma
função metafísica essencial... a maldade consiste, em primeiro lugar, numa falta de verdade,
numa carência metafísica. Por conseguinte, a compaixão é “bifronte”e é dupla sua destinação:
por um lado funda a moral (justiça e caridade); por outro, abre-se para a essência última dos
seres.” Alain Roger, prefácio à Sobre o Fundamento da Moral, p. LXI.
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Tracemos agora um paralelo entre a filosofia schopenhauriana e o pensamento
oriental que o teria influenciado.
O pensamento oriental e sua influência sobre os pressupostos schopenhaurianos
Segundo Moira Nicholls em seu artigo intitulado “The Influences of Eastern
Thought on Schopenhauer’s Doctrine of the Thing-in-Itself”, Schopenhauer, após
defender sua tese de doutorado (Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão
Suficiente) teria entrado em contato com o pensamento oriental a partir de 1813, através
do orientalista Friedrich Majer, em Weimar. Essa hipótese é sustentada pelo fato de que
em sua tese de doutorado, o filósofo não faz qualquer alusão a filosofia oriental, além
do que, na primeira parte do século dezenove não havia muitas traduções confiáveis de
literatura oriental na Europa. Sendo assim, por volta de 1813-1814, Schopenhauer teria
investigado, sobretudo, o pensamento hindu (só teria se aprofundado no pensamento
budista a partir de 1818). No primeiro volume de O Mundo havia oito referências ao
pensamento budista (dentre as quais cinco foram adicionadas em versões tardias
daquele volume – 1844 e 1859) e cinqüenta referências ao pensamento hindu (das quais
sete foram adicionadas depois). Já no segundo volume (publicado em 1844) haveria ao
menos trinta referências ao budismo e quarenta e cinco ao hinduísmo. Isso demonstra o
crescente interesse pelas doutrinas budistas a partir de 1818 e o consistente
conhecimento do pensamento hindu a partir de 1813 até sua morte em 186011.
Nicholls demonstra que teria havido três notáveis mudanças a partir de 1818
(quando ele escreve sua obra capital O Mundo como Vontade e como Representação) no
pensamento de Schopenhauer:
A primeira diz respeito ao que ele afirma sobre a cognoscibilidade da
coisa-em-si, a segunda diz respeito ao que ele afirma sobre a natureza
da coisa-em-si, e a terceira diz respeito a sua tentativa explícita de
assimilar suas próprias doutrinas do que pode ser dito sobre a coisaem-si com doutrinas orientais12.
11
“Nos últimos quarenta anos a literatura indiana cresceu tanto na Europa que se eu agora
quisesse completar essa nota para a primeira edição, ocuparia várias páginas”. Schopenhauer,
apud, JANAWAY, op. Cit., p. 177.
12
Tradução minha do original em inglês. JANAWAY, C. (Org.). The Cambridge Companion to
Schopenhauer. Cambridge: University Press, p. 171
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O filósofo afirmara que podemos ter conhecimento da Vontade, ou vontade de
viver, através da intuição direta na autoconsciência, pois temos todos a Vontade
manifestada em nós mesmos. Entretanto, posteriormente, ele vai afirmar que na verdade
no autoconhecimento, tudo o que podemos intuir são apenas fenômenos da vontade e
não ela em si mesma:
[...] ninguém pode reconhecer a vontade-em-si através do véu das
formas da percepção, por outro lado, todos a carregam dentro de si,
na verdade, ele próprio é a vontade, assim, na autoconsciência ela
deve ser de alguma forma acessível a ele, embora ainda apenas
condicionalmente13.
Essa passagem demonstra a influência do pensamento kantiano a respeito da
coisa-em-si sobre Schopenhauer, ao mesmo tempo em que demonstra o seu
distanciamento, na medida em que afirma que a vontade pode ser conhecida em parte.
A respeito da natureza da Vontade, Schopenhauer afirmara que enquanto em-si
ela seria una e se caracterizaria como vontade de viver, entretanto, mais tarde, ele vai
afirmar que a Vontade possui múltiplos aspectos - demonstrando o início da influência
oriental em seu pensamento - um deles é a vontade, num sentido metafórico, os outros
aspectos são objetos de conhecimento para místicos, santos, ascetas, enfim, para todos
aqueles que negaram a vontade. A respeito da negação da vontade, na primeira edição
de O Mundo, Schopenhauer tenta deixar evidente a diferença entre seu sistema e o
pensamento oriental:
E isso é preferível a escapar-lhe, como o fazem os indianos através de
mitos e palavras vazias de sentido, como reabsorção em BRAHMA
ou o NIRVANA dos budistas. Antes reconhecemos para todos
aqueles que estão ainda cheios de Vontade, o que resta após a
completa supressão da Vontade é, de fato, o nada. Mas, inversamente,
para aqueles nos quais a Vontade virou e se negou, este nosso mundo
tão real com todos os seus sóis e vias lácteas é – Nada14.
13
Schopenhauer, apud JANAWAY, C. Op. Cit., p. 173.
SCHOPENHAUER, 2005, p. 519. Esse trecho serve para corroborar o sentimento de sistema
original de Schopenhauer, que não afirma as influências orientais de modo algum em seu
pensamento.
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Já no segundo volume do Mundo (publicada em 1844) o filósofo demonstrou
que sua concepção do Nirvana budista mudara e traça paralelos entre sua doutrina de
negação da vontade e a noção de nirvana.
Nicholls afirma que as principais referências sobre literatura oriental de
Schopenhauer foram adquiridas através de jornais asiáticos. A partir deles, o filósofo
teria entrado em contato com escritos clássicos do hinduísmo como os Oupnek’hat, os
Vedas, os Puranas15 e o Bhagavadgita de uma tal forma que o teria impressionado
profundamente: “isso (os Oupnek’hat) é a leitura mais profícua e sublime que é
possível no mundo, tem sido a consolação da minha vida e será a da minha morte”16.
Ao modo de ver de Nicholls, ao qual estou mais inclinada, a leitura desses textos
influenciou de maneira visceral a metafísica da Vontade de Schopenhauer - vide o que
foi dito acima a respeito das três mudanças consideráveis no pensamento do filósofo
acerca da cognoscibilidade da Vontade, da natureza da Vontade e da própria relação do
filósofo com os textos orientais - que na medida em que lia esses textos, encontrava
concordâncias com seus próprios pressupostos filosóficos17 sem, no entanto, afirmar ter
sido influenciado pelos dogmas hindus e budistas. Bryan Magee está mais inclinado a
acreditar num sistema original de Schopenhauer:
A idéia de que o pensamento oriental influenciaria de um modo
decisivo a conformação da filosofia de Schopenhauer não é só um
erro, passa por alto do fato fundamental de que, na obra de Kant e
Schopenhauer, a corrente principal da filosofia ocidental chegou a
conclusões acerca da natureza da realidade surpreendentemente
similares a algumas das propugnadas pelas religiões ou filosofia mais
bem místicas do oriente, mas por um caminho inteiramente
diferente18.
O argumento de Magee é compreensível e tem fundamento, pois de fato,
Schopenhauer está enraizado numa tradição racionalista e inserido num contexto de
grandes descobertas físicas e matemáticas – além de afirmar que se sente muito
lisonjeado por encontrar pressupostos similares aos seus em sistemas filosóficos tão
antigos quanto os orientais, mas que em nada o influenciou:
15
São uma coleção de lendas que dizem participar do quinto veda.
Schopenhauer, apud JANAWAY, C. op. Cit., p. 178.
17
Cf. nota 1 desse texto.
18
MAGEE, B. Schopenhauer. Coleción Teorema. Tradução minha do espanhol, p. 341.
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[...] seria um prazer para mim ver minha doutrina em tão
conformidade com uma religião que a maioria dos homens da terra
sustentam...E essa concordância deve ser mais agradável para mim,
ainda que em minha filosofia, eu certamente não tenha estado sob sua
influência19.
Dessa forma, quando o filósofo diz ter intuído a essência do universo, ele não
quis dizer que passou por uma experiência mística e ultrapassou o véu de Maia hindu,
ou alcançou o nirvana budista, mas através da própria inteligência, ele intuiu o nada que
consiste a realidade: “toda INTUIÇÃO não é somente sensual, mas também intelectual,
ou seja, puro CONHECIMENTO PELO ENTENDIMENTO DA CAUSA A PARTIR
DO EFEITO”20.
Embora sua fonte de conhecimento não tenha sido a mística, Schopenhauer
afirma num escrito de 184921 que já aos seus 27 anos (1814) todos os pressupostos de
seu sistema já estavam estabelecidos. Considerando-se que foi em 1813 que ele entrou
em contato com as idéias hindus, esses ideais já estariam, portanto, presentes no
pensamento do filósofo.
Referências
MAGEE, B. Schopenhauer. Coleción Teorema.
JANAWAY, C. (Org.). The Cambridge Companion to Schopenhauer. Cambridge:
University Press.
NIETZSCHE, F.W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução de
Jacó Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
RODRIGUES, E. V. F. Ética e teleologia na filosofia de Schopenhauer. Campinas:
[s.n.], 1999.
SCHOPENHAUER, A.. O Mundo Como Vontade e Como Representação. Tradução de
Jair Lopes Barbosa. São Paulo: editora UNESP, 2005.
_______________. Sobre o fundamento da Moral. Tradução de Maria Lúcia M.O.
Cacciola, Martins Fontes, 1a edição, São Paulo, 1995.
19
Cf. JANAWAY, op. Cit. p. 180
SCHOPENHAUER, 2005, p. 55.
21
Cf. JANAWAY, op.cit. p. 181.
20
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23
VECCHIOTTI, I. Schopenhauer. Tradução de João Gama. In: Biblioteca Básica de
Filosofia. Lisboa: Edições 70, 1986.
Vol. 1, nº 1, 2008.
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