Renault, Odebrecht e Alcatel: representações do outro e o problema do inconsciente nas empresas. François Sou lages esteve na ESPM para proferir uma palestra a convite do Centro de Altos Estudos em Propaganda e Marketing (CAEPM). Professor e diretor de pesquisa da Universidade de Paris VIII, Soulages articula funções de consultor de empresas com a direção do Colégio Irônico do Instituto Nacional de Áudio-visual (INA). Ele ainda é criador do Centro de Estudos Imagem, Inconsciente e Empresa, responsável pelo desenvolvimento de proposta transdisciplinar de análise de problemas organizacionais que articula psicanálise, gestão e sociologia das organizações. Boa parte dos pressupostos de tal abordagem está presente em alguns de seus livros, como "Comunicação na Empresa" e "Desejo de Imagem e Empresa". Ao ser convidado para o encerramento da apresentação dos resultados parciais dos projetos de pesquisa financiados pelo CAEPM, François Soulages aproveitou para expor, em linhas gerais e se servindo de vários exemplos, alguns aspectos dessa arriscada junção entre teoria psicanalítica e análise de problemas empresariais. Conceitos como inconsciente organizacional e desejo de imagem foram os elementos centrais que guiaram a tônica das discussões. A seguir, alguns dos principais momentos da conferência: Para uma organização sobreviver, é preciso poder representar o outro A representação do outro é uma questão decisiva em toda e qualquer organização. É fácil compreender isso, até porque podemos imaginar que uma pessoa teria muita dificuldade se não tivesse uma representação de si mesma e nenhuma representação dos outros no interior de uma organização. Se para um indivíduo já é um problema grave, para uma organização é ainda mais. Dessa forma, tentar entender a representação do outro na organização implica, ao mesmo tempo, tentar compreender esse outro que está em nós mesmos. Nesse sentido, insistiria que, para sobreviver, uma organização, qualquer que seja, precisa saber quem será o outro amanhã. Patologias empresariais A grande dificuldade que as instituições têm é transformar-se em outro, aceitar-se como outro, ou seja, não se identificar como imagem presente de si mesma que parece bloquear o desenvolvimento da organização. Muitas vezes, essa imagem perene é negativa. Isso significa que temos organizações com um funcionamento neurótico em relação a elas mesmas, isto é, preferem permanecer tal como são, em sofrimento e deca- Coordenação editorial CAEPM Centro de Altos Estudos de Propaganda e Marketing - Participaram desta edição Manolita Correia Lima e Ricardo Zagallo Camargo dência, do que se transformar em uma outra organização. São empresas aparentemente doentes ou disfuncionais, empresas em que a angústia e a colocação reiterada de projetos que nunca conseguem ser realizados põem em cheque a rentabilidade. São empresas em que o disfuncionamento é crônico. Eu fui consultor de algumas editoras onde, por exemplo, a má gestão do tempo aparecia como um dado da cultura da empresa, como se fosse aceitável que um manuscrito demorasse três anos para ser publicado, como se fosse possível, em um mundo de acirrada competitividade, pensar que há um tempo muito longo entre a decisão sobre um trabalho, sua viabilização e execução. Sabíamos que havia problemas, mas não conseguíamos compreender que o problema talvez derivasse de uma espécie de gestão neurótica do tempo ao qual a empresa se vinculava de uma forma essencial. O problema dessa organização consistia em formular respostas falsas a problemas reais. São essas respostas que são sua doença. Vocês percebem que o problema não é encontrar uma nova resposta, mas impor uma nova atitude à compreensão dos problemas. Isso significa que representar a alteridade, uma outra concepção de ordem no interior de uma organização, é, muitas vezes, a maneira que ela tem de assegurar o seu futuro. Gestão psicótica Bion (Wilfred Bion e Elliot Jacques, psicanalistas britânicos, estudaram o funcionamento de empresas nos anos 40, no contexto da fundação do Instituto Tavistock em Londres) tentava explicar algumas empresas a partir de. noções como psicose e paranóia de grupo. São formas extremas que uma organização pode desenvolver para não se confrontar com seus problemas. Faz-se uma representação caricatural do outro e uma representação supervalorizada de si. No interior de si, a empresa se pensa como algo totalmente unido, homogêneo, orgânico. Mas com isso perde a possibilidade de estabelecer conflitos criativos com a realidade, todo o potencial de desenvolvimento fornecido pelo fracasso no contato com a real idade exterior. Por outro lado, projetamos no concorrente o mesmo tipo de imagem que temos de nós mesmos; isso nos impede de compreender melhor quais são as estratégias da concorrência. O resultado é um conjunto de ações de pouco efeito nas vendas e na motivação de colaboradores, entre outras coisas. Mas vocês podem perguntar: por que certas empresas preferem funcionar com esse tipo de lógica? Como elas podem sustentar-se nessa situação? Bem, o que se perde na relação com a realidade se ganha na relação interna, no exercício contínuo de chamado à unidade no interior da empresa. Por isso, meu primeiro conselho é: sempre devemos ser vigilantes e desconfiar dessas empresas que são muito consensuais, que 42 não cansam de propagar o discurso de funcionários que estão sempre muito bem. Precisamos fazer uma auditagem sobre esse tipo de funcionamento, a fim de permitir que a empresa saia desse tipo de situação. Uma consultoria de empresa dessa natureza não deve dizer o que fazer, mas revelar a realidade com a qual ela precisa se confrontar. A empresa é um outro; significa que muitas vezes pode com ela mesma e conjunto social como qualquer ela tem o mesmo tipo de risco, preferir ter uma relação ilusória seus clientes em vez de correr certos riscos. Empresas e inconsciente organizacional Colocar o dedo em questões vinculadas ao inconsciente da empresa é, muitas vezes, colocar o dedo em questões que a empresa prefere deixar reprimidas. Acredito que é impossível tentar explicar a imagem de um produto, homem, marca ou empresa sem levar em conta a questão do inconsciente. Podemos ver, por exemplo, que o inconsciente do fundador da empresa continua a existir por meio da estrutura empresarial mesmo que esse fundador tenha desaparecido há mais de 20 anos. Outras vezes o inconsciente de uma empresa é marcado por situações traumáticas que continuam a produzir efeitos décadas depois. Isso faz com que o executivo da empresa acabe sendo obrigado a repetir uma espécie de sintoma social mesmo sem perceber, porque esse sintoma dissimula os processos secundários e os núcleos traumáticos da empresa. O executivo acaba, assim, conduzindo alguma coisa cujo motor ele ignora. É necessário interpretar esse processo secundário para encontrar o que está presente, desbloqueando a resistência à mudança. Um exemplo que me parece bastante forte nos é fornecido pela Renault. A Renault tentou várias e várias vezes entrar no mercado norte-americano e fracassou em todas elas. Não há razão técnica para explicar esse fracasso, já que a linha de veículos da empresa é competitiva e o que surpreende é a repetição da história, ou seja, o fato de a todo o momento acharem que podia funcionar, mas nunca funcionava. No entanto, percebam como há alguns elementos traumáticos na história da Renault que podem auxiliar na compreensão de certas "inibições". A empresa teve, como pai fundador, Louis Renault, um inventor genial que produziu carros de alta qualidade até os anos 40. A partir dos anos 40, sob o governo de Vichy (Governo francês, presidido pelo Marechal Petáin, durante a 2a Guerra Mundial, entre 1940 e 1944), ele entrou no ramo da indústria de armamentos, o que lhe rendeu, após o final da guerra, o encarceramento por colaboração com os alemães, o que não é exatamente a regra da história francesa. O pior é que ele foi encontrado morto na cadeia e não se sabe se foi assassinato ou suicídio, mas há algo de sombrio a esse respeito. A reação à morte desse "pai fundador" foi a transformação da empresa, anteriormente privada, em empresa estatal, com o Estado francês ocupando o lugar que era de Louis Renault. Uma França fechada sobre si mesma, que tinha sido libertada exatamente pelos norte-americanos, como se o preço a pagar pela continuidade da indústria automobilística francesa fosse o não retornar ao país dos libertadores. E claro que não é usando duas ou três imagens e contando algumas histórias que poderei convencêlos desse fato, mas realizamos investigações precisas e detalhadas acerca da história da empresa para compreender o que estava em jogo. Percebemos como algo dessa história provocava certa inibição e receio que se traduzia na incapacidade de lidar com esse grande "outro" para a França, que é o mercado norte-americano. Lembremos ainda que, por ter esse passado estatal, a Renault aparece para si mesma como uma empresa que se diz, acima de tudo, francesa, portadora da cultura francesa. O problema de inserção no mercado norte-americano se transforma assim em problema cultural mediado por certas representações organizacionais produzidas de maneira traumática que funcionam como um inconsciente da empresa. Por tudo isso, insisto que há relação profunda entre a cultura francesa, uma empresa francesa vinculada à história do país, e a maneira como ela vende automóveis. Um desejo de imagem Essa é uma dimensão que nunca podemos ignorar se quisermos compreender as organizações. O desejo de imagem, que habita tanto o sujeito individual quanto uma organização, é o desejo que visa a perpetuação de uma imagem que, muitas vezes, vale mais do que a própria realidade. Pode ser o desejo de uma imagem nova, ideal, impossível, de si mesmo ou do outro, de um objeto ou de uma situação. Ele trabalha no sujeito sem que o mesmo seja consciente. Não é raro que o sujeito invente motivos e construa racionalizações, muitas vezes pseudocientíficas, para denegar esse tipo de desejo, que vai se articular em seu inconsciente. Quando o desejo de imagem fala mais alto A organização é composta por perfis de pessoas adequados para entrar e outros para sair. O problema é quando a empresa resolve empregar alguém devido a certo desejo de imagem. Vamos empregar alguém porque essa pessoa vai se adaptar a um desejo de imagem que gostaríamos de ver projetado nela. Nós só podemos ficar decepcionados com isso. O outro estará sempre aquém do nosso desejo de imagem. Posso contar um exemplo: certa vez participei do processo seletivo de alto executivo para uma grande empresa. Um dos candidatos era originário da Escola Politécnica, uma das mais prestigiadas da França, e era, ao mesmo tempo, arquiteto e doutor em filosofia aos 32 anos. Parecia ser alguém brilhante e portador de todas as qualidades requeridas. No entanto, meu parecer foi negativo. Questionei quanto tempo ele ficaria na empresa até procurar outra atividade. Essa pessoa foi selecionada e, infelizmente, eu tinha razão: ela não conseguiu fazer aquilo para o que foi empregada. O problema é que as pessoas da empresa tinham um desejo de imagem de alguém que correspondia àquela pessoa, alguém vindo de uma grande escola, com uma bela formação. Quando uma empresa é capaz de representar a si mesma como um outro Um belo exemplo de empresa que conseguiu ultrapassar uma lógica bloqueadora a partir do momento em que começou a representar a si mesma como um outro é a Renault. Antes da vinda de Carlos Gosh, brasileiro e libanês, a Renault tinha dois problemas: como ia reorganizar a produção e qual o tipo de automóvel que iria particularizar. Antes da morte do fundador, a empresa produzia carros de elite, muito bem vendidos. Após sua morte, a empresa ficou um pouco mais modesta, começando a fabricar carros populares e de tamanho médio. Por outro lado, ela também produzia carros de Fórmula 1, com excelente desempenho. No ano passado, ela chegou a vencer o campeonato mundial de Fórmula 1. Vocês podem observar que há uma espécie de buraco na linha de produção. Falta uma linha mais forte de produtos, de carros de ponta, entre os populares e a Fórmula 1. O que significa esse buraco que impede a Renault de possuir uma linha competitiva capaz de competir com a BMW ou com a Mercedes? Vejam, se a Renault produzisse apenas carros populares e de médio porte haveria certa coerência, e se apenas trabalhasse na Fórmula 1 também teria coerência. Mas pensar uma organização é pensar coerência. Não se pode administrar de maneira satisfatória um processo produtivo que é completamente dividido, a não ser que façamos algo da ordem da terceirização ou da divisão das duas linhas de montagem em empresas distintas. Esse foi o desafio que Carlos Gosh colocou a si mesmo: reconstruir a linha de montagem, colocar todas as pérolas na seqüência do colar e, com isso, estamos no coração do problema da Renault hoje. O interessante é que apenas um estrangeiro poderia assumir esse problema histórico e enunciá-lo. Talvez seja necessário duas vezes um outro para pensar a linha de produção da Renault. Não é por acaso que alguém deve vir do Líbano e do Brasil para ser capaz de reconstruir certa coerência na linha de produção da.Renault. Quando a empresa convidou Carlos Cosh, ela reconheceu que havia uma alteridade no seio de si mesma. Ela reconheceu que havia um problema nunca abordado em 60 anos, uma história de família que precisava ser reorganizada. Mas para resolver um problema de família, sempre é necessário alguém de fora. O inconsciente da Odebrecht A Odebrecht é um caso formidável para entendermos a partir da teoria do inconsciente organizacional. Uma coisa fundamental para compreender a empresa, suas peculiaridades e sucessos, é a figura do pai fundador e de seus desejos, esse alemão que chegou a convite do imperador. Devemos estar atentos à maneira com que situações dessa natureza interferem na própria constituição de imagem que a empresa tem de si mesma. Isso talvez possa nos levar a compreender a importância do luteranismo na fundação da Odebrecht e no seu funcionamento atuai. Acredito que o luteranismo revisto pelo fundador foi o que permitiu a essa empresa arquitetar estrutura organizacional na qual cada membro colaborador tem autonomia invejável. Há uma capacidade de tomar decisões, estabelecer ações sem, necessariamente, se reportar ao número 1 da empresa, que talvez só possa ser entendido por meio do luteranismo que se expressa na lógica própria à estrutura organizacional da empresa. Lembremos, a esse respeito, que a Odebrecht é uma empresa familiar que não tem algo como uma "carta de regras familiares", ou seja, regras nas quais se decide, por exemplo, que o primo incompetente nunca será o responsável pela gestão dos campos petrolíferos e coisas dessa natureza. Isso significa uma confiança na responsabilidade individual e no senso de obrigação que talvez só seja explicável a partir de uma certa ética luterana de trabalho. A Alcatel e os dois corpos do executivo A Alcatel apresenta situação totalmente diferente. Ela é uma empresa que funcionava muito bem, mas que ficou totalmente desestabilizada devido a uma queda brutal na Bolsa de Valores. A desestabilização se desenrolou em dois tempos. No momento em que alguns chefes de empresa estavam ameaçados de serem assassinados, a Alcatel gastou verdadeira fortuna em reformas e melhorias de segurança na casa privada do líder. Essa informação foi divulgada tanto pelo serviço secreto quanto por concorrentes. O resultado é que uma medida de segurança elementar foi vista como uma espécie de desvio de dinheiro. Esse fato fez com que o responsável pela empresa fosse desestabilizado de tal maneira que pediu demissão e chegou a permanecer alguns dias na cadeia. Isso passou a imagem de falta de clareza na enunciação dos meios da empresa. Nesse caso, nunca chegou à imprensa que se tratava de medida necessária de proteção do chefe e, a partir desse momento, uma espécie de doença aflorou na empresa. Vocês percebem muito facilmente que empresas onde o corpo do chefe é colocado em questão se transformam rapidamente em empresas doentes. Ernst Kantorowicz escreveu há tempos um livro chamado "Os dois corpos do rei" e poderíamos dizer que, de fato, há dois corpos do dirigente de empresa. Mas vejam, não estou querendo dizer aqui que tudo na empresa se resume a problemas de ego e pequenas histórias. No entanto, não adianta agir como se essas pequenas histórias não existissem e não deixassem marcas, muitas vezes, decisivas. Comprar o outro Todos vocês sabem que não compramos um produto, mas uma cultura, um modo de vida, um modo de inserção social. Isso vale para todo e qualquer elemento que possamos comprar. Por exemplo, quando entramos em uma instituição educacional, não compramos simplesmente um curso, compramos um modo de vida, uma relação com o mundo e um processo de formação. Sendo assim, uma boa pergunta para nosso mundo globalizado é: as pessoas compram em uma perspectiva global ou elas vão tentar se apropriar do produto para desenvolver seus "comunitarismos"? Tomemos o exemplo dos produtos de viagens e turismo, seja o turismo nacional ou internacional. Sabemos que quando compramos um produto turístico compramos muito mais do que um lugar para dormir, viajar e nos divertir. Nós compramos uma representação do outro. Mas podemos colocar uma questão: ao comprar um pacote de turismo, vamos nos apropriar dos aspectos "comunitaristas" desse produto e absorver isso na nossa própria noção do eu ou nós vamos tentar desenvolver um problema vinculado à alteridade, o problema da representação do outro? Eu acredito que para dar conta desse tipo de questão precisamos analisar casos precisos, de forma detalhada, para ver como cada qual responde. Esse me parece um campo muito promissor. Eu gostaria muito de saber, por exemplo, o que os brasileiros que vão à Alemanha vão comprar. Um desejo de sucesso? O que está em jogo nesse deslocamento? Fonte: Marketing, n. 401, ano 40, p. 41-44, jun. 2006.