Glomerulonefrite após transplante renal em Síndrome de Alport

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J. Bras. Nefrol. 1995; 17(1): 55-58
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Glomerulonefrite após transplante renal em Síndrome de Alport relato de caso
JoséOsmardeAbreuMedinaPestana,HelioTedescoSilvaJr,HorácioAjzen, AparecidoBernardoPereira,Luiz
Antonio Moura
O transplante renal tem sido realizado com sucesso nos pacientes com insuficiência renal terminal após Síndrome de Alport. Todavia, alguns pacientes desenvolvem glomerulonefrite devido a
formação de anticorpos anti-membrana basal em resposta a antígenos presentes no enxerto e
ausentes no rim nativo. Este trabalho relata o caso de paciente com Sindrome de Alport que
recebeu aloenxerto renal. Após 7 meses de função renal adequada o paciente perdeu o enxerto
devido a glomerulonefrite proliferativa crescêntica mediada por anticorpos anti-membrana basal.
O uso de ciclosporina havia sido suspenso algumas semanas antes do evento o que nos leva a
não recomendar a suspensão programada da ciclosporina em transplante renal de pacientes com
Síndrome de Alport.
Disciplina de Nefrologia da Escola Paulista de Medicina
Endereço para correspondência: Dr. Osmar de Abreu M. Pestana
Escola Paulista de Medicina
Rua Botucatu 740 -Vila Clementino - São Paulo - SP
Transplante, Sindrome de Alport, anticorpos anti-membrana basal
Transplantation, Alpport’s syndrome, anti-basement membrane
antibodies
A Síndrome de Alport (S. Alport)1 representa um grupo
heterogêneo de nefrite hereditária com freqüência estimada
em 1 entre cada 5000 nascidos. É caracterizada por combinações de graus variados de hematúria recorrente ou persistente,
proteinúria, deterioração progressiva da função renal e surdez
neuro-sensorial. Estas alterações podem ser acompanhadas
por lesões oculares, disfunções cerebrais, polineuropatia, anormalidades plaquetárias, hipoparatiroeidismo e alterações no
metabolismo do colágeno.2
A descrição de Alport em 1927,1 foi reconhecida como
Síndrome em 1961, com características genéticas próprias e
um substrato anátomo-patológico considerado como específico. A nefropatia hereditária tem várias formas entre
autossômicas dominante ou recessiva, ou ainda relacionada ao
cromossoma X. O sexo masculino apresenta nefropatia com
evolução mais freqüente e precoce para insuficiência renal
crônica terminal (IRC).3,4
A patogênese da Síndrome de Alport tem sido relacionada à incapacidade do indivíduo em sintetizar todos os componentes do colágeno da membrana basal glomerular (MBG), e
recentemente várias mutações no gene COL4A5 foram
identificadas e consideradas responsáveis pelo desenvolvimento da Síndrome de Alport.3,5 Em relação ao transplante renal
embora exista a possibilidade de deposição linear de Ig na
membrana basal, a sobrevida do enxerto é semelhante ao
transplante em outras patologias renais, e também na
Síndrome de Alport, o transplante renal constitui-se na melhor opção terapêutica.5,6
Neste relato de caso, os autores apresentam um paciente
com Síndrome de Alport e insuficiência renal crônica que recebeu um aloenxerto renal e evoluiu no pós operatório com
glomerulonefrite crescêntica no rim transplantado por
anticorpo anti-MBG.
Apresentação do caso
PLS, 24 anos, masculino, branco, natural de São PauloCapital. Aos 5 anos de idade, apresentou um episódio de
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prednisolona foi necessária para controlar um novo episódio de rejeição aguda,
possivelmente relacionada a infecção
por citomegalovírus. Por volta do 3º
mês de pós transplante o paciente apresentava-se bem clinicamente e com
níveis séricos de creatinina de 1,3 mg/
dl, quando então foi suspensa a
ciclosporina baseado em protocolo de
suspensão programada desta droga.
No 7º mês de pós transplante observou-se uma elevação progressiva da
creatinina sérica de 1,3 até
4 mg%
com proteinúria de 1,5 g por 24 horas e
complemento sérico normal. O exame
de sedimento urinário mostrou por
campo 40 leucócitos e 70 hemácias.
Biópsia renal percutânea foi realizada e o exame histológico evidenciou
glomérulos com extensas crescentes ceFigura 1 - Glomérulo com tufo capilar retraído, circundado por volumosa crescente celular circunferencial (PAS - 400X).
lulares circunferenciais, com alças capilares retraídas e comprimidas pela proliferação extra-capilar. No interstício
hematúria macroscópica, dias após a um quadro infeccioso de
identificavam-se focos de infiltrado linfo-mononuclear com
orofaringe. Seis anos após foi detectado novo episódio de
tendência de localização peri-glomerular. Focos de atrofia
hematúria macroscópica associado a proteinúria de 3,8 g/24h,
tubular e fibrose intersticial discreta foram também observasendo por isso internado e submetido à biópsia renal. A análidos. Os vasos arteriais e arteriolares não apresentavam partise dos 11 glomérulos da amostra evidenciou discreto grau de
cularidades (figura 1). A imunofluorescência direta revelou deproliferação mesangial. Um glomérulo contrastando com os
pósitos lineares em alças capilares contendo IgG, em menor
demais apresentava acentuada proliferação endocapilar com
grau, componente C3 do complemento (figura 2). Presença
aspecto lobulado. As estruturas vasculares, tubulares e
ainda de depósitos irregulares de fibrinogênio em espaço de
intersticiais estavam preservadas. A imunofluorescência foi
Bowman, relacionados com as crescentes. O soro do paciente
negativa. Não foi realizado estudo por microscopia eletrônica.
incubado com fragmento de rim humano normal também
Durante os próximos 7 anos o paciente procurou assistência
mostrou à imunofluorescência indireta depósito linear de IgG
médica irregularmente e apresentou queda progressiva da funem alças capilares glomerulares.
ção renal. Aos 18 anos iniciou tratamento dialítico, inicialmenO paciente foi submetido a 5 sessões de plasmaferese sete diálise peritoneal e posteriormente hemodiálise, sendo
guido de reintrodução da ciclosporina. Nova biópsia renal foi
transferido 2 anos depois para a Unidade de Transplante Rerealizada 20 dias após e mostrou glomérulos em sua maioria
nal da Escola Paulista de Medicina. Nessa época foi detectada
esclerosados, com crescentes fibrosas e rotura freqüente da
deficiência auditiva do tipo neurológico sensorial e alterações
membrana basal da cápsula de Bowman. Os túbulos encontraoftalmoscópicas do tipo lentecone anterior.
vam-se com atrofia marcante, circundados por fibrose
Em outubro de 1989, o paciente recebeu um rim de seu
intersticial difusa e focos de infiltrado de mononucleares.
pai que apresentava uma avaliação clínica pré-transplante
Sem resposta às medidas adotadas, a deterioração da funcompletamente normal. O esquema imunossupressor instituíção renal teve um curso rapidamente progressivo e o paciente
do baseou-se na Prednisona, Azatioprina e Ciclosporina. No
foi reintroduzido ao programa hemodialítico 8 meses após o
5º dia após o transplante, apresentou episódio de rejeição agutransplante.
da que respondeu satisfatoriamente a pulsoterapia com metilprednisolona (1,0 g/d) durante 5 (cinco) dias. Recebeu alta
Discussão
hospitalar no 14º dia do pós-operatório. Semanas mais tarde
Os resultados obtidos com o transplante renal no trataapresentou quadro clínico de infecção por citomegalovírus.
mento da uremia que se desenvolve em paciente com
No 45º dia pós transplante outra pulsometria com metil-
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Síndrome de Alport não diferem daqueles observados em pacientes com outros
grupos de doenças renais.5,6 Neste relato
de caso os autores descrevem um paciente com Alport cujo rim transplantado,
após apresentar bom funcionamento
nos primeiros meses desenvolveu um
quadro de glomerulonefrite por
anticorpo anti-MBG. A fisiopatogenia
deste enxerto está relacionada à alteração na estrutura do colágeno da membrana basal, o que determina uma incapacidade do paciente em sintetizar todos
os componentes antigênicos desta membrana. A ausência deste componente da
MBG é característica ultraestrutural de
Síndrome de Alport5 sendo resultante de
variadas aberrações já identificadas no
gene COL4A5.3,7 O desenvolvimento
desta forma de glomerulonefrite nestes
Figura 2 - Imunofluorescência direta com anticorpo anti-IgG humana revelando padrão linear de depósito em alças
pacientes ocorre pela formação de
capilares glomerulares (400X)
anticorpos contra antígenos normais da
MBG do rim transplantado, que entrenefrite.6 Finalmente a identificação de 3 diferentes mutações
tanto, não estão presentes no rim do paciente com Alport.
do gene COL4A5, em 5 famílias diferentes com Síndrome de
Dessa forma o portador de Alport não desenvolveu na fase
Alport provavelmente explica a diferenciação de cada paciembrionária tolerância a esses antígenos presentes no rim norente e seu comportamento frente a um transplante renal.3
mal, que serão então reconhecidos como não próprios resulEm conclusão, portadores de Síndrome de Alport estão
tando na produção de anticorpos.
sujeitos a apresentar uma forma peculiar de glomerulonefrite
Anticorpos monoclonais de camundongo (MCA-PI) que
anti-membrana basal por anticorpos contra componentes do
reconhecem determinantes antigênicos da MBG em paciencolágeno resultando freqüentemente na formação de crescentes com Síndrome de Goodpasture foram usados por Savage
tes e resposta pouco satisfatória ao aumento da
e col.8 em 10 pacientes com Síndrome de Alport encontranimunossupressão e à plasmaferese. Embora isto não contrado reduzida ou nenhuma ligação destes anticorpos com a
indique o transplante, a suspensão da ciclosporina como no
MBG, enquanto em rins normais foram observadas ligações
caso apresentado não é recomendada face ao desconhecimenantígenos-anticorpos em graus variados. A glomerulonefrite
to do fator que leva alguns pacientes a desenvolverem
anti-MBG pós transplante renal é uma possibilidade real nos
glomerulonefrite enquanto outros não.
pacientes portadores de Síndrome de Alport, porém sua incidência não contra-indica o transplante.5,6
Algumas hipóteses têm sido aventadas para explicar a
Summary
ocorrência de GN pós transplante renal em alguns dos paciRenal transplantation has been done with success in
entes portadores de Síndrome de Alport enquanto não ocorpatients
with end stage renal diseases secondary to Alport’s
re na maioria. Uma destas hipóteses correlaciona a presença
Syndrome.
However, some patients will develop
de glomerulonefrite com a severidade da lesão ultraestrutural
5
glomerulonephritis
due to anti-glomerular basement
da MBG. Outra possibilidade é a inibição da formação de
membrane
(GBM)
antibody
in response to a GMB antigen
Ac anti MBG pela terapia imunossupressora vigorosa, instip
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but lacking in the native kidney.
tuída no pós transplante imediato, sendo que à medida em
Herein,
the
authors
present
a patient with Alport’s
que se procede a redução da dose dos imunossupressores, a
Syndrome
and
who
received
a
kidney
transplant from his
possibilidade de desenvolvimento de GN pós Tx renal au5,6
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d
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tion the patient lost
menta. Outros autores, entretanto, relatam a presença de
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ve glomerulonephritis
anticorpos anti MBG na circulação acompanhados ou não
mediated by antibody anti-GBM. The cyclosporin had been
de depósitos lineares na MBG sem resultar em glomerulo-
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withdraw few weeks before that event what made us not to
recommend the programed suspension of cyclosporin in renal
transplant of Alport Syndrome patients.
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