MIÍASE EM PACIENTE NÃO COLABORADOR: RELATO DE CASO CLÍNICO Paulo Rogério F. da Silva1, Luciana Yoshida1, Luís Eduardo Silva Soares2 1 CEO, Centro de Especialidades Odontológicas, Jales, SP, Brasil, [email protected] UNIVAP/FCS - Odontologia, IP&D – Laboratório de Espectroscopia Vibracional Biomédica, Av. Shishima Hifumi, 2911, Urbanova, São José dos Campos, SP, Brasil, [email protected] 2 Resumo- O termo Miíase é utilizado para definir a invasão dos tecidos do corpo, ou cavidades de animais vivos por larvas. Este trabalho relata um caso referenciado para o CEO Regional de Jales em paciente idoso, de 71 anos, do sexo masculino, não colaborador. O exame clínico oral revelou extensa lesão edemaciada e endurecida envolvendo todo o lábio superior direito, asa direita do nariz, onde internamente apresentou uma grande destruição dos tecidos moles no fundo de fórnix e com a presença de várias larvas. Sob anestesia local, foi feita a irrigação com soro fisiológico e a coleta das larvas. Foram coletadas 9 larvas internamente e 4 externamente. Iodofórmio foi inserido nas cavidades com auxilio de um porta-amálgama para forçar a saída de alguma larva remanescente. Uma vez que as larvas foram coletadas, a ferida debridada, associado aos cuidados gerais prescritos ao paciente, toda a sintomotologia foi extinta e a cicatrização da ferida foi parcialmente bem sucedida. Entretanto, não houve a conclusão no tratamento odontológico por falta de cooperação do paciente, que se recusou a dar continuidade ao mesmo. Palavras-chave: miíase, exame clínico, Iodofórmio, larvas. Área do Conhecimento: IV - Ciências da Saúde Introdução O termo Miíase, derivado do grego “myia” significando mosca, é usado para definir a invasão dos tecidos do corpo, ou cavidade de animais vivos por larvas (HOPE, 1840), ou ainda é a invasão de tecidos vivos ou órgãos por larvas de mosca (AGUIAR, ENWONWEU, PIRES 2003). Zumpt (1965) definiu Miíase como uma infestação de humanos vivos, ou animais vertebrados, por larvas dípteras, que por certo período alimentam-se de tecidos vivos ou necrosados, substâncias líquidas do corpo ou alimentos ingeridos. É bem mais freqüente nos países subdesenvolvidos e tropicais, mas há casos descritos em todas as regiões do planeta. Podendo ser: cutâneas, subcutâneas ou cavitárias (nariz, seios da face, ouvido, boca, ânus, vagina, etc.). Normalmente afetam pacientes doentes, debilitados, idosos e deficientes mentais, mas pode ocorrer em pacientes tróficos e saudáveis. As larvas depositam seus ovos em torno de 500, nos tecidos doentes e necróticos, mas podem fazê-lo em zonas do corpo aparentemente sãs. Estes ovos eclodem em menos de uma semana e o ciclo de vida é completado ao redor de duas semanas (NAYAR et al, 1976). As larvas obtêm sua nutrição através de tecidos circunjacentes e introduzem-se mais profundamente nos tecidos moles, fazendo túneis separando a gengiva e o mucoperiósteo do osso (DHOORIA; BADHE, 1984). De acordo com Hunter e Swartzwelder (1966), as moscas que causam Miíase são da Sarcophaga, um gênero de Díptera, é um dos maiores grupos de moscas que não picam e as larvas desta espécie são encontradas em feridas abertas, fossas nasais e olhos humanos. No entanto, podem ser de vários tipos, como: A) Obrigatórios (primárias ou biontófagas), causados por larvas de dípteros, que naturalmente se desenvolvem sobre ou dentro de vertebrados, alimentando-se de tecidos vivos. B) Facultativos (secundários ou necrobiontófagas), causados por larvas dípteros que usualmente se desenvolvem em matérias orgânica em decomposição, mas eventualmente podem atingir tecidos necrosados em um hospedeiro vivo. C) Pseudomiíase (acidental), causadas por larvas de dípteros ingeridas com alimentos, podendo ocasionar distúrbios mais ou menos graves, tais como infecções intestinais (LINHARES, 2002). Assim, nosso objetivo com este trabalho, foi de XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 1 verificar a ocorrência de casos de miíase na literatura, bem como a apresentação de um caso clínico, cuja evolução foi comprovada através de documentação fotográfica. Metodologia Este estudo obteve a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Univap (H250/CEP/2008). Paciente do sexo masculino, idoso, 71 anos, não colaborador, analfabeto, fumante, alcoólatra, com má higiene oral e deficiente vedamento labial, foi encaminhado para o Centro (CEO) – Regional de Jales, por um Cirurgião Dentista de uma UBS de uma cidade circunvizinha a Jales, para avaliação e investigação do caso. Paciente oriundo da zona rural, desdentado parcialmente, com presença de inúmeras raízes residuais. Na anamnese o paciente relatou ter apresentado uma lesão labial pequena que persistiu por mais de dez anos no local, e na presente avaliação oral a mesma apresentou se com grande extensão ulcerada, de base endurecida, com freqüentes coceiras e de grande exacerbação de dor. Figura 1. Lesão envolvendo o lábio superior do lado direito, asa direita do nariz e no fundo de fórnix. Clinicamente ficou evidente a formação de uma lesão ulcerada avermelhada, com um orifício central, por onde nitidamente eliminava uma secreção aquosa (exsudato), levemente amarelada, ou sanguinolenta externamente na face do lado direito, e internamente no fundo de fórnix, como apresentou o paciente (Figura 1). Uma característica clínica que definiu o diagnóstico é que nos orifícios centrais apresentados das lesões, de tempos em tempos as larvas sobiam aos orifícios para respirar, e toda esta movimentação pôde ser percebida claramente e com poucas larvas presentes no local (Figura 2). No entanto neste caso relatado por se tratar de poucas larvas presentes, e como suas fugas para cavidades ou profundidades tunelizadas nos tecidos eram limitadas, o tratamento é apenas mecânico, com a remoção individual das larvas. Esta coleta é um processo doloroso, incômodo e constrangedor, como já citado quer para o paciente quer para o profissional. Figura 2. Vista lateral da lesão evidenciando a presença de larvas. A literatura ressalta o emprego de inúmeros medicamentos tópicos asfixiantes como o indicado para este caso, o iodofórmio em pó, que é um produto indutor para forçar a saída das larvas. O uso desses medicamentos pode torná-las agitadas e migrarem para as regiões ainda mais inabordáveis. Outros medicamentos sistêmicos podem ser utilizados como o óleo canforado, o oxicianureto de mercúrio, o sulfureto de mercúrio, entre outros, sempre no sentido de expulsar as larvas, mas com resultados pouco eficazes (LINHARES, 2002). Quando houver muitas larvas, no diagnóstico clínico para o caso, o profissional diferencia–se usando para o extermínio completo pelo grande número de larvas presentes, o tratamento com uma dose oral e única de Ivermectina 6 mg que é recomendado desde 1987 em seres humanos (SHINOHARA et al., 2004; CAMPBELL 1985; DE TARSO et al., 2004. MARTIN-PREVEL et al., 1993; SHINOHARA 2003). Sob anestesia local, o campo todo asséptico, as larvas neste caso foram coletadas e colocadas numa bandeja clínica. Foi feita a irrigação das lesões internas e externas com soro fisiológico, totalizando 13 larvas removidas, no entanto foram coletadas: 9 no fundo de fórnix na lesão internamente, sendo a lesão de maior extensão. Quatro larvas foram coletadas e pinçadas na face externa direta, no orifício abaixo da asa do nariz (Fig. 3). Após a remoção total das larvas presentes, foi colocado iodofórmio, com um porta amalgama de plástico no interior das lesões como sendo um produto indutor para remover alguma larva remanescente nos orifícios lesionados, tunelizados decorrentes da presença das larvas XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 2 nos seus interiores (Fig. 4). Figura 3. Coleta de larva com pinça clinica. Figura 4. Colocação do iodofórmio nas cavidades. Resultados No pós-operatório foram feitas todas as recomendações de higiene ao paciente pela equipe que o atendeu, mas que pela falta de colaboração, do paciente o mesmo não compareceu as sessões seguintes para o devido acompanhamento, e inviabilizando exames anatomopatológicos das lesões. Após seis meses do tratamento, a região afetada apresentou um comprometimento estético e funcional devido à ausência de colaboração pelo paciente (Fig. 5). Figura 5. Resultado final após 6 meses de tratamento. Discussão A Miíase pode ter várias formas, relacionada as infecções de pele, intestino, bexiga, cavidades nasais, cavidades auriculares, olhos e ocasionalmente em cavidade oral. Fatores de risco de uma infestação oral primária incluem pobre higiene oral, halitose severa, lesões orais supurativas e fatores que favorecem o não fechamento da boca (GUITIERREZ, 1990). Cumingham (1974) ressaltam que as larvas dípteras normalmente desenvolvem-se em tecidos degenerados. Algumas vezes, entretanto, moscas fêmeas depositam ovos em feridas abertas ou em cavidades naturais no corpo de indivíduos dormentes, indefesos, que estão desprotegidos. Para Felices e Ogbureke (1996), a mosca fêmea repleta de ovos pode entrar em contato com uma ferida recente em uma superfície corporal exposta, em que ela deposita seus ovos. Os ovos, subsequentemente, entram em tecidos mais profundos e caminham para o desenvolvimento do estágio larval. Há uma destruição progressiva do tecido e cavitação à medida que a larva cresce. A Miíase oral é muito rara em crianças com desenvolvimento sadio e adulto (BOZZO, 1992). Salmon et al. (1970) afirmaram que a maturação das larvas de Miíase humana causa a inflamação do tecido e o desconforto resultante faz com que o paciente busque consulta com um especialista. Hipersalivação pode ser um fator predisponente que atrai a mosca para a colocação dos ovos (RAWLINS; BARNETT, 1983). Além disso, como evidenciado por ERFAN et al. (1980), pode-se verificar que os ovos depositados na superfície gengival são subsequentemente transferidos ao sulco gengival. Após este intervalo, os ovos eclodem e as larvas penetram no tecido gengival, produzindo uma destruição localizada deste tecido. As características orais da infecção incluem inchaço eritematoso dolorido, que pulsa devido o movimento das larvas ou devido às aberturas feitas nas margens das superfícies gengivais, por onde as larvas podem ser vistas (PRABHU et al 1992). Em alguns casos, uma biópsia pode ser necessária para detectar as áreas parasitadas na submucosa (GUNBAY; BICACKI, 1995). A conduta deve ser direcionada à eliminação de todas as larvas e isso só pode ser realizado com o tratamento da lesão com soluções indutoras como o iodofórmio, que induzem a saída das larvas do tecido, seguido por uma irrigação com solução salina morna (FELICES; OGBUREKE, 1996). A cicatrização completa da lesão pode ser alcançada no caso relatado, após tal tratamento, mas que pela rebeldia e falta de cooperação do paciente não se tenha sucesso por completo. É imperioso, contudo, que além dessas ações profiláticas individuais seja promovida uma luta sistemática contra moscas, em amplos e eficientes XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 3 programas de Saúde Pública, principalmente nas zonas onde as Miíases assumem um caráter de endemicidade. Considerando que embora a ocorrência da Miíase seja rara na Odontologia, haja vista o pequeno número de trabalhos citados na literatura compulsada, seu conhecimento é importante para a eventualidade do profissional odontólogo se deparar na prática clínica, com um possível caso dessa infestação. A grande maioria dos autores estudados lamenta a ausência no currículo odontológico da Disciplina de Parasitologia, o que vem a criar uma lamentável lacuna nos conhecimentos científicos dos profissionais, que ficam assim, obrigados a viver divorciados do grave problema das parasitoses, que no Brasil não raro, assumem um caráter endêmico. Conclusão 1. A miíase bucal é uma afecção rara, predominante em população rural e, em pacientes com problemas mentais e senilidade entre outras que limitam os indivíduos, e/ou casos de alcoolismo, respiradores bucais, hábitos de roncar, que adormecem ao ar livre e, com a boca aberta durante o dia. 2. A má higiene bucal, com lesões e odor fétido, atua como atrativo para as moscas fertilizadas depositarem seus ovos. 3. O diagnóstico dessa lesão é sempre clínico e o tratamento utilizado foi a remoção mecânica das larvas, com irrigação com soro fisiológico e Iodofórmio, como foi usado. 4. O uso de anestesia é recomendado em casos de pacientes com problemas mentais e, quando as larvas se encontrarem profundamente nos tecidos, muitas vezes comunicando-se com estruturas anatômicas importantes, como o seio maxilar as fossas nasais. 5. A prevenção deve ser sempre recomendada através de curso, conferências e palestras, em locais onde se observa maior ocorrência dessas condições. Referências - AGUIAR, A.M., ENWONWUCO, PIRES, F.R. Noma (cancrum oris) associated with oral myiasis in an adult. Oral Dis. 2003 May, 9(3):158-9. - BOZZO, L.; LIMA, I.A.; DE ALMEIDA, O.P.; SCULLY, C. Oral myiasis caused by sarcophagidae in an extraction wound. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod, v.74, n.6, p.733-735, Dec. 1995. - CUNNINGHAM, D.J.; ZANGÁ, J.R. Myiasis of the external auditory meatus. J Pediatr, v.48, p.857858, 1974. - DHOORIA, H.S.; BADHE, A.G. Oral myiasis (a case report). J Indian Dent Assoc, v.56, p.25-27, 1984. - ERFAN, F. 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