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A TESE DE MONTESQUIEU E A PRÁXIS DOS PAIS FUNDADORES
DA REPÚBLICA NORTE-AMERICANA
Maren Guimarães Taborda*
Resumo: O presente ensaio trata da tese de Montesquieu e da sua influência no pensamento e na
prática dos protagonistas da Revolução Norte-Americana, que criou a primeira república moderna
(sob a forma federal e com governo presidencialista) e instituiu o judicial review of legislation. O
estudo inventaria o pensamento jurídico subjacente às escolhas políticas dos fundadores do novo
Estado, tal como exposto em sua obra coletiva, O federalista, bem como destaca os principais elementos da construção que se tornou paradigmática para outros países, em particular, o Brasil.
Palavras-chave: Montesquieu. Separação de poderes. República Federal. Presidencialismo. Controle formal de constitucionalidade.
Abstract: This paper deals with Montesquieu’s thesis and its influence on the thinking and
practice of the protagonists of The American Revolution, which originated the first modern republic
(following the federal form, under presidential government), and which established the judicial
review of legislation.The study, then, looks at the legal thought underlying the political choices of the
founders of the new State, as set out in their collective work, The federalist, as well as highlights
the main points of the work which became paradigmatic for other countries, particularly for Brazil.
A ciência do direito se converterá em mera técnica jurídica
se não se ocupa de seus fundamentos. Por isso, qualificamos
a um trabalho jurídico como jurídico-científico somente se,
de alguma maneira, se refere aos fundamentos.
(Theodor Viehweg, Tópica y filosofia del derecho)
Introdução
Da Antiguidade clássica até a Idade Moderna, o problema do Estado1 foi estudado pelas doutrinas políticas segundo o ponto de vista dos governantes – dos
*
1
Mestre e Doutora em Teoria do Direito e do Estado pela UFRGS. Professora de História do Direito e de Direito Constitucional na FMP. Professora de Direito Constitucional na PUCRS e na
ESDM. Procuradora do Município de Porto Alegre.
“Estado” será sempre usado neste trabalho como sinônimo de organização política da sociedade, embora se tenha em mente os argumentos contra e a favor do uso contínuo desta palavra,
amplamente difundida e aceita no início da Idade Moderna, em consequência do prestígio de
que gozou a obra de Maquiavel, como pormenorizadamente discutido por Norberto Bobbio (Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da politica. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
p. 65 e segs.).
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que detêm o poder e a responsabilidade de conservá-lo: ex parte principis –,2
com seus temas essenciais: a arte de bem governar, os poderes necessários ao
cumprimento das diversas funções estatais, os vários ramos da administração
etc. Somente a partir da Idade Moderna, com a doutrina dos direitos naturais e
seus temas – liberdade dos cidadãos, bem-estar social e felicidade dos indivíduos
– é que o mérito de um governo passou “a ser procurado mais na quantidade de
direitos de que goza o singular do que na medida dos poderes dos governantes’’,3
isto é, o Estado passou a ser pensado ex parte populi, em que o problema de
fundo é a liberdade.4
No desenvolvimento histórico da doutrina juspublicista moderna, o conceito
de soberania aparece estreitamente condicionado à evolução do princípio políticoconstitucional da separação dos poderes que, de um cânone político-organizatório de um ordenamento estatal passa a ser um critério científico (jurídico) de
caracterização essencial das funções (atividades formalizadas) atribuídas aos
diversos complexos orgânicos estatais.5
Como cânone de organização política, o princípio da separação dos poderes foi codificado, pela primeira vez, no Instrument of Government de 1653,
em seguida à primeira revolução inglesa de 1640, no qual aparecem distinguidos os poderes legislativos e executivos: “a suprema autoridade legislativa na
Commonwealth da Inglaterra [...] será e residirá em uma pessoa e no povo reunido no Parlamento” e “o exercício da mais alta magistratura e a administração
2
3
4
5
BOBBIO, 1992, p. 63-64. Pensar o Estado do ponto de vista dos governantes ou do ponto de
vista dos governados decorre da relação política fundamental (mando-obediência) e a tradição de
pensar o problema do Estado ex parte principis “vai do Político de Platão ao Príncipe de Maquiavel, da Ciropeia de Xenofonte ao Princeps christianus de Erasmo”.
BOBBIO, 1992, p. 64.
BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política moderna.
São Paulo: Brasiliense, 1996. Tradução do original italiano Società e Stato nella filosofia política
moderna, p. 36. O jusnaturalismo moderno apresentou uma inovação em relação à tradição jurídica anterior, na medida em que compreendeu, além da sistematização geral do direito privado,
a sistematização do direito público. Ainda que o direito romano tivesse construído algumas soluções para os problemas capitais do direito público, como a noção de lex de imperio, pode-se
afirmar que este nasceu, de fato, de conflitos de poder desconhecidos na Antiguidade, como o
conflito entre poder espiritual e poder temporal. Por outro lado, mesmo que os juristas medievais
se tenham aproveitado grandemente das principais categorias de direito privado (equiparação entre imperium e dominium, permitindo identificar o poder do soberano com o poder dos proprietários, ou de recurso à teoria do pactum ou dos diversos pacta para explicar as relações entre
soberano e súditos), foi a escola do direito natural que teve o mérito de racionalizar o direito
público, em uma sistemática geral do direito que “compreendesse ao mesmo tempo e com
igual dignidade tanto o direito privado quanto o direito público” (p. 35).
BASSI, Franco. Il principio della separazione dei poteri (evoluzione problematica). Rivista
Trimestrale di Diritto Pubblico, Milano, Giuffrè, ano 15, n. 1, p. 17-18, 1965. De acordo com o
autor, o estudo da separação dos poderes pode ser feito com base em critérios jurídicos, em
critérios técnico-organizativos, de modo a saber qual o modo de repartição das funções estatais
mais idôneo para assegurar o melhor rendimento das instituições e, finalmente, em um critério
político, com o fim de garantir a liberdade.
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do governo [...] será do Lord Protector”.6 Com a restauração monárquica, a conquista da Revolução Puritana dissolveu-se, até ser restabelecida pelo Bill of
Rights de 1689, de modo a se limitarem as prerrogativas reais, instaurando-se,
assim, definitivamente, o regime parlamentar inglês, por força do qual, o Gabinete, nomeado pelo rei, era a expressão da maioria da Câmara dos Comuns.7
Locke, teorizando a experiência constitucional da Revolução Inglesa de
1688, no Two treatises on government, de 1690, afirmou a necessidade de se
distinguir o processo de criação da comunidade pelo contrato social do subsequente processo através do qual a comunidade confia o poder político – poder de fazer e executar as leis – a um governo. Segundo Locke, os poderes constituídos no Estado são, por conseguinte, três: o legislativo, que compreende
o judiciário, já que legisladores e juízes imparciais têm idêntica função – estabelecer o direito8 –, o executivo, que aplica a força para assegurar a observância das regras, e a prerrogativa, “discrição de quem dispõe do poder executivo”9
(o rei ou o povo), ou “o poder de agir de acordo com a discrição a favor do bem
público, sem a prescrição da lei e muitas vezes mesmo contra ela”.10 A prer6
7
8
9
10
BASSI, 1965, p. 23.
Após a primeira Guerra Civil, quando Carlos I, da casa dos Stuarts, foi decapitado, iniciou o período da Commonwealth, sob a liderança de Cromwell. Depois de 18 anos de guerras religiosas
e políticas, em 1660, a monarquia foi restaurada, mas o processo revolucionário só se consolidou
em 1688, com o “Acordo da Revolução”, no reinado de Jaime II. A partir daí, restaram asseguradas, até hoje, a supremacia da lei e do Parlamento sobre a Coroa, a independência dos juízes, a
reunião anual do Parlamento, a supremacia financeira dos Comuns, a posição da Igreja da Inglaterra, a tolerância religiosa para os dissidentes, a liberdade política, em suma, uma monarquia
constitucional. Sobre a Revolução Inglesa, ver: TREVELYAN, George McCaulay. A Revolução
Inglesa. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982. Tradução brasileira de The English
Revolution 1688.
Esta tese, de que Locke pensa o judiciário como parte do legislativo, é sustentada por Norberto
Bobbio (Locke e o direito natural. Brasília: UnB, 1997. Tradução brasileira de Locke e il diritto
naturale, p. 232-233), com apoio em passagens textuais. Compartilha-se aqui dessa posição,
porquanto se tem em vista a história da formação do direto inglês, isto é, a tradição da common
law, em que o juiz cria regras de direito. Assim, é natural e consequente que ele compreenda a
função judicial na função legislativa.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo (ensaio relativo à verdadeira origem, extensão
e objetivo do governo civil). São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 98. (Coleção Os Pensadores)
LOCKE, 1979, p. 98. Em relação a esse poder exercido por quem detém o poder executivo,
esta pode ter sido a origem doutrinária do discutido quarto poder – o poder moderador – da
Constituição brasileira de 1824, outorgada pelo Imperador D. Pedro I, conforme art. 98 (“O poder moderador é a chave de toda a organização política e é delegado privativamente ao imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente
vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”).
Autores nacionais, como Nelson Saldanha e Paulo Bonavides, sustentam ser a letra constitucional
um componente doutrinário, a partir de uma alteração de um texto de Benjamin Constant: Cours
de politique constitutionelle. Assim, ver Nelson Saldanha (A teoria do “poder moderador”: as origens do direito político brasileiro. Quaderni Fiorentini, Firenze, n. 18, p. 253-265, 1993) e Paulo
Bonavides e Paes de Andrade (História constitucional do Brasil. Brasília, 1989. p. 96-97). O
texto da primeira Constituição brasileira se encontra em: MIRANDA, Jorge (Org.). Textos históricos de direito constitucional. Lisboa: Casa da Moeda, 1990. p. 197-227.
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rogativa é, então, para Locke, nada mais do que o poder soberano originário,
a soberania originária, ou ainda a faculdade administrativa do rei.11
A doutrina de Locke, apesar de sua importância histórica, não rompeu
definitivamente com a antiga concepção de que o rei representa a soberania
do povo e que a ele devem corresponder os poderes executivo, federativo e
a prerrogativa (poder mais ou menos discricionário) e, por isso, o autêntico
criador do princípio político-constitucional da separação dos poderes estatais
foi, indubitavelmente, Montesquieu, porque este, ao contrário dos autores anteriores, além de diferenciar as funções objetivas do Estado conforme as constituições existentes, atribuiu as funções a órgãos separados entre si.
Foi Montesquieu quem propôs, em forma de princípio geral, a teoria da
separação orgânica dos poderes (e por isso se tornou conhecido) como uma
das condições fundamentais da devida organização dos poderes em todo o
“estado bem ordenado”, ex parte populi.12 Não se limitando a discernir os poderes do Estado por meio de uma distribuição abstrata das funções, mas principalmente, tratando da coordenação dos poderes entre si, Montesquieu, seguindo
a tradição dos filósofos políticos ocidentais, desde Platão e Aristóteles, de pensar
a “Constituição Ideal”, ou o “Estado Ideal”, isto é, aquele tipo de governo “moderado”, que combina os princípios das três formas de governo, concebeu a organização material das funções, que, rigorosamente distinguidas, podem assegurar
a independência de cada poder, a fim de que este receba dessa separação os
benefícios da moderação, segurança e liberdade. O signo essencial da teoria
e o que caracteriza mais especialmente seu alcance é justamente o fato de
Montesquieu decompor e seccionar o poder do Estado em três poderes principais, suscetíveis de serem atribuídos separadamente a classes de titulares que
constituem, por si mesmos, no Estado, três autoridades primordiais e independentes.
Destarte, porque a doutrina política subjacente a todas as constituições
modernas foi a formulada por Montesquieu,13 em Do espírito das leis, mais precisamente no Capítulo VI do Livro XI – Da Constituição da Inglaterra –, e
porque foi enorme sua influência no pensamento e prática dos “Pais Fundadores” da República Federal da América do Norte, este estudo procura fazer um
11
12
13
LOCKE, 1979, p. 98, 100.
O problema do Estado passou a ser pensado ex parte populi, justamente em consequência de
uma nova visão de mundo que pôs o homem – a pessoa humana – em sua dignidade e valor intrínseco, no centro da ordem jurídica, ou seja, como ponto de partida para a construção de uma
nova doutrina da moral e do direito, que, em última instância, foi o fundamento filosófico das revoluções liberais.
Ver especificamente sobre Montesquieu e a doutrina da separação dos poderes: EISENMANN,
Charles et al. Cahiers de Philosophie Politique (A la mémoire de Charles Einsenmann). Bruxelles:
Ousia, 1985. 240p; BACOT, Guillaume. L’esprit des lois la séparation des pouvoirs et Charles
Eisenmann. Revue du Droit Public et Science Politique, Paris, LGDJ, n. 3, p. 671-656, 1992. p.
671-656; BÉNOIT, Francis-Paul. Montesquieu inspirateur des Jacobins: la théorie de la “bonne
démocratie. Revue du Droit Public et Science Politique, Paris, LGDJ, n. 1, 1995. p. 5-24.
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exame sintético de sua teoria (1), ressaltando os aspectos que tiveram maior
incidência em uma concepção de “Estado Federal” e de “controle formal de
constitucionalidade” que, concretizada na experiência do constitucionalismo
norte-americano, se irradiou por todo o continente americano, moldando,
inclusive, o Estado Federal Brasileiro (2).
1
A tese de Montesquieu
A obra de Montesquieu foi considerada uma “revolução no método” não pelo objeto – seus antecessores (Hobbes, Spinoza, Grotius) também pretenderam edificar uma ciência da política –, mas pela forma: enquanto os primeiros
teorizaram sobre a essência da sociedade e propuseram modelos abstratos e
ideais, ele pretendeu fazer a ciência de todas as sociedades concretas da história. Não quis captar essências, mas extrair leis a partir da observação de fatos
concretos e suas infinitas variações, sem submeter a matéria dos fatos a princípios religiosos ou morais (nisto seguindo Spinoza e Hobbes) e mesmo negando-se a submetê-los aos conceitos abstratos da teoria do direito natural.14 “As
leis, no seu sentido mais amplo, são relações necessárias que derivam da natureza das coisas e, nesse sentido, todos os seres têm suas leis”, assevera
Montesquieu, na abertura do Livro I,15 e, com isso, distingue a “lei científica”–
relação imanente entre os fenômenos, à moda de Newton – das instituições
jurídicas, isto é, as leis políticas e civis das sociedades humanas, cuja lei (científica) de agrupamento e evolução pretende enunciar.16 Tal distinção resta claramente estabelecida quando ele afirma não tratar “das leis”, mas do “espírito
das leis”.17
O valor último de cada lei é, então, a sua aptidão de exprimir racionalmente os imperativos da vida em sociedade em certas circunstâncias dadas.
A preocupação de Montesquieu é estabelecer uma hierarquia regular de leis
razoáveis ou racionais, e questão política de fundo é localizar a legislação
em condições tais que se deixe conduzir por sua razão e não por sua paixão.
14
15
16
17
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu, la política y la historia. Madrid: Ciencia Nueva, 1968. p. 14-15;
e MOTTA PESSANHA, José Américo. Montesquieu: vida e obra. Introdução à obra citada na
nota 63, p. XVI e XVII.
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 23. (Coleção Os Pensadores). Obra publicada pelo editor suíço J. Barrillot, em 1748, com o extenso título: Do espírito
das leis ou das relações que as leis devem ter com a constituição de cada governo, costumes,
clima, religião, comércio, etc.
MONTESQUIEU, 1979, p. 25, verbis: “[...] a criação, que parece ser um ato arbitrário, supõe regras tão invariáveis quanto a fatalidade dos ateus. [...] Essas regras são uma relação estabelecida
constantemente. [...] cada diversidade é uniformidade, cada mudança é constância.”
MONTESQUIEU, 1979, p. 28: “Não separei de modo algum as leis políticas das civis, pois, como absolutamente não trato de leis mas do espírito das leis e como esse espírito consiste nas
diferentes relações que as leis podem ter com diversas coisas, devo seguir menos a ordem natural das leis que a dessas relações e dessas coisas”.
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Montesquieu, então, como assegura Hannah Arendt,18 “não fala de leis no
sentido de padrões ou comandos impositivos, mas em plena sintonia com a tradição romana”, entende por “lei” aquilo que relaciona: “a lei religiosa é aquilo
que relaciona o homem a Deus, e lei humana é o que relaciona os homens a
seus semelhantes”.
A seguir, considerando o homem antes do estabelecimento da sociedade,
Montesquieu reconhece a existência de quatro “leis naturais” básicas: (a) a procura da paz, porque, neste estado, “todos se sentem inferiores e dificilmente
alguém se sente igual”;19 (b) a procura de alimentos, porque, “ao sentimento
de fraqueza, o homem acrescentaria o sentimento de suas necessidades”;20 (c)
o desejo de se unir sexualmente e (d) o desejo de viver em sociedade, porque,
além do sentimento, os homens também conseguem ter conhecimentos, sendo
este “um novo motivo para se unirem”.21 Unidos em sociedade, os homens acabam por estabelecer as leis positivas: o direito das gentes – leis que regulam
as relações entre os diferentes povos; direito político – leis para as relações
entre governantes e governados e direito civil – leis reguladoras das relações
entre os particulares. Neste tópico, Monstequieu também assevera implicar o
poder político, necessariamente, “a união de muitas famílias”, e ser o melhor
governo, isto é, o que está de acordo com a natureza, aquele “cuja disposição
particular melhor se relaciona com as disposições do povo para o qual foi
estabelecido”.22 Por isso, ele trata de explicitar a natureza e o princípio de cada governo (1) e a necessidade de se distribuir o poder do Estado em prol da
liberdade política (2).
1.1
A natureza e o princípio de cada governo
Para Montesquieu, cada Estado, enquanto uma totalidade viva e real,23
possui uma natureza própria – uma certa forma, e um princípio –, uma disposição dos homens no sentido de realizar uma determinada forma e não outra:
“Entre a natureza do governo e seu princípio, há esta diferença: sua natureza
é o que o faz ser como é, e seu princípio é o que o faz agir. A primeira constitui
sua estrutura particular e a segunda as paixões humanas que o movimentam”.24
18
19
20
21
22
23
24
ARENDT, Hannah. Da revolução. Brasília: Unb, 1990, p. 237. Tradução brasileira do original inglês On Revolution.
Nesta passagem, Montesquieu se contrapõe a Hobbes: “Ninguém procuraria, portanto, atacar,
e a paz seria a primeira lei natural. Não é razoável o desejo que Hobbes atribui aos homens de
subjugarem-se mutuamente. A ideia de supremacia e de dominação é tão complexa e dependente
de tantas outras que não seria ela a primeira ideia que o homem teria” (op. cit., p. 26).
MONTESQUIEU, 1979, p. 27.
MONTESQUIEU, 1979, p. 27.
MONTESQUIEU, 1979, p. 28.
MOTA PESSANHA, 1979, p. XVIII; ALTHUSSER, 1990, p. 39-55.
EL, III, I, 1979, p. 41.
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Apesar de Montesquieu não ter sido o primeiro a pensar que o Estado,
por si mesmo, constitui uma totalidade – a ideia aparece em Platão e em Hobbes
–, foi o primeiro a utilizar essa ideia como uma hipótese científica, destinada a
explicar os fatos, permitindo a compreensão da história concreta. De acordo
com Althusser,25 ao dar uma resposta ao problema clássico do “motor da
história”, Montesquieu foi o precursor de Marx, ao empreender uma reflexão
sobre a história sem lhe dar uma finalidade específica.
Distinguindo a natureza do princípio dos governos, entendendo por natureza uma forma política e por princípio o que expressa politicamente toda a
vida real dos cidadãos e concebendo o Estado como uma totalidade natureza-princípio, isto é, não puramente formal, já que não designa uma forma jurídica
pura, mas uma forma política que tem sua própria existência com suas próprias
condições de existência e duração, Montesquieu propôs, de fato, “uma nova
categoria teórica que lhe deu a chave de uma infinidade de enigmas”.26
Ademais, descobrindo e verificando a hipótese de que o Estado é uma
totalidade real porque todos os detalhes de sua legislação, de suas instituições e de seus costumes não são mais do que o efeito e a expressão de sua
natureza interna, Montesquieu pensou a historia como um espaço que tem
uma estrutura, isto é, um espaço que
Possui centros concretos a que se referem todo um horizonte local de fatos e
instituições: os Estados. E no coração dessas totalidades, como nos indivíduos
vivos, há uma razão, uma unidade interior, um centro originário fundamental: a
unidade da natureza e do princípio.27
Por essa razão, Montesquieu foi o primeiro a propor um princípio de explicação universal da história ao mesmo tempo estático – a totalidade natureza-princípio explicando as diversas leis e instituições de um governo dado – e
dinâmico – a lei da unidade da natureza e do princípio, que permite pensar
sobre o devenir das instituições e sua transformação em história real.28
Depois de ter definido a natureza das leis próprias aos homens, Montesquieu examina as relações entre as leis e a natureza e o princípio de cada governo.29 Contrapondo-se à denominação clássica das formas de governo, ele
aponta três naturezas diferentes entre os estados reais: República (que pode
ser Aristocracia ou Democracia), Monarquia e Tirania, às quais correspondem
25
26
27
28
29
ALTHUSSER, 1990, p. 43.
ALTHUSSER, 1990, p. 44.
ALTHUSSER, 1990, p. 44.
ALTHUSSER, 1990, p. 46.
Nos livros XI, XII e XIII, Montesquieu examina as condições da liberdade política, e o capítulo
VI do Livro XI é a “exposição apologética” da Constituição inglesa; nos livros XIV ao XVII está
delineada a teoria do clima e suas consequências para os Estados; logo, as qualidades dos terrenos (Livro XVIII). A seguir, Montesquieu trata dos costumes (XIX), do comércio (XX e XXI), das
moeda (XXII), da população (XIII) e da religião (XXIV, XXV) como determinantes das leis. Os últimos livros tratam de história: evolução das leis romanas sobre sucessões (XXVII); origens das
leis feudais (XXVIII, XXX e XXXI) e também um livro sobre o modo de fazer leis (XXIX).
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três princípios: a virtude (em sentido político e não moral), a honra e o temor.30
A virtude a que Montesquieu se refere é aquela já definida por Aristóteles, na
Política, isto é, a virtude do “cidadão”, acrescentada às de “homem honesto”,
pois, em um Estado popular, é preciso uma força a mais do que a lei como
nas monarquias ou o braço do príncipe sempre levantado, como no despotismo.
A virtude, então, responde à questão de saber: em que condições pode existir
um governo que dá poder ao povo e se exerce por meio de leis? À condição
de que os cidadãos sejam virtuosos, isto é, que em todas as circunstâncias se
sacrifiquem pelo bem público e prefiram sua pátria a suas próprias paixões.31
Este é o princípio da democracia.32 Já na aristocracia, essa virtude deve implicar necessariamente moderação, uma vez que o corpo de aristocratas ou se
reprime “por uma grande virtude que faz com que os nobres se achem de algum modo iguais a seu povo [...] ou por uma virtude menor, isto é, certa moderação que torna os nobres, pelo menos, iguais entre si, o que faz a sua conservação”.33
A honra é, por sua vez, o princípio dos governos monárquicos, porque
nestes supõem-se “preeminências, categorias e mesmo uma nobreza de origem”, e é da natureza da honra “exigir preferências e distinções”.34 A honra –
“o preconceito de cada pessoa e de cada condição, ocupa o lugar da virtude
política [...] e a representa em toda parte” –,35 em Montesquieu, é, em última
instância, a paixão de uma classe social: a nobreza, ou, como diz Althusser, “a
honra é o ponto de honra (ou pudor) não de um mérito adquirido na luta, senão
de uma superioridade desde o nascimento”.36 A monarquia, portanto, é o governo cuja natureza é a existência de corpos intermediários (nobreza e clero) e
cujo princípio é a honra de Estado: um príncipe protegido de seus excessos por
ordens privilegiadas, e ordens protegidas do príncipe pela sua honra; o príncipe
protegido do povo e o povo protegido do príncipe por essas ordens. O medo é,
por sua vez, necessário em um governo despótico porque aniquila todas as
coragens e extingue os sentimentos de ambição daqueles a quem o príncipe
confia o poder, a fim de que estes não sejam capazes de promover revoluções.37
30
31
32
33
34
35
36
37
EL, II, I, p. 31: “Existem três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o despótico.
[...] Suponho três definições, ou antes, três fatos: um que o governo republicano é o que em
que o povo, como um todo, ou somente uma parcela do povo, possui o poder soberano; a monarquia é aquela em que um só governa, mas de acordo com leis fixas e estabelecidas, enquanto
no governo despótico, uma só pessoa, sem obedecer a leis e regras, realiza tudo por sua vontade e seus caprichos.”
ALTHUSSER, 1990, p. 41-42.
EL, III, III, p. 41.
EL, III, IV, p. 43.
EL, III, VII, p. 45.
EL, III, VI, p. 44.
ALTHUSSER, 1990, p. 61 e segs.
EL, III, IX, p. 45-46.
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Contudo, o tema principal da obra de Montesquieu foi, segundo Arendt38
e Althusser,39 a “constituição da liberdade política”, porque este, ao interpretar
(corretamente ou não) a estrutura da Constituição inglesa, a idealizou como
forma de Estado que, resolvendo o antigo problema político do uso e abuso
do poder, combinava o poder com a liberdade. Assim, diferenciando a liberdade
filosófica (“exercício da vontade”)40 da liberdade política (“poder fazer o que se
deve querer”),41 Montesquieu acaba por asseverar que a liberdade política se
encontra unicamente nos governos moderados, quando, nestes últimos, não se
abusa do poder. Isso só possível se, “pela disposição das coisas, o poder freie
o poder”,42 ou seja, desde que existam, no Estado, mecanismos que garantam
a contenção do poder e, ao mesmo tempo, sua permanência.
Além da garantia contra o monopólio do poder por uma parte do governo,
o princípio oferece “um mecanismo, incrustado no próprio cerne do governo,
através do qual novo poder é constantemente gerado, sem que, no entanto,
venha a crescer demasiadamente e se expandir, em detrimento de outros centros ou fontes de poder”, como afirma Arendt.43
É nesta passagem, então, que reside o cerne da descoberta de Montesquieu em relação à natureza do poder, isto é, que o poder pode ser destruído
pela violência, como nas tiranias, ou diminuído em sua potência, quando é
apenas controlado pelas leis (monarquia e democracia).
1.2
A garantia da liberdade política
“Há, em cada Estado, três espécies de poder: o poder legislativo, o poder
executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das
que dependem do direito civil”, diz Montesquieu,44 e de modo a ficar garantida
38
39
40
41
42
43
44
ARENDT, 1990, p. 120.
ALTHUSSER, 1990, p. 82.
EL, XII, II. verbis: “A liberdade filosófica consiste no exercício de sua vontade, ou pelo menos
(se é preciso falar em todos os sistemas), na opinião que se tem do exercício da vontade. A liberdade política consiste na segurança ou, pelo menos, na opinião que se tem da segurança.”
EL, XI, III. Daqui por diante será usado o texto original, como editado por KRIEGEL, Blandine.
Textes de philosophie politique classique. Paris: Presses Universitaires de France, 1993. (Coleção Que sais-je?). p. 90-101. “Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido
a fazer o que não se deve desejar. [...] A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”
(Dans un Etat, c’est-à-dire dans une societé où il y a des lois, la liberté ne peut consister qu’à
pouvoir faire ce que lón doi vouloir, et à n’être point contraint de faire ce que l’on ne doit pas
vouloir” (p. 91).
EL, XI, III: “Pourqu’on ne puisse abuser du pouvoir, il; faut que, par la disposition des choses,
le pouvoir arrête de pouvoir” (Nota 41, p. 91).
ARENDT, 1990, p. 121.
“Il y a dans chaque Etat trois sortes de pouvoirs: la puissance législative, la puissance éxecutrice
des choses qui dépendent du droit des gens, et la puissance exécutrice de celles qui dépendent
du droit civil” (EL, XI, VI, nota 41, p. 92).
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a liberdade política, é desejável que estes poderes restem separados, isto é,
que se atribua o exercício das funções estatais a órgãos distintos e independentes, verbis:
Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que
o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para
executá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o poder de julgar não
estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário,
pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia
ter a força de um opressor.45
A partir daí, Montesquieu assegura que, nos estados livres, é o povo que
possui o poder legislativo, mas, como nos grandes estados é impossível que
o povo faça leis diretamente, é conveniente que o faça através de seus representantes.46 O corpo de representantes, escolhido não para tomar resoluções
“mas, sim, para fazer leis ou para ver se as que fez são bem executadas”,47 pode estar organizado em duas câmaras: a alta, como um senado, confiada à nobreza, e a baixa, confiada ao corpo escolhido para representar o povo, cada qual
com suas deliberações à parte, seus objetivos e interesses separados.48 O argumento de Montesquieu para essa organização do poder legislativo é o seguinte: se há, nos Estados, uma nobreza, esta não pode ser confundida com
o povo e ter um só voto, pois a maioria das resoluções do legislativo seriam
contra ela. A nobreza deve ter uma participação “proporcional às outras vantagens que tem no Estado”, e isso é garantido se formarem um corpo de tenha
o direito de sustar as iniciativas do povo, “tal como o povo tem o direito de sustar as deles”. As câmaras têm o direito de sustar as iniciativas uma da outra,
em relação a determinados assuntos. Nas leis referentes à arrecadação de di-
45
46
47
48
“Lorsque dans la même persone ou dans le même corps de magistrature, la puissance
législative est réunie à la puissance exécutrice, il n’y a point liberté; parce qu’on peut craindre
que le même monarque ou le même sénat ne fasse des lois tyraniques pour les exécuter
tyranniquement. Il n’y a point encore de liberté si la puissance de juger n’est pas séparée de
la puissance législative et de l’exécutrice. Si elle était jointe à la puissance législative, le pouvoir sur
la vie et la liberté des citoyens serait arbitraire: car le juge serait législateur. Si elle était jointe à la
puissance exécutrice, le juge pourrait avoir la force d’un opressseur” (EL, XI, VI, nota 41, p. 92-93).
“Comme, dans un Etat libre, tout homme que est censé avoir une âme libre doit être gouverné
par lui-même, il faudrait que le peuple en corps eût la puissance législative. Mais comme cela
impossible das les grans Etats et est sujet à beaucoup d’incovénients dans les petits, il faut
que le peuple fasse par se représentants tout ce qu’il net put faire par lui-même” (EL, XI, VI,
nota 41, p. 94).
EL, XI, VI, nota 41, p.95: “Le corps représentant ne doit être choisi non plus pour prendre
quelque résolution active, chose qu’il ne ferait pas bien; mais pour faire des lois, ou pour voir si
l’on a bien exécuté celles qu’il faites, chose qu’il peut très bien faire, et qu’il n’y a même que lui
qui puisse bien faire.”
EL, XI, VI, nota 41, p. 96.
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A tese de Montesquieu e a práxis dos pais fundadores da República Norte-Americana
71
nheiro, em que a nobreza pode ser induzida “a seguir seus interesses particulares”, diz Montesquieu, ela só deve tomar parte na legislação “por sua faculdade de impedir e não por sua faculdade de estatuir”.49
Distinguindo faculté de statuer e faculté d’empêcher e entendendo pela
primeira “o direito de ordenar por si mesmo, ou de corrigir o que foi ordenado por
outrem”, e pela segunda, “o direito de anular uma resolução tomada por qualquer outro, o que constitui o poder dos tribunos de Roma”,50 Montesquieu pensa em uma distribuição dos poderes legislativo e executivo e nos vários modos
através dos quais um pode paralisar o outro pela sua mútua faculdade de impedir. Os três poderes formariam, assim, “uma pausa ou inação”, mas, como são
obrigados a caminhar “pelo movimento necessário das coisas”, são, dessa forma, obrigados a entrar em acordo. 51 Assim, por exemplo, se o poder executivo
é aquele que “faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece
a segurança, previne as invasões” 52 e é bem melhor administrado nas mãos
de um – o monarca –, porque esta parte do governo “sempre tem necessidade
de uma ação momentânea”, 53 não pode ser paralisado ou sustado pelo poder
legislativo: este “tem o direito e deve ter a faculdade de examinar de que maneira as leis que promulga devem ser executadas”.54 O poder executivo, ao contrário, só pode “participar da legislação através do direito de veto, sem o que
seria despojado de suas prerrogativas”, e nunca pode participar dos debates
das questões públicas, pois, “se o monarca participasse da legislação pela faculdade de estatuir, não haveria mais liberdade”.55 O poder de julgar, a seu
turno, não pode estar ligado a nenhuma parte do poder legislativo, com três exceções: (a) os nobres devem ser levados diante “da parte do corpo legislativo
composta de nobres”;56 (b) os juízes podem, em função da sua autoridade
suprema, “moderar a lei em favor dela própria, pronunciando-se menos rigorosamente que ela”;57 e, (c) nos casos de crimes contra o povo, “que os magistrados estabelecidos não saberiam ou não poderiam punir”,58 a acusação deve
ser feita pela parte legislativa do povo diante da parte legislativa dos nobres
“a qual não possui nem os mesmos interesses que ele nem as mesmas pai49
50
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57
58
EL, XI, VI, nota 41, p. 96.
EL, XI, VI, nota 41, p. 96. Nessa passagem, Montesquieu faz alusão ao direito de veto que os
magistrados romanos possuíam de paralisar as ações uns dos outros, a chamada intercessio.
Intercessio era uma competência negativa, um atributo geral negativo do funcionário romano
contra qualquer magistrado igual ou inferior. No caso do Tribuno da Plebe, representou sua primeira faculdade: podia interpor-se a favor dos plebeus nas ações oficiais de outro magistrado
e sustá-las.
EL, XI, VI, nota 41, p. 99.
EL, XI, VI, nota 41, p. 92.
EL, XI, VI, nota 41, p. 96.
EL, XI, VI, nota 41, p. 97.
EL, XI, VI, nota 41, p. 99.
EL, XI, VI, nota 41, p. 98.
EL, XI, VI, nota 41, p. 98.
EL, XI, VI, nota 41, p. 98.
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72
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xões”.59 De acordo com Althusser,60 estas passagens demonstram que, para
Montesquieu, todo o problema da separação de poderes é, em última instância,
político – relação de forças dos diversos grupos sociais – e não jurídico – definição da legalidade e suas esferas – , uma vez que a garantia de que os nobres fossem julgados pelos seus pares, bem como a que priva o rei do poder
de julgar, seriam políticas: proteção da nobreza contra o povo e, simultaneamente, contra a arbitrariedade política e jurídica do príncipe.
Quanto ao legislativo, deve estatuir sobre arrecadação de dinheiro público
ano a ano, pois, do contrário, “corre o risco de perder sua liberdade, porque o
poder executivo não mais dependerá dele”61 e acontecerá o mesmo se estatuir,
não de ano em ano, “mas para sempre” sobre o exército, que deve confiar ao
poder executivo. Uma vez estabelecido, o exército deve depender, imediatamente, do poder executivo, mas o corpo legislativo deve poder destituir os soldados, “assim que desejar”.62
Como anotou Malberg,63 Montesquieu não se preocupa em aproximar os
poderes que começou a separar. Limita-se a reivindicar para eles mútuas faculdades de impedir-se, obrigar-se, encadear-se – meios de ação para controle
mútuo –, o que é muito diferente de uma colaboração ou entendimento comum
(o que, mais tarde, foi denominado de teoria do equilíbrio ou dos pesos e contrapesos). Advém daí que os distintos órgãos se proibirão mutuamente de sair
da linha de suas competências respectivas e que o poder legislativo, por ser superior,64 deve ser exercido pelo povo, de conjunto, em razão de suas divisões sociais, para favorecer a liberdade política. A superioridade da função legislativa
se fundamenta no fato de esta ser o resultado da vontade geral do povo soberano, mas o seu órgão titular está em nível de igualdade com os titulares das
demais funções. Daí, o corpo legislativo é o único que pode decretar as regras
de direito, caracterizando-se a função legislativa pela generalidade de suas
prescrições, em oposição às decisões particulares.
Já a autoridade executiva é a única que pode tomar medidas particulares
de governo e administração, e, assim, a função executiva se exerce sobre coisas momentâneas, sendo que o órgão que a exerce (Administração) possui
competência inicial plena, independente do corpo legislativo. Por fim, os juízes
são os únicos que podem aplicar as leis aos casos que dependam do conten59
60
61
62
63
64
EL, XI, VI, nota 41, p. 99.
ALTHUSSER, 1990, p. 86.
EL, XI, VI, nota 41, p. 100.
EL, XI, VI, nota 41, p. 100.
MALBERG, Carré de. Contribution à la théorie générale de l’État. Paris: Sirey, 1922. tomo 2, p.
21.
Observe-se que, na teoria de Montesquieu, a função legislativa é superior por esta ser o resultado da vontade geral do povo soberano, consubstanciando um dos grandes princípios do direito
público moderno, a saber, o que afirma a preponderância e supremacia da lei e do poder legislativo; o órgão titular desta função, por sua vez, está em nível de igualdade com os órgãos titulares das demais funções.
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cioso, e a função executiva judicial, poder “de algum modo, nulo”,65 reproduz
a estrutura social. Confiado aos “jurados” (corpo de pares), o poder de julgar
não é mais nem menos político do que o de legislar ou o executar-administrar,
pois, na perspectiva do Espírito das leis, implica os outros dois, embora os juízes de uma nação não sejam mais do que “a boca que pronuncia as sentenças
da lei”.66 Ao contrário de Locke, portanto, Montesquieu pensa a função de julgar
como executiva, ao lado da de administrar, dependentes, as duas, das leis que
o corpo legislativo (poder soberano da sociedade) editar, porquanto a lei é “a razão objetiva a que se submetia a vontade dos detentores do poder político”.67
Com esse ponto de vista, resta claro que o sistema de separação de poderes
de Montesquieu se funda em um conceito “material” das funções estatais, pois a
finalidade do princípio é diferenciar funções e reparti-las entre distintos órgãos,
de acordo com a natureza intrínseca de cada uma delas.
O aspecto mais importante da formulação originária do princípio da separação dos poderes reside em Montesquieu haver dado conta da realidade
sociológica com o fim de elaborar um sistema de organização da atividade
estatal que assegurasse, ao mesmo tempo, uma forma de governo livre e a liberdade fundamental dos cidadãos. Para estas finalidades, o sistema de separação de funções pugnado por Montesquieu se funda em um conceito “material” das funções estatais, uma vez que, para ele, só a diferenciação e repartição das mesmas entre distintos órgãos, de acordo com a natureza intrínseca
de cada uma delas, é capaz de assegurar um governo livre, qualquer que seja
a sua forma.
Por tais razões, a teoria de Montesquieu constitui tema fundamental do
juspublicismo moderno por ter individuado dois momentos lógicos distintos e sucessivos no tratamento do poder estatal: (a) em primeiro lugar, o reconhecimento
da oportunidade de proceder a um fracionamento da autoridade estatal, atendo-se ao problema especificamente político e, (b) em segundo, o reconhecimento
da consequente necessidade de estabelecer um critério que sirva de base para
esse fracionamento, pondo em relevo o caráter instrumental – jurídico – de dita
separação. Tal teoria tem sido examinada por diversos autores, sob a denominação de “divisão de poderes”, “separação do poder” ou “distinção de funções”.
65
66
67
MONTESQUIEU, 1979, nota 41, p. 100.
MONTESQUIEU, 1979, nota 41, p. 101. Esta expressão de Montesquieu é melhor compreendida ao levar-se em consideração o ambiente da França pré-revolucionária, em que os “Parlamentos” eram os órgãos julgadores ligados ideologicamente ao Antigo Regime. Os homens da revolução consideraram os juízes – que estavam autorizados a revisar ou a rejeitar as ordenanças e
editos reais – “rivais do poder administrativo, perturbando suas operações, embaraçando, estorvando seus movimentos e agitando seus agentes”. Cf. THOURET, Séance du 24 mars 1790,
Archives Parlamentaires, 1re. serie. tome 12, p. 344, apud VELLEY, Sèrge. La constitutionnalisation
d’un mythe: justice administrative et séparation des pouvoirs. Revue du Droit Public et Science
Politique, Paris, LGDJ, p. 767-783, 1989.
COUTO E SILVA, Almiro. Princípios da legalidade da administração pública e da segurança no
estado de direito contemporâneo. Revista de Direito Público, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, n. 84, p. 48, 1987.
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Acompanhando Bassi,68 preferiu-se, neste estudo, utilizar a expressão separação dos poderes por motivos históricos, isto é, por ser esta a expressão consagrada pela doutrina francesa que foi veiculada em textos positivos. 69
Em síntese, idealizado como instrumento para garantir a liberdade civil e
política dos cidadãos contra o absolutismo monárquico, passando a ser utilizado,
na época seguinte, como um meio de defesa do poder real residual, até servir,
atualmente, como um cânone organizatório para salvaguardar o cidadão e os
grupos intermediários (partidos políticos), o princípio da separação dos poderes
evoluiu de função de tutela de determinado valor político para critério jurídico de
organização do poder. Se tal princípio é um meio para realizar determinados
fins extrajurídicos, resulta evidente a sua relatividade e variação estrutural, que
se deve harmonizar com as diversas situações históricas. Neste caráter instrumental, próprio de qualquer instituto jurídico, “está seu limite, mas ao mesmo
tempo, o seu valor mais alto”.70
Irredutível, pois, em teoria política, a obra de Montesquieu, porque a questão política que ele pretendeu resolver foi pôr o legislador em condições tais que
pudesse se conduzir por sua razão e não por suas paixões, de modo a estabelecer leis razoáveis. De outra parte, quanto à separação de poderes, esta não
é, para Montesquieu, o objeto de “moderação”, mas tão só o complemento necessário para garantir a liberdade política, uma vez que “governo moderado” é
aquele em que existem “leis fundamentais”, independentemente de sua forma
(monarquia ou república). Os governos moderados, então, são a condição de
uma liberdade moderada, que se estabelece graças às leis fundamentais e à
repartição de poderes que os caracterizam. É para favorecer esta liberdade
política que o poder legislativo deve ser exercido pelos representantes do povo,
divididos em duas câmaras que reproduzem a estrutura social. Pela mesma razão, o poder judiciário deve ser confiado aos jurados, e o poder executivo àquele
que tenha uma responsabilidade única.71 Daí resultam os seguintes princípios,
adotados por todas as constituições e declarações de direitos da era moderna:72 (a) a separação dos poderes é o complemento necessário para garantir a
68
69
70
71
72
BASSI, 1965, p. 113.
José Alfredo de Oliveira Baracho acentua: “a expressão separação de poderes não foi empregada uma vez sequer por Montesquieu, nem entendeu que os órgãos investidos das três funções do Estado seriam representantes do soberano, investidos de uma parte da soberania,
absolutamente” (Aspectos da teoria geral do processo constitucional: teoria da separação de
poderes e funções do Estado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, Senado Federal,
Subsecretaria de Edições Técnicas, ano 19, n. 76, p. 108, 1982).
BASSI, 1965, p. 110.
BACOT, 1992, p. 651.
As declarações de direitos e constituições, desde o séc. XVIII até agora, quando definem os
poderes estatais e os “governos” variam bastante em relação aos titulares das funções, isto
é, do ponto de vista formal, mas não tanto quanto ao conteúdo das funções (do ponto de vista
material). Para uma comparação, ver: Declaração de Direitos de Virgínia, 1776, Secção V; Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787, Artigo I, Secção I, Artigo II, Secção I, Artigo
III, Secção I; Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, França, 1789, artigo 16 (“Qual-
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A tese de Montesquieu e a práxis dos pais fundadores da República Norte-Americana
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liberdade política; (b) impossibilidade de um mesmo órgão acumular duas funções. Só a divisão de competências e a especialização de funções não são
suficientes para realizar a limitação dos poderes estatais: essa limitação é assegurada pelo fato de que nenhuma das três classes de titulares dos poderes
possa adquirir superioridade sobre as demais.
A teoria de Montesquieu foi interpretada de diversas maneiras, segundo a
realidade política em que se inseriu, e, tem sido recorrente, em teoria política,
citar três constituições e uma lei da época revolucionária que a interpretaram
no sentido de que não somente as funções legislativa e executiva deviam atribuir-se a titulares distintos, senão também que, entre estes titulares, nada devia
existir em comum, a saber, a Constituição Federal dos Estados Unidos da América, de 1787, a Constituição de 1791 e a Lei de 16-24 de agosto de 1790, da
França.73
Os fundamentos filosóficos da Constituição dos EUA estão consolidados
na obra coletiva dos founding fathers – O federalista74 – e, nela, os protagonistas da revolução explicitam os princípios jurídicos de suas opções políticas e
a estrutura do Estado recém-criado. Com as raízes em Montesquieu, os pais
fundadores da primeira república moderna puseram as bases de um Estado
federal que se tornou o modelo inspirador para muitos Estados americanos,
como o Brasil, a partir da Proclamação da República, que adotou não só a forma de república, como o sistema de governo Presidencialista (Constituição de
1891) e o controle judicial de constitucionalidade (Lei 220, de 20.11.1894).75
Vale, então, inventariar as teses dos federalistas.
2
Estado federal e independência judicial na experiência concreta
A constituição em União Federal dos novos estados da América do Norte foi a consequência de um esforço deliberado do povo para fundar um novo
corpo político, ou para constituir a liberdade política: o propósito das constituições estaduais que precederam a Constituição da União “foi criar novos cen-
73
74
75
quer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”); Constituição Francesa de 1791, Título III, artigos
1º, 2º, 3º, 4º e 5º; Constituição Francesa do Ano I (1793), Acto Constitucional, Da República,
artigos 1º, 2º e 3º; Constituição do Ano VIII (1799), Título II, Título III, Título IV e Título V; Constituição Espanhola de 1812, Capítulo III, artigos 14º, 15º, 16º, e 17º; Primeira Constituição Portuguesa, de 1822, arts. 29º e 30º; Constituição do Império do Brasil, de 1824, artigos 9º e 10º e
art. 10º da Constituição da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil (1891).
MALBERG, 1922. O autor refere serem estas constituições-tipos, como as chama Esmein
(Élements de droit constitutionnel. 7. ed. v. 1, p. 471 e segs.)
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. São Paulo: Abril Cultural,
1979. (Coleção Os Pensadores)
A Lei 221, de 20 de novembro de 1894, artigos 13º § 10, verbis: “§ 10 – “Os juizes e tribunaes
apreciarão a validades das leis e regulamentos e deixarão de applicar aos casos occurrentes
as leis manifestamente inconstitucionaes e os regulamentos manifestamente incompativeis com
as leis ou com a Constituição.”
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tros de poder, após a Declaração de Independência ter abolido a autoridade
e o poder da coroa e do Parlamento”76 e o principal problema dos fundadores,
estabelecer uma união a partir de treze repúblicas soberanas.
Precisamente porque Montesquieu havia sustentado que poder e liberdade relacionavam-se um com o outro, bem como que havia um tipo de constituição que “possui todas as vantagens internas do governo republicano e a
força externa da monarquia”77 – a república federativa –, sua obra exerceu poderosa influência no curso da Revolução Americana e seu nome foi invocado em
praticamente todos os debates sobre a Constituição.78 Em O federalista, os
fundadores do novo Estado discorrem sobre os fundamentos de suas opções
práticas, explicitando a natureza e o princípio do governo (1), a distribuição do
poder (2) e os fundamentos do controle formal de constitucionalidade (3).
2.1
A natureza e o princípio do governo norte-americano
Madison, examinando a forma geral do governo proposto na Constituição,
isto é, considerados o princípio sobre o qual foi estabelecido, a origem, finalidade
e extensão de seu poder e a autoridade pela qual podem ser feitas mudanças
na sua organização, sustenta ser o governo, por seu princípio, republicano e
federativo, já que esta é a combinação “mais feliz de todas as que se podem
imaginar: os interesses gerais são confiados à legislatura nacional, e os particulares e locais aos legisladores dos Estados.”79
Então, o governo é republicano porque “é aquele em todos os poderes
procedem direta ou indiretamente do povo e cujos administradores não gozam
senão de poder temporário, a arbítrio do povo ou enquanto bem se portarem”,80
sendo a prova de seu caráter republicano a absoluta proibição de títulos de no76
77
78
79
80
ARENDT, 1990, p. 122.
MONTESQUIEU. EL, 2ª Parte, IX, I, p. 127. “Esta forma de governo é uma convenção pela qual
vários corpos políticos consentem em tornar-se cidadãos de um Estado maior que querem formar. É uma sociedade de sociedades, que dela fazem uma nova, que pode ser aumentada pela união de novos associados”. No capítulo em questão, Montesquieu refere várias repúblicas
confederadas ao longo da história, inclusive a República Federativa da Alemanha, que, mais tarde, seria, ao lado da República Federativa dos Estados Unidos da América, um dos principais
modelos de forma federal de Estado.
Assevera Hannan Arendt que “Montesquieu confirmou aquilo que os fundadores, com base na
experiência das colônias, sabiam que estava certo, isto é, que a liberdade era “um poder natural
de fazer ou não fazer tudo o que temos em mente”, e quando lemos, nos primeiros documentos
dos tempos coloniais, que “os representantes assim escolhidos terão o poder e a liberdade de
decidir” podemos ainda sentir o quanto era natural para essas pessoas usar as duas palavras
quase como sinônimos”. Por outro lado, a maior inovação revolucionária foi, segundo a autora, “a
descoberta de Madison do princípio federativo de instituição de grandes repúblicas”, fundamentada
na experiência de combinação de poderes, mais do que em qualquer teoria (ARENDT, 1990, p.
120 e 135).
In: O federalista, 1979, p. 98.
MADISON, 1979, p. 118. Para estas considerações, ver também: ARENDT, 1990, p. 131.
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77
breza e a temporariedade dos mandatos dos governantes.81 Nesta passagem,
assim como nas anteriores, o pressuposto de Madison é o de que a forma republicana de governo difere, em essência, da forma democrática, porque a república, como por ele concebida, é o único remédio contra as “desgraças da
facção”. Isso porque os federalistas aceitavam a ideia hobbesiana de que a vida social era uma luta constante e se propuseram a elaborar um quadro institucional que a contivesse dentro de certos limites. A composição de interesses
conflitantes só poderia ser feita pela força de um governo federal e pelos mecanismos de representação, já que a maioria era a facção mais perigosa a ser
evitada, uma vez que seria capaz de ganhar ascendência sobre as demais facções. Como assevera Madison:
A república aparta-se da democracia em dois pontos essenciais: não só a primeira
é mais vasta e muito maior o número de cidadãos, mas os poderes são nela delegados a um pequeno número de indivíduos que o povo escolhe. O efeito desta
segunda diferença é de depurar e de aumentar o espírito público, fazendo-o passar para um corpo escolhido de cidadãos, cuja prudência saberá distinguir o verdadeiro interesse de sua pátria e que, pelo seu patriotismo e amor da justiça, estarão mais longe de o sacrificar a considerações momentâneas ou parciais. Num
tal governo é mais possível que a vontade pública, expressa pelos representantes
do povo, esteja em harmonia com o interesse público do que o caso de ser ela
expressa pelo povo mesmo, reunido para este fim.82
Dessa forma, estando os fundadores cientes de que o princípio da maioria é inerente ao próprio processo de tomada de decisão e, por isso, está presente mesmo no despotismo, bem como que, após a decisão ter sido tomada,
a maioria pode liquidar politicamente e minoria oponente, procuraram expedientes para impedir que o artifício técnico da decisão da maioria degenerasse
em “despotismo eletivo” do governo da maioria.
O governo é também federativo, porque é resultado do “assentimento e
ratificação do povo americano, enunciados pelos deputados para este fim” e
não da vontade da maioria do povo ou da maioria dos Estados. Se cada Estado,
adotando a Constituição, foi considerado um corpo soberano, independente dos
demais, “somente ligado por um contrato próprio e voluntário”, a Constituição
é federativa e não nacional. “A diferença entre o governo federativo e nacional
consiste em que no primeiro a influência do poder limita-se somente aos corpos
confederados na sua existência política, e no segundo estende-se a cada cidadão na sua existência individual”, anota Madison.83
81
82
83
No texto, Madison assegura que é da essência da república que “a maioria da sociedade tenha
parte em tal governo”, e que é bastante, “para que tal governo exista, que os administradores
do poder sejam designados direta ou indiretamente pelo povo”. A seguir, ele afirma que, embora
existam diferenças no modo de nomeação, em cada Estado da União, “em todas as constituições
são os empregos conferidos por tempo determinado”, à exceção dos membros do corpo judiciário, que “conservam seus empregados enquanto deles se mostrarem dignos por um comportamento cheio de dignidade e honra”, porque isso “não podia ser de outra maneira” (op. cit., p. 118).
MADISON, 1979, p. 98.
MADISON, 1979, p. 120 e segs.
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78
Maren Guimarães Taborda
Ao final do capítulo ora em comento, Madison acaba por afirmar: (a) em
relação ao seu princípio, o governo é republicano e federativo; (b) na origem
de seus poderes, é federativo e nacional, porque os poderes da Câmara dos
Representantes são derivados do povo americano, nela representado na mesma proporção que nas legislaturas de cada Estado particular (nacional), mas o
Senado recebe seus poderes dos Estados considerados corpos políticos iguais,
independentemente no número de representados (federativo); (c) na operação
destes poderes, o governo é nacional, já que nas suas relações com o povo e
nos seus procedimentos ordinários, influencia diretamente cada cidadão individual; (d) quanto à extensão dos poderes, o governo é federativo, uma vez que
a autoridade sobre os indivíduos e o poder sobre pessoas e bens se distribui
entre a legislatura geral e as legislaturas municipais, de modo que a jurisdição
do governo fique restrita a um certo número de objetos determinados e, nos
demais pontos, permanece inviolável a soberania dos Estados; (e) finalmente,
quanto à maneira de introduzir reformas, o governo não é inteiramente federativo, nem inteiramente nacional, já que, em alguns casos, exige-se mais do que
a maioria para reformas, calculando-se a proporção pelo número de Estados, e,
em outros, o concurso inteiro dos Estados.
2.2
A distribuição do poder na República Federal
Após o exame da forma geral do governo da União, Madison parte para o
exame de sua organização particular – a distribuição do poder “pelas diferentes
partes de que o dito governo se compõe” – e passa, então, a explicar o princípio da separação dos poderes na república federal, em contraposição à organização dos poderes da Constituição inglesa, afirmando, que, nesta última, os
poderes não se achavam inteiramente distintos ou separados, já que “a magistratura executiva forma parte constituinte do poder legislativo”.84 Depois de fazer um apanhado geral das diferentes constituições dos Estados e concluir que,
em nenhuma delas, os poderes se encontram inteiramente distintos e separados, Madison85 estabelece os meios através dos quais é possível manter, na
prática, a separação de poderes que a Constituição estabeleceu em teoria.
Para manter a liberdade,86 é essencial que cada poder tenha vontade própria e que seja organizado de tal forma que aqueles que o exerçam tenham a
84
85
86
MADISON, 1979, p. 125.
Madison ou Hamilton, uma vez que não se tem certeza de quem, realmente, escreveu o Capítulo LI de O federalista.
A “liberdade”, para os revolucionários americanos, como de resto, para os políticos do séc.
XVIII, só seria assegurada pela proteção à “propriedade”. No lema inicial da Revolução, “nenhuma taxação sem representação”, fica clara a íntima conexão entre liberdade e propriedade,
de modo que a função das leis não era garantir direitos, mas proteger a propriedade. De acordo
com Arendt, “somente no séc. XX é que as pessoas passaram a ficar diretamente expostas, e
sem qualquer proteção pessoal, às pressões do Estado e da sociedade; e foi apenas onde sur-
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A tese de Montesquieu e a práxis dos pais fundadores da República Norte-Americana
79
menor influência possível na nomeação dos depositários de outros poderes;87
por isso, é necessário que as nomeações para as supremas magistraturas legislativa, executiva e judiciária saiam do povo, “que é a fonte primeira de toda
autoridade, por meio de canais que não tenham entre si a mínima comunicação”.88 Assim, não se pode acumular funções (os ministros, enquanto parte do
executivo, não podem ter assento nas assembleias legislativas) e os agentes
de um poder não dependem de nenhum modo do outro.89
Além disso, devem ser dados àqueles que exercitam os diferentes poderes
os meios suficientes e o interesse pessoal para resistir às usurpações. Como,
nos governos republicanos, o poder legislativo predomina, deve ser dividido
em muitas frações desligadas umas das outras, “pelas diferentes maneiras de
elegê-las” ou “pela diversidade de seus princípios”:90 essas frações seriam a
Câmara dos Representantes – que representa a população – e o Senado –
elemento estável, que representa a Nação.
No Capítulo LII,91 Madison (ou Hamilton), examina com mais vagar a
determinação das condições de elegibilidade das Câmara dos Deputados e a
duração do serviço dos mesmos, para concluir que, de acordo com o plano da
Convenção: (1) um representante não pode ser menor de vinte e cinco anos,
nem menos de “sete de cidadão; (2) à época da eleição, o representante deve
ser habitante do Estado que representar; (3) durante suas funções, não pode
exercer emprego público; (4) a duração do serviço deve ser bienal. Quanto ao
número de representantes que cada Estado deve mandar, a regra deve ser a
mesma que “preside à imposição dos tributos diretos”,92 fundada na proporção
das riquezas, de que a população de cada Estado é medida sempre inexata.
Assim, considerando que em todos os Estados, em maior ou menor grau, se
priva do direito de votar um certo número de habitantes, conforme o censo de
cada um, os estados com maior número de escravos teriam maior representação. Por isso, a formulação final é uma combinação de representação que
diz respeito tanto às pessoas quanto às propriedades, de modo que os escravos são considerados sob um ponto de vista particular: a Convenção os considera pessoas, mas colocadas, pela servidão, abaixo da classe de cidadãos livres, ficam privados de três quintos dos seus direitos de humanidade.93
87
88
89
90
91
92
93
giram pessoas que eram livres sem que possuíssem propriedade que as leis se tornaram necessárias para proteger diretamente os indivíduos e sua liberdade individual” (1990, p. 145).
MADISON ou HAMILTON, 1979, p. 130.
MADISON ou HAMILTON, 1979, p. 130.
Ver Art. 1º, Secção VI, 2, da Constituição dos Estados Unidos da América.
MADISON ou HAMILTON, 1979, p. 131. Além disso, segundo o esquema de distribuição de competências federativo, a legislatura federal deve ter apenas uma parte do poder legislativo, e, assim, além da influência do povo, ela terá a vigilância dos corpos legislativos colaterais (p. 137).
MADISON ou HAMILTON, 1979, p. 134 e segs.
MADISON ou HAMILTON, 1979, p. 138 e segs.
Ver, para isso, cláusula 3ª da Seção 2ª do art. 1º da Constituição dos Estados Unidos da América, verbis: “Os representantes, bem como os impostos directos, serão distribuídos pelos diversos estados da União, de harmonia com a respectiva população; e estas será determinada acres-
Revista da Faculdade de Direito da FMP – 2013, n. 8, p. 61-88
80
Maren Guimarães Taborda
Quanto ao Senado, segundo a concepção dos “pais fundadores” da República Norte-Americana, é a representação dos Estados em termos equânimes:
independentemente do tamanho do Estado e do número de habitantes, têm assento na Câmara Alta dois senadores por Estado, designados por seis anos
pela Assembleia Legislativa respectiva (Seção III, 1, da Constituição dos Estados Unidos da América). Assim, Madison,94 verbis: “[...] a igualdade de votos,
concedida a cada Estado, é ao mesmo tempo o reconhecimento constitucional
da porção de soberania que se lhes deixa e o meio de sustentá-la [...]”. À diferença dos membros da Câmara, os senadores não podem ser menores de 30
anos e devem ser cidadãos há, pelo menos, 9 anos (Secção III, 3, da Constituição). Câmara e Senado formam, assim, o Congresso – órgão complexo, com
atribuições materiais legislativas, executivas e jurisdicionais.95
No que tange ao poder executivo, para que se defenda, deve possuir a
arma do veto absoluto, de modo a compensar sua fraqueza diante do excesso
de influência que pode ter o Legislativo.96 De fato, na Secção VII, 2 e 3, da
Constituição, está previsto que qualquer projeto de lei votado pelo Congresso
deverá ser apresentado ao Presidente, para sua aprovação. Em caso de desaprovação – veto –, as câmaras devem reexaminá-lo e o mesmo só será convertido em lei após a aprovação da maioria qualificada (2/3) de cada câmara.
Nos casos em que é exigido o concurso do Senado e da Câmara, o projeto,
para se tornar executório, também necessita da aprovação do Presidente e, na
hipótese de veto, o mesmo também só será derrubado pela deliberação favorável de dois terços das câmaras. Além disso, de modo a garantir a segurança
94
95
96
centando três quintos de todas as outras pessoas ao número total das pessoas livres, incluindo
as que prestarem serviço obrigatório por período certo, mas não os índios que paguem impostos.
O recenseamento realizar-se-á no prazo de três anos a seguir à primeira reunião do Congresso
e, a partir daí, de dez em dez anos, conforme a lei dispuser. O número de representantes não
excederá a um por trinta mil pessoas, embora cada estado deva ter, pelo menos, um representante” (texto conforme MIRANDA, Jorge (Org.). Textos históricos de direito constitucional. Lisboa: Casa da Moeda, 1990. p. 38.) Doravante se utilizará esta edição dos textos constitucionais
norte-americanos.
MADISON, 1979, p. 143.
De acordo com a Secção II, 5, da Constituição, é da competência da Câmara a acusação por
crime de responsabilidade (impeachment). Ao Senado, por outro lado, cabe o julgamento dos
crimes de responsabilidade e a tarefa de ser uma espécie de conselho do governo, exercendo,
assim, funções executivas, uma vez que certos atos do Presidente dependem de seu parecer
e consentimento (Constituição de 1787, Artigo II, Secção 2). Em caso de julgamento do Presidente da República, quem preside a sessão é o Presidente do Supremo Tribunal (Chief Justice),
conforme Secção III, 6. Quanto à competência do Congresso, constata-se, pela Secção VIII, que
é também executiva, já que este pode cobrar taxas e impostos, contrair empréstimos, cunhar
moeda, criar estações e construir estradas de correios, organizar os tribunais, recrutar e manter
exércitos, declarar guerra, organizar e manter a marinha e “convocar milícias para execução das
leis da União, reprimir insurreições e impedir invasões”.
HAMILTON ou MADISON, 1979, p. 131: “[...] a fraqueza do poder executivo, pela sua parte, pede
que seja fortificado. O veto absoluto é, à primeira vista, a arma mais natural que pode dar-se ao
poder executivo para que se defenda [...]”.
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A tese de Montesquieu e a práxis dos pais fundadores da República Norte-Americana
81
da sociedade contra ataques estrangeiros e à proteção à propriedade “contra
tentativas dos poderosos para transformar o curso ordinário da Justiça” e o
vigor do poder executivo, é necessário que este resida nas mãos de um só,
isto é que seja unitário.97
Neste particular, Hamilton defende a unidade do poder executivo utilizando-se, amplamente, dos exemplos da República Romana, corroborando as
asserções de Arendt,98 no sentido de que os homens das revoluções do séc.
XVIII se voltaram para a Antiguidade romana em busca de inspiração e orientação, não por romantismo ou por apego à tradição, mas porque descobriram
nos antigos uma dimensão não legada pela tradição, que poderia servir de
modelo e precedente para suas próprias experiências, qual seja, que a autoridade e a estabilidade de qualquer corpo político residia no seu início, ou como
ela mesma diz:
[...] foi a autoridade contida no próprio ato de fundação, e não na crença de um
Legislador Imortal, nem as promessas de recompensa e as ameaças de punição
num “futuro estado”, e nem mesmo o duvidoso caráter axiomático das verdades
enumeradas no preâmbulo da Declaração de Independência, que assegurou estabilidade à nova república.
Já os membros do poder judiciário, além de serem dotados de conhecimentos particulares e indispensáveis, devem ter cargos vitalícios, não dependendo “daqueles a quem deverem a nomeação”,99 de modo que, afirmada sua
independência, não sofrerão intimidação, sujeição ou influência dos poderes
rivais. A inamovibilidade e a vitaliciedade dos juízes são elementos indispensáveis da organização do poder judiciário, bem como da “cidadela da justiça
e segurança pública”.100 Essas garantias, efetivamente previstas no artigo III,
Secção I, da Constituição dos Estados Unidos da América,101 partem da concepção de que o judiciário, pela natureza de suas funções, “é o menos temível”,
porque não dispõe da “bolsa” ou da “espada”: “sem força e sem vontade, apenas lhe compete o juízo”.102 Assim, se o poder judiciário é o mais fraco dos três,
se não pode, por isso mesmo, atacar nenhum dos demais “com boa esperança
de resultado”, é preciso que lhe sejam dados todos os meios possíveis de defender-se dos outros dois.
97
HAMILTON, 1979, p. 156.
ARENDT, 1990 p.156 e segs.
99
HAMILTON ou MADISON, 1979, p. 131.
100
HAMILTON ou MADISON, 1979, p. 162.
101
Verbis: “O Poder Judicial dos Estados Unidos incumbirá a um supremo tribunal e diversos tribunais inferiores a instituir oportunamente pelo Congresso. Os juízes, quer do Supremo, quer dos
tribunais inferiores, conservar-se-ão nos seus cargos de acordo com o seu mérito (during good
behaviour) e perceberão regularmente um subsídio pelos seus serviços, o qual não poderá ser
diminuído enquanto se mantiverem em exercício”.
102
HAMILTON ou MADISON, 1979, p. 162.
98
Revista da Faculdade de Direito da FMP – 2013, n. 8, p. 61-88
82
2.3
Maren Guimarães Taborda
O controle formal de constitucionalidade
Das inovações trazidas pela Revolução Americana, talvez a mais importante tenha sido o estabelecimento de uma instituição concreta destinada ao
exercício da autoridade (que não se assenta nas leis e sim na tradição): o ramo judiciário do governo. No modelo romano copiado pelos pais fundadores, o
poder estava no povo e a autoridade (auctoritas),103 em uma instituição política
– o Senado.
Os fundadores, entretanto, ao mudarem a localização da autoridade, compreenderam que a sua majestade nacional se manifestava através das cortes
de justiça e que esta tornava o judiciário inadequado para o poder da mesma
forma que, em sentido inverso, o poder legislativo tornava o Senado (americano) impróprio para o exercício da autoridade. Assim, foi precisamente a falta de
poder e a permanência no cargo que transformou a Suprema Corte americana
na verdadeira sede da autoridade, exercida através de uma contínua formulação da Constituição. A partir daí, a Suprema Corte tornou-se, de fato, “uma espécie de assembleia constitucional em sessão permanente”,104 instituindo o
103
Auctoritas (autoridade) é o prestígio social de uma pessoa ou instituição e “princípio da autoridade”, o conceito de que a autoridade deve ser valorizada na vida social e na vida jurídica.
Este princípio exerceu função decisiva na regulação da família e do Estado (a união das famílias) romanos. Com efeito, a vida familiar romana se baseava em relações autoritárias de supremacia do pater. A soberania doméstica implicava domínio absoluto sobre pessoas e bens:
ao lado dos escravos e dos estrangeiros, que no campo do direito privado estavam submetidos
ao domínio ou podiam cair nele, encontravam-se todas as pessoas submetidas à potestas,
que no direito privado estão em propriedade alheia, mas do ponto de vista da civitas (Estado),
se denominam liberi, em contraposição aos escravos. Assim, fora da relação mesma de supremacia, não podiam existir relações de direito privado entre o titular do poder e seus submetidos.
Como a vida do Estado também estava organizada segundo o princípio da autoridade, todo o direito das magistraturas estava construído com a finalidade de valorizá-la e conservá-la. Nas mãos
dos titulares do imperium supremacia do Estado que se personifica no magistrado), como também dos censores, edis e tribunos, residia a pública disciplina, como nas mãos do paterfamilias
a disciplina doméstica. O Senado era instituição política concreta que traduzia a autoridade, uma
vez que os senadores – patres da República – dela estavam investidos porque reencarnavam
os ancestrais, cuja autoridade no corpo político derivava de terem fundado a cidade. Daí, através
dos senadores, os fundadores se faziam presentes, “e, com eles, o espírito da fundação, o começo, o principium e a norma daquelas res gestae, as quais, a partir de então, formaram o povo de
Roma. Pois auctoritas, cuja raiz etimológica é augere (aumentar e desenvolver-se), dependia
da vitalidade do espírito da fundação, em virtude da qual foi possível aumentar, desenvolver e
ampliar os fundamentos que haviam sido estabelecidos pelos ancestrais” (ARENDT, 1990, p.
161). A espinha dorsal da história de Roma foi, então, a coincidência da autoridade, da tradição e
da religião, que emergiram simultaneamente do ato de fundação. Para estas considerações, além
de Arendt ver, principalmente: SCHULZ, Fritz. Princípios de derecho romano. Barcelona: Ariel,
1996. p.187-209; MOMMSEN, Teodor. Compendio del derecho publico romano. Buenos Aires:
Impulso, 1942. p. 11- 19; ARANGIO-RUIZ, Vicente. Historia del derecho romano, p. 38-39.
104
Wilson Woodrom, como citado por Edward Corwin, em: “The ‘Higher Law’ background of American
Constitutional Law”, Harvard Law Review, v. 42, p. 3, 1928 (Apud ARENDT, 1990, p. 161).
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A tese de Montesquieu e a práxis dos pais fundadores da República Norte-Americana
83
controle judicial formal105 de constitucionalidade, “a única contribuição da América à ciência do governo”.106
Com base nessa premissa, Grant107 sustentou a tese de que o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis – judicial review of legislation – foi,
efetivamente, uma contribuição da América à ciência política, uma vez que “a
confiança nos tribunais para fazer cumprir a Constituição como norma superior
às leis estabelecidas na legislatura nacional operou-se graças ao seu surgimento ali, realizado no séc. XVIII, para difundir-se posteriormente em outros Estados”. Como é sabido, a institucionalização do judicial review se deu no caso
Marbury vs Madison, julgado pela Suprema Corte em 1803, no qual foi afirmado:
Há somente duas alternativas [...]: ou a Constituição controla qualquer lei contrária
a aquela, ou a legislatura pode alterar a Constituição mediante lei ordinária. Entre
tais alternativas não há termos médios: ou a Constituição é a lei suprema, inalterável por meios ordinários, ou se encontra no mesmo nível que as leis, e, portanto,
como qualquer delas pode reformar-se ou deixar sem efeito sempre que assim
decida o Congresso. Se é certa a primeira alternativa, então uma lei contrária
à Constituição não é lei; mas se ao contrário é verdadeira a segunda, então as
constituições escritas são tentativas absurdas do povo para limitar um poder ilimitável por natureza.108
O judicial review of legislation pode ser entendido como a judicialização
da Constituição escrita no contexto institucional em que o juiz é o protagonista
da experiência jurídica, até porque os juízes estaduais são eleitos e o júri está
presente na grande maioria dos casos (sistema de common law). Como precedentes doutrinários, podem ser apontadas as teses de Coke – “o common
law regula e controla os atos do Parlamento, e quando um ato do Parlamento
for contrário ao direito e à razão comum [...] o common law o controlará e o
105
Luiz Afonso Heck esclarece que, no sentido formal, a jurisdição constitucional se define a partir
do órgão que a exerce; no sentido material, a jurisdição constitucional “pode ser compreendida a
partir do procedimento judiciário (ou arbitral), o qual conduz ao controle de constitucionalidade,
objetivando garantir diretamente a observância da constituição”. Nos dois casos, não é absolutamente correto afirmar que a raiz da jurisdição constitucional é a experiência norte-americana,
uma vez que, na Alemanha, de há muito, já havia a prática do direito ao exame judicial. Reconhece ele, contudo, que o desenvolvimento e a consequente consolidação do direito ao exame
judicial vinculado à teoria do contratualismo e à existência de uma constituição escrita, se deu
a partir da decisão Marbury v. Madison, da Suprema Corte, em 1803. Ver HECK, Luís Afonso.
O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos princípios constitucionais: contributo
para uma compreensão da jurisdição constitucional alemã. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris
Editor, 1995. p. 23-24 e 30.
106
MADISON, In: The federalist, n. 50 (Apud ARENDT, 1990, p. 160).
107
GRANT, James A. C. El control jurisdicional de la constitucionalidad de las leyes: una contribución
de las Américas a la ciencia política. México: Facultad de Derecho de la UNAM, 1963 (Apud
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Aspectos da teoria geal do processo constitucional: teoria
da separação de poderes e funções do Estado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, ano 19, n. 76, p. 99, 1982).
108
Apud GARGARELLA, Roberto. La justicia frente ao gobierno. Barcelona: Ariel, 1996. p. 47.
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84
Maren Guimarães Taborda
julgará nulo e sem eficácia”; de James Otis: “Se o legislador supremo se equivoca será levado aos tribunais do rei pelo executivo supremo. Isso é governo.
Isso é constituição”,109 e evidentemente, as expostas n’O federalista, segundo
as quais as limitações impostas ao poder político pela constituição “só podem
manter-se na prática por meio dos tribunais de justiça, cujo dever será declarar nulos todos os atos contrários ao sentido evidente da Constituição. Sem
isso, todas as garantias relativas a direitos ou privilégios serão letra morta”.110
Com isso, o judiciário norte-americano alcançou um grande poder político, uma
vez que “armado do direito de declarar a inconstitucionalidade das leis, o magistrado americano penetra incessantemente nos problemas políticos”, de modo
que não existe “questão política nos EUA que cedo ou tarde não se resolva como questão judiciária”.111
Considerações finais
O constitucionalismo norte-americano, com seu caráter individualista, teve
como centro da experiência constitucional a preservação dos direitos individuais,
no sentido liberal do termo. Nas palavras de Tocqueville, a civilização anglo-americana “é produto de dois elementos: o espírito de religião e o espírito de
liberdade”.112 Na medida em que ausente a herança feudal e a ideologia revolucionária, o que mais impressionou o observador Tocqueville foi a “a igualdade
de condições” socioeconômicas, que acabou por se constituir em grande vantagem, pois ali houve uma colonização de classe média e grande mobilidade social (favorecida principalmente pela conquista do Oeste).
Na dimensão política da experiência constitucional americana, foram constituídas as bases da democracia liberal, que é uma democracia limitada. Embora afirme o poder do povo, evita a “tirania das maiorias” pela divisão dos poderes
e a imposição de limites jurídicos pela corporação dos juristas. Daí o sistema político resultado possui como elementos, a experiência da fundação, o governo
do povo e a divisão dos poderes (checks and balances).
Retomada a experiência romana da fundação (é princípio, no duplo sentido
de origem e preceito, que marca a identidade de um povo), a experiência constituinte não pode ser reinstaurada, e a tradição dá continuidade ao princípio presente na fundação. Segundo isso, a autoridade repousa sobre a tradição construída a partir da fundação e legitima e limita o poder.
109
110
111
112
MacILLWAIN, Charles. Constitucionalismo antiguo y moderno. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1991. p. 26.
HAMILTON, in O federalista, LXXVIII.
GARGARELLA, 1996, p. 207.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. São Paulo: Edusp, 1987. p. 42. “Os fundadores da Nova Inglaterra eram ao mesmo tempo, ardorosos sectários e inovadores exaltados.
Cercados dentro dos limites mais estreitos de certas crenças religiosas, eram livres de todo preconceito político. [...] Assim, no mundo moral, tudo está classificado, coordenado, previsto, decidido antecipadamente. No mundo político tudo é agitado, contestado, incerto.”
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A tese de Montesquieu e a práxis dos pais fundadores da República Norte-Americana
85
Por outro lado, o federalismo surgido da experiência política norte-americana foi um expediente político constituído de dois elementos fundamentais:
(a) repartição de competências entre o governo nacional e os governos locais
por via de uma Constituição rígida e (b) influência direta e indireta dos Estados-membros nas decisões da União.
Do ponto de vista técnico (jurídico), o conceito de federalismo não tem
conteúdo certo. O que diferencia um Estado Federal de um Unitário é o grau
de descentralização de competências por via de Constituição, pois, nos Estados
Federais, os entes são coletividades que gozam de competências exclusivas
na ordem tanto constitucional quanto administrativa. O que faz um Estado ser
federal não é a existência de um Governo Federal, mas de governos locais.
Na medida em que aumentam os poderes chamados federais decresce a significação do elemento federativo – a força e características federais estão na
razão inversa dos poderes do governo central: onde a competência local é
maior, mais acentuada a Federação.
O federalismo, hoje, é princípio rector, isto é, tido como forma de governo
democrático, justamente pela consideração de que a descentralização é instrumento fundamental do exercício da democracia, porquanto os cidadãos estão
mais perto do poder decisório. A Federação é, nessas condições, um processo
em constante aperfeiçoamento, sendo a transplantação, para o plano geográfico, da tripartição dos poderes do plano horizontal. Por essa razão, a federação só tem realidade do ponto de vista do direito interno. Esta configuração, à
toda evidência, é fruto da experiência política norte-americana do séc. XVIII,
claramente influenciada pela obra de Montesquieu, como se demonstrou.
No Brasil, o modelo teórico de federação não corresponde a uma autêntica e efetiva autonomia das entidades federativas, pois, embora tenha constado
em diversas constituições esta forma de Estado, de fato, muitas vezes, sonegou-se a autonomia dos Estados e Municípios. Foi a Constituição de 1988 quem
devolveu aos municípios a condição de entidade federativa, isto é, de pessoa
jurídica pública-política com autonomia na condução de seus negócios, consoante artigo 1º (Princípios Fundamentais). Os Municípios, assim, no Estado federal brasileiro desfrutam de autonomia similar à dos Estados-membros, visto
que não lhes faltam um campo de atuação delimitado, leis próprias e autoridades suas. A regra de ouro do pacto federativo é, então, a de que nada será
exercido por um poder superior que possa ser cumprido pelo inferior e, nesse
sentido, o Município prefere ao Estado-membro e este à União. Como consequências diretas dos princípios constitucionais, temos as competências legislativa e tributária das unidades territoriais, além de um sistema de repartição de
receitas tributárias, que garantem, igualmente, a autonomia de tais entidades.
De outra parte, a Jurisdição Constitucional, ao ser uma afirmação do
princípio da divisão (separação) de poderes, ou como diz Kelsen, elemento
do sistema de medidas técnicas que têm por fim garantir e regular o exercício
das funções estatais, acaba por ser um dos supostos do Estado Democrático
Revista da Faculdade de Direito da FMP – 2013, n. 8, p. 61-88
86
Maren Guimarães Taborda
de Direito, porquanto serve de contrapeso efetivo entre o Poder Executivo “cada vez mais hegemônico” e o Poder Legislativo cada vez mais “ambíguo em
sua estrutura e funcionamento”.113 É, igualmente, o suposto fundamental para
a preservação dos direitos fundamentais, principalmente os de liberdade. Isso se
deve ao fato de a teoria da separação dos poderes e seu “sistema de freios e
contrapesos” ter sido, inicialmente, uma proclamação política que despertou “a
atenção para as violações constitucionais e os remédios para a atuação ilegal da
autoridade pública”, para acabar sendo consagrada constitucionalmente como
mecanismo de defesa das liberdades individuais e do abuso de poder.114
Dessa forma, a Jurisdição Constitucional pela qual o Poder Judiciário está
intercalado no equilíbrio dos poderes estatais, “dá seu cunho não só à ordem
das funções estatais, mas à ordem constitucional total”, pois influencia a colaboração dos órgãos estatais, “contribui para a conservação da coexistência de
forças políticas diferentes, aproximadamente equilibradas”, sendo, simultaneamente, a condição fundamental de eficácia da Constituição.115
Na perspectiva histórica, constituíram-se, pelo menos, três sistemas de controle de constitucionalidade ou de jurisdição constitucional: puros, especiais ou
mistos. O controle puramente jurisdicional é o de tipo norte-americano, que
se dá através do poder judiciário, em todas as suas instâncias, funcionando a
Suprema Corte como tribunal constitucional, restringindo-se ao controle concreto de constitucionalidade. Nos sistemas especiais, também chamados de controle político (sistema defendido por Kelsen, adotado na Áustria, Alemanha,
Espanha, Portugal, Itália e outros), o controle se dá através de órgão constitucional – Tribunal ou Corte Constitucional – e pode restringir-se à apreciação
prévia de atos normativos, leis (caso da França). Já o sistema de controle misto
ou híbrido, adotado no Brasil, inclui tanto o controle jurisdicional concreto ou
difuso em todas as instâncias do poder judiciário, com decisão, em última instância, do Supremo Tribunal Federal, por meio de recurso extraordinário (CF,
art. 102, III), como o controle abstrato ou concentrado (igualmente jurisdicional),
através de ações diretas ao STF (CF, art. 103). No Brasil, a convivência entre
os dois sistemas clássicos de fiscalização de constitucionalidade tem sido bastante problemática, forçando o STF, os legisladores e juristas a construir soluções que tendem a harmonizá-los. Nem sempre, contudo, as respostas do STF,
ou mesmo do legislador, têm sido coerentes e sistemáticas.116
113
114
115
116
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Aspectos da teoria geral do processo constitucional: teoria da separação de poderes e funções do Estado. Revista de Informação Legislativa, Brasília,
Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, ano 19, n. 76, p. 101, 1982.
BARACHO, 1982, p. 101.
HESSE, cit., p. 419.
Sobre tais contradições, escrevi: Entre morcegos e beija-flores: reflexões críticas sobre jurisdição
constitucional no Brasil. Direito & Justiça, Revista da Faculdade de Direito da PUCRS, jan./mar.
2014 (no prelo).
Revista da Faculdade de Direito da FMP – 2013, n. 8, p. 61-88
A tese de Montesquieu e a práxis dos pais fundadores da República Norte-Americana
87
Em síntese, se, no Brasil, a discussão pública atual gira em torno da possibilidade de se estabelecer controle externo do Judiciário, da eficácia da adoção de súmulas vinculativas, de reforma política e reforma tributária que tentam
resgatar o pacto federativo, dos deveres de transparência, do conteúdo do
princípio democrático e dos sistemas eleitorais, conhecer um pouco mais as
teorias que subjazem às construções constitucionais, bem como a experiência
histórica em que as mesmas se concretizaram, além de útil para a formação
do pensamento jurídico dos juristas, pode ajudar a alargar o horizonte de
compreensão da nossa realidade jurídico-constitucional.
Referências
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu, la política y la historia. Madrid: Editorial Ciencia Nueva, 1968.
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