EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E CORPOREIDADE: A ARTE COMO ESPAÇO DE SIGNIFICAÇÃO DO CORPO Francis Silva de Almeida UFTM [email protected] Osvaldo Dalberio dal Bello UFTM [email protected] Resumo O propósito deste artigo é realizar aproximações teóricas entre os conceitos de estética e corporeidade, a fim de evidenciar o domínio da arte como espaço de significação do corpo. Sublinhando de maneira significativa a construção das ideias filosóficas no século XX e marcando intensamente a produção acadêmica no século XXI, a compreensão fenomenológica do corpo e da corporeidade enseja um conjunto de considerações teóricometodológicas que perpassam a imagem, a tessitura histórico-cultural e a consciência que cada indivíduo constrói sobre o seu próprio corpo. Por isso, buscaremos, por meio da revisitação da história do pensamento ocidental e da promoção de um diálogo entre Foucault (1987a, 1987b, 2006), Deleuze (1992, 1995, 1997) e Merleau-Ponty (1997, 2006), problematizar, no contexto de uma reflexão imanente, o modo como a filosofia, a história e os diferentes arranjos sociais e culturais têm conceituado e caracterizado o corpo. Neste quadro, enfatizaremos os processos de objetivação do corpo observados a partir da Modernidade, para, a partir daí, pensar a arte como espaço da experiência e comunicação do sensível, pois, ao interpenetrarem-se como espaço de vivências singulares e construção de sentidos em devir, o corpo e a arte ou, como bem notou Merleau-Ponty (2006), o corpo como obra de arte, não só comunica sensações, mas, sobremaneira, postula uma áisthesis da resistência reveladora de novas e diferentes possibilidades de ser e estar, novas formas de perceber, conhecer e pensar o mundo e a si mesmo. Palavras-chave: Corpo. Corporeidade. Arte. Experiência Estética. Resistência. Introdução A itinerância intelectual em torno da compreensão fenomenológica do corpo e da corporeidade sublinhou de maneira significativa a construção das ideias filosóficas no século XX e continua marcando, intensamente, a produção acadêmica no século XXI. Neste cenário, a revisitação da obra dos pensadores franceses contemporâneos torna-se imperativa, considerando que o escopo da produção intelectual de filosóficos como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Maurice Merleau-Ponty não só assinalam uma constate atenção ao tempo presente, como criam as condições de possibilidade de um pensamento desterritorializado, constituído de cortes e atravessamentos epistemológicos que desconstroem a lógica estruturalista e positivista herdada da Modernidade. Neste contexto, a problematização das noções de corporeidade enseja um conjunto de considerações teórico-metodológicas que perpassam a imagem, a tessitura histórico-cultural e a consciência que cada indivíduo constrói sobre o seu próprio corpo. Neste entremeio, a questão o que é o corpo?, expõe-se de modo fundamental e balizadora das primeiras investigações a que se propõe este trabalho. O corpo é histórico. A história é entretecida na materialidade encarnada do corpo e nos múltiplos sentidos que a ele foram remetidos nos diferentes arranjos da filosofia e da ciência. O corpo não pode existir fora da história e dos processos culturais. Por isso, segundo Merleau-Ponty, o conhecimento não pode ser reconhecido fora das experiências vivenciadas pelo corpo que se encontra, sempre, recortado pela historicidade. O corpo que conhece e que o faz nos atravessamentos da história é, portanto, um fenômeno situado, pois “tudo o que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 3). O corpo é cultural. A construção simbólica do corpo e as suas representações por meio dos papeis sociais, da afetividade, das diferentes expressões e marcas impressas pela linguagem, pela arte, pelos afetos e pela sexualidade encontram-se ancoradas na natureza das ações políticas e das relações de poder que se inscrevem através do corpo e do modo como distintas culturas dele fazem uso. A este respeito, DaMatta (1986, p. 76) afirma que “em todo o planeta os homens têm o mesmo corpo, mas em toda parte eles o representam, usam, controlam, enterram, torturam e tiram dele prazer de modo diferenciado. A condição humana é corpórea. O labor, o trabalho e a ação – como descreve Arendt (2008), ao detalhar os contextos da ação [vida activa] como formas predominantes da revelação da essência do homem presentificado nas dimensões do político, do social, do público e do privado –, se inscrevem na ação do corpo como extensão da matéria do mundo. Trata-se, segundo a filósofa, “de atividades fundamentais porque cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na terra” (ARENDT, 2008, p. 15). O corpo se revela na percepção do belo. A arte encontra no corpo o lugar dos atravessamentos das sensações que comunicam diferentes modos de expressão criativa e existencial. O corpo encontra na arte uma difusão de traços que esboçam movimentos sempre novos, sempre sinuosos. O corpo e a arte se interpenetram como espaço de vivências singulares e construção de sentidos em devir. Para Deleuze (1997, p. 64) “devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é [...] extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso [...] através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo”. Por isso, o corpo-arte em devir, ou como bem notou MerleauPonty (2006), o corpo como obra de arte, não só comunica sensações, mas, sobremaneira, novas possibilidades de ser e estar, novas formas de perceber, conhecer e pensar o mundo e a si mesmo. Partindo das reflexões preliminares até aqui descritas e do entendimento de que a corporeidade é a dimensão humana mais fundamental, verificamos que algumas questões se colocam balizadoras ao pensarmos a arte como espaço da experiência e comunicação do sensível e, por isso, como condição de possibilidade para a postulação de uma áisthesis da resistência. Desse modo, ao indagarmos como a filosofia tem conceituado o corpo no contexto de uma reflexão imanente e como a história e os diferentes arranjos sociais e culturais têm marcado o corpo, pretendemos, neste artigo, revisitar a história do pensamento ocidental e realizar aproximações teóricas entre os conceitos de estética e corporeidade, destacando o domínio da arte como espaço de significação do corpo-sujeito1. 1 O corpo na história e na filosofia Explorar a história do corpo e a sua ocidentalidade nos remete à revisitação do mundo grego e ao seu extenso e denso conjunto das significações culturais e filosóficas, chamado Paideia2. O conceito de Paideia constituiu-se em dois diferentes momentos, implicando diferentes sentidos na cultura grega. No primeiro momento, quando nos reportamos ao período Arcaico da Grécia Antiga, aproximadamente entre os séculos VIII e V a. C., verificamos que o conceito de Paideia é tecido de modo difuso e indica um padrão genérico 1 A ideia de corpo-sujeito ou corpo-próprio como aparece no texto de Nobrega (2010), revela uma realidade intencional do sujeito. Trata-se de do contraponto da noção de corporeidade criada por Merleau-Ponty em oposição à ideia de corpo-objeto ou corpo-máquina evidenciada da tradição cartesiana. O corpo-sujeito é corpoconsciência que transborda as “experiências expressivas do corpo na experiência vivida” (NÓBREGA, 2010, p. 49). 2 Segundo Jaeger, os gregos deram o nome de paideia a "todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como nós o designamos por Bildung ou pela palavra latina, cultura" (JAEGER, 1995, p. 147, grifo do autor). nitidamente reconhecido pela expressão da palavra paidos (criança). Há, aí, uma referência clara aos modos de criação dos meninos e a sua finalidade, notadamente educativa, limitavase à instrução em ginástica e música. Já no segundo momento, identificado no período Clássico (aproximadamente entre os séculos V e IV a. C.), verificamos um conceito de Paideia balizador do modelo dos valores culturais, remetendo-se à informação, expressão e reflexo dos costumes coletivos transmitidos de geração em geração. Por este motivo, a Paideia grega é aqui tomada como ponto de partida para a compreensão da história do corpo e dos símbolos que lhe foram conferidos ao longo da história do mundo Ocidental. No que diz respeito aos modos de se relacionar com o corpo e com a construção de seus sentidos, formas e representações, o mundo grego, marcado por ambiguidades, ao mesmo tempo em que sinaliza uma cultura do corpo e do cuidado de si – como bem notou Foucault (2006) ao resgatar a noção de epiméleia heautoû –, revela, também, a presença paradoxos que não só situam em lugares antagônicos o corpo e a alma como dimensões distintas, como, sobremaneira, enunciam a existência de uma estratificação que sobrepõe a alma sobre o corpo, valorizando a busca e a vivência das experiências suprassensíveis em detrimento das experiências sensíveis. É, pois, neste cenário que situaremos os primeiros aspectos de uma reflexão filosófica sobre o corpo. Contudo, é importante examinar com maior atenção as variantes que aí se apresentam, a fim de compreender o antagonismo entre a cultura do cuidado de si e da perspectiva socrático-platônica que identifica a alma como princípio de condição e inscrição da própria existência. Na Hermenêutica do sujeito, Michel Foucault, utilizando-se dos textos cínicos, epicuristas e estoicos, resgata o sentido de epiméleia heautoû ou cuidado de si explorando as práticas de cuidado com o corpo e as suas diferentes significações no universo cultural helenístico-romano, identificando o cuidado de si como uma aplicação concreta e particular da regra vinculada a todo o cuidado que um indivíduo deve ter consigo mesmo, apontado, por meio da sua condição corpórea, a evidência da sua relação com o mundo. Segundo Foucault (2006, p. 15), com a noção de epiméleia heautoû, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das teorias, mas na própria história da subjetividade (grifo do autor). Neste sentido, verificamos que a noção de epiméleia heautoû traz à tona uma importante dimensão do fenômeno da corporeidade presentificado no mundo grego, pois ilustra o cuidado de si mesmo, da ocupação e preocupação consigo mesmo como elementos fundamentais na constituição de uma subjetividade vista do corpo encarnado, vivido e experienciado, indicando uma relação “singular, transcendente, do sujeito em relação ao que o rodeia, aos objetos que dispõe, como também aos outros com os quais se relaciona, ao seu próprio corpo e, enfim, a ele mesmo” (FOUCAULT, 2006, p. 50). Por sua vez, o ideário socrático assinala que a vida humana só tem sentido se aludida a uma vida interior, a uma interioridade presente em cada homem. Essa interioridade, designada por Sócrates como psyché, encerra o homem em sua própria alma, numa dinâmica antropológica que aborda, de forma clara, a primazia da metafísica sobre as experiências sensíveis e vivências do corpo. À espreita de Sócrates, a identidade humana, construída sobre a égide da psyché, sublinha que ser homem é viver em conformidade com as orientações da alma, dimensão incorpórea que o distingue de tudo o mais. É importante evidenciar que Sócrates entende por alma a razão, o imperioso espaço de constituição da atividade pensante e eticamente operante em cada ser humano. A alma é o euconsciente e, neste lugar, as personalidades intelectual e moral do homem se manifestam. Por este motivo, a filosofia socrática é direcionada para a educação da alma e para o cultivo das virtudes morais, alcançada pelo controle das paixões e condução da vontade e dos sentidos na busca do que há de mais nobre: a contemplação, o bem e a beleza. Na Apologia, a narrativa de Xenofonte dá contornos ainda mais claros à perspectiva socrática de soberania da alma – perfeita e eterna –, em relação ao corpo – corruptível e perecível. Na terceira parte do texto, ao abordar o que significa morrer, o discípulo de Sócrates, pretendendo descrever suas últimas palavras, remete ao mestre o seguinte discurso: Ou aquele que morre é reduzido a nada e não tem mais qualquer consciência, ou então, conforme o que se diz, a morte é a mudança, uma transmigração da alma do lugar onde nos encontramos para outro lugar. Se a morte é a extinção de todo sentimento e assemelha-se a um desses sonos nos quais nada se vê, mesmo em sonho, então morrer é um ganho maravilhoso. [...] Por outro lado, se a morte é como a passagem daqui para outro lugar, e se é verdade, como se diz, que todos os mortos aí se reúnem, pode-se, senhores juízes, imaginar maior bem? (XENOFONTE, 1996, p. 8). As vozes do discurso presentes no texto de Xenofonte evidenciam que o projeto filosófico socrático não só encontra apoio sobre uma perspectiva dualista que coloca em dimensões incomunicantes o corpo e a alma, o material e o imaterial, o corpóreo e o incorpóreo, como, sobremaneira, enfatiza que a realidade metafísica da alma é o princípio de condição e inscrição da própria existência física. Herdeiro intelectual de Sócrates, Platão afirma que o ordenamento da existência humana configura uma realidade de transcendência. É, portanto, no plano do eidos, das ideias que manifestam a forma pura, perfeita, eterna, imutável e incorpórea da realidade que o homem encontra a sua origem e, a alma, o seu destino. O corpo, segundo a perspectiva socrático-platônica, representa para a alma um cárcere que só pode ser encerrado com a morte, haja vista que a vida humana, terrena e mundana é apenas uma peregrinação para o estágio final para o qual a alma se destina. Contudo, enquanto o homem encontra-se vivo, ele representa a união indissolúvel de um corpo mortal com uma alma ideal e imortal. Trata-se de um dualismo psicofísico que inscreve o corpo humano como extensão do mundo sensível e a alma, como extensão do mundo ideal. É possível, entretanto, que antes da morte a alma encontre o seu fim. Contudo, é necessário que ela esteja purificada das experiências sensoriais e de prazer vividas pelo corpo. Para esse efeito, Platão afirma que há dois caminhos de libertação que necessariamente devem ser percorridos pela alma: o da reminiscência e da katársis. Ambos os caminhos apontados pelo filósofo são percorridos pela alma através da ascensão dialética que a conduz ao abandono do mundo das percepções construído na mundanidade do corpo para alcançar, por meio da transcendência da realidade corpórea, a noesis, vértice da contemplação intelectiva das ideias, realidade que lhe é conatural. À medida que o conhecimento possibilita à alma passar de um mundo ao outro, do mundo sensível ao mundo suprassensível, a purificação a conduz da realidade das aparências para a autêntica dimensão do ser, plano em que se nota a alma como a extensão do mundo ideal. Sobre este processo, Platão (2004, p. 228), afirma que quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre a minha esperança, já que desejas conhece-la. [...] Em todo o caso eis o que me aparece tal como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível aparece-me a ideia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e belo. No pensamento socrático, platônico e aristotélico pode ser identificado um traço antropológico comum que identifica o homem à dimensão da racionalidade. Divergente à perspectiva do dualismo psicofísico de Platão, Aristóteles sublinha a noção de hilemorfismo, segundo a qual todas as coisas são resultantes de dois princípios que, embora diferentes, são comunicantes e complementares: a matéria e a forma. Por matéria, Aristóteles compreende o princípio físico de que todas as coisas são constituídas, e por forma, o princípio metafísico que determina que as coisas sejam aquilo que elas são. A forma é, desta maneira, o que anima a matéria, conferindo-lhe o movimento. Verificamos que há na compreensão aristotélica do corpo uma razão complementar que situa matéria e forma como realidades inseparáveis e dialogantes e, por isso, o homem é ao mesmo tempo sôma e psyché, síntese perfeita entre corpo e alma como fundamento de uma corporeidade situada, existencial, pois, como notou Aristóteles “as coisas produzidas pela habilidade são aquelas cuja forma está na alma de quem as produza [e por forma entendo o que o ser é para cada coisa e sua substância primária]” (1996, p. 32-33). A cultura medieval, fortemente marcada pelo poder religioso e aristocrático da igreja católica, legou ao corpo, por meio da moralidade cristã, um lugar marginal. Ao assimilar a obras de Platão e dos neoplatônicos à doutrina cristã, os pensadores da patrística redirecionaram a perspectiva platônica do Bem, identificando-o a Deus, e, por este motivo, o corpo passou a ser o templo de habitação da alma. Assim, se para Platão, a alma, tendendo ao seu lugar de origem precisa superar o mundo das percepções construído na mundanidade do corpo, para os medievais, sendo o corpo o lugar sagrado em que a habita a alma, identificada à perfeição divina, torna-se fundamental resguardá-lo da mácula do pecado, causada pelo propósito dos vícios e pela subversão carnal. Neste contexto, o corpo passou a ser o caminho através do qual a igreja exerceu o seu poder de controle sobre o homem, determinando a existência como lugar da contemplação espiritual e purificação. Ao responder os preceitos religiosos, o homem medieval, moldado por uma fórmula teológica aportada sobre o medo da condenação eterna, preocupava-se muito mais com a salvação da sua alma e, por influência da igreja, renunciava aos bens materiais e os prazeres provocados pelo corpo3. Marca do vértice da Revolução Científica, iniciada nos séculos XV e XVI com as investigações cosmológicas de Nicolau Copérnico e Galileu Galilei, o século XVII representa um momento de profundas transformações no território da ciência e das técnicas e, de modo especial, no modo como estas transformações implicaram o campo da filosofia e as questões relativas à essência humana, à moral, à política, à educação e, consequentemente, na compreensão do corpo e na construção de noções de corporeidade. 3 Segundo Foucault, o controle imposto pela doutrina religiosa por meio de práticas que determinavam o hábito de vestir-se e limpar-se, bem como o controle sobre o desejo, o sexo e o prazer, estabeleceu o legado da tradição cristã do valor às “pequenas coisas” e, por consequência, o grande responsável pela constituição dos dispositivos de disciplina e do controle sobre o corpo (FOUCAULT, 1987a). Ao conceber o homem como um ser constituído por duas substâncias distintas 4 – a res cogitans, substância pensante, de natureza espiritual: o pensamento, e a res extensa, de natureza material: o corpo – Descartes redimensiona o dualismo psicofísico já anunciado em Platão, concebendo o corpo como simples objeto. A ideia de corpo-objeto em Descartes não apenas nega a concepção vitalista de existência, como postula, pelos vieses da concepção mecanicista, que o corpo age e se comporta como uma máquina, funcionando de acordo com as leis universais da ciência. A concepção de corpo-máquina ou corpo-objeto, sublinhada na filosofia cartesiana, intensificou a busca pela compreensão do corpo como estrutura. Associada à ampliação dos estudos de anatomia por meio da invasão e dissecação dos corpos dos cadáveres, a ideia de corpo-máquina lança sobre as partes do corpo humano e seu funcionamento o olhar secularizado da ciência. Este novo olhar, supressor dos pressupostos da doutrina cristã, impõem um comportamento moral livre, marcando com objetividade a natureza física e biológica do corpo, identificando-o aos demais objetos de estudo da ciência. Segundo o dualismo psicofísico cartesiano, embora diferentes, o corpo e a alma não são substâncias incomunicantes, mas, ao contrário, constituem certa relação de interdependência. A alma necessita do corpo, pois é ele que, pela imaginação, fornece os elementos sensíveis do mundo. Contudo, cabe à alma, submeter-se à vontade da razão para controlar as paixões que prejudicam a atividade intelectual e provocam a tristeza. Ainda que interdependentes, a res cogitans encontra-se, no paradigma cartesiano, superior a res extensa, posto que “a maior felicidade do homem depende desse reto uso da razão e, por conseguinte, que o estudo que serve para adquiri-lo é a mais útil ocupação que se possa ter, como é, sem dúvida, a mais agradável e mais doce” (DESCARTES, 1973, p. 319). Alcançando o século XX, verificamos que o pensamento filosófico da escola francesa contemporânea lança sobre o corpo um novo olhar e, por meio desta ressignificação dos sentidos do corpo, empreendida especialmente por Maurice Merleau-Ponty e Michel Foucault, o conceito de corporeidade é deslocado para o espaço da existência, do acontecimento, da mundanidade e das percepções. Nesse novo cenário, Foucault, ao dedicar-se a “criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” (RABINOW; 4 Neste contexto, observamos que o paradigma cartesiano contribuiu significativamente com a construção de uma nova concepção de corpo. Segundo Rodrigues (1999, p. 60), foi René Descartes que levou “no mundo moderno, às últimas consequências na distinção entre res extensa (extensão, corpo, matéria) e res cogitans (pensamento, consciência racional) [...] desenvolvendo uma concepção maquinal atualmente conhecida como mecanicismo cartesiano” (grifo do autor). DREYFUS, 1995, p. 231), pressupõe três formas de objetivação dos seres humanos, tornados sujeitos, nas seguintes linhas problematizadoras: a) o modo da investigação, ou seja, a objetivação do sujeito produtivo; b) a objetivação do sujeito nas práticas divisoras, isto é, o modo como se constitui ou, em outras palavras, a forma como cada sujeito vai se constituindo ao longo da vida, seja este modo considerado a partir de questões internas (a sua própria identidade), seja considerado a partir de questões externas (o que lhe é ensinado); e, por fim, c) a forma na qual o ser humano se torna um sujeito. Deste modo, a palavra sujeito pode ser apreendida de duas formas específicas: “sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 231). Nos dois casos, há uma forma de poder que tem sob domínio o indivíduo, tornando-o sujeito a, ou seja, sujeitado a algo. Estas formas são capazes de explicar como uma pessoa é individualizada por um processo geral de objetivação, vindo a se constituir sujeito. Evidentemente, esta acepção de sujeito é válida apenas no sentido que significa o assujeitado por relações exteriores – sujeito a alguém. Com efeito, compreendemos que o projeto filosófico de Foucault remonta uma atualizada e radical reflexão a respeito do sujeito e das suas relações com o saber, o poder e a verdade. Trata-se, assim, de “[...] discutir o problema da constituição do sujeito em Michel Foucault, constituição que se dá no presente e que fabrica, para o presente, um tipo específico de indivíduo” (FONSECA, 2003, p. 10). Ao empreender, como parte de seu projeto intelectual, a busca pelas origens das relações de saber e de poder5 e o meio pelo qual o poder encontra fortuna nas diversas relações que se estabelecem entre os indivíduos e nas várias dimensões do corpo social, Foucault traz à tona os conceitos de disciplina6 e de controle. Enquanto definição de base, a 5 É válido afirmar que, para Foucault, o processo de instalação do poder se dá nas relações, na ação ou conjunto de ações de um indivíduo sobre o outro, no exercício do status que o poder confere a um ou a outro. Neste contexto, percebemos no poder características de mobilidade e este, por sua vez, quando pulverizado sobre as diversas relações, exprime-se por sua função social. Equivale dizer, seguindo a esteira de Foucault, que o poder não se encontra localizado somente nas ações do governo sobre a população, nem no Estado – compreendendo-o como organismo político instituído –, como visualiza a concepção marxista, mas presentifica-se em todos os lugares, em todas as esferas e classes sociais e atinge todas as pessoas. Ele se dissemina e se articula exercendo papéis de ajuste da multiplicidade dos homens e a multiplicação dos aparelhos de produção (FOUCAULT, 1987a). Assim sendo, não existe poder único, mas práticas de poder no cotidiano, espalhadas por todas as estruturas sociais – micro e macroestruturas – por meio de um conjunto de mecanismos, dentre os quais destacase a disciplina. 6 “A disciplina é uma anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 1987b, p. 120), ressalta Foucault ao chamar a atenção para o resgate da história da racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no controle político. A era clássica é o momento histórico em que há a aceleração da racionalização do detalhe e sua instrumentação precisa, ou seja, da constituição dos mecanismos que possibilitavam calcular precisamente os dispositivos disciplinares. disciplina é uma “[...] caracteriza-se por um certo número de técnicas de coerção que exercem um esquadrinhamento sistemático do tempo, do espaço e do movimento dos indivíduos e que atingem particularmente as atitudes, os gestos, os corpos” (REVEL, 2005, p. 35). Por sua vez, o controle designa toda uma série de mecanismos instrumentalizados de vigilância, cuja origem verifica-se, também, entre os séculos XVIII e XIX, e que objetivam a correção do desvio do comportamento sem operar diretamente os mecanismos de punição. Neste sentido, “toda a penalidade do século XIX transforma-se em controle, não apenas sobre aquilo que fazem os indivíduos [...] mas sobre aquilo que eles podem fazer, daquilo que eles estão na iminência de fazer” (FOUCAULT apud REVEL, 2005, p. 29). O desenvolvimento do conceito de disciplina na obra de Foucault revela uma microfísica do poder, instituída para controle e sujeição do corpo, cujo objetivo é tornar o indivíduo dócil e útil7. Trata-se de uma “anátomo-política” de coerção para domínio do corpo do outro “não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer” (FOUCAULT, 1987b, p. 119). Sobre o corpo do indivíduo há a incidência de duas concepções: a anátomo-metafísica, cuja fundamentação é cartesiana [levando em consideração a dualidade e separação entre corpo e alma] e a técnico-política, que se constitui por um conjunto de regulamentos militares, escolares e por processos empíricos e refletidos para controlar e corrigir as operações do corpo. A associação das duas concepções legitima, segundo uma espécie de teoria do poder, o controle sobre o corpo. Neste contexto, os princípios da disciplina constituem-se por meio de três métodos de adestramento e docilização dos corpos: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. Por vigilância hierárquica compreendemos um sistema de poder sobre o corpo, integrado por redes verticais de relações de controle, exercidas por dispositivos observatórios que obrigam pelo olhar, pelos quais as técnicas de ver, operantes sobre a completa visibilidade dos envolvidos, produzem efeitos de poder, como ocorre nas fábricas, por exemplo. Assim, o olhar permite o controle contínuo dos processos de produção e funciona como operador econômico inseparável do sistema de produção, da propriedade privada e do lucro (FOUCAULT, 1987a). A sanção normalizadora, por sua vez, existe como um sistema duplo de recompensa e de punição, instituído para corrigir e minimizar os desvios, 7 Como política de controle e domínio da energia produtiva individual nas sociedades modernas, a disciplina estrutura-se por elementos e princípios específicos. Assim, para Foucault, os elementos da disciplina são os seguintes: a) a distribuição dos corpos, conforme funções predeterminadas; b) o controle da atividade individual, pela reconstrução do corpo como portador de forças dirigidas; c) a organização das gêneses, pela internalização e aprendizagem das funções, e, d) a composição das forças, pela articulação funcional das forças corporais em aparelhos eficientes. especialmente em face das micro-penalidades baseadas no tempo, na atividade e nos comportamentos, fundadas em leis, programas e regulamentos, em que a identidade dos modelos determina a identificação dos sujeitos (FOUCAULT, 1987a). Por fim, o exame representa a coexistência das técnicas da hierarquia (vigilância) com técnicas de normalização (sanção), em que as relações de poder criam o saber e constituem o indivíduo como efeito e objeto de relações de poder e de saber (FOUCAULT, 1987a). Ao tomar para si, como objeto de investigação, os mecanismos disciplinares, Foucault não empreende somente uma rigorosa reflexão em torno do objeto [a disciplina], mas um estudo genealógico por meio do qual faz imprescindíveis apontamentos acerca do nascimento da disciplina e de como esta, como método, postula uma “anatomia política” ou, em outras palavras, uma “mecânica do poder”. Foucault aponta os mecanismos disciplinares com os quais o poder é exercido sobre o corpo – corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam (FOUCAULT, 1987a). O corpo torna-se, então, objeto e alvo de poder. Assim, afirma o filósofo, “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições e obrigações” (FOUCAULT, 1987b, p. 118). E, ao impor sobre ele obrigações, limitações e proibições surge a noção de docilidade, qual seja, a de um corpo dócil que pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfeiçoado em função do poder. A “anatomia política” como teoria, conforme sugere Foucault, não surge subitamente, mas “como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos” (FOUCAULT, 1987b, p. 119). Há, aí, o grande perigo de que a “anatomia política” se torne imperceptível. Sua natureza minimalista e possível invisibilidade a faz movimentar-se de um ponto a outro – entre instituições – e articular-se entre esses pontos, de modo que estes realizem movimentos de repetição e apoio. Desta forma, como realidade observável e passível de análise, a “mecânica do poder” assume para si uma estrutura cada vez mais sólida e coesa. Na obra Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty, ao propor a desconstrução do paradigma cartesiano do cogito que subjaz a existência à substância do pensamento, situa a compreensão da consciência no próprio corpo (MERLEAU-PONTY, 2006). A consciência do corpo se constitui das percepções criadas a partir do conhecimento que ele produz, portanto, das representações de sua exterioridade. 2 A arte como espaço de construção dos sentidos do corpo O propósito de buscarmos nos domínios da arte o espaço da construção dos sentidos do corpo encontra a sua fundamentalidade na compreensão que dela temos como fenômeno, como experiência profundamente humana e que se revela nos desdobramentos da relação do homem com o mundo. Como fenômeno, a arte não só faz emergir um estado de sentidos e significados sobre as diferentes expressões utilizadas pelo homem para representar-se a si mesmo, ao seu tempo e a forma imanente dos arranjos da existência, mas, como desvelamento do corpo perceptivo, torna possível a experiência da áisthesis como condição de possibilidade para a superação da perspectiva reducionista enunciada pela ciência, ampliando a compreensão do corpo-sujeito, enraizado de consciência e marcado pelos atravessamentos da história e da cultura (MERLEAU-PONTY, 2006). No modo como propomos aqui, os domínios da arte implicam o lugar em que se situa a possibilidade de “compreender o humano e a sua condição de corpóreo em incessante movimento, admitindo diferentes interpretações, pautadas na circularidade ou recursividade dos fenômenos” (NÓBREGA, 2010, p. 63). Derivada da forma latinizada do grego technê, a palavra arte significa “em geral, [o] conjunto de procedimentos que servem para produzir um certo resultado” (LALANDE, 1999, p. 89). À vista desta definição, compreendemos que, desde a pré-história, a arte constitui o universo das ações humanas. A pintura rupestre, traço ancestral sobre as paredes das cavernas, ao tempo mesmo em que revela o cotidiano do homem primitivo, comunica uma forma e compreender a existência na relação do corpo com o outro presentificado nas pessoas, nos animais e no próprio universo. Na cultura grega, desde a tradição oral de Homero e Hesíodo, a arte representa uma importante marca na impressão de sentidos aos acontecimentos que subjazem a existência. A oralidade, como instrumento de transmissão dos saberes dados pela mitologia para explicar a origem do universo, dos deuses e dos homens, marcam na mesma intensidade com que observamos nas sociedades primitivas, uma experiência estética que perpassa o corpo e as suas percepções. Segundo Jean-Pierre Vernant (2000), o mito é palavra poética que dá vida e que, decorrendo dos desdobramentos da memória sobre a oralidade e a tradição, revelam um rico campo de polissemia e diferentes planos de significação. Contudo, com o advento do racionalismo platônico a poesia sofre profundas críticas em virtude de sua natureza perceptiva e imaginativa. Ao referir-se à poesia como um saber sem fundamentação racional, Platão reitera o papel da filosofia como pressuposto da racionalidade que se dirige ao horizonte da verdade, do bem e do belo que se encontram na vida contemplativa que só pode ser alcançada na supressão do corpo e dos seus sentidos. Acompanhando a crítica à poesia, Platão (2004, p. 334) dirige-se, também, à arte, afirmando que “o poeta imitador instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte irracional, que não distingue entre o que é maior e o que é menor [...] sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância da verdade”. Compreendemos que, para Platão, a arte, enquanto imitação da realidade situada na esfera do sensível distancia o homem da verdade, pois, fixando-o na dimensão das aparências e dos prazeres sensíveis, insiste numa passividade que atêm a uma metamorfose na variação das formas, impedindo-o de alcançar a contemplação das ideias, formas puras, perfeitas e imutáveis. A palavra estética, “termo grego para a experiência da beleza [...] expressa etimologicamente a ação – corporal e anímica – de ‘sugar para dentro’, ‘inspirar’ (como um ar) e ‘agarrar envolvendo’. Áisthesis conota percepção vital, antes que um sofisticado ‘esteticismo’” (ASSMANN, 1996, p. 237, grifo do autor). Neste sentido, a experiência estética determina a busca pela compreensão racional e transcendente do belo, e por isso, como bem notou Nóbrega (2010, p. 96), “trata-se da possibilidade de um conhecimento aberto, que considera necessário reduzir a dicotomia entre a razão e o sensível para construir uma racionalidade abrangente”. O conceito de beleza remonta a tradição da filosofia grega e medieval. No cenário do mundo grego, ganha destaque a epistemologia platônica, pois, ao reafirmar o caminho da contemplação intelectiva como acesso à verdade, Platão, reitera a fundamentalidade de superação das percepções corpóreas e das imitações da realidade criadas pela arte, para buscar no mundo das ideias, o belo como forma pura e perfeita. Sobre a contemplação do belo, o filósofo assim se pronuncia: “[...] Eis o termo da vida humana. Para atingir este ponto vale a pena ter vivido! Chegar à contemplação da Beleza em si mesma, Beleza que te importará mais do que qualquer coisa, beleza pura, sem escória, sem mistura, o belo divino, na unidade de sua forma” (PLATÃO apud ASSMANN, 1996, p. 238). Na Idade Média, associada à experiência estética, introduz-se a ideia de artes liberais e artes manuais, criando-se uma estratificação que não somente distinguiu a produção artística, como reconheceu a superioridade da alma racional sobre a dimensão corporal. Nesse entremeio, à exemplo da epistemologia platônica, a beleza passa a ser concebida como manifestação da perfeição divina e a beleza do mundo apenas reflexo da obra criadora. Somente na Modernidade, especialmente afetada pela teoria empirista e pelas contribuições de Alexander Baumgarten Baumgarten e Immanuel Kant, o belo e as suas formas foi desvinculado das dimensões ética e religiosa, passando a ser concebido como a capacidade de um objeto para produzir uma experiência agradável. Os desdobramentos da estética postulados a partir da Modernidade, produzem na contemporaneidade ressonâncias que ampliam, ainda mais, a compreensão da arte como espaço de construção dos sentidos por meio de uma áisthesia do corpo. Neste novo cenário desenhado por filósofos como Merleau-Ponty, Deleuze e Guattari, por experiência estética, compreendemos uma abertura, um jogo de desejos e afetos que, por conectividades múltiplas, produz uma sensibilidade, uma memória e um pensamento; um jogo de afetos que supera a proposição de um método e se abre para a emergência de subjetividades, dispondo-se à criação de singularidades8. A arte, na mesma medida em que a filosofia e a ciência, institui um novo espaço de organização do mundo humano na forma de conhecimento. Deleuze e Guattari (1997) as consideram potências do pensamento, dimensões interpenetrantes que promovem, por meio de um desenho rizomático dos seus produtos – a ciência produz funções e enunciados, a arte produz sensações e percepções multidiferenciais, a filosofia cria conceitos –, novas formas de ver, sentir, interpretar e exprimir sentidos ao mundo e à própria existência. Segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 37) “um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. [...] o rizoma tem como tecido a conjunção ‘e... e... e...’” (grifo do autor). O rizoma é o espaço da variação, do possível, da criação, dos deslocamentos que revelam o movimento à luz de um duplo registro. De um lado, remetendo-nos à ideia de multiplicidade, o rizoma desconstrói as estruturas estanques e hierarquizadas do conhecimento, suprimindo os aspectos do poder e da importância e das prioridades da circulação, sendo este último próprio do paradigma arbóreo (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Do outro, como uma miríade de pequenas raízes emaranhadas, o rizoma coloca em evidência as múltiplas possibilidades de conexões, aproximações, cortes, percepções. É sempre “e... e... e...”, indicando, potencialmente, um movimento de atravessamentos e intersecções entre os seus inúmeros devires. Em Lógica do sentido, Deleuze apresenta uma “teoria das singularidades”. Contrapondo-se a dois ícones da modernidade – indivíduo e pessoa – ele sugere que as singularidades não devem ser confundidas com essas esferas. Assim, “tais singularidades não se confundem [...] nem com a individualidade de um estado de coisas designado por uma proposição, nem com a generalidade ou a universalidade de um conceito [...] A singularidade faz parte de uma outra dimensão, diferente das dimensões de designação, da manifestação ou da significação. A singularidade é essencialmente pré-individual, não-pessoal, aconceitual. Ela é completamente indiferente ao individual e ao coletivo, ao pessoal e ao impessoal, ao particular e ao geral – e às suas oposições. Ela é neutra” (DELEUZE apud GALLO, 2007, p. 295-296, grifo do autor). 8 Neste entremeio há uma clara aproximação do pensamento deleuzo-guattariniano com as postulações de Merleau-Ponty a respeito deste espaço multifacetado de organização do mundo humano. Os desafios de natureza epistemológica que se colocam frente à complexidade do estado de coisas enunciado pela filosofia, pela ciência e pela arte, segundo Merleau-Ponty (1997, p. 126), apontam para uma “transversalidade rizomática [...] para o respeito às diferenças, construindo possíveis trânsitos pela multiplicidade dos saberes, sem procurar integrá-los artificialmente, mas estabelecendo policompreensões infinitas”. A natureza rizomática da arte evidenciada no movimento, na sinuosidade dos traços e nos seus desvios, na policromia, nas diferentes texturas, nos jogos de luz e sombra, na irregularidade das formas, na emergência das sensações como forma de experimentar-se a si mesmo, promove os cortes, a abertura das fendas para a percepção da realidade através do sensível, pois, como bem notou Nóbrega (2010, p. 71), “a percepção não é um processo linear de decodificação de estímulos e sim, preferivelmente, um círculo que envolve o sensório e motor não como partes integrantes, mas como uma unidade dinâmica”. À esteira de Merleau-Ponty, Deleuze e Guattari, compreendemos que o entendimento do mundo não se define somente por meio dos conceitos logicamente organizados que, constituindo-se como abstrações genéricas, distanciam-se dos dados sensoriais produzidos pelo corpo nas diversas vivências em que se ele se inscreve, mas, ao contrário, o conhecimento também pode ser construído pelas vias da intuição, como forma imediata, concreta e individual, resultantes das experiências do corpo perceptivo. Segundo Deleuze e Guattari (1997, p. 213), os perceptos não são mais percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de afectos e perceptos. A obra de arte é um ser se sensação, e nada mais: ela existe em si (grifo do autor). As sensações e percepções enunciadas pela arte ganham sentido na medida em que, atravessando e transbordando o corpo daquele que sente e percebe, evidenciam não só os consonantes da relação entre significado e significante, mas, especialmente, os dissonantes ali produzidos. Compreendemos, deste modo, que “a apreensão das significações se faz pelo corpo: aprender a ver as coisas é adquirir um certo estilo de visão, um novo uso do próprio corpo, é enriquecer e reorganizar o esquema corporal” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.212). Desta forma, a experiência estética torna possível o arrojo de novos olhares sobre o real e do reconhecimento de que as coisas nem sempre foram do mesmo jeito que são agora e, mais importante ainda, não precisam continuar a ser tal como têm sido até então. A arte coloca o mundo tal como o conhecemos sob suspeita e prepara o campo para a criação de outros mundos possíveis, pois, a partir de seus múltiplos planos polissêmicos intensificam-se “o percepto ou novas maneiras de ver e ouvir, o afecto ou novas maneiras de sentir” (DELEUZE, 1992, p. 203). Considerações Finais: o corpo-arte e a áisthesis como resistência A experiência estética é, antes da apreciação do conjunto das qualidades concretas de um determinado objeto estético, a experiência da presença, da manifestação do objeto e do sujeito que o percebe. Por isso, constitui-se como uma experiência que não encontra interesse prático imediato. É, ao mesmo tempo, experiência de contemplação e construção de significados na medida em que provoca o intelecto e as capacidades perceptivas e emocionais, pois, como bem notaram Deleuze e Guattari (1997, p. 126), o objetivo da arte é “arrancar os perceptos das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar os afectos das afecções, como passagem de um estado a outro”. Constituindo-se na emanação provocada pela arte, a experiência estética exige do corpo a disposição para a vertigem causada pela intensidade, pela irregularidade e pelas descontinuidades, sublinhando um contínuo processo de devir. É, pois, neste sentido, que buscamos na aproximação dos conceitos de estética e corporeidade, assinalar as condições de possibilidade de uma áisthesis da resistência. A evidenciação de um devir-arte como espaço de criação de desvios que apontam a ampliação dos limites da reflexão sobre o corpo revela, como tônica deste processo, um devir-corpo, como espaço de sensações nômades, desterritorializadas, descontínuas, numa comunicação entre os diversos sentidos “como a apalpação pelo olhar, o tato como visão pelas mãos” (NOBREGA, 2010, p. 63). No atravessamento do corpo pela arte há a revelação de um sujeito que transita entre o senso e sensível, entre o sentir e o ser sentido, ao mesmo tempo tocando e sendo tocado. Nesta interpenetração, o corpo não só revela a natureza que o homem mesmo é, mas, sobremaneira, expõe a sua potencialidade reflexiva, criativa e de interpretação da realidade. O corpo revela a arte em movimento; a arte revela o corpo na emergência de relações dialogantes com a história, com o trabalho e com a cultura. Compreendemos que a crivação do corpo pela e da arte pela expressão do corpo em movimento, traz à tona uma intensidade vicinal e uma capacidade de inaugurar questões sempre novas em torno das percepções corpóreas por meio de uma ação perceptiva que vai do interior ao exterior e do exterior ao interior, num diálogo contínuo entre o corpo e as suas margens. A arte é caos criativo e, neste domínio, surgem diferentes possibilidades de interpretar e percorrer a extensão da existência humana revelada na corporeidade. Conhecer através do corpo é criar as condições de possibilidade de uma áisthesis da resistência. Resistência ao fenômeno da massificação e da objetivação do corpo. Resistência como resgate dos afetos, das experiências de singularidade e como condição do direito à diferença. Trata-se, portanto, de fecundar nas bases de uma démarche de resistências outros modos de ser e estar que busquem no corpo-sujeito o conjunto das forças que resistam aos mecanismos de dominação e exclusão do nosso tempo. Referências ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. ARISTÓTELES. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores). ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para reencantar a educação. Piracicaba: Unimep, 1996. DAMATTA, Roberto Augusto. O corpo brasileiro: In: STROZENBERG, Ilana. et all (Org.). De corpo e alma: Rio de Janeiro: Espaço e tempo, 1986. DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992. DELEUZE, Gilles; GUATTARRI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia (vol. 1). Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. __________. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia (vol. 4). Tradução de Suely Rolnik. 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