Que é a filosofia? A natureza dos problemas

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Que é a filosofia?
A natureza dos problemas filosóficos e
suas raízes científicas
Júlio Fontana
“Nos últimos cinqüenta anos, tem havido maior controvérsia
acerca da natureza da filosofia do que em qualquer período
anterior da história do pensamento ocidental.”
David Pears
Apesar de Popper observar que a indagação sobre o caráter dos problemas filosóficos é mais apropriada do que a pergunta “que é a filosofia”, eu a mantive
como mote deste artigo em face de o leitor já estar acostumado a ver tal tipo de
questionamento por toda a história da filosofia.
A crítica como ponto de partida
Como é seu costume, Popper nos dirá “o que é Filosofia” criticando concepções as
quais ele acha errôneas. Nesse caso em particular, ele críticará o vigoroso e famoso trabalho How I see philosophy [Como eu vejo a filosofia], de Fritz Waismann, e algumas
doutrinas constantes no Tractadus logico-philosophicus de Ludwig Wittgenstein.
De fácil percepção é que ambos estão ligados aos tradicionais adversários de
Popper: os positivistas lógicos. Waismann pertenceu ao Círculo de Viena, enquanto
Wittgenstein concedeu a este grupo os seus principais cânones.
Nota-se a oposição que Popper fará às idéias do positivismo lógico em face da
sua preocupação em enfatizar que jamais pertenceu ao Círculo. Diz que nunca
pertenceu ao Círculo de Viena e que não é um positivista. Entretanto, devo admitir
que nosso filósofo “bebeu nessa fonte”, apesar de manter opiniões fortemente contrárias às do Círculo. Isso, aliás, é admitido pelo próprio Popper:
Eu nunca fui convidado para nenhuma das reuniões do Círculo, talvez devido à minha conhecida oposição ao positivismo. Eu teria aceito um convite com imenso prazer, pois não somente
alguns dos membros do Círculo eram amigos meus pessoais, mas eu também nutria a maior
admiração por alguns dos outros membros.
Às vezes, pergunto-me quem teria pertencido mais ao Círculo de Viena: Popper
ou Wittgenstein?
Autor de artigos e resenhas publicadas nas revistas Inclusividade, do Centro de Estudos Anglicanos;
Ciberteologia, de Paulinas Editora; Religião e Cultura, da PUC-SP; e Correlatio, da Associação Paul Tillich
do Brasil, da qual é membro efetivo.
Cf. POPPER, Karl. O eu e o seu cérebro. São Paulo-Brasília, Papirus-UNB, 1991. p. 26. POPPER, Karl.
Conhecimento obje0tivo: uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte, Itatiaia, 1999. p. 183.
Basta citar, como exemplo, o famoso ensaio de Martin Heidegger “Que é isto – A filosofia?”, in Martin
Heidegger, Os pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 2005, pp. 27-40.
POPPER, Karl. Lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro-Brasília, Edições Tempo Brasileiro-UNB, 1978.
pp. 85-101. Esse artigo também é encontrado em: Id. Em busca de um mundo melhor. São Paulo, Martins
Fontes, 2006. pp. 221-241.
Id. Conjecturas e refutações. 2. ed. Brasília, UNB, 1982. p. 97.
Popper faz alusões positivas ao Círculo em quase todas as suas obras. Cf. POPPER, Karl. Autobiografia
intelectual. São Paulo, Cultrix-Edusp, 1977. pp. 95-98. Id. A lógica da pesquisa científica. 18. ed. São Paulo,
Cultrix, 2006. p. 535. Id. Sociedade aberta, universo aberto. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991.
p. 37. Ver também: EDMONDS, David. O atiçador de Wittgenstein: a história de dez minutos entre dois
grandes filósofos. Rio de Janeiro, Difel, 2003. pp. 177-186.
POPPER, Karl. Lógica das ciências sociais. p. 89. Também: Id. Em busca de um mundo melhor. pp. 226-227.
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Wittgenstein foi chamado uma única vez às reuniões do Círculo e não compareceu. Os membros do Círculo compartilharam de algumas idéias wittgensteinianas,
mas não todas, principalmente no que concerne à religião. Popper até atribui à
influência de Wittgenstein uma das principais causas da bancarrota do positivismo
lógico.
“Sob a influência do Tractadus logico-philosophicus, de Wittgenstein, o Círculo
de Viena tinha-se tornado não apenas antimetafísico, mas também antifilosófico.”
Popper, portanto, a meu ver, está mais ligado ao Círculo do que o próprio Wittgenstein. Mesmo tendo defendido a filosofia e a metafísica perante o Círculo, Popper concorda com muitas das idéias mantidas pelos neopositivistas, até com muitas idéias wittgensteinianas, como iremos ver mais adiante.10
As críticas popperianas levam em conta, sempre, a opinião dos membros do Círculo, e Popper era muito amigo de Rudolf Carnap, principal teórico do grupo. Tais
fatos aproximam bastante Popper do Círculo, talvez por isso Otto Neurath tenha-o
qualificado de “a oposição oficial” do Círculo de Viena.11
O filósofo
Muitas vezes, ao procurarem compreender “o que é filosofia”, estudiosos esquecem de examinar quem pode ser considerado ou não um filósofo e o papel que
devem exercer para tal. Portanto, não basta sabermos qual é o objeto, o método
apropriado da filosofia, devemos evidenciar as características do sujeito que faz
filosofia, aquele que se compromete a filosofar.
Quem é filósofo?
Waismann tem como certo que os filósofos constituem um tipo especial de gente e que a filosofia nada mais é senão a atividade exclusiva dos mesmos. Mostra
isso com o auxílio de uns exemplos, apontando o que constitui o caráter distintivo
do filósofo e da filosofia quando comparados com outras disciplinas acadêmicas
como a matemática ou a física.
Karl Popper, no entanto, encara a filosofia de forma totalmente diferente de
Waismann. Ele acha que todos, homens e mulheres, são filósofos, embora uns
mais, outros menos. Popper concorda que exista um grupo exclusivo e distinto
de pessoas, os filósofos acadêmicos, mas ele está longe de compartilhar do entusiasmo de Waismann. Popper acredita que há muito para ser dito por aqueles que
desconfiam do filósofo acadêmico, portanto descarta qualquer idéia de uma elite
filosófica e intelectual.
Essa discriminação foi interiorizada de tal forma que o aluno de filosofia não se
autoproclama filósofo até o momento de sua formatura. Após esta, ele prontamente
manda confeccionar alguns cartões pessoais, onde, abaixo do seu nome, vem a
informação “filósofo”. Então, é a comunidade que nos concede o saber filosófico?
Somos filósofos apenas se portamos um diploma? Os que pensam assim talvez não
sejam filósofos, pois jamais pensaram que a grande filosofia — por exemplo, aquela dos pré-socráticos — precede toda a filosofia profissional e acadêmica.
“Wittgenstein era membro honorário e considerado seu [do Círculo de Viena] guia espiritual, embora ele
rejeitasse tanto o título quanto a honraria.” Cf. EDMONDS, David. Op. cit. pp. 161-162.
POPPER, Karl. Em busca de um mundo melhor. p. 227.
10 Cf. Id. Conjecturas e refutações. pp. 100-103.
11 Ver: MAGEE, Bryan. As idéias de Popper. 4. ed. São Paulo, Cultrix, 1983. p. 16.
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A função do filósofo
A fim de descrever a função do filósofo, Popper faz uma comparação entre
a tarefa do cientista e a do filósofo. Essa atitude possui fundamentação histórica, pois na Grécia antiga filosofia e ciência eram aspectos do conhecimento
intimamente ligados. Ambas ainda não eram esferas do saber distintas como
são hoje. Popper, aliás, atribui essa separação entre a ciência e a filosofia ao
hegelianismo.12
Nosso filósofo, em prefácio à primeira edição de sua Lógica da pesquisa científica (1934), mostra que um cientista empenhado em pesquisa — digamos que
no campo da física — pode atacar diretamente o problema que enfrenta. Pode
penetrar, de imediato, no cerne da questão, isto é: no cerne de uma estrutura organizada. Com efeito, conta sempre com a existência de uma estrutura de doutrinas
científicas já existentes e com uma situação-problema que é reconhecida como
problema nessa estrutura. Essa a razão por que entregar a outros a tarefa de adequar
sua contribuição ao quadro geral do conhecimento científico.13
O filósofo, todavia, se vê em posição diversa. Ele não se coloca diante de uma
estrutura organizada, mas, antes, em face de algo que assemelha-se a um amontoado de ruínas (embora, talvez, haja tesouros ocultos). Não lhe é dado apoiar-se no
fato de existir uma situação-problema, geralmente reconhecida como tal, pois não
existir algo semelhante é, possivelmente, o fato geralmente reconhecido. Consequentemente, tornou-se, agora, questão freqüente, nos círculos filosóficos, saber se
a filosofia chegará a colocar um problema genuíno.
Apesar de tudo, afirma Popper, há quem acredite que a filosofia possa colocar
problemas genuínos acerca das coisas, e quem, portanto, ainda tenha a esperança
de ver esses problemas discutidos, e afastados aqueles monólogos desalentadores
que hoje passam por discussão filosófica.14 Segundo ele, exatamente a existência
de problemas filosóficos urgentes e sérios e a necessidade de discuti-los criticamente são a única desculpa para o que se pode chamar de filosofia acadêmica ou
filosofia profissional.15
Portanto, para Popper, a função do cientista e do filósofo consiste na solução
de problemas,16 apesar de haver profundas diferenças na maneira como estes se
apresentam nas respectivas áreas. Destarte, ao cientista e ao filósofo não cabe
falar sobre o que eles e seus colegas estão fazendo ou deveriam fazer. Segundo
ele, “qualquer tentativa honesta e dedicada de resolver um problema científico
ou filosófico, mesmo que não tenha bons resultados, parece-me mais importante do que um debate sobre um problema como a natureza da ciência ou da
filosofia.”17
12 Cf. POPPER, Karl. Conjecturas e refutações. p. 97.
13 A descrição do trabalho científico realizada aqui por Popper se aproxima bastante do conceito de ciência
normal de Thomas Kuhn. Popper reconhece essa aproximação em “A ciência normal e seus perigos”, in
Imre Lakatos & Alan Musgrave (Orgs), A crítica e o desenvolvimento do conhecimento, São Paulo, Edusp,
1979, pp. 63-71.
14 POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. p. 23.
15 Cf. Id. Em busca de um mundo melhor. p. 227.
16 Há inteira concordância, aqui, entre Karl Popper e Gaston Bachelard. Para ambos a capacidade de formular
interrogações pertinentes constitui um dos sinais mais distintivos do verdadeiro espírito filosófico. No
contexto brasileiro e atual, Hilton Japiassu declara: “Todo conhecimento é resposta a uma questão. Não
havendo questão, não há conhecimento. Nada é evidente. Nada é dado. Tudo é construído”. JAPIASSU, H.
O sonho transdisciplinar e as razões da filosofia. Rio de Janeiro, Imago, 2006. p. 177.
17 POPPER, Karl. Conjecturas e refutações. p. 95.
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17
Essa função do filósofo é coerente com toda a teoria do conhecimento popperiana, a qual admite que o conhecimento começa com a tentativa de solução de um
problema, conforme a fórmula abaixo:
P1 – TE – EE – P2
Em que:
P1 = primeiro problema
TE = teorias experimentais
EE = eliminação de erros
P2 = segundo problema
Com base em um problema (P1), que pode ser prático ou teórico, procuramos
construir uma solução provisória, ou várias soluções, destinadas a resolver o problema (TE). Essas, entretanto, devem ser capazes de ser submetidas a testes. Adotamos, a seguir, uma atitude crítica, objetivando eliminar os erros da teoria (EE). Ao
final desse processo, emerge um novo problema (P2).18
Se para Popper a tarefa do filósofo é resolver problemas, para Wittgenstein
todos os problemas genuínos seriam científicos. Assim, a tarefa do filósofo é
o esclarecimento lógico das proposições científicas. Sua tarefa é apenas terapêutica, reduzindo os problemas científicos à mera análise de linguagem.19 De
acordo com Wittgenstein, a verdadeira natureza da filosofia não seria a de uma
teoria, mas sim a de uma atividade. A função da filosofia genuína seria desmascarar os absurdos filosóficos e ensinar as pessoas a falar de modo que faça
sentido.20
O método utilizado pelo filósofo
Os analistas da linguagem consideram-se praticantes de um método peculiar à
filosofia. Essa idéia já pode ser vista em Carnap, que afirmou que a tarefa da filosofia não consiste em construir teorias ou sistemas, mas em elaborar um método, o
método da análise lógica ou lingüística, e, com ele, joeirar tudo o que é afirmado
nos vários campos do saber.
Este método, segundo Carnap, tem duas funções: eliminar as palavras desprovidas de significado e as pseudoproposições e esclarecer os conceitos e as proposi18 Para saber mais sobre como progride o conhecimento racional segundo Popper, ver Luis Alberto Peluso,
A filosofia de Karl Popper, Campinas, Papirus-PUCCamp, 1995, pp. 93-123. A minha dúvida quanto
ao esquema quadripartido de Popper se encontrava no fato de a eliminação de erros conduzir a novos
problemas, ou seja: o P2. Um ouvinte de suas preleções dadas em 1969 na Universidade de Emory acerca
do problema corpo-mente levantou essa dúvida. A resposta de Popper foi insatisfatória. [POPPER, Karl. O
conhecimento e o problema corpo-mente. Lisboa, Edições 70, 1999. p. 81.] Posso acreditar que surjam
novos problemas das nossas tentativas de solução das situações-problemas, mas não infinitamente. Creio,
mesmo, que esse processo se repita apenas algumas poucas vezes, quando o problema é de natureza
prática.
19 Popper reage a esse pensamento por toda a sua vida, até, na sua Autobiografia, o filósofo o considera um
dos seus mais antigos problemas filósoficos. “De há muito acredito haja problemas filosóficos genuínos
que não são meros quebra-cabeças nascidos do mau emprego da linguagem.” POPPER, Karl. Autobiografia
intelectual. p. 21.
20 “Wittgenstein negou que existissem problemas autênticos ou enigmas autênticos (riddles). Mais tarde, ele
passou a falar de puzzles, ou seja: de embaraços ou mal-entendidos causados pelo mau uso filosófico da
linguagem. Quanto a isso, só posso dizer que, para mim, não haveria nenhuma desculpa para ser filósofo
se eu não tivesse problemas filosóficos sérios e nenhuma esperança de solucioná-los: em minha opinião,
tampouco haveria uma desculpa para a existência da filosofia.” POPPER, Karl. Em busca de um mundo
melhor. p. 228.
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ções que têm significado, para dar um fundamento lógico às ciências experimentais
e à física. Esse método é chamado de método de verificação.21
O método de verificação consiste em traduzir numa série de proposições experimentais a proposição cujo significado quer-se determinar. Quando “uma proposição não é traduzível em proposições de caráter empírico [...], ela não é, de forma
alguma, uma asserção e não diz nada, a não ser uma série de palavras vazias; ela é
simplesmente sem sentido”.22
Battista Mondin conclui que,
aplicando o princípio de verificação experimental aos diferentes tipos de linguagem em uso nos
vários campos do saber, Carnap chega à conclusão, já anunciada por Wittgenstein, de que é
somente a linguagem científica (a das ciências experimentais) que tem significado teorético; as
linguagens metafísica, ética, religiosa, estética e literária só podem ter significado emotivo.23
Popper, contrariamente, entende que não há um método específico que possa
ser utilizado pelo filósofo. Para ele, “os filósofos são tão livres como quaisquer outro estudiosos no que concerne ao uso do método que lhes pareça mais adequado
para a busca da verdade. Não há um método peculiar à filosofia.”24 Mesmo assim,
Popper propõe um método:
Contudo, estou pronto a admitir a existência de um método que possa ser chamado de “o método da filosofia”. Não é ele, porém, característico da filosofia. É,
antes, o método de toda discussão racional e, conseqüentemente, tanto das ciências
naturais como da filosofia. O método a que me refiro é o de enunciar claramente o
problema e examinar, criticamente, as várias soluções propostas.25
Esse método consiste em, sempre que propormos uma solução para um problema, devermos tentar, tão intensamente quanto possível, pôr abaixo a mesma solução, em vez de defendê-la. Infelizmente, poucos de nós observamos esse preceito.
Felizmente, outros farão as críticas que deixamos de fazer. A crítica, porém, só será
frutífera se enunciarmos o problema tão precisamente quanto nos seja possível,
colocando a solução por nós proposta em forma suficientemente definida — forma
suscetível de ser criticamente analisada.
Importante observarmos que tal método é utilizado, ou pelo menos deveria ser,
de forma quase que instintiva pelo ser humano, na busca da verdade. Portanto Popper não assume uma postura dogmática de imposição de um método à filosofia:
“Não me importa que método um filósofo (ou qualquer outra pessoa) use, contanto
que esteja enfrentando um problema interessante e contanto que esteja sinceramente empenhado em resolvê-lo”.26
A filosofia
Após analisarmos o papel do filósofo, iremos examinar o que ele produz, ou
seja: a filosofia.
21 Quanto ao metódo de verificação, Popper diz: “Em verdade, a verificação de uma lei natural só pode
ser levada a efeito se se estabelecer empiricamente cada um dos eventos singulares a que a lei poderia
aplicar-se e se se verificar que cada um desses eventos se conforma efetivamente com a lei — tarefa,
evidentemente, impossível”. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. p. 66. Uma outra crítica em:
AYER, A. J. As questões centrais da filosofia. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. pp. 37-43.
22 MONDIN, Battista. Curso de filosofia. 8. ed. São Paulo, Paulus, 2003. v. III, p. 212.
23 Ibid.
24 POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. p. 535.
25 Ibid. p. 536.
26 Ibid.
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19
Que é que a filosofia vem produzindo?
Popper diz que a filosofia profissional não tem produzido grandes coisas, carecendo de uma apologia pro vita sua, ou seja: uma defesa de sua existência. Wittgenstein concorda com Popper quanto à improdutividade que vem apresentando
a filosofia, contudo não tece uma defesa de sua existência, pelo contrário, aponta
seu conflito de competência:
A maior parte das proposições e das questões que foram escritas em matéria de filosofia não
são falsas, mas não-sensatas. Não podemos, por isso, responder a questões de tal espécie, mas
somente estabelecer a sua não-sensatez. A maior parte das questões e proposições dos filósofos
procedem do fato de não compreendermos a lógica da nossa linguagem (são questões do tipo
se o bem é mais ou menos idêntico ao belo). E não por motivo para admirar-se de que os mais
profundos problemas não sejam propriamente problemas.27
Wittgenstein fundamenta sua doutrina dos sentidos do discurso na famosa teoria
dos tipos de Bertrand Russell.28 Russell, com o fito de resolver o problema dos paradoxos lógicos que tinha descoberto, distinguiu as expressões lingüísticas em:
1. afirmativas verdadeiras;
2. afirmativas falsas;
3. expressões desprovidas de sentido.
Poderíamos dizer, usando a linguagem ordinária, que uma afirmativa falsa
como “3 vezes 4 é igual a 173” ou “todos os gatos são bois” não tem sentido.
Mas Russell reservou a qualificação “desprovida de sentido” para afirmativas
do tipo que é preferível não descrever simplesmente como “afirmativas falsas”
(com efeito, a negativa de uma proposição falsa que tenha sentido será sempre
verdadeira. Mas a negação prima facie da pseudoproposição “todos os gatos
são iguais a 173” é “alguns gatos não são iguais a 173” — outra proposição, tão
insatisfatória quanto a primeira). Portanto as negativas de pseudo-afirmativas
são também pseudo-afirmativas, da mesma forma como as negativas de proposições válidas (verdadeiras ou falsas) são sempre proposições válidas (falsas ou
verdadeiras, respectivamente).
Foi essa distinção que permitiu a Russell eliminar os paradoxos (que para ele
eram pseudoproposições sem sentido).
Wittgenstein, porém, foi além. Movido possivelmente pela sensação de que os
filósofos (em especial os filósofos hegelianos) estavam propondo algo muito semelhante aos paradoxos da lógica, usou a distinção de Russell para denunciar toda
filosofia como sendo estritamente sem sentido.
Popper aceita a motivação que levou Wittgenstein a propor tal doutrina, mas não
concorda com a radicalidade da proposta, como veremos no próximo item.
O que nos interessa agora é mostrar que o baixo nível da produção filosófica,
principalmente aquela produzida pelos hegelianos, levou Wittgenstein, o Círculo
de Viena e toda a filosofia destes derivadas a tomarem posturas antimetafísicas e antifilosóficas. Posturas tão radicais que Popper qualificou como “ainda mais radical
do que o positivismo do Comte”.29
No seu artigo Como vejo a filosofia,30 Popper acusa quatro grandes filósofos de
27 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractadus logico-philosophicus. 2. ed. São Paulo, Edusp, 1994. prop. 4.
28 Cf. AYER, Alfred. As idéias de Bertrand Russell. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1974. pp. 48-53.
29 Ibid. p. 98.
30 POPPER, Karl. Em busca de um mundo melhor. pp. 221-241. Também em: Id. Lógica da pesquisa social.
pp. 85-101.
20
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terem “algo de muito pesado na consciência”.31 São eles Platão, Hume, Spinoza
e Kant. Em Conjecturas e refutações coloca junto deles o hegelianismo, ou seja: o
idealismo alemão representado por Hegel, Fichte e Schelling.
Platão32 tinha, segundo Popper, uma visão da vida humana que considerava
repulsiva e deveras horrificante. Segundo Popper, a fraqueza de Platão foi, como
a de tantos filósofos profissionais depois dele, ter acreditado na “teoria da elite”,
em total contraposição a Sócrates. Enquanto Sócrates exigia sabedoria por parte de
um estadista, querendo dizer com isso que ele devia estar cônscio de quão pouco
sabia, Platão exigia que o filósofo sábio, erudito, devia ser um estadista, um governante absoluto. Comenta Popper que, “desde Platão, a megalomania é a doença
profissional mais difundida entre os filósofos”.33
David Hume, segundo Popper, não foi filósofo profissional e, ao lado de Sócrates, foi
talvez o mais franco e equilibrado entre os grandes filósofos. Foi também um homem
modesto, racional e bastante desapaixonado. Porém, foi levado, por uma teoria psicológica infeliz e errônea, à horrificante doutrina segundo a qual a razão é, e somente
deve ser, a escrava de paixões, e nunca poderá pretender nenhuma outra função que
não seja a de servi-las e obedecê-las. Popper discorda de Hume, no entanto admite que
sem paixão nunca se atinge nada de grandioso. Ele declara, mesmo, que “a domesticação das paixões pela limitada racionalidade de que nós, humanos irracionais, somos
capazes é, a meu ver, a única esperança da humanidade”.34
Espinosa, o santo entre os grandes filósofos, e, tal como Sócrates e Hume, filósofo
não-profissional, ensinou quase exatamente o contrário de Hume, mas de uma maneira não só falsa, mas também eticamente inaceitável. Ele era, a exemplo de Hume, um
determinista: não acreditava no livre-arbítrio do ser humano e considerava a intuição
da liberdade da vontade uma ilusão. Ensinou também que a liberdade humana pode
consistir apenas em termos uma compreensão clara, distinta e apropriada das causas
coercitivas, inevitáveis, de nossas ações. Enquanto algo é paixão, permanecemos, segundo Spinoza, em suas garras e não somos livres. Tão logo formamos uma concepção
clara e distinta dele, continuamos determinados por ele, mas o transformamos em uma
parte de nossa razão. E apenas isso é liberdade, ensina Spinoza.
Popper considera essa doutrina uma forma insustentável e perigosa de racionalismo, mesmo sendo ele próprio um racionalista.35 Também discorda do determinismo de Spinoza. Apesar de Popper não ser determinista, também não podemos
classificá-lo como indeterminista.36
Segundo ele, ninguém, até hoje, apresentou argumentos sérios a favor do determinismo, ou argumentos que conciliem o determinismo com a liberdade humana
(e, assim, com o senso comum). Diz ele: “Parece-me que o determinismo de Spinoza é um típico mal-entendido de filósofo, embora seja evidentemente verdadeiro
que muito do que fazemos (mas não tudo) é determinado e até mesmo predizível.”37
31 Difícil captar o que Popper realmente desejou expressar aqui. Creio, porém, que ele almejou apontar que
esses quatro grandes filósofos cometeram algum erro crasso em algum ponto de seus respectivos sistemas
filosóficos.
32 Popper, antes de tecer sua crítica, qualifica Platão como o maior, mais profundo e genial de todos os
filósofos. POPPER, Karl. Em busca de um mundo melhor. p. 224.
33 Para ver mais da crítica de Popper a Platão, consultar: POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos.
Belo Horizonte, Itatiaia, 1998. v. I.
34 Id. Em busca de um mundo melhor. p. 225.
35 Id., ibid. Ver também: Id. Conjecturas e refutações. p. 34.
36 Id. Conhecimento objetivo. pp. 193-233.
37 Id. Em busca de um mundo melhor. p. 226.
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21
Outra crítica que faz à doutrina de Spinoza é que, embora possa ser verdadeiro que
uma explosão de sentimento, que Spinoza chama de “paixão”, nos faça não-livres,
nós, segundo sua fórmula citada anteriormente, não seremos responsáveis por nossa ação enquanto não pudermos formar uma concepção racional clara, distinta e
apropriada dos motivos de nossa ação. Apesar de esse ser um objetivo almejado
pelo ser humano, Popper questiona se algum dia alguém já o alcançou.
Quanto a Kant, Popper o considera um dos poucos pensadores admiráveis e altamente originais entre os filósofos profissionais. Entretanto ele tentou solucionar o
problema da escravidão da razão (Hume) e o problema do determinismo (Spinoza),
mas fracassou em ambos.38
Por fim, Popper avalia Hegel. Ele diz que o filósofo era um platônico (ou antes:
um neoplatônico) medíocre e, como Platão, um heraclitiano medíocre. Era um platônico cujo mundo de idéias estava mudando, evolvendo. As “Formas” ou “Idéias”
de Platão eram objetivas e nada tinham a ver com idéias conscientes numa mente
subjetiva. Habitavam num mundo divino, imutável, celestial (superlunar, no sentido de Aristóteles). Em contraste, as “Idéias” de Hegel, como as de Plotino, eram
fenômenos conscientes: pensamentos que pensavam a si mesmos e habitavam em
certa espécie de consciência, certa espécie de mente ou “Espírito”; e juntamente
com esse “Espírito” mudavam ou evolviam.39 Destarte, enquanto Platão deixa suas
idéias hipostatizadas habitarem em algum céu divino, Hegel personaliza seu Espírito numa consciência divina. Nela as idéias habitam, como as idéias humanas habitam numa consciência humana. Sua doutrina é, inteiramente, a de que o Espírito
é não apenas consciente, mas um ser.40
Assim, segundo Popper, Wittgenstein está justificado em propor uma teoria que
vise a distinguir a ciência da metafísica.41 Contudo o critério de demarcação de
Wittgenstein está equivocado quanto à classificação do discurso metafísico e filosófico como sem sentido, conforme podemos ver em Popper:
Naturalmente, sei que há muitas pessoas que fazem declarações sem sentido. Que caiba a alguém a tarefa (desagradável) de desmascarar essas pessoas é concebível, porque a falta de sentido é perigosa. Acredito, porém, que algumas pessoas já disseram coisas sem muito sentido e que
desrespeitavam a gramática — no entanto extremamente interessantes e excitantes, mais valiosas
talvez do que certas coisas com sentido ditas por outros. Poderia exemplificar com o cálculo
diferencial e o integral, que, especialmente na sua forma inicial, eram sem dúvida paradoxais e
absurdos pelos critérios de Wittgenstein.42
38 Cf. Id. A lógica da pesquisa científica. p. 29. Mesmo tecendo essa crítica a Kant, podemos ainda considerar
Popper como um “kantiano convertido”. Cf. MAGEE, Bryan. Confissões de um filósofo. São Paulo, Martins
Fontes, 2001. p. 209.
39 Para ver a crítica completa de Popper ao hegelianismo, ler o segundo tomo de sua obra A sociedade aberta
e seus inimigos, pp. 7-88.
40 Apesar de todas as críticas elaboradas por Popper a esses filósofos serem todas elas corretas, não quer dizer
que sejam validas. Sua abordagem foi anacrônica. Hoje, com todo o nosso atual conhecimento científico,
avaliarmos esses filósofos da forma como foi feita por Popper, que é, no mínimo, injusta.
41 Evidente que, para Popper, a ciência e a metafísica são formas de conhecimento que possuem pesos
distintos. O primeiro goza de maior credibilidade do que o último em face da atitude crítica em que é
gerado. Cf. POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. pp. 43-45. Os cientistas dogmáticos não concordam
com tal posicionamento. Richard Dawkins, por exemplo, disse, em entrevista a John Horgan: “Eles [alguns
intelectuais que acham que a ciência não pode, sozinha, responder às questões básicas sobre a existência]
acham que a ciência é arrogante demais e que há certas perguntas que não cabe à ciência fazer, as quais
têm sido tradicionalmente do interesse dos religiosos. Como se eles tivessem respostas. É diferente dizer
que é muito difícil saber como o universo teve início, o que provocou o big bang, o que é consciência.
Entretanto, se a ciência tem dificuldade em explicar alguma coisa, certamente ninguém vai conseguir
explicá-la”. HORGAN, John. O fim da ciência: uma discussão sobre os limites do conhecimento científico.
São Paulo, Companhia das Letras, 1998. p. 153.
42 POPPER, Karl. Conjecturas e refutações. p. 99.
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Tendo em vista o que a filosofia vem produzindo nesses mais de 2.500 anos de
existência, Popper sente a necessidade de pedir desculpas, pedido de desculpas
que se encontra no segundo capítulo do seu livro Conhecimento objetivo:
É muito necessário nestes dias pedir desculpas por ter interesse pela filosofia, seja de que forma
for. Excetuados talvez alguns marxistas, a maioria dos filósofos profissionais parece ter perdido o
contato com a realidade.[...] Em minha opinião, o maior escândalo da filosofia é que, enquanto
em todo o nosso redor o mundo da natureza perece — e não só o mundo da natureza — os filósofos continuam a falar, às vezes brilhantemente e às vezes não, sobre a questão de saber se este
mundo existe. Envolvem-se em escolasticismo, em enigmas lingüísticos tais como, por exemplo,
se há ou não diferenças entre “ser” e “existir”.43
Aqui, entramos em um outro tema: que é que a filosofia deve estudar?
Que é que a filosofia deve estudar?
Para Popper a filosofia deve estudar problemas, que não estão limitados ou subdivididos em disciplinas. Sendo assim, a filosofia deve investigar tudo. Ele explica que
a idéia de que a física, a biologia e a arqueologia existem por si mesmas, como campos de estudo ou
“disciplinas” distinguíveis entre si pela matéria que investigam, parece-me resíduo da época em que
se acreditava que qualquer teoria precisava partir de uma definição do seu próprio conteúdo.44
Na verdade, não é possível distinguir disciplinas em função da matéria de que
tratam; elas se distinguem umas das outras, em parte, por razões históricas e de
conveniência administrativa, em parte as teorias que formulamos para solucionar
nossos problemas têm a tendência de desenvolver-se sob a forma de sistemas unificados.
Portanto para o nosso filósofo não há uma entidade que podemos chamar de
“filosofia” ou “atividade filosófica”, como uma “natureza”, essência ou caráter determinado. Isso é uma crença originária do positivismo comteano.
Para Popper “estudamos problemas, não matérias: problemas que podem ultrapassar as fronteiras de qualquer matéria ou disciplina”.
Vejamos um exemplo:
Não é preciso dizer que os problemas estudados pelos geólogos — como a avaliação da possibilidade de encontrar petróleo ou urânio num determinada região — precisam ser resolvidos com
a assitência de certas teorias e técnicas classificadas ordinariamente como matemáticas, físicas
e químicas. É menos evidente, porém, que mesmo uma ciência “fundamental”, como a física
atômica, pode ter a necessidade de empregar uma investigação geológica — técnicas e teorias
geológicas — para resolver problema relacionado com suas teorias mais abstratas: por exemplo,
o problema representado pelo teste de predições da estabilidade ou instabilidade relativa dos
átomos com número atômico par ou ímpar.45
Isso não quer dizer que não existam problemas que “pertencem” a algumas das disciplinas originais. Porém, para Popper, a solução deles envolve as mais diversas disciplinas.
Os dois problemas que mencionei “pertencem” à geologia e à física, respectivamente. Cada um
deles tem origem numa discussão que é característica da tradição da disciplina em causa — da
discussão de alguma teoria, ou de testes empíricos relacionados com essa teoria. E as teorias, ao
contrário dos assuntos, podem constituir uma disciplina (que poderíamos descrever como uma
constelação de teorias, um tanto “soltas”, que sofrem constantes desafios, alterações e crescimento). Mas isso não afeta meu argumento no sentido de que a classificação das disciplinas tem
relativamente pouca importância; que estudamos problemas, não disciplinas.46
43 Id. Conhecimento objetivo. p. 41.
44 Id. Conjecturas e refutações. p. 95.
45 Id., ibid. p. 96.
46 Id., ibid.
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Mas existirão problemas filosóficos? Nessa parte Popper entra em confronto direto com a doutrina de Wittgenstein.47
A doutrina de Wittgenstein
Para Wittgenstein, o verdadeiro método da filosofia seria, propriamente, não dizer nada, a não ser o que pode ser dito, isto é: as proposições científicas. Sendo
assim, Wittgenstein responde negativamente à nossa pergunta dizendo que todos
os problemas genuínos são científicos. Os alegados problemas filosóficos não passariam de pseudoproblemas e as alegadas teorias ou proposições filosóficas seriam
pseudoteorias e pseudoproposições. Contudo estas não seriam falsas, mas simples
combinações de palavras sem sentido, não mais significativas do que o balbucio
inconseqüente de uma criança que ainda não aprendeu a falar. Para Wittgenstein a
filosofia é “balbucio de criança”.48
Conseqüentemente, não poderia haver problemas filosóficos genuínos. Todos os
supostos “problemas filosóficos” poderiam ser classificados em quatro categorias:
• os puramente lógicos ou matemáticos, que deveriam ser solucionados por
meio de proposições lógicas ou matemáticas;
• os factuais, a serem respondidos com alguma afirmativa de ciência empírica;
• os que combinam 1 e 2;
• pseudoproblemas sem sentido.
A tarefa da filosofia não consiste em construir teorias ou sistemas, mas em elaborar um método, o método da análise lógica ou lingüística, e, com ele, joeirar tudo
o que é afirmado nos vários campos do saber. Esse método tem duas funções: eliminar as palavras desprovidas de significado e as pseudoproposições e esclarecer
os conceitos e as proposições que têm significado, para dar um fundamento lógico
às ciências experimentais e à física.
O método de verificação consiste em traduzir numa série de proposições experimentais a proposição cujo significado quer-se determinar. Quando “uma proposição não é traduzível em proposições de caráter empírico [...], ela não é, de forma
alguma, uma asserção e não diz nada, a não ser uma série de palavras vazias; ela é
simplesmente sem sentido”.49
A crítica de Popper
Popper acredita que existam, sim, problemas filósoficos que valham a pena ser
investigados. Para ele, “os filósofos devem filosofar”.50 Nosso filósofo acredita na
existência de problemas genuinamente filosóficos. “Na verdade”, diz Popper, “a
existência de problemas filosóficos sérios e urgentes e a necessidade de discuti-los
criticamente é, a meu ver, a única apologia para aquilo que chamamos de filosofia
acadêmica ou profissional.”51 Continua ele: “Eu posso dizer que, se não tivesse problemas filosóficos sérios e não tivesse esperança de resolvê-los, eu não teria razão
de ser um filósofo”.52 Nas Conjecturas, Popper declara: “[...] só continuarei a inte47 Popper acredita que a posição atual da filosofia inglesa tem sua origem na doutrina de Wittgenstein.
48 Esse foi o tema do tão famoso debate entre Popper e Wittgenstein em 1946, em Cambridge. Ver: POPPER,
Karl. Autobiografia intelectual. pp. 130-133. Também: EDMONDS, David. Op. cit. pp. 255-306.
49 POPPER, Karl. Conjecturas e refutações. p. 96.
50 Id., ibid. p. 97.
51 Id. Lógica das ciências sociais. p. 90.
52 Id., ibid.
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ressar-me pela filosofia enquanto tiver problemas filosóficos genuínos para resolver.
Não compreendo a atração que pode ter uma filosofia sem problemas”.53
E quais seriam esses problemas filosóficos genuínos? Popper concorda com Wittgenstein: não existem problemas filosóficos “puros”. Na verdade, nosso filósofo
acha que, “quanto mais puro um problema filosófico, mais se perde sua significação original, maior risco de que sua discussão degenere num verbalismo vazio”.54
Como vimos, a solução de problemas pode ultrapassar as fronteiras de muitas ciências. Portanto um problema pode ser chamado de “filosófico”, apropriadamente, se
verificarmos que, embora tenha surgido, por exemplo, no campo da teoria atômica,
se relaciona mais estreitamente com as teorias e os problemas discutidos pelos filósofos do que com as teorias que interessam atualmente os físicos.
Popper vai mais além e diz que a cosmologia seria a área de maior interesse da
filosofia, como podemos ver no prefácio à primeira edição inglesa de sua Lógica da
pesquisa científica (1959):
Os analistas da linguagem acreditam que não existem problemas filosóficos genuínos, asseverando que os problemas de filosofia, se existem, são problemas de uso de linguagem ou de
significado de vocábulos. Eu, entretanto, acredito que exista pelo menos um problema filosófico
no qual todos os seres humanos de cultura estão interessados. É o problema da cosmologia: o
problema de compreender o mundo — até nós mesmos e nosso conhecimento como parte do
mundo. Segundo entendo, toda ciência é cosmologia e, para mim, o interesse reside apenas nas
contribuições que elas trazem para a cosmologia. Tanto a filosofia como a ciência perderiam, a
meu ver, todo o atrativo se abandonassem esse alvo.55
Também para Popper a filosofia “nunca terá de ser, e na verdade nunca poderá
ser, divorciada das ciências”. Esse é mesmo um dos dogmas centrais do positivismo, mas contemplado de forma diferente, conforme podemos perceber na justificativa de Popper:
Historicamente, toda a ciência ocidental é um produto da especulação filosófica grega sobre o
cosmo, a ordem do mundo. Os ancestrais comuns de todos os filósofos são Homero, Hesíodo e
os pré-socráticos. O fundamental para eles é a questão sobre a estrutura do universo, e o nosso
lugar neste universo (um problema que, a meu ver, permanece decisivo para toda a filosofia).56
A quais conclusões chegamos?
Para Popper não há o que possa ser chamado essência da filosofia, a ser retirada
e condensada num definição. Por mais que leiamos bibliotecas inteiras de livros filosóficos, jamais saberemos precisar uma resposta unívoca, única e satisfatória para
a questão de sua natureza. Portanto uma definição da palavra “filosofia” só pode
ter o caráter de convenção, de acordo. Entretanto, definir filosofia não foi o objetivo deste artigo. Então, qual o seu objetivo? O objetivo é apontarmos soluções que
livrem a filosofia deste momento de crise e mal-estar pela qual ela está passando
atualmente. Vejamos a que conclusões chegamos:
Em primeiro lugar, pode-se dizer que, ao abandonar as ciências, a filosofia caiu
bastante no irreal.
Em segundo lugar, podemos apontar como uma das grandes causadoras do declínio da filosofia a passividade com que os filósofos receberam as críticas das
ciências. Muitos se entrincheraram academicamente, deixando a filosofia sem sua
53 Id. Conjecturas e refutações. p. 99.
54 Id., ibid. p. 102.
55 Id. A lógica da pesquisa científica. p. 535.
56 Id. Lógica das ciências sociais. p. 98.
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principal característica: a crítica. Filósofos se tornaram políticos a fim de manterem
o status quo. O espírito profético do filósofo se esvaiu. Os valores prezados pela
sociedade de consumo arrebataram os profetas fazendo com que se tornassem sacerdotes. Atribuindo valor supremo ao dinheiro, à notoriedade midiática, à competição, ao consumo e ao poder, os filósofos foram incentivados a viver segundo esses
princípios, e assim perderam sua vocação natural. Por que não dizer divina?
Em terceiro lugar, difundiu-se bastante no Ocidente a idéia de que a filosofia
perdeu sua razão de ser, pertence a outros tempos e que nada mais tem a dizer
de efetivamente relevante, pois as ciências, notadamente as humanas e sociais, o
fazem com maior objetividade e credibilidade.57 Assim, chegam à conclusão de
que a filosofia deve ser substituída como um saber especulativo inútil e estéril. O
que é há de mais intrigante é que os próprios filósofos pregam isso.58 Muitos falsos
profetas se levantam anunciando o fim da filosofia e o advento de uma nova era.
Por que isso acontece?
A filosofia se submete e se demissiona quando limita seu papel ao de comentar e interpretar os textos canônicos; quando aceita ser desmembrada entre um
academicismo escolástico sem alma e a irrelavância desconstrucionista da moda,
tentando apenas resgatar as ambivalências, as contradições e os impasses que se
encontram na fonte de todo trabalho de reflexão.
Quando forças políticas tentam nela buscar as justificações intelectuais de sua
conquista de poder e dominação, ou as racionalizações de seus interesses conservadores, seu espaço de liberdade ficando submetido às autoridades, à revelação,
aos poderes, às burocracias ao Destino do Ser.
Comenta Hilton Japiassu que, “para muitos filósofos, a história da filosofia tem
representado um abrigo seguro, acobertado pelos grandes nomes, herdeiros vivos
de um passado glorioso mas pesado e sufocante, contra os ataques dos que pretendem calar sua voz. Essa volta sobre si, essa retirada, mais parece um longo “retiro”
(espiritual), uma saída — para não dizer fuga — do mundo, a exemplo dos monges
antigos: “Está no mundo, mas não seria deste mundo”.59 Estendo o comentário de
Japiassu aos lógicos. A lógica sempre foi um instrumento utilizado pelos filósofos.60
Entretanto, do início do século XX para cá, acabou tornando-se o principal objeto
de estudo para muitos. Acho muito válido o estudo de lógica, porém devo fazer
uma distinção, nesse caso válida: quem se detém a estudar lógica é um lógico, mas
não um filósofo.61
Pouco a pouco, impôs-se a idéia de que a filosofia seria apenas uma disciplina
como as outras no respeito às fronteiras estabelecidas, devendo apenas fazer certos
ajustes técnicos e administrativos para estabelecer boas relações de vizinhança
com as outras disciplinas do saber.
57 “Os filósofos que fazem questão de rejeitar a metafísica ocidental, como Rorty e Derrida, são muito mais
influentes nos departamentos de literatura do que nos de filosofia.” SEARLE, John R. Rationality and Realism:
What is at Stake? Journal of the American Academy of Arts and Sciences, from the issue entitled, “The
American Research University”. Fall 1993, vol. 122, n. 4.
58 Alguns cientistas também afirmam isso. O prémio Nobel de Física Stefen Weinberg, por exemplo, disse
que os filósofos não forneceram, de modo direto ou indireto, nenhum conhecimento científico. Por isso a
filosofia deve ser eliminada como exercício inútil e, até mesmo, nocivo ao pensamento.
59 JAPIASSU, H. Op. cit. p. 168.
60 “Lógica. Uma das partes da filosofia: ciência que tem por objeto determinar, por entre todas as operações
intelectuais que tendem para o conhecimento do verdadeiro, as que são válidas e as que o não são.”
LALANDE, André. Vocabulario Tecnico e Critico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 630.
61 Concorda H. Japiassu, op. cit., p. 170.
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Japiassu nos conta que o grande projeto dos filósofos da década de 1930 foi o de
construir uma filosofia positivista fundada num empirismo fazendo da experiência
a única fonte de nosso saber, a razão desempenhando apenas uma função coordenadora, mas capaz de fornecer-nos uma “concepção científica do mundo” e de
opor-se à ascensão do “irracionalismo” alemão. Para fazer frente a esse perigo (nazista), defenderam a seguinte tese: devemos empenhar-nos para acumular conhecimentos positivos em todos os domínios e promover sua matematização progressiva
a fim de serem aplicados pelos governos “democráticos”. A este último movimento
correspondeu uma profissionalização acadêmica, provocando uma verdadeira clivagem no mundo filosófico:
a) intensificou-se a sofisticação dos formalismos (sem preocupação com o pensamento científico em ato) nos distintos domínios da lógica;
b)muitos filósofos se sentiram desobrigados de pensar seu tempo e colocar o
problema de sua responsabilidade diante dos desastres políticos e sociais;
c) fecharam-se nos trabalhos de história da filosofia e de comentários mais ou
menos eruditos de textos, sem nenhuma preocupação com a filosofia viva e
com os problemas reais dos seres humanos.62
A filosofia não pode fechar-se nos estreitos limites da disciplina ou do mero ensino acadêmico. Tampouco conformar-se com a releitura e a exegese dos autores
clássicos: se tivermos lido todos os argumentos de Platão e Aristóteles, teremos
apenas aprendido história, não feito filosofia, que nada mais é que a “atividade
intelectual tomando consciência de si mesma a fim de libertar-se dos preconceitos
das crenças e convicções herdadas do passado”.63
Se a filosofia está, hoje, passando por um momento de eclipse ou esterelidade,
os culpados disso somos nós, filósofos, pois cedemos às pressões e nos acomodamos no fundo de nossas cavernas. Finalizo este artigo citando Bertrand Russell:
A filosofia deve ser estudada não com o objetivo de chegar a alguma resposta definitiva às suas
questões, já que nenhuma resposta definitiva pode, como regra, ser reconhecida como verdadeira. Ela deve ser estudada em virtude das próprias questões, pois essas questões ampliam nossa
concepção do que seja possível, enriquecem nossa imaginação intelectual e diminuem as certezas dogmáticas que fecham nossa mente à especulação. Sobretudo, ela deve ser estudada por
que, graças à grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente também é engrandecida
e se torna capaz daquela união com o universo que constitui o mais alto dos bens.
62 Cf. JAPIASSU, H. Op. cit. p. 171.
63 Id., ibid. p. 173.
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