Netnografia, fãs e memória afetiva: a construção de uma relação de amor e ódio1 SANTOS, Pedro Henrique Conceição (Mestrando)2 FERNANDES, Paula (Mestranda)3 Universidade Federal Fluminense/RJ Resumo: Nesta pesquisa investiga-se como é a construção da memória afetiva dos fãs em relação aos seus objetos de admiração, a partir de suas relações em plataformas virtuais. Baseia-se na ideia de que através do uso destas comunidades virtuais é possível estabelecer relações coletivas que tendem à uma aproximação ou afastamento do produto midiático consumido. Pretende-se discutir a relação estabelecida entre a proposta de estudo netnográfico, a recuperação da memória afetiva de fandoms e criação de laços diversos dentro dos grupos online, bem como a recepção dos pesquisados perante a metodologia escolhida. Para tanto, esta pesquisa explora as conexões construídas entre os fãs da série de TV Glee, chamados de gleeks, tanto entre eles quanto com a temática social do seriado, e o ressentimento dos fãs do escritor norte-americano John Green, nomeados de nerdfighters, após o sucesso da adaptação da obra A culpa é das estrelas para o cinema. O artigo ainda busca ressaltar a experiência do pesquisador de fãs em suportes midiáticos digitais, uma vez que a metodologia escolhida é de fundamental importância em todo o processo desta pesquisa. Palavras-chave: fãs; netnografia; memória afetiva; gleeks; nerdfighters Introdução Os grupos sociais se diferem por suas práticas que os fazem distinguir uns dos outros. As relações que ocorrem em um determinado lugar e que são mantidas constroem o espaço (CERTEAU, 1998, p. 202). Quando o espaço é vivenciado criando significados pode ser chamado de espaço cultural pois “é pela existência de uma cultura que se cria um território e é por ele que se fortalece e se exprime a relação simbólica existente entre a cultura e o espaço (BONNEMAISON, 2002, p. 101-102). A cultura é o terreno da liberdade e autoafirmação 1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Digital, integrante do IV Encontro Regional Sudeste de História da Mídia – Alcar Sudeste, 2016. 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e integrantes do Núcleo de Estudos em Comunicação de Massa e Consumo (NEMACS). e-mail: [email protected] 3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e integrantes do Núcleo de Estudos em Comunicação de Massa e Consumo (NEMACS). E-mail: [email protected] (BAUMAN, 2012, p. 16). É no espaço cultural que ocorre uma territorialização intangível, na qual existe um jogo de identidade e alteridade, a partir do cotidiano, que concretiza, de fato, uma ideia de território: a territorialidade (CORRÊA, 2008, p. 166). Segundo Robert David Sack (1986), a territorialidade facilita a compreensão da história de um lugar onde pode-se entender como era sua sociedade, seu tempo e seu espaço (SACK, 1986, p. 5). Há um elo firme entre aquele espaço e a cultura (BONNEMAISON, 2002, p. 101-102; CORRÊA, 2008, p. 166), em que o território terá um valor simbólico (HAESBAERT, 2004). Este, “assume uma dimensão simbólica, estabelecendo e consolidando, através da prática cultural, seus processos de identidade e alteridade frente aos outros grupos” (CORRÊA, 2008, p. 166-167). Por sua vez, os fãs possuem características que estabelecem sua própria territorialidade. O território em que as práticas dos fãs ocorrem é denominado fandom. Por conta de seu aspecto trivial, falta clareza em suas definições (HILLS, 2002) e suas práticas são variadas, podendo assim ter diversas interpretações sobre suas atividades (SANDVOSS, 2013). De acordo com Nicole Isabel dos Reis (2010), trata-se da união entre “fan” - “fã” em inglês – com o afixo “dom” – que significa domínio, similarmente como ocorre em “kingdom” (“reino”, em inglês, como se fosse o “domínio do rei”). Desse modo, entre seus significados, pode ser considerado o “domínio dos fãs”, no sentido de práticas que são típicas do coletivo (REIS, 2010, p. 142). Ao contrário de um fã solitário, o fandom pode ser considerado o espaço onde é organizado todo o conjunto de práticas por meio de suas relações semióticas ou materiais que, a partir de suas experiências de produção e resistência, ou não, cria engajamentos com outros admiradores (FISKE, 2001; HILLS, 2002; SANDVOSS, 2013). Desta maneira, são formadas comunidades de pessoas que compartilham os mesmos interesses (JENKINS, 2006). Os fandoms, subdivididos em comunidades online, constroem dinâmicas particulares que geram a criação de laços e significados específicos para cada agrupamento. Desta forma, dentro de tais grupos, a liberdade de trocar informações com outros fãs que dividem os mesmos sentimentos, impressões e valores, geram conteúdo rico de significados que podem ser explorados para compreender a relação entre fã e produto cultural. De acordo com Raquel Recuero (2008), a comunidade é um grupo de pessoas que interage. Partindo desta definição ampla, já se pode considerar a reunião dos membros em torno de um produto comum como comunidade virtual. Ainda concordando com a autora, a interação que ali acontece configura ainda uma estrutura específica de funcionamento, com conexões, conflitos e construções de significados. Em geral, os fãs se organizam em grupos dentro de redes sociais na internet, como o Facebook, Twitter, YouTube, entre outros, que são os meios necessários para se expressar (CAMPANELLA, 2012, p. 475). É na internet que ocorrem as mais diversas trocas e que se criam novos laços. De acordo com Pieniz (2009), O ciberespaço é efervescente em relações e em sociabilidade e precisa ser considerado, ainda mais se for levado em conta a quantidade de pessoas conectadas. Estes sujeitos, sobretudo adolescentes e jovens, fazem do ciberespaço um espaço de relacionamento por excelência (PIENIZ, 2009, p. 10). Com a web como cenário de pesquisa e troca de informações, as especificidades de estudos devem ser ressaltadas. Como afirma Pieniz (2009), o meio on-line permite relações que seriam mais difíceis se feitas em condições off-line. Ou seja, a internet abre novas possibilidades de compartilhamentos de conteúdo abrindo, também, alternativas de estudo. De acordo com a perspectiva de Jenkins (2009), “a web representa um espaço de experimentação e inovação, onde os amadores testam o terreno, desenvolvem novas práticas, temas, e geram material que pode vir a atrair seguidores nos seus próprios termos” (JENKINS, 2009, p. 148). Trata-se também de um espaço de conexão, reunião e construção de relações, significados e valores. Para compreender como estas relações são construídas e como são atribuídos significados e valores, bem como funcionam as dinâmicas de rede, é preciso conhecer as agrupações na rede desde sua criação até sua dinâmica interna. Neste contexto de uma sociedade dita pós-moderna em que as identidades são fluídas e estão permanente disputa (HALL, 2005), este estudo explora as conexões construídas entre os fãs da série de TV Glee, chamados de gleeks, tanto entre eles quanto com a temática social do seriado; e o ressentimento dos fãs do escritor norte-americano John Green, nomeados de nerdfighters, após o sucesso da adaptação da obra A culpa é das estrelas para o cinema. Este trabalho busca ressaltar a experiência do pesquisador de fãs em suportes midiáticos digitais, uma vez que a metodologia escolhida é de fundamental no processo da pesquisa. O uso do método netnográfico A urgência e a necessidade de análise dos novos suportes midiáticos – sejam sites de redes sociais, aplicativos ou mesmo dispositivos – advém de determinados fenômenos que chamam a atenção por sua repercussão. Segundo Pieniz (2009), o ciberespaço é um Ambiente de inteligência e memória coletivas, como mídia passível [de] apropriações culturais de cidadãos comuns, como meio de produção, recepção ou circulação de discursos, como cenário de visibilidade diante de um contexto de midiatização. E ainda [...] como espaço de reafirmações ou reconfigurações identitárias, como palco de expressão da diversidade, como ícone da globalização, como território virtual que desterritorializa e reterritorializa culturas locais, como espaço de ciberativismo e difusão de ideias de minorias. Enfim, como novo espaço de sociabilidade humana. (PIENIZ, 2009, p. 3) Rosalía Winocur (2009) afirma que “quando se fala em jovens na sociedade contemporânea, na realidade estamos nos referindo a múltiplas experiências dentro de realidades heterogêneas” (WINOCUR, 2009, p. 48, tradução nossa). Ou seja, nos ambientes virtuais existem hábitos e costumes os quais precisam ser investigados por sua singularidade. Logo, a utilização de um método netnográfico é importante. Sob a perspectiva de Campanella (2010), As novas plataformas midiáticas expandiram significativamente as possibilidades de consumo de conteúdo. Como consequência, os estudos etnográficos das mídias enfrentam agora o desafio de ultrapassar as fronteiras do ambiente doméstico para chegar aos novos lugares onde estes textos estão sendo significados e discutidos (CAMPANELLA, 2010, p. 37). Em geral, quando se fala em pesquisa de fãs, a inserção se dá através de fandoms. A entrada nos grupos concretiza o início da prática etnográfica virtual. Como um etnógrafo que se integra a um grupo, a prática virtual exige do pesquisador a aproximação para com os membros e adequação àquela cultura. De acordo com Gebera (2008, p.2), citada por Fragoso, Recuero e Amaral (2012), a etnografia virtual ou netnografia Enriquece as vertentes do enfoque de inovação e melhoramento social que promovem os métodos ativos e participativos dentro do espectro do qualitativo (metodologia e prática social), integrando-se ao que a Internet tem provocado em nosso cotidiano, transformações importantes nas maneiras como vivemos. (GEBERA, 2008 apud FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2012, p.174) Tratando-se de um ambiente de pesquisa on-line, há facilidades que interferem no processo de estudo e que fazem parte dessa autoanálise, constituindo uma parcela crucial para a compreensão externa de toda a evolução do trabalho. Noveli (2010) indica o acesso às informações como parte do cotidiano do pesquisador, uma vez que o computador e a internet estão à sua disposição em qualquer parte do dia (em um contexto de acesso amplo e constante) e, desta forma, como componente da metodologia de pesquisa geral e como forma de análise. Assim, O etnógrafo [virtual] levanta, mas se encontra em sua casa, liga o computador, digita o endereço da comunidade virtual no browser e já está no campo. Lá, já transcritos e em farta quantidade, estão os discursos dos membros da comunidade. Uma comunidade da internet, cujo interesse comum é o consumo de algo. Opiniões, reclamações, dicas, sugestões, palpites. Um conjunto de discursos permeando o mesmo tema. Sujeitos de pesquisa: homens, mulheres e anônimos. Uma coleta de dados de pesquisa pronta e praticamente organizada para a análise do pesquisador. (NOVELI, 2010, p. 108-109) A construção do ambiente onde o etnógrafo virtual está faz parte da metodologia de pesquisa, pois interfere no resultado final da análise. Porém, conseguir compreender este comportamento pessoal é mais do que outra prática metodológica. É um parâmetro de afastamento de um pesquisador para com seu objeto e seu processo de pesquisa. Desta maneira, é possível agregar ao estudo experiências pessoais, já que foram precursoras para o envolvimento com os pontos analisados e obtenção de informações específicas. O contato mediado pelo computador não impede a proximidade entre os usuários. O fato de ser uma presença não-física, como ressalta Raquel Recuero (2009), não é prejudicial para a “convivência” online dos membros de uma rede, neste caso, de um grupo, uma vez que no universo do ciberespaço. Elementos como reputação, confiança e visibilidade tornam-se cruciais para a interação, como bases de relações sociais e de redes sociais, através das quais alguém terá acesso a um determinado tipo capital social (RECUERO, 2009). Logo, somente características em comum na rede farão de tais relações fortes e significativas. Portanto, é necessário entender que quando se estuda fandoms é analisado um conjunto de pessoas, mesmo que as opiniões individuais sejam importantes para a construção daquele espaço. Muitos deles não se restringem a um só grupo, formandos outras formações. Silveira (2010) afirma que ao estar dentro de um fandom você realiza negociações culturais, já que a interpretação vem de cada sujeito. Assim há uma “desordem de significados e o intenso envolvimento com os produtos fazem do fandom um espaço carnavalesco, que permite a subversão temporária da ordem social existente” (SILVEIRA, 2010, p. 72). Fazer parte de algo especial: relatos da experiência com fãs da série Glee Glee é uma série americana lançada em 2009. Segundo o site do canal Fox 4, onde foi transmitida oficialmente, “GLEE é uma comédia musical sobre um grupo de jovens ambiciosos e talentosos que escapam de sua dura realidade do ensino médio em um coral onde encontram força, aceitação e, principalmente, suas vozes”. Lançada em 19 de maio de 4 Disponível em: <http://www.foxplaybrasil.com.br/show/7350-glee>. Acesso em: 24 de jul. 2016. 2009, a série gira em torno de um clube da William McKinley High School voltado para competições de corais e são chamados de “glee club”, daí o nome da série. As descrições de sites para downloads de séries definem Glee como “um grupo de desajustados ambiciosos tentam escapar das duras realidades do ensino médio por aderir a um clube de canto (coral), onde eles encontram força, aceitação e a sua voz, enquanto trabalham para perseguir seus próprios sonhos”. Assim, dois pontos unem os jovens que participam do clube: a música e as dificuldades sociais modernas, como exclusão, homossexualidade, gravidez na juventude, dúvidas escolares, problemas de relacionamento e, principalmente, bullying. A temática social e musical é o que diferencia e destaca a série. A proposta de aproximar do cotidiano, realidade ou projeção de vida – principalmente dos jovens, mas encaixa-se em situações mais de um grupo social do que de uma faixa etária –, além de ser um movimento de conquista de público, também traz a necessidade de evidenciar problemas sociais, de identidade, conflitos internos, dificuldades escolares, familiares e até mesmo vergonha, autenticidade e inserção em um determinado nicho. O que é perceptível nos gleeks, como são chamados os fãs da série. Em suas postagens na rede, mostram-se como defensores das causas exibidas no programa, revelando uma conexão diferente dos demais fãs. Para estudá-los, a entrada em comunidades virtuais sobre a série foi a estratégia utilizada. Assim, esta análise utiliza o grupo Glee Brasil no site de rede social Facebook como um do corpus de estudo, por ser, dentre as comunidades encontradas, a mais numerosa em quantidade de membros e postagens. Ter a web como meio de comunicação em rede estudado altera a forma de análise e de conectar-se com as todas as etapas do processo de pesquisa. Fragoso, Recuero e Amaral (2012) evidenciam as características da internet como cultura e como artefato cultural. As autoras afirmam que estudar a internet e suas características de interação ainda parece repetir a dualidade entre on-line e off-line e tem a autonomia de um objeto que já se encontra “naturalizado na vida cotidiana”, se considerarmos que estar constantemente on-line ou ter participação neste meio em algum momento já faz parte do dia a dia contemporâneo (FRAGOSO, RECUERO, AMARAL, 2012). De acordo com as pesquisadoras (2012), No caso da pesquisa sobre internet, a própria definição temática carrega o peso de uma falácia que é preciso ter em mente todo o tempo: ao especificar a internet como universo de observação implicitamente damos abrigo à ideia de uma ruptura entre o que está ou acontece “dentro” da rede e o mundo “fora” dela (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2012, p. 54). A web tem papel fundamental na construção de relações entre fãs na contemporaneidade. A ausência de limitações especiais e a possibilidade de reunir pessoas que compartilham de mesmas opiniões e memórias afetivas semelhantes faz do meio virtual um facilitador para troca de sentimentos, sensações, valores e experiências. Tratando-se do fandom da série Glee, faz-se importante destacar do que se trata o programa. O seriado tem como enredo situações enfrentadas pela juventude moderna, como preconceito, sexualidade, relações amorosas, estudo e futuro, por exemplo, guiadas pelas performances musicais. Como lida com questões pessoais das personagens, desperta nos fãs reações afetivas sobre tais temáticas. Estas reações são identificadas por meio do volume de postagens, pertinência no assunto, resposta de outros membros e são ligadas a aspectos pessoais a partir do momento em que os próprios integrantes expõem opiniões acerca dos assuntos das postagens ligadas às suas próprias vidas. Revelam, então, valores que são considerados importantes por aquela comunidade e, acima até do Glee Brasil, pelos fãs de Glee em geral. Para chegar até esses conceitos construídos a partir da série foi necessária observação do grupo e a exposição da presença de um pesquisador dentro da dinâmica da comunidade. Apesar do Glee Brasil reunir à época da investigação quase 25 mil membros5, o fato de saber que se está sendo analisado e estudado poderia inibir a manifestação dos integrantes. Porém, o resultado fora contrário. A resposta à proposta de pesquisa sobre a comunidade despertou nos membros contentamento e uma noção de reconhecimento afetivo do fandom e da série em si. O processo de observação e eventuais interferências mostraram, através das postagens e do contato com integrantes que se mostraram mais ativos e interessados no estudo realizado bem como os administradores do grupo, que as temáticas que circundam a série, como respeito, aceitação, amor, amizade, sexualidade, estão presentes e repercutem. Os integrantes postavam à época da pesquisa cotidianamente imagens e links de vídeos, principalmente, que repercutem e geram as movimentações mais relevantes dentro da dinâmica interna. A partir da permanência na comunidade e o acompanhamento da convivência online revelaram uma construção afetiva, tendo como vínculo em comum a série, como o fator principal de compartilhamento de conteúdo entre os membros. Expressões como “saudade”, “eu sou como”, “amo”, “gosto”, “me representa”, dentre outras, revelam a relação próxima 5 Contagem até dezembro de 2014, recorte final temporal da permanência netnográfica no grupo. entre os fãs e o que Glee transmite. Monteiro (2010, p. 45) apresenta também outras variações da manifestação do fã em seu estudo, como “eu casaria com meu ídolo”, “eu me tornei uma pessoa melhor depois que comecei a escutar o disco da Banda Y”, “daria minha vida por ele”, sendo questões manifestadas nos grupos. Em vez de simplesmente rejeitar os discursos-padrão e algo estereotipados (associando-os automaticamente à concepção patológica da idolatria) ou, por outro lado, desconsiderar a existência de fãs “produtivos” (como forma de valorizar as atividades não necessariamente produtivas do fã individual), é preciso investigar as condições de ambas as manifestações. (MONTEIRO, 2010, p. 45) É relevante e importante mostrar como o afeto e os significados são atribuídos e alimentados, uma vez que é uma das conexões pessoais que valem ser destacadas além do simples consumo do produto cultural. Assim, as demonstrações de afeto para com a série acontecem desde a postagem de conteúdos novos, como notícias ou comentários sobre episódios recentes, a resgate de momentos do programa que deixaram saudade nos fãs. As postagens evidenciam, principalmente, a relação próxima dos fãs com a temática do seriado e a identificação com situações e personagens. Os membros realizam um resgate afetivo de acontecimentos pessoais e atribuem à série sentimentos e valores (re)descobertos. Desta forma, a memória afetiva pode ser considerada como fator relevante e talvez primordial no processo de estudo em comunidades de fãs uma vez que o produto cultural pode exercer papéis emotivos para quem o consome. Uma postagem que chama a atenção pelos comentários emocionados é de um vídeo postado por um integrante do grupo contendo uma performance do elenco da quinta temporada da série. No texto, o membro comenta sobre o fim próximo do programa e a espera por um final “digno”6 (nas próprias palavras do fã). Os demais fãs mostram com o volume de curtidas e com a forma de comentar a postagem que a série e seu encerramento próximo os afetam emocionalmente. Pode-se observar pelo comentário abaixo que Glee representa valores pessoais e que o fandom tende a construir relações afetivas com o que cerca a série, desde a temática até o elenco. O gleek responsável pelo comentário destacado revela o quão importante a série na sua vida mostrando que o programa tem a capacidade de entrar na vida pessoal dos fãs e agregar valores, tais como superação, respeito e até mesmo amor. “Nenhuma série me fez me sentir especial como sou, e que tudo nessa vida 6 Um dos grandes medos revelados nas observações do grupo é de que a série não tenha um final que agrade ao fandom. Pelos episódios que têm sido apresentados nas duas últimas temporadas, os fãs demonstram receio do que pode ser feito do final de Glee, que aconteceu em 2015, na sexta temporada. passa e tem como dar a volta por cima mesmo que não seja fácil, se eu tiver filhos com certeza irei mostrar a série pra eles. Pra cada gleek a série vai ser eterna seja por lembranças e fanfics, ela vai continuar ajudando muita gente e conquistando novos fãs (sic.)” (Comentário em uma postagem no grupo Glee Brasil em Julho de 2014). Fica evidente na fala deste membro do Glee Brasil a atribuição emocional que o fandom faz. A presença da série na vida destes fãs é grande e ocupa lugar de suporte, incentivo e superação. As histórias desenvolvidas no seriado conseguem se aproximar de situações vividas pelos integrantes do grupo fazendo com que eles se enxerguem também no desfecho dos acontecimentos na série. Ou seja, a série se torna um espelho para os fãs, os incentivando a tomar decisões pessoais e construindo uma relação de afeto e de resgate íntimo. “O John Green não é mais o mesmo”: relatos sobre a experiência com os nerdfighters No dia primeiro de janeiro de 2007, os irmãos John e Hank Green criaram um canal no YouTube intitulado Brotherhood 2.0 (GONÇALVES, 2012). O objetivo do canal era discutir sobre os mais variados assuntos do cotidiano entre os irmãos, como uma espécie de carta em formato de vídeo no qual trocavam suas experiências diárias. Por conta do seu sucesso, os irmãos mantiveram o canal após o projeto, porém com outro nome desta vez: Vlogbrothers. Uma comunidade foi formada aos poucos ao redor das publicações dos irmãos Green, sendo denominados nerdfighters (GONÇALVES, 2012, p. 46-49). A denominação veio a partir do vídeo “Brotherhood 2.0, February 1, 2007” 7. John Green relata sobre uma máquina de jogos eletrônicos chamada Nerd Fighters. Em uma divagação sobre o arcade no vídeo “Brotherhood 2.0: February 17, 2007” 8, o escritor norte-americano se pergunta sobre o objetivo do jogo. Para ele, trata-se de um jogo em que nerds lutam por um ideal, especialmente ligada às “pessoas populares”9. A principal motivação de investigação desse fandom foi o fato deles se unirem para debater sobre questões sociais de suas vidas. O Nerdfighteria10 é formado por pessoas feitas 7 Disponível em: <https://youtu.be/RPAoaWCMabw>. Acesso em: 23 de jul. 2016. 8 Disponível em: <https://youtu.be/tuvCb5eBbjE>. Acesso em: 23 de jul. 2016. 9 As “pessoas populares” que John Green se refere são jogadores de futebol, por exemplo. Trata-se das disputas que ocorrem dentro de escolas, principalmente as norte-americanas, em que existem conflitos entre nerds - geralmente excluídos - e os “populares” - que são aceitos com mais facilidade dentro da hierarquia social escolar. 10 Denominação do “mundo” dos nerdfighters, ou seja, do fandom em si. de awesome e que combatem o world suck11. Mais do que se tratando de um grupo onde existe uma forte relação dicotômica com o mundo, tratava-se de fãs de irmãos que defendiam uma causa. Em uma entrevista que John Green concedeu ele afirma que Uma das razões que Hank e eu sempre temos resistido em ir em programas de televisão é que nós não queremos que os nerdfighters sejam um fenômeno da cultura mainstream (...). Eu me preocupo que o mainstream precise de uma Mensagem de Singularidade, e Uma Marca, e uma Voz Institucional e coisas do tipo. Essas coisas não nos interessam. Nós só queremos fazer coisas legais com pessoas que gostamos. (GREEN, 2013, tradução nossa) A questão da pesquisa realizada anteriormente era verificar se o filme A culpa é das estrelas tinha mudado a configuração do fandom a partir da análise do grupo Nerdfighteria do Facebook. Este reúne mais de 15 mil fãs dos irmãos Green e provavelmente surgiu no dia 03 de junho de 201212. Fazem parte jovens em idade escolar e universitária (entre 15 e 25 anos) que deixam mensagens com bastante frequência. A princípio, seria estudado um outro grupo, o da plataforma reddit, uma rede social que reúne fóruns de discussão. Esta comunidade se chama Nerdfighters e fez parte do primeiro levantamento através dos questionários quantitativos. No entanto, por conta da falta de receptividade do grupo em relação a esse levantamento de dados, tal grupo não participou das fases posteriores. Ao contrário do Nerdfighteria, o qual o pesquisador já tinha mais intimidade com os usuários, o grupo Nerdfighters o desconheciam. Se sentiram no direito de questionar a pesquisa, assim como aconteceu com Grossberg (2001) ao falar de uma disciplina que ministrou quando foi professor em uma universidade. O pesquisador ministrou uma disciplina sobre rock-and-roll e os seus colegas de trabalho questionaram sua capacidade de lecionar a matéria, pois eram fãs do estilo. Porém, ao invés de desqualificar tal ponto de vista, o autor ficou fascinado em ver como era a relação afetiva entre os admiradores e o objeto admirado. A relação entre fãs e pesquisadores pode ser complicada. A academia considerava os fãs como uma patologia (JENSON, 2001). Mesmo com uma perspectiva etnográfica, há diversos problemas relacionados principalmente pela falta de conhecimento e de sensibilidade dos pesquisadores em suas análises. Entretanto, trazem seus próprios anseios para pesquisar os fãs. No caso de Jenkins (2005), seu desejo é contribuir para diminuir os equívocos na 11 “Awesome” é tudo que há de bom no mundo e sua contraparte é o “world suck”, ou seja, tudo que há de ruim. 12 Tal dado não pode ser confirmado através do Facebook, pois não está disponibilizado. A confirmação veio através de um evento de comemoração de três anos que será realizado nesta data. Disponível em: <https://www.facebook.com/events/562711540505652/>. Acesso em: 23 de jul. 2015. teorização das culturas de massa e seus consumidores (JENKINS, 2005; FREIRE FILHO, 2007, p. 93). Grossberg (2001) mostra como o trabalho do pesquisador é desvalorizado, pois ele provavelmente não tem a capacidade de analisar de forma adequada um produto cultural e seu consumo. O autor discorda e aponta como um problema a ser solucionado através da comprovação dos estudos. Enquanto isso, Hills (2002) nos dimensiona sobre os vínculos objetivos (da academia) e subjetivos (dos fãs) nos estudos sobre fã, apontando duas identidades híbridas nessa dicotomia: a do acadêmico-fã, considerado por alguns pesquisadores como um indivíduo sem capacidade de julgamento imparcial em seus estudos e por outros como aquele que pode mostrar de forma mais clara as relações cotidianas de um grupo de consumo porque convive com esse grupo; e do fã-acadêmico, como o que pontua de forma crítica, que contribui muito para pesquisadores, porém ainda considerado como pessoa que não merece ser ouvida. Mesmo com este horizonte múltiplo, é preciso assinalar que cada vez mais os trabalhos realizados partem de motivações pessoais. Aquele medo de ter uma visão mais apaixonada pelo tema foi deixado de lado, a linguagem se tornou mais simples, diminuindo esse distanciamento e estranhamento entre fãs e pesquisadores (FREIRE FILHO, 2007, p.93). Na investigação, percebe-se que os fãs lembram de um John Green anterior àquele em um momento “pós-a-culpa-é-das-estrelas”. Isto revela como a memória dos fãs é ativada em relação a um momento antes da pesquisa e outro durante a pesquisa em relação ao seu ídolo. Nas palavras de um fã que foi entrevistado: Eu estava sentido que o dinheiro estava se tornando mais um problema para ele. Todos os vídeos estavam discutindo algo que ele fez com o dinheiro, de alguma forma. [...] Eu realmente não gosto dessa parte. Eu admiro sua habilidade com palavras quando se trata de explicar situações complexas e eu estou feliz por ele ganhar dinheiro com a sua paixão. Mas parece que o dinheiro está se tornando essa paixão. Pode apenas ter sido o estresse/muito o que fazer, mas vou manter o meu julgamento até o lançamento de Cidades de Papel. (Fã-entrevistado, 2015, tradução nossa) 13 Considerações Finais Para compreender a dinâmica de construção, funcionamento e solidificação de um fandom, tem-se que ir além de uma observação. Metodologicamente, o fazer netnográfico, bem como o etnográfico, permite ao pesquisador perceber comportamentos e atribuições de 13 Na pesquisa realizada na monografia “A culpa é das estrelas”, defendida em 2015, todos os entrevistados tiveram seus nomes omitidos para manter sigilo. Cidades de Papel é também uma obra de John Green que foi adaptada nos cinemas no ano de 2015. sentido e ser parte, de fato, do fenômeno estudado. Desta forma, pode-se apontar que quando propõem-se investigar fãs e demais movimentos ao seu redor, a prática metodológica explorada neste artigo é utilizada a fim de compreender dimensões mais profundas das territorialidades e das afetividades que permeiam os fandoms. É importante salientar que a experiência netnográfica também traz aspectos negativos e dificuldades em seu processo. Tal como fora tratado no processo de investigação desta pesquisa, a receptividade dos fãs pode caminhar em direção a exaltação e reconhecimento do pesquisador ou para a rejeição e falta de legitimação do interesse em estudar aquele grupo de pessoas. Porém, mesmo que a metodologia não obtenha sucesso ou completa aceitação, tornase válido o relato e a análise da situação em prol da pesquisa. Além disso, a relação dos fãs com seus objetos de admiração, sejam eles de que natureza forem, também podem ser diversas e surpreendentes. No caso de Glee, o fandom mostra-se intimamente ligado à série como um todo, incluindo até mesmo o elenco e sua vida alheia ao programa. A memória afetiva surge nos gleeks de maneira terna e saudosa, uma vez que eles estabelecem laços pessoais com o seriado provocados pela temática e desfechos propostos pelo programa. Mesmo com acontecimentos que não agradavam aos fãs, a relação de proximidade e de afeto com permaneceu e reverbera mesmo depois do seu encerramento. Já no caso dos nerdfighters é possível compreender que há uma separação entre os fãs e uma de suas figuras admiradas, o escritor norte-americano John Green. Há um John Green antes do sucesso, o qual importava-se com a comunidade; e outro após o êxito da adaptação da obra A culpa é das estrelas nos cinemas, se dedica ao dinheiro. Além disso, a tentativa de participação de um dos grupos foi questionada, pois a inserção do pesquisador não foi realizada de forma adequada. E mesmo no grupo que foi posteriormente parte do estudo, houve o questionamento da sua proposta de análise. Netnografia, fãs e memória afetiva têm uma relação direta e que deve ser explorada de outras formas além da que fora realizada neste artigo. Fandoms podem se constituir sob base de diversos fatores relacionados a produtos culturais de variadas naturezas e a relação que constroem permitem explorar sentidos, valores, sentimentos, laços, formação de redes dentre outros aspectos. Em um contexto virtual, a netnografia é fator facilitador que também deve ser explorado academicamente. Assim, a presente pesquisa aponta que os três pilares estabelecidos ao longo da discussão não devem ser estudados isoladamente, mas em conjunto. Foi examinado apenas um dos recortes de discussão acerca dos temas. Novos horizontes podem ser avaliados a partir do enfoque do pesquisador. A apresentação dos desafios aqui discutidos sobre a etnografia virtual está configurada na necessidade de investigações baseadas em questionamentos do cotidiano da participação de comunidades virtuais. Referências Bibliográficas BARABÁSI, Albert-Lászoló. 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