José Augusto Brito Director-geral do Instituto Hidrográfico da Marinha Oceanografia e soberania 67 O reforço da soberania nacional, a aquisição do conhecimento, a garantia de um desenvolvimento sustentável e a protecção do meio marinho constituem, de um modo articulado, os pilares de uma moderna visão sobre os oceanos. É nesta perspectiva que se pode afirmar que a oceanografia, como fonte de conhecimento dos oceanos, pode e deve ser um instrumento de afirmação e de reforço da soberania nacional, auxiliando fortemente as políticas públicas para o mar. A operacionalização de projectos de natureza estruturante no domínio da oceanografia, tendo sempre como objectivo a promoção e a defesa activa dos interesses nacionais, permitirá reforçar a soberania nacional sobre a maior ZEE de um país integrado na União Europeia. 68 The strengthening of national sovereignty, the acquisition of knowledge, the guarantee of sustainable development and the protection of marine resources, together in an articulated manner constitute the pillars of a modern vision of the oceans. It is within this perspective that one may state that oceanography, as a source of knowledge of the oceans, can and should be an instrument of affirmation and strengthening of national sovereignty, providing a strong basis for support of public policies for the sea. The operationalisation of projects of a structural nature in the area of oceanography, always with the objective of the promotion and active defence of National Interests, will allow national sovereignty to be strengthened over the largest EEZ of a country integrated within the European Union. 1. Enquadramento A soberania das nações tem sido imposta, ao longo da história, através da força das armas. Portugal não foge à regra. A Reconquista de território nos primórdios da Nação teve como força motriz a acção armada, só depois se implementando a matriz de povoamento como acção estruturalmente solidificadora dessa soberania. Na epopeia dos Descobrimentos o processo foi semelhante, mais vincado nas regiões possuidoras de Estado organizado, como na Ásia, onde foi necessário preceder o estabelecimento de feitorias com o troar dos canhões, mais ténue em África e na América do Sul, onde o diferencial militar era de tal modo desequilibrado que bastava a demonstração de força para permitir o povoamento e o estabelecimento de estruturas administrativas de soberania. O século XX, mormente após a Segunda Guerra Mundial, trouxe às nações do mundo um novo enquadramento nas relações internacionais, reguladas por organizações que privilegiam o multilateralismo na sua carta constituinte1 . As nações europeias assistiram a um refluxo da sua soberania, que se espalhara pelo mundo durante o século XIX, regressando à sua forma quase original, após a imparável onda de independências na Ásia e em África, restando presentemente apenas alguns resquícios da sua expansão. A soberania no mar através da história remete para o “Mare Nostrum” dos Romanos com o “seu” mar Mediterrâneo e a prevalência deste conceito até Hugo Grotius no século XVII e o conceito de “Mare Liberum” (1609). O século XIX consolidou a figura de Mar Territorial, que impôs o conceito de soberania do mar a partir de terra2 . É apenas nos anos 70 do século XX que algo de significativo acontece neste campo, com as primeiras reivindicações da Zona Económica Exclusiva (ZEE)3 , a qual só veio a ser reconhecida internacionalmente anos mais tarde na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) (1982). A ZEE, estendendo a soberania às 200 milhas, mesmo que apenas dos recursos vivos, criou a necessidade do conhecimento científico de uma vasta área, conhecimento esse até então baseado quase no saber empíri- co dos navegantes, principalmente pescadores, e de algumas actividades no campo científico ocorridas nos últimos 100 anos4 . Na sequência da CNUDM e da possibilidade dos Estados ribeirinhos poderem reivindicar a soberania sobre as suas plataformas continentais (fundo do mar), até um máximo de 350 milhas a partir das linhas de base ou 100 milhas a partir da isobatimétrica dos 2500 metros, novas necessidades de conhecimento se abriram, desta vez focadas no fundo do mar, superfície ainda hoje menos conhecida que a face visível da Lua. A oceanografia, vista numa perspectiva interdisciplinar, com as suas componentes de física, química, biologia e geologia, dever-se-á constituir como o veículo por excelência desse conhecimento dos mares, sem descurar, contudo, outras disciplinas complementares como a hidrografia ou a geofísica interna aplicada ao fundo. 2. Oceanografia e soberania em Portugal Portugal, desde meados da década de 90 do século XX, tem demonstrado uma inequívoca vontade de se voltar para o mar. A promoção da Expo 98, enquadrada no Ano Internacional dos Oceanos, o trabalho da Comissão Estratégica dos Oceanos que apresentou conclusões em 2004 e a recentemente aprovada Estratégia Nacional para o Mar5 , após trabalho efectuado no âmbito da Estrutura de Missão para os Assuntos do Mar, têm sido ilustrativos dessa vontade. Tudo isto tem permitido não só uma consciencialização da importância do mar por parte dos decisores aos vários níveis, como também e principalmente o despertar da discussão desta problemática a nível da sociedade civil. A necessidade de criar condições para apresentar na ONU uma proposta de extensão da plataforma continental levou à criação de uma estrutura dedicada em 2005, a EMEPC (Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental), com a tarefa de apresentar uma proposta consolidada até Março de 2009. Esta constitui a área mais importante em que presentemente Portugal pode encarar a soberania numa perspectiva expansiva. Na realidade, se 69 70 não o fizer, pode comprometer a possibilidade de, pela primeira vez em muitos séculos, expandir o território nacional, mesmo que o faça apenas no fundo do mar. O “apenas” aqui esconde o valor estratégico que esta eventual expansão trará, dado o impacto económico que potencia para as gerações vindouras, que não perdoariam qualquer menor empenho neste processo. É sabido que as tecnologias se desenvolveram historicamente baseadas nas necessidades. A questão energética bem como o esgotamento de certas matérias-primas exploradas até à exaustão nos continentes6, poderão levar à focalização dos esforços das nações nos oceanos, sendo vital para Portugal que, com uma imensa área de oceano sob a sua jurisdição, possa, em posição vantajosa, posicionar-se na linha da frente desde o início. Apesar da entusiasmante perspectiva da expansão da plataforma continental, e consequentemente da soberania nacional, há que reflectir sobre o modo como Portugal tem exercido a sua soberania efectiva sobre a imensidão de oceano que actualmente constitui a ZEE nacional7 , e a necessidade do seu reforço. De facto, o reforço da soberania nacional, a aquisição do conhecimento, a garantia de um desenvolvimento sustentável e a protecção do meio marinho, constituem, de um modo articulado, os pilares de uma moderna visão sobre os oceanos. É nesta perspectiva que se pode afirmar que a oceanografia, como fonte de conhecimento dos oceanos, pode e deve ser um instrumento de afirmação e de reforço da soberania nacional. 3. A inserção de Portugal na preparação da futura política marítima europeia A abordagem holística dos oceanos e dos mares caracteriza a visão europeia, traduzida no Livro Verde para uma futura Política Marítima da União Europeia, apresentado pela Comissão em Junho de 2005 e presentemente em fase de discussão pública alargada. Essa abordagem baseia-se numa vertente económica, consubstanciada na Estratégia de Lisboa e numa vertente de conservação dos ecossistemas, assente no conhecimento científico. A investigação oceanográfica associada dever-se-á prender não só com o alcançar um bom estado ecológico do meio marinho da União Europeia8 como também com o potenciar de aproveitamentos económicos como sejam as fontes de energia renováveis, a aquicultura ou a biotecnologia marinha. Portugal, como nação marítima, poderá utilizar o enquadramento europeu para catalisar a sua actividade associada ao mar, seja ela de ordem económico-social, seja de aquisição do conhecimento e preservação do ambiente. O 7.º Programa-Quadro Europeu para as actividades de Investigação e Desenvolvimento (I&D), concebido para responder aos desafios da Estratégia de Lisboa construindo uma Europa do Conhecimento, poderá, nessa óptica, ser preponderante para as ciências do mar em geral e para a oceanografia em particular, desenvolvidas em Portugal. Dever-se-á contudo contextualizar o papel de Portugal no âmbito da estratégia europeia, deixando aqui a soberania de ter índole puramente nacional e assumindo claramente o carácter europeu na perspectiva política da União Europeia. 4.O papel do instituto hidrográfico nas políticas públicas do Estado Tal como foi referido anteriormente Portugal deverá tentar beneficiar do enquadramento europeu que possui, mas sem nunca abdicar do desenvolvimento da sua estratégia. Essa estratégia nacional, no campo da oceanografia, passará sempre pela forte dinamização dos Laboratórios do Estado (LDE) como instrumentos de prossecução das políticas públicas do sector. As recentes Resoluções do Conselho de Ministros (RCM) sobre os LDE9 criam o consórcio de I&D Oceano, associando o Instituto Hidrográfico (IH), o Instituto de Meteorologia e o novo Instituto Nacional de Recursos Biológicos (INRP/IPIMAR), bem como outras entidades interessadas, sendo destinado a promover, na área da oceanografia, a cooperação científica internacional, a participação em projectos de I&D europeus e a utilização de navios e equipamentos oceanográficos. Ao IH, instituição com provas dadas nos campos da hidrografia, segurança da navegação e oceanografia, é também indicada explicitamente a sua participação no consórcio Riscos10 e implicitamente potenciada a sua participação no consórcio Segurança, no âmbito da participação portuguesa nas políticas de I&D da União Europeia para a Segurança. O IH, integrado na Marinha Portuguesa e consequentemente associado a funções de soberania, poderá desempenhar um papel central na área do consórcio Oceano, dispondo de condições para se tornar uma instituição-âncora, congregando os vários actores da I&D marinha em Portugal numa perspectiva multidisciplinar e integrada. Para isso deverá aproveitar as sinergias entre uma estrutura militar, dotada de capacidades e de meios operacionais de investigação únicos no País, e as capacidades técnico-científicas existentes, promovendo projectos de natureza estruturante no domínio da oceanografia11. O sucesso desses projectos, pelo conhecimento adicional que trarão para o País, será, em última análise, garante do reforço da sua soberania nacional, pois auxiliará os vários níveis de tomada de decisão do Estado sobre os assuntos do mar. mento da oceanografia subjacente a esta ideia. Foi já referido que a oceanografia, como fonte do conhecimento, poderá auxiliar fortemente as políticas públicas para o mar. Nesta consonância e tendo em conta os vectores de orientação sugeridas no Livro Verde da Política Marítima Europeia, urge posicionar os organismos do Estado já identificados12 para a operacionalização destas estratégias, tendo sempre como objectivo a promoção e a defesa activa dos interesses nacionais, permitindo assim reforçar a soberania nacional sobre a maior ZEE de um País integrado na União Europeia. Bibliografia A Estratégia Nacional para o Mar, recentemente aprovada, propõe Portugal como um centro de excelência de investigação das Ciências do Mar da Europa, estando o desenvolvi- Comissão Europeia (2006), “Livro Verde para uma Futura Política Marítima da União: uma Visão Europeia para os Oceanos e os Mares”, 7 de Junho. Estrutura de Missão para os Assuntos do Mar (2006), “Proposta da Estratégia Nacional para o Mar”, aprovada em Resolução do Conselho de Ministros n.º 163/2006, Diário da República, 1.ª série, n.º 237 de 12 de Dezembro. Instituto Hidrográfico, 2005: “Towards a Marine Research & Development Policy in Europe: A Euroatlantic Point of View”, “Position Paper” apresentado pelo Instituto Hidrográfico à Comissão Europeia, Dezembro. Soares, C. Ventura e Artilheiro, F. Freitas, 2006: “The Portuguese Hydrographic Institute: a Portuguese Reference in Science and Technology at Sea”, On Course – PIANC Magazine n.º 123, 15 de Abril. 1 As Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) são disso exemplo. 2 A distância de alcance dos canhões definia essa soberania, inicialmente de três milhas náuticas. 3 A “Guerra do Bacalhau” entre o Reino Unido e a Islândia em 1972 levou este país a declarar uma ZEE de 200 milhas náuticas. 4 Assumindo a navegação do Challenger, em 1872-1876, como a primeira expedição oceanográfica reconhecida como tal. 5 Resolução do Conselho de Ministros n.º 163/ /2006, publicada em Diário da República, 1.ª série, n.º 237 de 12 de Dezembro. Os metais, por exemplo. Cerca de 18 vezes o território português e a 11.ª do mundo. 8 Até 2021. 9 N.º 89/2006 de 29 de Junho e n.º 124/2006 de 7 de Setembro, respectivamente publicadas no Diário da República 1.ª série, n.º 139 de 20 de Julho e n.º 191 de 3 de Outubro. 10 Consórcio destinado à investigação, prevenção, combate e mitigação de riscos naturais e ambientais. 11 Especialmente a oceanografia operacional, a monitorização ambiental e a tecnologia marinha. 12 Essencialmente laboratórios do Estado. 5. Conclusões 6 7 71