Oceanografia e soberania

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José Augusto Brito
Director-geral do Instituto
Hidrográfico da Marinha
Oceanografia e soberania
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O reforço da soberania nacional, a aquisição do conhecimento, a garantia de um desenvolvimento sustentável e
a protecção do meio marinho constituem, de um modo articulado, os pilares de uma moderna visão sobre os
oceanos. É nesta perspectiva que se pode afirmar que a oceanografia, como fonte de conhecimento dos oceanos,
pode e deve ser um instrumento de afirmação e de reforço da soberania nacional, auxiliando fortemente as
políticas públicas para o mar.
A operacionalização de projectos de natureza estruturante no domínio da oceanografia, tendo sempre como
objectivo a promoção e a defesa activa dos interesses nacionais, permitirá reforçar a soberania nacional sobre a
maior ZEE de um país integrado na União Europeia.
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The strengthening of national sovereignty, the acquisition of knowledge, the guarantee of sustainable
development and the protection of marine resources, together in an articulated manner constitute the pillars of
a modern vision of the oceans. It is within this perspective that one may state that oceanography, as a source
of knowledge of the oceans, can and should be an instrument of affirmation and strengthening of national
sovereignty, providing a strong basis for support of public policies for the sea.
The operationalisation of projects of a structural nature in the area of oceanography, always with the
objective of the promotion and active defence of National Interests, will allow national sovereignty to be
strengthened over the largest EEZ of a country integrated within the European Union.
1. Enquadramento
A soberania das nações tem sido imposta, ao
longo da história, através da força das armas.
Portugal não foge à regra. A Reconquista de
território nos primórdios da Nação teve como
força motriz a acção armada, só depois se implementando a matriz de povoamento como
acção estruturalmente solidificadora dessa soberania. Na epopeia dos Descobrimentos o
processo foi semelhante, mais vincado nas regiões possuidoras de Estado organizado, como
na Ásia, onde foi necessário preceder o estabelecimento de feitorias com o troar dos canhões,
mais ténue em África e na América do Sul, onde
o diferencial militar era de tal modo desequilibrado que bastava a demonstração de força para
permitir o povoamento e o estabelecimento de
estruturas administrativas de soberania.
O século XX, mormente após a Segunda
Guerra Mundial, trouxe às nações do mundo
um novo enquadramento nas relações internacionais, reguladas por organizações que privilegiam o multilateralismo na sua carta constituinte1 . As nações europeias assistiram a um
refluxo da sua soberania, que se espalhara pelo
mundo durante o século XIX, regressando à
sua forma quase original, após a imparável onda
de independências na Ásia e em África, restando presentemente apenas alguns resquícios da
sua expansão.
A soberania no mar através da história remete para o “Mare Nostrum” dos Romanos
com o “seu” mar Mediterrâneo e a prevalência
deste conceito até Hugo Grotius no século
XVII e o conceito de “Mare Liberum” (1609).
O século XIX consolidou a figura de Mar Territorial, que impôs o conceito de soberania do
mar a partir de terra2 .
É apenas nos anos 70 do século XX que algo
de significativo acontece neste campo, com as
primeiras reivindicações da Zona Económica
Exclusiva (ZEE)3 , a qual só veio a ser reconhecida internacionalmente anos mais tarde na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do
Mar (CNUDM) (1982). A ZEE, estendendo a
soberania às 200 milhas, mesmo que apenas dos
recursos vivos, criou a necessidade do conhecimento científico de uma vasta área, conhecimento esse até então baseado quase no saber empíri-
co dos navegantes, principalmente pescadores, e
de algumas actividades no campo científico ocorridas nos últimos 100 anos4 . Na sequência da
CNUDM e da possibilidade dos Estados ribeirinhos poderem reivindicar a soberania sobre as
suas plataformas continentais (fundo do mar),
até um máximo de 350 milhas a partir das linhas
de base ou 100 milhas a partir da isobatimétrica
dos 2500 metros, novas necessidades de conhecimento se abriram, desta vez focadas no fundo
do mar, superfície ainda hoje menos conhecida
que a face visível da Lua.
A oceanografia, vista numa perspectiva interdisciplinar, com as suas componentes de física,
química, biologia e geologia, dever-se-á constituir como o veículo por excelência desse conhecimento dos mares, sem descurar, contudo, outras
disciplinas complementares como a hidrografia
ou a geofísica interna aplicada ao fundo.
2. Oceanografia e soberania
em Portugal
Portugal, desde meados da década de 90 do
século XX, tem demonstrado uma inequívoca
vontade de se voltar para o mar. A promoção
da Expo 98, enquadrada no Ano Internacional dos Oceanos, o trabalho da Comissão Estratégica dos Oceanos que apresentou conclusões em 2004 e a recentemente aprovada
Estratégia Nacional para o Mar5 , após trabalho
efectuado no âmbito da Estrutura de Missão
para os Assuntos do Mar, têm sido ilustrativos dessa vontade. Tudo isto tem permitido
não só uma consciencialização da importância
do mar por parte dos decisores aos vários níveis, como também e principalmente o despertar da discussão desta problemática a nível
da sociedade civil.
A necessidade de criar condições para apresentar na ONU uma proposta de extensão da
plataforma continental levou à criação de uma
estrutura dedicada em 2005, a EMEPC (Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma
Continental), com a tarefa de apresentar uma
proposta consolidada até Março de 2009. Esta
constitui a área mais importante em que presentemente Portugal pode encarar a soberania
numa perspectiva expansiva. Na realidade, se
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não o fizer, pode comprometer a possibilidade
de, pela primeira vez em muitos séculos, expandir o território nacional, mesmo que o faça
apenas no fundo do mar. O “apenas” aqui esconde o valor estratégico que esta eventual expansão trará, dado o impacto económico que
potencia para as gerações vindouras, que não
perdoariam qualquer menor empenho neste
processo. É sabido que as tecnologias se desenvolveram historicamente baseadas nas necessidades. A questão energética bem como o esgotamento de certas matérias-primas exploradas
até à exaustão nos continentes6, poderão levar
à focalização dos esforços das nações nos oceanos, sendo vital para Portugal que, com uma
imensa área de oceano sob a sua jurisdição,
possa, em posição vantajosa, posicionar-se na
linha da frente desde o início.
Apesar da entusiasmante perspectiva da expansão da plataforma continental, e consequentemente da soberania nacional, há que reflectir
sobre o modo como Portugal tem exercido a
sua soberania efectiva sobre a imensidão de
oceano que actualmente constitui a ZEE nacional7 , e a necessidade do seu reforço. De facto, o
reforço da soberania nacional, a aquisição do
conhecimento, a garantia de um desenvolvimento sustentável e a protecção do meio marinho,
constituem, de um modo articulado, os pilares
de uma moderna visão sobre os oceanos. É nesta perspectiva que se pode afirmar que a oceanografia, como fonte de conhecimento dos
oceanos, pode e deve ser um instrumento de
afirmação e de reforço da soberania nacional.
3. A inserção de Portugal
na preparação da futura
política marítima europeia
A abordagem holística dos oceanos e dos
mares caracteriza a visão europeia, traduzida no
Livro Verde para uma futura Política Marítima
da União Europeia, apresentado pela Comissão em Junho de 2005 e presentemente em fase
de discussão pública alargada. Essa abordagem
baseia-se numa vertente económica, consubstanciada na Estratégia de Lisboa e numa vertente de conservação dos ecossistemas, assente
no conhecimento científico. A investigação oceanográfica associada dever-se-á prender não só
com o alcançar um bom estado ecológico do
meio marinho da União Europeia8 como também com o potenciar de aproveitamentos económicos como sejam as fontes de energia renováveis, a aquicultura ou a biotecnologia
marinha.
Portugal, como nação marítima, poderá utilizar o enquadramento europeu para catalisar a
sua actividade associada ao mar, seja ela de ordem económico-social, seja de aquisição do conhecimento e preservação do ambiente. O 7.º
Programa-Quadro Europeu para as actividades de Investigação e Desenvolvimento (I&D),
concebido para responder aos desafios da
Estratégia de Lisboa construindo uma Europa do Conhecimento, poderá, nessa óptica, ser
preponderante para as ciências do mar em geral
e para a oceanografia em particular, desenvolvidas em Portugal. Dever-se-á contudo contextualizar o papel de Portugal no âmbito da estratégia europeia, deixando aqui a soberania de
ter índole puramente nacional e assumindo claramente o carácter europeu na perspectiva política da União Europeia.
4.O papel do instituto
hidrográfico nas políticas
públicas do Estado
Tal como foi referido anteriormente Portugal deverá tentar beneficiar do enquadramento
europeu que possui, mas sem nunca abdicar
do desenvolvimento da sua estratégia. Essa
estratégia nacional, no campo da oceanografia,
passará sempre pela forte dinamização dos Laboratórios do Estado (LDE) como instrumentos de prossecução das políticas públicas do
sector. As recentes Resoluções do Conselho de
Ministros (RCM) sobre os LDE9 criam o consórcio de I&D Oceano, associando o Instituto
Hidrográfico (IH), o Instituto de Meteorologia e o novo Instituto Nacional de Recursos
Biológicos (INRP/IPIMAR), bem como outras entidades interessadas, sendo destinado a
promover, na área da oceanografia, a cooperação científica internacional, a participação em
projectos de I&D europeus e a utilização de
navios e equipamentos oceanográficos.
Ao IH, instituição com provas dadas nos
campos da hidrografia, segurança da navegação
e oceanografia, é também indicada explicitamente a sua participação no consórcio Riscos10 e
implicitamente potenciada a sua participação no
consórcio Segurança, no âmbito da participação portuguesa nas políticas de I&D da União
Europeia para a Segurança.
O IH, integrado na Marinha Portuguesa e
consequentemente associado a funções de soberania, poderá desempenhar um papel central
na área do consórcio Oceano, dispondo de condições para se tornar uma instituição-âncora,
congregando os vários actores da I&D marinha
em Portugal numa perspectiva multidisciplinar
e integrada. Para isso deverá aproveitar as sinergias entre uma estrutura militar, dotada de capacidades e de meios operacionais de investigação
únicos no País, e as capacidades técnico-científicas existentes, promovendo projectos de natureza estruturante no domínio da oceanografia11.
O sucesso desses projectos, pelo conhecimento adicional que trarão para o País, será, em última análise, garante do reforço da sua soberania nacional, pois auxiliará os vários níveis de
tomada de decisão do Estado sobre os assuntos do mar.
mento da oceanografia subjacente a esta ideia.
Foi já referido que a oceanografia, como fonte
do conhecimento, poderá auxiliar fortemente
as políticas públicas para o mar. Nesta consonância e tendo em conta os vectores de orientação sugeridas no Livro Verde da Política Marítima Europeia, urge posicionar os organismos
do Estado já identificados12 para a operacionalização destas estratégias, tendo sempre como
objectivo a promoção e a defesa activa dos interesses nacionais, permitindo assim reforçar a
soberania nacional sobre a maior ZEE de um
País integrado na União Europeia.
Bibliografia
A Estratégia Nacional para o Mar, recentemente aprovada, propõe Portugal como um
centro de excelência de investigação das Ciências do Mar da Europa, estando o desenvolvi-
Comissão Europeia (2006), “Livro Verde para
uma Futura Política Marítima da União: uma
Visão Europeia para os Oceanos e os Mares”, 7
de Junho.
Estrutura de Missão para os Assuntos do
Mar (2006), “Proposta da Estratégia Nacional
para o Mar”, aprovada em Resolução do Conselho de Ministros n.º 163/2006, Diário da República, 1.ª série, n.º 237 de 12 de Dezembro.
Instituto Hidrográfico, 2005: “Towards a
Marine Research & Development Policy in Europe: A Euroatlantic Point of View”, “Position Paper” apresentado pelo Instituto Hidrográfico à Comissão Europeia, Dezembro.
Soares, C. Ventura e Artilheiro, F. Freitas, 2006:
“The Portuguese Hydrographic Institute: a
Portuguese Reference in Science and Technology at Sea”, On Course – PIANC Magazine
n.º 123, 15 de Abril.
1
As Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) são disso exemplo.
2
A distância de alcance dos canhões definia essa
soberania, inicialmente de três milhas náuticas.
3
A “Guerra do Bacalhau” entre o Reino Unido e
a Islândia em 1972 levou este país a declarar uma
ZEE de 200 milhas náuticas.
4
Assumindo a navegação do Challenger, em 1872-1876, como a primeira expedição oceanográfica reconhecida como tal.
5
Resolução do Conselho de Ministros n.º 163/
/2006, publicada em Diário da República, 1.ª série,
n.º 237 de 12 de Dezembro.
Os metais, por exemplo.
Cerca de 18 vezes o território português e a 11.ª
do mundo.
8
Até 2021.
9
N.º 89/2006 de 29 de Junho e n.º 124/2006 de 7
de Setembro, respectivamente publicadas no Diário
da República 1.ª série, n.º 139 de 20 de Julho e n.º 191
de 3 de Outubro.
10
Consórcio destinado à investigação, prevenção,
combate e mitigação de riscos naturais e ambientais.
11
Especialmente a oceanografia operacional, a
monitorização ambiental e a tecnologia marinha.
12
Essencialmente laboratórios do Estado.
5. Conclusões
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