1 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMI-ÁRIDO RAQUEL DE AZEVEDO HASS METABOLISMO DE FÁRMACOS POR FELINOS REVISÃO EM LITERATURA PORTO ALEGRE - RS 2011 2 RAQUEL DE AZEVEDO HASS METABOLISMO DE FÁRMACOS POR FELINOS REVISÃO EM LITERATURA Monografia apresentada a Universidade Federal Rural do Semi-Árido – UFERSA, como prérequisito para obtenção do título de Especialização em Clínica Médica de Pequenos Animais. Orientadora: M.Sc. Amanda Pantaleão da Silva Priebe PORTO ALEGRE - RS 2011 3 Ficha catalográfica preparada pelo setor de classificação e catalogação da Biblioteca “Orlando Teixeira” da UFERSA H353m Hass, Raquel de Azevedo. Metabolismo de Fármacos por Felinos – revisão de literatura / Raquel de Azevedo Hass. -- Mossoró, 2011. 36f. il. Monografia (Especialização Clínica Médica de Pequenos Animais) – Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Orientadora: Profº. M. Sc. Amanda Pantaleão da Silva Priebe. 1.Felinos. 2.Metabolismo de fármacos. 3.Intoxicação. 4.Gatos. I.Título. CDD: 636.8 Bibliotecária: Keina Cristina Santos Sousa e Silva CRB15 120 4 RESUMO Os felinos apresentam respostas diferentes daquelas manifestadas pelos cães quando submetidos à administração de diversos fármacos. O objetivo deste trabalho foi revisar as características do metabolismo de fármacos nos felinos domésticos e os principais fármacos capazes de causar reações adversas e intoxicações nesta espécie, como o paracetamol, o ácido acetilsalicílico e a dipirona. As doses de muitos medicamentos utilizados em felinos são obtidas a partir daquelas utilizadas para cães, podendo desencadear reações adversas nesses animais. Essas manifestações ocorrem devido às diferenças no metabolismo entre as espécies. Gatos apresentam uma deficiência relativa na atividade de algumas enzimas como a glicuronil transferase, que catalisam as reações de conjugação mais importantes no metabolismo de fármacos dos mamíferos. Além disso, estes animais são muito suscetíveis à metahemoglobinemia e à formação de corpúsculos de Heinz após a administração de alguns fármacos, por possuir um número maior de grupos sulfidril nas hemácias, comparado com cães e humanos. Sendo assim, é importante que o médico veterinário esteja atento a essas peculiaridades metabólicas dos gatos para melhor atender e informar seus clientes. Palavras-chave: felinos, metabolismo de fármacos, intoxicação, gatos. 5 ABSTRACT Cats respond differently from dogs to several drugs. The intention of this paper is review the cat’s drug metabolism features and the main drugs that can cause adverse reactions and intoxication in cats. Many medicine dosages recommended for dogs are extrapolated to cats, what can not demonstrate the same effect, and this usually causes adverse reactions in felines. Those manifestations occur mainly due to differences into the metabolism among the species. The cat has a relative deficiency in the activity of some glycuronyl transferase enzyme, which catalyzes the most conjugation reactions in drugs metabolism in mammals. Besides, this specie is very susceptible to methemoglobinemia and Heinz bodies formation after administration of some drugs due own a major number of sulfidril groups in erythrocytes compared with dogs and men. Therefore, veterinarians need to be attent to this metabolic peculiarities of the cats to better attend and inform their clients. Key-words: feline, drug metabolism, intoxication, cats. 6 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Padrão geral do metabolismo de drogas...................................................... 14 Figura 2 - Felino com sinais de intoxicação por paracetamol, apresentando dispnéia acentuada e língua com coloração escura.................................................................... 25 7 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Exemplos das principais reações metabólicas da fase II....................................... 16 8 SUMÁRIO RESUMO.................................................................................................................................. 4 ABSTRACT.............................................................................................................................. 5 LISTA DE FIGURAS.............................................................................................................. 6 LISTA DE QUADROS............................................................................................................ 7 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 10 2 REVISÃO DE LITERATURA.......................................................................................... 12 2.1 FARMACOCINÉTICA NO PACIENTE FELINO........................................................... 12 2.1.1 Absorção........................................................................................................................ 12 2.1.2 Distribuição.................................................................................................................... 13 2.1.3 Metabolização ou biotransfromação e excreção........................................................ 13 2.2 OXIDAÇÃO DA HEMOGLOBINA................................................................................. 17 2.3 FÁRMACOS CAPAZES DE PROVOCAR REAÇÕES ADVERSAS EM GATOS.................................................................................................................................... 18 2.3.1 Formação lenta de glicuronídeos................................................................................. 18 2.3.1.1 Ácido Acetilsalicílico................................................................................................... 18 2.3.1.2 Fenilbutazona............................................................................................................... 19 2.3.1.3 Cloranfenicol................................................................................................................ 20 2.3.1.4 Compostos Fenólicos................................................................................................... 21 2.3.1.5 Opióides....................................................................................................................... 22 2.3.2 Formação de metemoglobina ou Corpúsculos de Heinz............................................ 24 2.3.2.1 Acetaminofen ou paracetamol..................................................................................... 24 2.3.2.2 Benzocaína................................................................................................................... 27 2.3.2.3 Anti-sépticos das vias urinárias.................................................................................... 27 9 2.4 OUTRAS DROGAS DE IMPORTÂNCIA FARMACOLÓGICA PARA FELINOS................................................................................................................................. 28 2.4.1 Benzoato de Benzila........................................................................................................ 28 2.4.2 Enemas a base de fosfato................................................................................................ 28 2.4.3 Aminoglicosídeos............................................................................................................ 29 2.4.4 Organofosforados............................................................................................................ 29 2.4.5 Iodo e Iodóforos.............................................................................................................. 30 2.4.6 Digoxina......................................................................................................................... 31 2.4.7 Metronidazol.................................................................................................................. 31 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 33 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 34 10 1 INTRODUÇÃO A busca da excelência no atendimento clínico de felinos por parte dos médicos veterinários tem trazido a estes profissionais uma preocupação cada vez maior com a terapêutica felina (SOUZA; AMORIM, 2008), já que há muitos anos os veterinários têm conhecimento de que os gatos respondem de maneira diferente a uma variedade de drogas (ARAUJO et al., 2000). A população de gatos aumentou 13,3% no Brasil em 2009, segundo dados da Anfalpet (Associação Nacional dos Fabricantes de Produtos para Animais de Estimação). Mas mesmo assim, a posição social dos gatos domésticos ainda não justificou custos nem esforços para que fossem determinados regimes terapêuticos eficazes e seguros para a maioria dos fármacos utilizados em felinos, levando a erros nas prescrições medicamentosas (SOUZA, 2003). Estudos recentes realizados no Brasil e nos Estados Unidos demonstraram que os felinos apresentam porcentagens de intoxicações inferiores quando comparado aos caninos, sendo este fato correlacionado principalmente pelo comportamento mais seletivo desta espécie (MEDEIROS et al., 2009; FORRESTER, 2005; XAVIER; KOGIKA, 2002). Entretanto, os gatos apresentam peculiaridades metabólicas que podem favorecer um quadro de intoxicação quando comparado a outras espécies animais (SOUZA, 2003). As doses de medicamentos usadas em gatos são muitas vezes obtidas a partir daquelas recomendadas para cães, devido à similaridade entre as espécies (ARAUJO et al., 2000). Embora essas extrapolações de doses sejam freqüentemente bem-sucedidas, os regimes e indicações terapêuticas dos fármacos para outras espécies, quando usados em felinos, devem ser vistos com muito cuidado (SOUZA, 2003). As diferenças da metabolização hepática de fármacos e estrutura da hemoglobina dos felinos, quando comparados aos cães são os principais responsáveis pela maioria das reações adversas e casos de intoxicação em gatos (SOUZA; AMORIM, 2008). Infelizmente, conta-se com pouca informação a respeito das reações metabólicas necessárias para a conversão e eliminação de fármacos pelos gatos. As doses recomendadas para estes pacientes na bibliografia médica veterinária se baseiam com freqüência na experiência clínica e em informações pouco discutidas. Quando se administra qualquer fármaco a um gato, é necessário confirmar se a dose é apropriada, se a via de administração e o intervalo entre doses são seguros e eficazes para a espécie (KIRBY et al., 2001). 11 O presente trabalho teve como objetivo revisar a literatura a respeito das particularidades do metabolismo dos fármacos especialmente nos felinos, sendo este um assunto importante e presente na rotina do clínico veterinário, mas ainda pouco discutido e estudado. 12 2 REVISÃO DE LITERATURA 2.1 FARMACOCINÉTICA NO PACIENTE FELINO A farmacocinética é estudo do movimento de uma substância química, em particular de um medicamento no interior de um organismo vivo (CRESPILHO et al., 2006), ou seja, dos processos de absorção, distribuição, metabolização e excreção da droga. Especificamente, é definida como a descrição das modificações de concentração da droga no organismo (BROWN, 2003). Além disso, trata da relação desses processos com a intensidade e duração dos efeitos das drogas. As variações na resposta da maioria dos agentes terapêuticos entre as diferentes espécies se devem às diferenças na farmacocinética dessas espécies (BAGGOT, 1992). Essas diferenças que existem na disposição dos fármacos entre cães e gatos são responsáveis pela maioria das reações adversas em felinos, se o mesmo esquema de doses for usado indiscriminadamente nessa espécie (SOUZA; AMORIM, 2008). 2.1.1 Absorção A absorção de uma determinada droga se define por uma série de processos pelos quais um substância externa a um ser vivo nele penetre, sem lesão traumática, chegando até o sangue (CRESPILHO et al., 2006). Ou seja, é a passagem da droga a partir do local onde foi administrada para a corrente sanguínea. O processo de absorção é determinado pela solubilidade do fármaco, pela via de administração e por certas propriedades físico-químicas da substância (BAGGOT, 1992). A taxa e a magnitude de absorção dos medicamentos são similares para cães e gatos, independentemente da via de administração (SOUZA, 2003). O que faz a diferença é o fato de os felinos serem mais sensíveis a odores e paladares não familiares do que os cães. Sendo assim, não aceitam medicação misturada em alimentos e líquidos, resultando em administração incorreta das medicações e, por conseguinte, níveis plasmáticos dos fármacos inferiores aos desejados, muitas vezes ineficazes (SOUZA; AMORIM, 2008). 13 2.1.2 Distribuição A distribuição trata de como as drogas são transportadas por todo organismo no sangue circulante e atingem os tecidos de cada órgão na quantidade determinada pelo fluxo sanguíneo e concentração sanguínea do órgão. As concentrações atingidas nos tecidos dependem da capacidade da droga em penetrar no endotélio capilar (influenciada principalmente pela ligação às proteínas plasmáticas) e difundir-se através das membranas celulares (BROWN, 2003). Em geral, a cinética de distribuição das drogas no sangue, nos órgãos e nos tecidos depende da dose, da via de administração, da lipossolubilidade, da extensão da ligação às proteínas plasmáticas e constituintes extravasculares, bem como da taxa do fluxo sanguíneo através dos órgãos e tecidos. A proteína plasmática a qual a maioria das drogas se liga é a albumina. Diferenças na composição corpórea podem responder pelas variações entre as espécies na distribuição da droga (BAGGOT, 1992). As diferenças na distribuição dos fármacos em cães e gatos são pequenas. Em virtude das diferenças no volume sanguíneo entre essas espécies, 90 mL/kg nos cães e 70 mL/kg nos gatos, a concentração plasmática dos fármacos pode ficar alterada nos felinos, quando é utilizado o mesmo regime de dose do que nos caninos (SOUZA, 2003). 2.1.3 Metabolização ou Biotransformação e Excreção A biotransformação consiste na transformação química de substâncias, sejam elas medicamentos ou agentes tóxicos, dentro do organismo vivo, visando favorecer sua eliminação (FLORIO, 1999). A função do metabolismo é transformar um composto lipossolúvel em uma forma mais hidrossolúvel e mais polar, a fim de facilitar a sua excreção pelo organismo. As drogas relativamente hidrossolúveis não necessitam ser metabolizadas e são excretadas, praticamente, inalteradas na urina (ARAUJO et al., 2000; FLORIO, 1999). A biotransformação não apenas favorece a eliminação do fármaco, como também, com freqüência, resulta na inativação farmacológica do mesmo (CRESPILHO et al., 2006). A maior parte do processo de metabolização dos fármacos em felinos acontece no fígado e pode ser dividido em duas fases. A fase inicial consiste em reações que podem ser classificadas como oxidativas, redutoras e eletrolíticas (BAGGOT, 1992). Na fase II, o produto obtido na fase I, ou o fármaco original, se conjuga com compostos tais como aminoácidos, ácido acético ou sulfatos inorgânicos. Depois, o produto resultante pode ser 14 excretado (MAYER, 1995). O esquema de metabolização padrão de fármacos pode ser visto na figura 1. A diversidade mais importante na disposição dos medicamentos entre cães e gatos resulta nas diferenças do metabolismo dos fármacos lipossolúveis ou apolares. Estes, não são prontamente eliminados e necessitam ser convertidos em hidrossolúveis, podendo atingir concentrações tóxicas se não forem metabolizados (SOUZA; AMORIM, 2008). As transformações da fase I geralmente introduzem na molécula da droga grupos polares como OH, SH, COOH e NH2, que tornam os metabólitos suscetíveis às reações da fase II. Se a droga já contém um destes grupos químicos, pode sofrer conjugação sem passar pela fase I (ARAUJO et al., 2000). Muitas das enzimas que catalisam as reações de oxidação estão localizadas predominantemente nas células parenquimatosas dos órgãos metabolizantes (rim, epitélio intestinal e principalmente no fígado), onde ficam associadas ao retículo endoplasmático de superfície lisa. Estas enzimas, que apresentam uma necessidade específica de dinucleotídeo de nicotinamida-adenina-fosfato reduzido (NADPH) e oxigênio molecular, foram classificadas como oxigenases de função mista ou enzimas microssomais, por causa da sua associação com os microssomos e atividade contínua dentro deles. O mecanismo de oxidase de função mista necessita de que NADPH reduza o citocromo P450, que é a enzima oxidante encontrada nos microssomos (BROWN, 2003). Deste modo, os fármacos unidos a proteínas plasmáticas chegam ao hepatócito e, no retículo endoplasmático liso, sofrem reações que podem ser classificadas como redutoras, oxidativas ou hidrolíticas, pela ação catalítica de enzimas microssômicas localizadas no sistema citocromo P450, tornando os compostos em substância mais hidrossolúveis, caracterizando a fase I (SOUZA; AMORIM, 2008). Embora as reações metabólicas da fase I costumem gerar produtos com menor atividade, algumas podem originar produtos com atividade semelhante ou mesmo maior (BAGGOT, 1992). FASE I FASE II Reações Oxidativas, DROGA Redutoras, METABÓLITO(S) Reações de Síntese Hidrolíticas Figura 1 - Padrão geral do metabolismo de drogas (BAGGOT, 1992) PRODUTOS CONJUGADOS 15 As reações da fase I ocorrem em todas as espécies, embora os padrões metabólicos sejam bastante variáveis. Já quanto às reações da fase II, algumas são deficientes ou ausentes em determinadas espécies. Estas variações são responsáveis pelas diferenças na distribuição de drogas entre as espécies (ARAUJO et al., 2000). A fase II da metabolização de fármacos é caracterizada por reações de síntese, ou conjugação, que ocorrem quando uma droga ou metabólito da fase I contém um grupo químico como hidroxila (-OH), carboxila (-COOH), amino (-NH2) ou sufidrila (-SH) e é passível de combinar-se com um composto natural gerado pelo corpo para formar metabólitos polares hidrossolúveis para serem excretados (BAGGOT, 1992). Os agentes conjugantes incluem o ácido glicurônico, glutatião, glicina, cisteína, metionina, sulfato e acetato. Ao contrário das reações metabólicas da fase I, que parecem ser ubíquas em todas as espécies de mamíferos, determinadas reações sintéticas são defeituosas ou ausentes em espécies particulares (BROWN, 2003). Os agentes conjugantes da fase II não reagem diretamente com a droga ou com seu metabólito da fase I, mas o fazem na forma ativada ou com uma forma ativada da droga. Essas formas ativadas são geralmente nucleotídeos, e a reação entre o nucleotídeo e a droga ou agente conjugante é catalisada por uma enzima. Portanto, uma reação de conjugação requer um agente conjugante, um nucleotídeo contendo tanto o agente conjugante ou um composto estranho, como uma enzima de transferência (BAGGOT, 1992). A reação mais importante nos mamíferos é a conjugação com ácido glicurônico (SOUZA; AMORIM, 2008; SOUZA, 2003). A forma ativada do ácido glicurônico é o nucleotídeo do ácido urodinofosfoglicurônico (UDPGA), cuja formação é catalisada por enzimas no fígado. A síntese do glicuronídio envolve a transferência do agente conjugante do nucleotídio para uma molécula aceptora, essa transferência é mediada pela enzima microssomal glicuroniltransferase (BROWN, 2003). O ácido glicurônico livre não pode se conjugar com os fármacos, porém o uridinodifosfatoglicurônico (UDPG) é capaz de se combinar com os fármacos na presença da enzima transferidora (SOUZA; AMORIM, 2008). No gato, a conjugação com o ácido glicurônico é insuficiente. A reação de conjugação pode ser até 100 vezes mais lenta que nas demais espécies, devido a uma baixa concentração, ou deficiência, de glicuroniltransferase. Esta insuficiência metabólica tem implicações peculiares, tanto no que se refere à terapêutica, como pelo que se refere à toxicologia (MAYER, 1995). Muitas drogas que são metabolizadas por esta via, portanto, apresentam meia-vida prolongada em gatos. Doses muito elevadas podem levar a níveis tóxicos, causando respostas farmacológicas exacerbadas ou intoxicações (ARAUJO et al., 2000). 16 Os compostos contendo fenóis (hexaclorofeno), ácidos aromáticos (ácido salicílico) ou aminas aromáticas (acetaminofen) são os principais exemplos de fármacos que têm eliminação prolongada em gatos. Os efeitos da deficiência de glicuronidação nesses animais dependem da natureza do fármaco e da presença ou não de vias alternativas de biotransformação (SOUZA; AMORIM, 2008). Entretanto, nem todas as drogas que são conjugadas com o ácido glicurônico são tóxicas para a espécie felina. Isto porque o gato é deficiente em apenas algumas famílias de glicuroniltransferases. Conjugados de substâncias endógenas, como bilirrubina, tiroxina e hormônios esteróides são formados normalmente (ARAUJO et al., 2000). Nos felinos, um grande número de fármacos se conjuga com sulfato, como via alternativa ao ácido glicurônico (MAYER, 1995). A conjugação com sulfato é uma via metabólica alternativa importante no metabolismo dos fenóis. As enzimas que catalisam a formação de nucleotídeos e a transferência do agente conjugante para a molécula do aceptor são encontradas no fígado. Porém, o compartimento total de sulfato no organismo pode ser depletado com rapidez (BAGGOT, 1992). Os conjugados de sulfato são altamente polares e rapidamente excretados na urina (SOUZA; AMORIM, 2008). A conjugação com sulfato parece ser bem desenvolvida em gatos, sendo sulfatos, segundo alguns autores, a maior parte de conjugados formados por eles (ARAUJO et al., 2000). O quadro 1 mostra um esquema das principais reações metabólicas da fase II em gatos, com exemplos de fármacos para cada uma delas. Quadro 1 – Exemplos das principais reações metabólicas da fase II REAÇÃO DE EXEMPLOS DE FÁRMACOS CONJUGAÇÃO DA FASE II Glicuronidação Acetaminofen, morfina, diazepan, ácido salicílico, cloranfenicol, fenol Sulfatação Acetaminofen, esteróides, morfina, fenol, cloranfenicol Acetilação Formação Sulfonamidas, isoniazida, clonazepan de ácido Hidrocarbonetos aromátricos mercaptúrico (ARAUJO et al., 2000) 17 2.2 OXIDAÇÃO DA HEMOGLOBINA O eritrócito do felino, em especial a hemoglobina, é extremamente suscetível a sofrer oxidação, resultando na formação de metemoglobina, que é incapaz de transportar oxigênio. A formação de metemoglobina ocorre principalmente no uso de drogas específicas no gato (SOUZA; AMORIM, 2008). Os felinos possuem dois tipos de hemoglobina no sangue, HbA e HbB. A hemoglobina B é menos estável do que a A nos felinos, sugerindo que a variabilidade individual no desenvolvimento de metemoglobinemia possa estar relacionada às diferenças na proporção de hemoglobina A e B em cada indivíduo. (ARAUJO et al., 2000). As hemoglobinas felinas contêm oito a vinte grupos sulfidril oxidáveis, enquanto que as demais espécies apresentam no máximo quatro (SOUZA; AMORIM, 2008). Os grupos sulfidril são reativos e, portanto, suscetíveis à interação com drogas e metabólitos. A hemoglobina felina teria mais grupos sulfidril para serem mantidos num estado reduzido, na presença de um agente oxidante. Isto poderia ser responsável pela maior suscetibilidade dos gatos à injúria oxidativa dos eritrócitos (ARAUJO et al., 2000). O glutatião é um tripeptídeo sintetizado nos eritrócitos que protege a hemoglobina e outros componentes do eritrócito da lesão oxidativa. O glutatião é oxidado por peróxidos endógenos e várias outras substâncias. Sua regeneração é feita pela enzima glutatião redutase, sendo importante para assegurar a sua presença no estado reduzido. Os agentes oxidantes ligam-se, preferencialmente, ao glutatião. Portanto, só há danos ao organismo quando grandes quantidades de substâncias oxidativas resultam em depleção deste (SOUZA, 2003). O ferro na hemoglobina está presente normalmente no estado reduzido ou ferroso. Forma-se a metemoglobina quando compostos endógenos e drogas oxidam o ferro ao estado férrico. A metemoglobina é incapaz de transportar oxigênio. Nos animais normais, há aproximadamente 1 a 2% de metemoglobina no sangue e, no eritrócito o sistema enzimático metemoglobina redutase faz a redução da metemoglobina em hemoglobina (ARAUJO et al., 2000). A ausência de enzimas necessárias para a redução da metemoglobina ou o excesso de substâncias oxidativas pode resultar em metemoglobinemia. Os sinais clínicos de metemoglobinemia são principalmente cianose, dispnéia, edema facial, depressão, hipotermia e vômitos (SOUZA; AMORIM, 2008). Muitas drogas que causam metemoglobinemia, como acetaminofen, benzocaína e azul de metileno, podem provocar a desnaturação oxidativa da hemoglobina, resultando em corpúsculos de Heinz (ARAUJO et al., 2000). Os corpúsculos de Heinz ocorrem quando a 18 formação de metemoglobina dentro do eritrócito causa agregação protéica e a desnaturação desse agregado na membrana da célula, formando uma estrutura semelhante a uma bolha. Estas inclusões são reconhecidas pelo sistema fagocítico mononuclear e os eritrócitos passam a ser retirados da circulação principalmente pelo baço e pelo fígado, fenômeno conhecido como hemólise extravascular. Ocorre também a opsonização do corpúsculo por IgG e complemento, mas de uma maneira menos eficiente, o que explica a razão da ruptura de alguns eritrócitos na circulação (hemólise intravascular) e da metemoglobinúria (FIGHERA et al., 2002). A hemoglobina felina é suscetível a esse tipo de injúria, e gatos normais têm alta prevalência de corpúsculos de Heinz nos eritrócitos (ARAUJO et al., 2000). A formação de metemoglobina é um processo reversível, ao passo que a formação de corpúsculos de Heinz é irreversível (SOUZA; AMORIM, 2008). 2.3 FÁRMACOS CAPAZES DE PROVOCAR REAÇÕES ADVERSAS EM GATOS 2.3.1 Formação lenta de glicuronídeos 2.3.1.1 Ácido Acetilsalicílico O ácido actilsalicílico é um antiinflamatório não esteróide que possui propriedades analgésicas, antitérmicas e antiinflamatórias, com fraca ação antiespasmótica. Possui ação trombolítica pela inibição da agregação plaquetária (JERICÓ; ANDRADE, 2008). Os salicilatos são metabolizados mais lentamente pelos gatos devido à deficiência na atividade da glicuronil transferase hepática (ARAUJO et al., 2000). A meia-vida plasmática dos salicilatos nos felinos é dose dependente. Este fármaco, após a administração de uma dose de 25 mg/kg, apresenta uma meia-vida plasmática extremamente longa de 44,6 horas nos gatos, enquanto que nos cães é de 7,5 horas. A maioria dos quadros de intoxicação por salicilatos em felinos resulta da administração de doses elevadas, usando dosagem recomendadas para humanos e cães (SOUZA; AMORIM, 2008). Existem outras fontes de salicilato que também merecem atenção. O salicilato de bismuto, usado para o tratamento de gastroenterite aguda deve ser usado com cuidado em gatos, pois o ácido salicílico presente no composto pode ser absorvido e atingir concentrações tóxicas após administrações repetidas (ARAUJO et al., 2000). Este composto apresenta dois 19 mecanismos de ação, o efeito antiprostaglandina do subsalicilato e o efeito protetor gástrico do bismuto. A dosagem recomendada para gatos é de 1 mL/kg por via oral, de uma suspensão que contenha 17,5 mg/mL, dividido em três a quatro doses, durante três dias (SOUZA, 2003). A sulfasalazina é uma droga utilizada nos tratamentos de distúrbios gastrintestinais, pelo seu efeito antiinflamatório no cólon. É formada por uma molécula onde ocorre a ligação da sulfapiridina e do ácido 5-aminossalicílico, que são liberados no cólon pela ação dos microorganismos locais. Devido à possibilidade de intoxicação por ácido salicílico, a sulfasalazina deve ser usada com cuidado em gatos (ARAUJO et al., 2000). A dose recomendada é de 5 a 10 mg/kg, por via oral a cada doze horas (SOUZA; AMORIM, 2008). Os sinais clínicos da intoxicação aguda por ácido acetilsalicílico em gatos incluem depressão, vômito, anorexia, hipertermia, alterações acidobásicas, desbalanços eletrolíticos, dano renal, hemorragia, coma e morte. Na intoxicação crônica se encontram úlceras gástricas, as quais podem perfurar-se, depressão de medula óssea e hepatite (MUÑOZ; PÉREZ, 1996). Os efeitos analgésicos e antipiréticos podem ser mantidos com dose de 10,5 mg/kg a cada 48 horas (ARAUJO et al., 2000). O tratamento de felinos intoxicados por salicilatos é sintomático e de suporte. Não há nenhum antídoto específico disponível (TILLEY; SMITH, 2008). Preconiza-se a remoção do salicilato do estômago (indução do vômito ou lavagem gástrica com bicarbonato de sódio 3% a 4%), quando a ingestão ocorreu na dose elevada nas últimas quatro horas. O carvão ativado pode ser administrado na dosagem de 2 g/kg via orogástrica, no intuito de promover a ligação com o salicilato absorvido (SOUZA, 2003). Deve-se também restabelecer o equilíbrio ácido-básico por meio de fluidoterapia com soro Ringer-lactato, suplementada com bicarbonato de sódio (1 a 4 mEq/kg), solução que alcaliniza a urina a fim de aumentar a excreção do fármaco. A administração de diuréticos (furosemida 5 mg/kg, por via intravenosa a cada 6 a 8 horas) também pode ser usada a fim de acelerar a diurese. Os desequilíbrios hidroeletrolítico e metabólico devem ser avaliados constantemente (MAYER, 1995; SOUZA; AMORIM, 2008). 2.3.1.2 Fenilbutazona Fenilbutazona é um antiinflamatório potente utilizado em distúrbios musculoesqueléticos, osteoartrites, laminite e inflamações de tecidos moles em eqüinos e bovinos. O uso da fenilbutazona em cães é aprovado, mas deve ser evitado, devido aos graves efeitos colaterais que provoca, como distúrbios gastrintestinais, discrasias sanguíneas, 20 hepatotoxicidade e nefropatias (JERICÓ; ANDRADE, 2008). Quanto ao uso no gato, está associado a uma alta incidência de intoxicação, gerando controvérsia. Alguns autores recomendam a dose de 6 a 12 mg/kg (ARAUJO et al., 2000), segundo Hay; Manley (2003) não deve ser usada, devido aos efeitos adversos. Já Mayer (1992), sugere a dose de 5 a 12 mg/kg por via oral, duas vezes ao dia, em séries curtas, e suspendendo-se a administração se houver qualquer sinal de inapetência ou abatimento. Os gatos possuem baixa tolerância à fenilbutazona e a intoxicação acontece principalmente quando ingerem acidentalmente o medicamento ou quando o proprietário o utiliza inadvertidamente (SOUZA; AMORIM, 2008). Os sinais clínicos da intoxicação são abatimento, inapetência, vômito, perda de peso e dor abdominal (MAYER, 1992). Em casos graves, podem ocorrer úlceras hemorrágicas e perfurações gástricas e intestinais (SOUZA; AMORIM, 2008). Os achados de necropsia incluem gastroenterite hemorrágica, lesões renais e hepáticas (MAYER, 1992). O tratamento é feito com carvão ativado, protetores de mucosa, inibidores de H-2 e fluidoterapia (SOUZA; AMORIM, 2008). 2.3.1.3 Cloranfenicol O cloranfenicol é um agente bacteriostático de amplo espectro, que é também ativo frente à rickettsias e frente a alguns micoplasmas (MAYER, 1995). A molécula do cloranfenicol é bastante lipossolúvel e pequena, atingindo elevadas concentrações em praticamente todos os tecidos. O fármaco é conjugado com o ácido glicurônico no fígado e sofre filtração glomerular, sendo excretado na urina (ANDRADE; GIUFFRIDA, 2008). Os gatos são deficientes tanto nos mecanismos enzimáticos de metabolização hepática da fase I como da fase II do cloranfenicol. Por isso, com uma única dose de cloranfenicol a concentração plasmática fica elevada nos felinos. Observa-se que a meia-vida plasmática desse fármaco é prolongada em gatos, quando comparada com outras espécies (SOUZA; AMORIM, 2008). Quando administrado em gatos nas mesmas doses recomendadas para cães, ou seja, doses altas por períodos prolongados, o cloranfenicol pode provocar anomalias hematológicas e uma supressão reversível da função da medula óssea, que produz anemia e leucopenia, além de anorexia e depressão (ARAUJO et al., 2000; MAYER, 1995). A intoxicação por cloranfenicol é dose-dependente, provocando discrasias sanguíneas como ausência de maturação das células eritróides, inibição da atividade mitótica e vacuolização de linfócitos e de precursores iniciais das séries mielóide e linfóide. Os sinais clínicos mais freqüentes da 21 intoxicação são anorexia, vômito, diarréia e desidratação (SOUZA; AMORIM, 2008). No sangue periférico observa-se a diminuição do número de neutrófilos, linfócitos, reticulócitos pontilhados e plaquetas (ARAUJO et al., 2000). A administração de cloranfenicol na dosagem de 50 mg/kg/dia pode causar formação de vacúolos nos precursores das séries mielóide e eritróide. Pelo seu efeito na medula óssea, o uso do cloranfenicol no gato deve ser cauteloso, inclusive quanto ao uso de pomadas e soluções oftálmicas, pois há evidência de que quantidades significativas são absorvidas por essas vias (SOUZA; AMORIM, 2008). A dose recomendada deve ser a mínima necessária para produzir um efeito antibiótico satisfatório, não devendo ultrapassar 50 mg/gato, durante sete dias (ARAUJO et al., 2000). Na maioria dos casos, facilmente se encontra alternativa antibiótica, sendo preferível reservar o cloranfenicol para tratar as infecções intracelulares ou as infecções do sistema nervoso central, que são de maior gravidade (MAYER, 1995). 2.3.1.4 Compostos Fenólicos Os gatos são muito sensíveis aos derivados de compostos fenólicos, em função da difícil conjugação com ácido glicurônico, além da rápida saturação do mecanismo de detoxificaçao com sulfato (SOUZA; AMORIM, 2008). A formação de glicuronídios a partir do fenol ocorre 65 a 100 vezes mais rapidamente em outras espécies do que nos gatos (ARAUJO et al., 2000). A retenção de compostos fenólicos não metabolizados leva ao acúmulo de quinonas tóxicas, que inibem a respiração mitocondrial, formando grandes quantidades de metemoglobina. Os compostos fenólicos mais empregados em medicina veterinária e capazes de causar intoxicação em felinos são a dipirona, o propofol e o hexaclorofeno (SOUZA, 2003). Dipirona: a dipirona é um analgésico, antipirético e antiespasmódico com fraca ação antiinflamatória (JERICÓ; ANDRADE, 2008). Por ser um derivado fenólico, a dipirona é metabolizada lentamente em gatos, levando à intoxicação em doses elevadas (SOUZA; AMORIM, 2008). Essa droga tem eliminação prolongada em felinos, mas pode ser usada com segurança quando se utilizam doses e intervalos adequados (ARAUJO et al., 2000). A dose recomendada é de 25 mg/kg por via subcutânea, intramuscular ou intravenosa, a cada doze horas (SOUZA, 2003). Propofol: o propofol é um anestésico injetável do grupo dos alquil-fenóis com período de latência curto e duração do efeito ultracurta, com o qual os animais se recuperam 22 rapidamente da anestesia em virtude da sua rápida redistribuição do cérebro para outros tecidos. A recuperação em gatos pode ser mais prolongada por sua deficiência em conjugar fenóis (ANDRADE et al., 2008; SOUZA et al., 2002). O propofol pode induzir lesões oxidativas nos eritrócitos felinos, quando administrado durante vários dias consecutivos (SOUZA, 2003). A dose recomendada para felinos é de 6 mg/kg por via intravenosa para a indução anestésica e 0,2 a 0,8 mg/kg/min para manutenção (VIANA, 2007). Hexaclorofeno: o hexaclorofeno é um derivado fenólico comumente formulado como sabonete, sendo usado como agente degermante para a pele e membranas mucosas em cirurgias, e podendo se administrado em enemas. Pode ser neurotóxico quando absorvido pela pele (ANDRADE et al.; SOUZA, 2003, 2008). O hexaclorofeno é insolúvel em água e tende a permanecer na pele após a lavagem, aumentando o tempo de exposição e penetração na pele. Não deve ser empregado em gatos filhotes e com feridas, nem em animais com insuficiência hepática, colestase e insuficiência renal (SOUZA; AMORIM, 2008). Os sinais clínicas da intoxicação incluem vômitos, depressão, ataxia e hiperreflexia, que progride para hiporreflexia e paralisia flácida. O tratamento consiste na remoção da droga, através de banhos, lavagem gástrica e catárticos, e tratamento de suporte (ARAUJO et al., 2000). 2.3.1.5 Opióides Os opióides são os analgésicos bastante eficazes no controle da dor de modo geral, seja aguda ou crônica. São fármacos que agem por meio da ligação reversível a receptores específicos no sistema nervoso central e na medula espinhal, modulando a atividade sensitiva, motora e psíquica (FRAGATA; IMAGAWA, 2008). Os opióides são pouco utilizados em gatos, devido à ocorrência de variados graus de sedação, acarretando tempos de recuperação imprevisíveis. Dependendo da dose, do agente e do fármaco, pode haver excitação ou depressão nos felinos (SOUZA; AMORIM, 2008). Os gatos têm maior sensibilidade aos analgésicos opióides, principalmente quando administrados com as dosificações usadas em outras espécies (MAYER, 1995). Uma das vantagens do uso de opióides é a possibilidade de reversão dos seus efeitos, pelo uso de antagonistas como a nalaxona, que desloca outros opióides dos receptores (ARAUJO et al., 2000). Morfina: é o analgésico de escolha para a maioria dos processos álgicos em cães e gatos. É considerado um potente analgésico e bom sedativo, embora possa causar náusea e emese. Pode também causar liberação de histamina e hipotensão, o que se minimiza com a 23 aplicação subcutânea ou intramuscular da droga (FRAGATA; IMAGAWA, 2008). O uso de doses elevadas para gatos causa medo, excitação, e loucura (MAYER, 1995). Também podem ser observados espasmos tônicos, ataxia e morte (SOUZA, 2003). O principal metabólito da morfina em gatos é um conjugado de sulfato, sendo a normorfina e o conjugado glicuronídio metabólitos menos importantes (ARAUJO et al., 2000). A sensibilidade relativa dos felinos à morfina pode estar associada aos receptores dopaminérgicos. A morfina induz a liberação de dopamina no sistema nervoso central, havendo o estímulo de receptores dopaminérgicos para produzir a resposta excitatória (SOUZA; AMORIM, 2008). A administração de morfina em felinos na dose de 1 mg/kg por via subcutânea produz midríase, salivação e ansiedade (ARAUJO et al., 2000). Quando usada na dose de 0,05 a 0,1 mg/kg por via subcutânea, intramuscular ou intravenosa pode ser usada com segurança nos gatos a cada quatro horas (SOUZA; AMORIM, 2008), produzindo uma boa analgesia, sem fase de excitação (MAYER, 1995). Butorfanol: O tartarato de butorfanol é um opióide sintético agonista-antagonista, que exerce seus efeitos principalmente nos receptores opióides kappa, os quais são responsáveis pela analgesia e sedação sem depressão do sistema cardiopulmonar ou da temperatura corporal (SOUZA et al., 2002). O butorfanol é considerado quatro a sete vezes mais potente que a morfina (SOUZA; AMORIM, 2008). Pode ser usado como analgésico na prevenção e no tratamento da dor pós-operatória, em combinação com tranqüilizantes (neuroleptoanalgesia) ou como parte de misturas pré-anestésicas (ARAUJO et al., 2000). A dose de butorfanol recomendada para felinos é de 0,2 a 0,4 mg/kg, por via intramuscular, subcutânea ou intravenosa nos protocolos anestesiológicos, e de 0,2 a 0,8 mg/kg a cada quatro a seis horas nos processos dolorosos mais graves (SOUZA; AMORIM, 2008). Meperidina: é um composto sintético com aproximadamente um décimo da potência analgésica da morfina, sem efeitos adversos gastrintestinais (FRAGATA; IMAGAWA, 2008). Apresenta metabolismo muito rápido em gatos, com meia-vida de apenas 4 minutos. Produz analgesia adequada após a administração de 3 a 5 mg/kg, por via intramuscular, por aproximadamente 2 a 4 horas (SOUZA; AMORIM, 2008). Do mesmo modo que a morfina, produz liberação de histamina quando aplicada por via intravenosa (FRAGATA; IMAGAWA, 2008). Fentanil: analgésico de curta duração e curto período de latência, de boa utilização transoperatória. Possui alta potência analgésica, 75 a 125 vezes maior do que a da morfina. O fentanil não provoca liberação de histamina, mas pode produzir apnéia e bradicardia quando 24 administrado de forma rápida por via intravenosa (FRAGATA; IMAGAWA, 2008). Em gatos, pode ser usado na forma de adesivos transdérmicos, que liberam quantidades controladas de fentanil durante 72 horas. São empregados com sucesso para o controle da dor crônica, moderada a grave, com poucos efeitos colaterais (SOUZA; AMORIM, 2008). No entanto, seu início de ação pode levar até 12 horas em gatos (FRAGATA; IMAGAWA, 2008). O adesivo recomendado para gatos é o de liberação de 25µg de fentanil por hora e deve ser colocado em local sem pêlo e com pouco movimento (SOUZA; AMORIM, 2008). Oximorfona: analgésico narcótico utilizado na sedação ou pré-medicação em associação com tranqüilizantes em gatos (SOUZA, 2003). A dose que produz sedação em cães é de 0,22 mg/kg, enquanto em gatos é de apenas 0,06 mg/kg (ARAUJO et al., 2000). 2.3.2 Formação de metemoglobina ou corpúsculos de Heinz 2.3.2.1 Acetaminofen ou Paracetamol O acetaminofen ou paracetamol é um analgésico e antipirético com fraca ação antiinflamatória (JERICÓ; ANDRADE, 2008). Inúmeros fármacos de efeito analgésico e antipirético contêm acetaminofen na sua composição. Em geral, são preparações de uso humano de consumo muito comum. A exposição dos animais ocorre em geral por meio de proprietários bem intencionados, mas mal informados, que administram a medicação sem orientação do médico veterinário. A ingestão acidental é menos comum, mas também pode ocorrer (MANOEL, 2008). A administração do acetaminofen em gatos pode causar intoxicação aguda e morte (ARAUJO et al., 2000). Os sinais clínicos da intoxicação com paracetamol em felinos podem ser observados na dosagem de 50 a 60 mg/kg por via oral. Após a ingestão, a droga é rapidamente absorvida dentro da circulação portal e metabolizada no fígado por glicuronidação, sulfatação e pelas vias mediadas pelo citocromo P450. Na maioria das espécies animais, baixas doses de acetaminofen são metabolizadas pelas vias da glicuronidação e da sulfatação, o que resulta na excreção biliar e urinária de conjugados atóxicos (MANOEL, 2008). Nessas espécies, o acetaminofen é metabolizado diretamente na fase II resultando em formação de glicuronídeos e compostos ésteres sulfatados, e pequena porção é biotransformada pelas enzimas da fase I a metabólitos tóxicos (SOUZA; AMORIM, 2008). Estes são removidos pela conjugação com glutatião antes que possam causar lesões no organismo (ARAUJO et al., 2000). 25 No gato, devido à deficiência na glicuronidação e a rápida saturação da via de sulfatação, o acetaminofen é desviado para as enzimas da fase I, o que resulta na formação de maior quantidade de metabólitos tóxicos para serem inativados através da conjugação com o glutatião (ARAUJO et al., 2000). Isso leva a uma ligeira depleção da glutationa erotricitária, produzindo metemoglobinemia de rápido desenvolvimento e lesão hepatocelular (TILLEY; SMITH JR, 2008). A metemoglobinemia desenvolve-se rapidamente, além da formação de corpúsculos de Heinz e hemólise intravascular (SOUZA; AMORIM, 2008). Os sinais cínicos ocorrem agudamente, podendo aparecer após 1 a 4 horas da ingestão de acetaminofen (TILLEY; SMITH JR, 2008), e incluem um característico edema facial, edema pulmonar, cianose (figura 3), depressão, hipotermia e emese (MAYER, 1995). Pode ocorrer ainda, hiperventilação, icterícia, edema de membros e ptialismo (SOUZA; AMORIM, 2008). No exame hamatológico se observa sangue com cor de chocolate, como conseqüência da formação de metemoglobina, e na citologia se encontram corpúsculos de Heinz nos eritrócitos (MAYER, 1995). Outras alterações laboratoriais incluem hiperbilirrubinemia, anemia regenerativa, hemoglobinúria, bilirrubinúria e proteinúria (ARAUJO et al., 2000), além de elevação das enzimas hepáticas alanina aminotransferase (ALT) e aspartato aminotransferase (AST) (SOUZA; AMORIM, 2008). Figura 3: Felino com sinais de intoxicação por paracetamol, apresentando dispnéia acentuada e língua de coloração escura (SOUZA, 2003). O tratamento deve ser iniciado imediatamente quando se suspeita de intoxicação com medidas de suporte, como fluidoterapia, transfusão de sangue, se necessária, e oxigenioterapia (ARAUJO et al., 2000). 26 O tratamento é dirigido ao aporte de precursores do glutatião para aumentar a quantidade disponível deste tripeptídeo que se conjuga com o metabólito tóxico para ser excretado, para conseguir isto, se administra N-acetilcisteína (MAYER, 1995). Segundo Souza; Amorim (2008), a N-acetilcisteína é rapidamente hidrolisada à cisteína no organismo, que é necessária para a síntese de glutatião. E, além disso, a N-acetilcisteína constitui fonte exógena de sulfato para a conjugação com o paracetamol. Já Manoel (2008) relata haver evidência de que a N-acetilcisteína apenas supre a falta de precursores da glutationa, o que não a tornaria um antídoto verdadeiro. Araújo et al. (2000), afirmam que a N-acetilcisteína fornece grupos sulfidril para serem oxidados no lugar da hemoglobina e que segundo pesquisas realizadas com ratos intoxicados por acetaminofen, a N-acetilcisteína aumentou as concentrações séricas de sulfato, favorecendo a conjugação por esta via. O protocolo de tratamento com N-acetilcisteína inicia com dose de 280 mg/kg por via oral, seguido por 140 mg/kg após 4, 12 e 20 horas (ARAUJO et al., 2000). Um esquema terapêutico alternativo é a administração de 140 mg/kg por via intravenosa ou via oral e, após, 70 mg/kg a cada 4 horas, repetindo três a quatro tratamentos (SOUZA; AMORIM, 2008). O ácido ascórbico pode ser usado como complemento nas intoxicações com paracetamol pela sua capacidade de converter a metemoglobia em hemoglobina e inibir a ligação covalente dos metabólitos reativos, reduzindo-os novamente a acetaminofen livre. A redução na quantidade de metabólito tóxico permite que quantidades suficientes de glutatião sejam regeneradas para facilitar a conjugação de acetaminofen (ARAUJO et al., 2000). A dosagem do ácido ascórbico é de 150 mg/kg por via oral ou 30 mg/kg por via subcutânea a cada 6 horas (SOUZA; AMORIM, 2008). Também pode se utilizar uma terapia concomitante com cimetidina, a fim de retardar a produção de compostos intermediários tóxicos (MAYER, 1995), tendo em vista a sua propriedade de inibição do sistema citocromo P450 (MANOEL, 2008). A dosagem utilizada é de 10 mg/kg inicialmente, seguida de 5 mg/kg a cada 6 horas nas primeiras 24 horas (SOUZA; AMORIM, 2008). A S-adenosilmetionina pode ser outra alternativa para o tratamento da intoxicação por paracetamol, funcionando como intermediário nas vias que geram glutationa e fosfolipídeos importantes para a função celular (MANOEL, 2008), protegendo o declínio do volume globular contra a formação de corpúsculos de Heinz (SOUZA; AMORIM, 2008). A dose recomendada é de 180 mg/gato, por via oral, a cada 12 horas, durante três dias, seguidos de 90 mg/gato, por via oral, a cada 12 hora durante 14 dias (MANOEL, 2008). 27 É de grande importância o acompanhamento do paciente intoxicado, monitorando a metemoglobinemia, através da determinação laboratorial de metemoglobina, avaliando as atividades séricas das enzimas hepáticas (ALT, fosfatase alcalina), para monitoraçao do dano hepático e aferindo o nível sanguíneo de glutationa, que fornece indícios da eficácia da terapia de reposição sulfidrílica. O prognóstico é grave quando se observam concentrações de metemoblobina maiores que 50% e pode ser favorável quando os animais são submetidos a um tratamento imediato que reverta a metemoblobinemia e evite necrose hepática excessiva. (TILLEY; SMITH JR, 2008). 2.3.2.2 Benzocaína A benzocaína é um anestésico local que, quando usado em gatos, provoca o desenvolvimento de metemoglobinemia. É usado por administração tópica para dessensibilizar a laringe, facilitando a intubação traqueal ou no controle de prurido na pele (ARAUJO et al. , 2000; SOUZA; AMORIM, 2008). Em um estudo feito por Davis et al. (1993), no qual foi observada a indução de metemoglobinemia pela aplicação tópica de benzocaína em treze espécies de animais de laboratório, as respostas mais altas foram observadas em gatos e coelhos. O metabolismo da oxidação pela benzocaína é desconhecido, mas deve estar relacionado com o metabolismo de produtos tóxicos. Os sinais clínicos da intoxicação por benzocaína em gatos são vômitos, dispnéia, cianose, taquicardia, taquipnéia e prostração (SOUZA, 2003). O tratamento inclui oxigenioterapia, administração de N-acetilcisteína e transfusão sanguínea (ARAUJO et al., 2000). 2.3.2.3 Anti-sépticos das vias urinárias Os anti-sépticos das vias urinárias contendo azul de metileno e fenazopiridina são contra-indiciados para gatos (SOUZA; AMORIM, 2008), pois podem causar formação de corpúsculos de Heinz e anemia hemolótica (GRAUER, 2010). O azul de metileno (cloreto de tetrametiltionina) é um corante tiazínico anti-séptico cutâneo e urinário (VIANA, 2007). Como agente anti-séptico urinário é considerado fraco e atua acidificando a urina (GRAUER, 2010). É encontrado também nos populares “mata-bicheiras” (MEDEIROS, 2009). A fenazopiridina é um analgésico das vias urinárias (GRAUER, 2010). 28 Os sinais clínicos da intoxicação por esses fármacos são depressão, dispnéia urina e fezes de coloração azulada no uso de azul de metileno e de coloração alaranjada no uso de fenazopiridina, além de mucosas pálidas ou ictéricas (SOUZA; AMORIM, 2008). A anemia ocorre dentro de dois a quinze dias depois da terapia com azul de metileno na dose de 16,2 mg/gato/dia. De um modo geral as alterações hematológicas são observadas após cinco dias do início do tratamento. O tratamento visa o término imediato do emprego das medicações, transfusão de sangue e terapia de suporte (SOUZA, 2003). 2.4 OUTRAS DROGAS DE IMPORTÂNCIA FARMACOLÓGICA PARA FELINOS 2.4.1 Benzoato de Benzila O benzoato de benzila é usado no tratamento de escabiose e pediculose humanas (SOUZA, 2003). Já foi muito usado para o tratamento de parasitoses cutâneas em pequenos animais (ARAUJO et al., 2000). Possui ação pediculicida e escabicida. Pode ser encontrado em apresentações cremosas, loções alcoólicas e sabonetes (LARSSON et al., 2008). É contra-indicado para gatos, pois provoca dor abdominal, vômito, diarréia, hiperexcitabilidade e convulsões. Em casos de intoxicações deve-se remover o produto da pele do animal e iniciar tratamento sintomático e de suporte (ARAUJO et al., 2000; SOUZA; AMORIM, 2008). 2.4.2 Enemas a base de fosfato Enemas de limpeza são designados para remover material fecal do cólon. Eles envolvem a administração repetida de grandes volumes de água morna. Em gatos, os enemas são normalmente administrados com cateter urinário macio para cães e uma seringa de 50ml. Os enemas hipertônicos, como é o caso do enema a base de fosfato, são potencialmente perigosos, pois podem causar mudanças massivas e fatais de fluidos e eletrólitos, principalmente em gatos (WILLARD, 2010). A intoxicação por enemas fosfatados ocorre em gatos por meio da absorção das soluções a base de fosfato de sódio pela mucosa retal, induzindo hiperfosfatemia, hipocalemia e hipernatremia severas (ARAUJO et al., 2000; SOUZA, 2003). Os sinais clínicos são depressão, ataxia, vômito, gastroenterite hemorrágica, mucosas pálidas, estupor e óbito. As 29 análises laboratoriais demonstram hipernatremia, hiperfosfatemia, hipocalemia, hiperglicemia, acidose metabólica, hipovolemia e hiperosmolaridade, em especial quando o enema é usado repetidamente (SOUZA, 2003). O tratamento consiste na reposição de fluidos com baixos níveis de sódio (dextrose 5%) e cálcio na dose de aproximadamente 1,5 mL/kg de uma solução de gluconato de cálcio a 10% (SOUZA; AMORIM, 2008). 2.4.3 Aminoglicosídeos Os aminoglicosídeos são antibióticos bactericidas usados principalmente contra microorganismos gram-negativos. Possuem efeitos nefrotóxicos e ototóxicos (ANDRADE; GIUFFRIDA, 2008). A estreptomicina e a diidroestreptomicina são os antibióticos aminoglicosídeos mais usados na clínica veterinária, podendo induzir a ototoxidade (MAYER, 1995) e neurotoxidade nos gatos. Os sinais clínicos da intoxicação são ataxia, andar cambaleante, alteração na postura e perda da audição (SOUZA; AMORIM, 2008). A ototoxidade dos aminoglicosídeos está associada à administração sistêmica de altas doses desses antimicrobianos, ou ao seu uso prolongado, principalmente em animais nefropatas. Em raras ocasiões causam degenerações do sistema vestibular e auditivo. Na maioria dos casos, os sinais vestibulares resolvem quando o tratamento é imediatamente interrompido, mas a surdez pode persistir (TAYLOR, 2010). Os efeitos ototóxicos dos aminoglicosídeos são potencializados pela administração concomitante de furosemida nos felinos (MAYER, 1995). A administração em doses elevadas de estreptomicina e diidroestreptomicina causa completo bloqueio neuromuscular e paralisia respiratória (SOUZA, 2003), efeito esse que é potencializado durante anestesia tanto com halotano, quanto com metoxiflurano (MAYER, 1995). 2.4.4 Organofosforados Os organofosforados são compostos muito utilizados como inseticidas, carrapaticidas, produtos contra pulgas, piolhos, baratas e formigas. São exemplos de organofosforados o diclorvós, paration, fention, malation, triclorfon, cumafós, clorpirifós, clorfenvifós, ronel, fosmet e dissulfoton. A apresentação comercial dos organofosforados é em sprays, soluções, pó, coleiras antipulgas e produtos orais, que são usados na agricultura ou produtos para jardins domésticos (MANOEL, 2008). 30 Os organofosforados causam inibição irreversível da acetilcolinesterase. Os sinais clínicos da intoxicação estão relacionados com a estimulação excessiva das terminações nervosas por acetilcolina, que normalmente é eliminada pela acetilcolinesterase (MAYER, 1995). Os gatos são mais suscetíveis aos efeitos tóxicos dos organofosforados do que a demais espécies. Essa intoxicação ocorre, principalmente, no emprego de coleiras contra pulgas a base de diclorvós nos felinos (SOUZA; AMORIM, 2008). Os sinais clínicos da intoxicação aguda por organofosforados são decorrentes do acúmulo de acetilcolina e incluem miose, salivação e fasciculação muscular (SOUZA; AMORIM, 2008). O gato também é sensível a neurotoxidade retardada que provocam os organofosforados, que se manifesta como debilidade progressiva das extremidades posteriores e ataxia (MAYER, 1995). O tratamento da intoxicação aguda é de suporte associado à administração de sulfato de atropina na dose de 0,1 a 0,2 mg/kg, por via intravenosa lentamente, sendo necessária a repetição a cada 10 minutos, e posteriormente, com a diminuição dos tremores musculares, a cada 60 minutos, e pode ser requerido após 24 a 48 horas (SOUZA, 2003). O efeito antídoto do sulfato de atropina decorre de sua função anticolinérgica, atuando como antagonista muscarínico competitivo, protegendo os receptores de acetilcolina do acúmulo desse neurotransmissor (MANOEL, 2008). O cloridrato de pralidoxima também pode ser usado no tratamento da intoxicação por organofosforados. Ele atua se ligando ao local aniônico das colinesterases, deslocando a ligação dos organofosforados (MANOEL, 2008). A dose utilizada é de 20 mg/kg, por via intravenosa, podendo repetir após 60 minutos. O tratamento associando atropina e cloridrato de pralidoxima traz melhores resultados (SOUZA; AMORIM, 2008). 2.4.5 Iodo e Iodóforos Os compostos a base de iodo podem levar a intoxicações nos gatos devido ao seu hábito de lambedura. Os animais apresentam prostração, inapetência, úlceras na língua e distúrbio gastrintestinal. O tratamento de feridas com o anti-séptico polivinilpirrolidona-iodo na concentração de 1% a 10% causa irritação e necrose tecidual. Assim sendo, deve-se usar uma diluição 0,1% a 0,5% de polivinilpirrolidona-iodo (SOUZA; AMORIM, 2008). 31 2.4.6 Digoxina A digoxina é um agente inotrópico positivo, digitálico que atua inibindo a bomba de Na/K, levando ao acúmulo de sódio intraplasmático, que é trocado pelo cálcio, aumentando as concentrações intracelulares de cálcio, aumentando a força de contração cardíaca. O índice terapêutico dos digitálicos é baixo, isto é, as concentrações terapêuticas são muito próximas às tóxicas (SCHWARTZ et al., 2008). A farmacocinética da digoxina em gatos é semelhante àquelas de cães e humanos, sendo sua meia-vida de 33,3 horas após a administração de uma única dose intravenosa. No entanto, após administração oral crônica, a meia-vida da droga é maior, o que sugere que a eliminação pode sofrer saturação no gato. Ocorre grande variação na meia-vida da digoxina entre indivíduos, havendo que se adequar a dose para cada paciente (ARAUJO et al.,2000) . Os gatos parecem ter grande sensibilidade aos efeitos tóxicos da digoxina. Existe uma grande variação na absorção da digoxina, dependendo da preparação utilizada (MAYER, 1995). Os sinais clínicos da intoxicação por digoxina incluem anorexia, vômito, diarréia, depressão e alterações eletrocardiográficas (ARAUJO et al., 2000; SCHWARTZ et al., 2008). Quando indicada a terapêutica com digoxina para gatos, a dose recomendada é de 0,03 mg/gato, sendo o intervalo determinado pelo peso. Para gatos abaixo de 3 kg, a cada 48 horas; para gatos de 4 a 5 kg, a cada 24 ou 48 horas; e para gatos acima de 6 kg, a cada 24 horas. Como a meia-vida é variável no gato, deve-se monitorar a concentração sérica sete a dez dias após o início do tratamento (SCHWARTZ et al, 2008). 2.4.7 Metronidazol O metronidazol é um antimicrobiano do grupo dos nitroimidazóis com atividade antibacteriana e antiprotozoária. Possui ação bactericida e protozoaricida, atuando contra bactérias anaeróbicas obrigatórias (ANDRADE; GIUFFRIDA, 2008). Pode causar intoxicação do sistema nervoso central quando administrado em doses altas, pois atravessa a barreira hematencefálica. O mecanismo de intoxicação ainda é pouco esclarecido, mas acredita-se que seja relacionado à dosagem utilizada (SOUZA; AMORIM, 2008). Apesar da popularidade do uso de metronidazol em felinos, não existem estudos farmacocinéticos suficientes que estebeleçam doses e margens terapêuticas seguras para esta espécie. Em humanos, o metabolismo do metronidazol envolve metabolismo hepático e glicuronidação (SEKIS et al., 2009). 32 Os sinais clínicos da intoxicação por metronidazol em gatos são ataxia, desorientação, reações posturais diminuídas, convulsão e cegueira aparentes. O diagnóstico é realizado através do histórico e sinais clínicos (SOUZA, 2003). Segundo Souza; Amorim (2008), os gatos debilitados e hipoproteinêmicos são mais suscetíveis à intoxicação. O tratamento compreende suspensão do antibiótico e tratamento de suporte (SOUZA; AMORIM, 2008). A dose de metronidazol recomendada para gatos, segundo Viana (2007), é de 25 mg/kg por via oral a cada 12 horas, ou 15 mg/kg por via intravenosa a cada 12 horas. 33 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os gatos possuem características peculiares, tanto comportamentais, quanto metabólicas. É importante que o clínico veterinário esteja atento e ciente das mesmas para melhor orientar seus clientes. Veterinários e proprietários ainda vêem os gatos como pequenos cães, extrapolando indicações terapêuticas e doses de uma espécie para a outra, o que pode causar reações adversas, intoxicação e até morte. A intoxicação de gatos medicados com drogas como ácido acetilsalicílico e paracetamol por seus donos é bastante freqüente, podendo por vezes, levar o animal a óbito. Por outro lado, sabe-se hoje que drogas anteriormente contra-indicadas para gatos, como os opióides, podem ser usadas com segurança nas doses recomendadas para felinos. Para isso, é necessária a constante busca por atualização por parte dos veterinários nesta área que é tão pouco discutida, mas que vem ganhando importância cada vez maior com o crescente número da população felina. 34 REFERÊNCIAS ANDRADE, S. F.; FANTONI, D. T.; CORTOPASSI, S. R. G.; NETO, J. P. A.; KANASHIRO, G. P. Terapêutica do Sistema Nervoso. In: ANDRADE, S. F. Manual de Terapêutica Veterinária. 3 ed. São Paulo: Roca. 2008. cap 17. p. 434-518. ANDRADE, S. F.; GIUFFRIDA, R. Quimioterápicos Antimicrobianos e Antibióticos. In: ANDRADE, S. F. Manual de Terapêutica Veterinária. 3 ed. São Paulo: Roca. 2008. cap 3. p. 26-72. ARAUJO, I. C.; POMPERMAYER, L. G.; PINTO, A. S. Metabolismo de drogas e terapêutica no gato: revisão. Clínica Veterinária, n. 27. p. 46-54, 2000. BAGGOT, J. D. Distribuição, metabolismo e eliminação das drogas no organismo. In: BOOTH, N. H.; McDONALD, L. E. Farmacologia e Terapêutica Veterinária. 6. Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 1992. cap. 5. p. 29-56. BROWN, A. S. Farmacocinética: distribuição e destino das drogas no organismo. In: ADAMS, R. H. Farmacologia e Terapêutica em Veterinária. 8. Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 2003. cap. 3. p. 11-47. CRESPILHO, A. M.; MARTINS, M. I. M.; SOUZA, F. F.; LOPES, M. D.; PAPA, F. O. Abordagem terapêutica do paciente neonato canino e felino. Revista Brasileira de Reprodução Animal, v. 30, n. ½, p. 3-10. 2006. DAVIS, J. A.; GREENFIELD, R. E.; BREWER, T. G. Benzocaine-induced Methemoglobinemia Atributed to Topical Application of the Anestesic in Several Laboratory Animal Species. American Journal of Veterinary Research. V. 54, N. 8. P. 13221326.1993. FIGHERA, R. A.; SOUZA, T. M.; INGEBORG, L.; BARROS, C. S. L. Intoxicação experimental por cebola, Allium cepa (Liliaceae), em gatos. Pesquisa Veterinária Brasileira. v. 22, n. 2. 2002 FLORIO, J. C. Absorção, distribuição, biotransformação e eliminação. In: SPINOSA, H. S.; GÓRNIAK, S. L.; BERNARDI, M. M. Farmacologia Aplicada à Medicina Veterinária. 2. Ed. Rio de janeiro: Guanabara Koogan S.A., 1999, p. 25-40. FORRESTER M.B. Pattern of stingray injuries reported to Texas poison centers from 1998 to 2004. Hum Exp Toxicol, n.24, p.639-642, 2005. FRAGATA, F. S.; IMAGAWA, V. H. Analgesia na Terapia Intensiva. In: SANTOS, M. M.; FRAGATA, F. S. Emergência e Terapia Intensiva Veterinária em Pequenos Animais. 1. Ed. São Paulo: Roca. 2008. cap. 13. p. 817-836. GRAUER, G. F. Infecções do Trato Urinário. In: NELSON, R. W.; COUTO, C. G. Medicina Interna de Pequenos Animais. 4. Ed. São Paulo: Elsevier. 2010. Cap. 45. p. 663-669. 35 HAY, C. W.; MANLEY, P. A. Osteoartrite. In: BICHARD, S. J.; SHERDING, R. G. Manual Saunders Clínica de Pequenos Animais. 2. Ed. São Paulo: Roca. 2003. cap. 142. p 13431347. JERICÓ, M. M.; ANDRADE, S. F. Antiinflamatórios. In: ANDRADE, S. F. Manual de Terapêutica Veterinária. 3. Ed. São Paulo: Roca. 2008. cap. 7. p. 116-140. KIRBY, R.; RUDLOFF, E.; WILSON, W. El cuidado intensivo los gatos no son perros. In: BONAGURA, J. D. Terapeutica Veterinaria de Pequeños Animales. v. 1. 1. Ed. Madrid: Mc Graw-Hill. 2001. cap. 2. p. 105-116. LARSSON, C. E.; LARSSON JR, C. E.; LEITE, C. A. L.; ANDRADE, S. F.; BRITO, A. F. Terapêuticas Tópica e Sistêmica: Pele, Ouvido e Olho. In: ANDRADE, S. F. Manual de Terapêutica Veterinária. 3 ed. São Paulo: Roca. 2008. cap 8. p. 142-199. MANOEL, C. S. Como lidar com os principais agentes intoxicantes na rotina do atendimento emergencial de pequenos animais. In: SANTOS, M. M.; FRAGATA, F. S. Emergência e Terapia Intensiva Veterinária em Pequenos Animais. 1. Ed. São Paulo: Roca. 2008. cap. 29. p. 492-588. MAYER, S. Farmacología y toxicologia. In:WILLS, J.; WOLF, A. Manual de Medicina Felina. 1. Ed. Zaragoza: Acribia S. A. cap. 8. p. 91-102. MEDEIROS, R. J.; MONTEIRO, F. O.; SILVA, G. C.; NASCIMENTO JR, A. Casos de Intoxicações Exógenas em Cães e Gatos Atendidos na Faculdade da Veterinária da Universidade Federal Fluminense Durante o Período de 2002 a 2008. Ciência Rural. v. 39, n. 7. 2009. MUÑOZ, L. A.; PÉREZ, R. S. Panleucopenia viral felina complicada por una intoxicación con ácido acetisalicílico. 1996. SCHWARTZ, D. S.; MELCHERT, A.; REICHMANN, P. Terapêutica do Sistema Cardiovascular. In: ANDRADE, S. F. Manual de Terapêutica Veterinária. 3 ed. São Paulo: Roca. 2008. cap 13. p. 314-339. SEKIS, I.; RAMSTEAD, K.; RISHNIW, M. SCHWARK, W. S.; McDONOUGH, S. P.; GOLDSTEIN, R. E.; PAPICH, M.; SIMPSON, K. W. Single-dose pharmacokinetics and genotoxicity of metronidazole in cats. Journal of Feline Medicine and Surgery. v. 11. p. 6068. 2009. SOUZA, A. M.; POEPERMAYER, L. G.; LAVOR, M. S. L.; DUARTE, T. S.; SILVA, R. M. N. Butorfanol na Anestesia com Propofol em Gatas Pré-tratadas com Levomepromazina. Ciência Rural. v. 32, n. 4. 2002. SOUZA, H. J. M. Coletâneas em Medicina e Cirurgia Felina. Rio de Janeiro: L. F. Livros. 2003. 475 p. SOUZA, H. J. M.; AMORIM, F. V. Terapêutica Felina: Cuidado com o Uso de Fármacos em Gatos. In: ANDRADE, S. F. Manual de Terapêutica Veterinária. 3 ed. São Paulo: Roca. 2008. cap 22. p. 648-659. 36 TAYLOR, S. M. Doenças Neuromusculares Lateralização de Cabeça. In: NELSON, R. W.; COUTO, C. G. Medicina Interna de Pequenos Animais. 4. Ed. São Paulo: Elsevier. 2010. Cap. 68. p. 1049-1055. TILLEY, L. P.; SMITH JR, F. W. K. Consulta Veterinária em 5 Minutos Espécies Canina e Felina. 3. Ed. Barueri: Manole. 2008. 1550 p. VIANA, F. A. B. Guia Terapêutico Veterinário. 2. Ed. Lagoa Santa: Editora Cem. 2007. 463 p. WILLARD, M. D. Distúrbios do Sistema Digestório Princípios Terapêuticos Gerais. In: NELSON, R. W.; COUTO, C. G. Medicina Interna de Pequenos Animais. 4. Ed. São Paulo: Elsevier. 2010. Cap. 30. p. 394-412. XAVIER, F.G.; KOGIKA, M. M. Common causes of poisoning in dogs and cats in a Brazilian Veterinary Teaching Hospital from 1998 to 2000. Vet Human Toxicol, v.44, n.1, p.115-116, 2002.