A CONSTITUCIONALIDADE DA EUTANÁSIA: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, AUTONOMIA DO PACIENTE E O DIREITO À VIDA Igor Issami Yamaguti Graduando em Direito UFPR - Universidade Federal do Paraná [email protected] RESUMO: Muito se discute sobre o tema, porém, não há uma pesquisa aprofundada por parte da doutrina jurídica do tema da eutanásia. Isto ocorre por dois motivos: a) não há julgados que tratem do tema no Direito brasileiro; e b) analisa-se apenas sob a perspectiva da autonomia do paciente e da dignidade da pessoa humana prevalecendo a qualidade de vida do paciente. Porém, limita-se a discussão, pois, como diz Mabtum, Ozaki e Penna (2012, p. 230), a eutanásia envolve questões de ordem política, econômica, social, familiar, moral, religiosa e jurídica. Assim, passaremos a analisar uma pequena parte desta discussão conciliando a Medicina e o Direito. Este artigo terá como marco principal a obra da professora Maria Helena Diniz: “O Estado Atual do Biodireito”. A edição é de 2001, porém, não há prejuízos relativos aos artigos do Código Civil que entrou em vigor só em 2002. Com relação à perspectiva médica, a pesquisa foi feita principalmente com base na psiquiatria, com a obra de Kaplan, Sadock e Grebb: “Compêndio de Psiquiatria”. Por se tratar de um tema complexo, este artigo é só o início de um possível trabalho mais aprofundado. Palavras-chave: Eutanásia, Tanatologia, Dignidade da Pessoa Humana, Autonomia do Paciente, Direito à Vida, Sacralidade da Vida. Área de Conhecimento: Intersiciplinariedades; Humanas; Saúde. 1. Introdução A eutanásia foi um dos poucos temas que ainda não foram elucidados pela jurisprudência brasileira. O que se deseja com este trabalho é construir uma argumentação mais consistente referente à proteção da vida frente à autonomia do paciente. Partindo da perspectiva do médico e não do paciente, para que seja benéfico tanto para um quanto para o outro. Assim, é importante delimitarmos o tema proposto conceituando a eutanásia e o diferenciando de definições bem próximas como a ortotanásia, mistanásia, suicídio assistido e distanásia. Teremos como principais marcos teóricos a obra de professora Maria Helena Diniz, professora de Direito Civil da PUC-SP, “O Estado Atual do Biodireito”, e da obra clássica da área médica: “Compendio de Psiquiatria”, escrita por Harold Kaplan, Benjamin Sadock e Jack Grebb. Assim, teremos uma perspectiva ampla das duas áreas do conhecimento. A metodologia proposta inicia com o conceito de eutanásia, distinção de conceitos (eutanásia, ortotanásia, mistanásia, etc.), uma brevíssima perspectiva histórica, as 1 argumentações pró e contra a eutanásia, a filosofia do “hospice“ e a responsabilidade do médico. 2. Conceito e a “boa morte” A tanatologia, classifica a morte a partir de seu contexto. Assim, ela pode ser oportuna ou inoportuna. A morte oportuna significa aquela em que o tempo esperado de vida e o tempo vivido são aproximadamente iguais. Em outras palavras, a morte oportuna significa a morte da pessoa quando ela deveria previsivelmente ocorrer. Dessa forma, aqueles que suportam o luto não ficariam surpresos. A morte inoportuna diz respeito a três tipos: “1) morte prematura de pessoa muito jovem; 2) morte súbita, inesperada; ou 3) morte catastrófica, associada com um acidente ou ato de violência, vista como algo totalmente absurdo”1. A Lei Norte-Americana de Determinação Uniforme da Morte considera morte, de forma objetiva, um dos seguintes requisitos: “a) cessação irreversível das funções circulatória e respiratória; ou b) cessação completa das funções de todo o cérebro, incluindo tronco cerebral”2. O Comitê da Escola de Medicina de Harvard considera a morte como a presença dos seguintes requisitos: “insconsciência total, falta de resposta a estímulos externos, ausência de respiração e reflexos e eletroencefalograma plano”3. Conforme a professora Maria Helena Diniz (2001, p. 320), o conceito de “bem morrer” deve ser vista a partir da obediência do princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, CF/88). Assim como o cidadão tem o direito de um mínimo existêncial que percorre sua vida, o momento de sua morte deve ter como lente a adequação entre a dignidade do paciente e sua autonomia. Dessa forma, “‘morrer com dignidade significa ter permissão para morrer com seu caráter, com sua personalidade e com seu estilo”4. A eutanásia é definida como: “o ato de matar uma pessoa doente ou ferida sem esperanças de recuperação por razões de piedade” (KAPLAN; SADOCK; GREBB, p. 87). Conforme o Conselho Federal de Medicina (1998, p.172), “Eutanásia é um ato médico que, ao utilizar-se de meios para evitar a dor e o sofrimento, acaba por abreviar a vida”. Em contrapartida, o Dr. J. C. Willke, autor do livro Assisted Suicide & Euthanasia, diz que a etimologia da palavra “eutanásia” (“boa morte”) não tem relação alguma com o que acontece nos dias atuais. Nas palavras do próprio Willke, “a eutanásia hoje ocorre quando médico mata o paciente”5. 3. Aspectos Históricos 1 Harold I. Kaplan; Benjamin J. Sadock; Jack A. Grebb. Compêndio de Psiquiatria: Ciências do Comportamento e Psiquiatria Clínica. 7 ed. Porto Algre. Rio Grande do Sul. Greupo A: Editora Artmed, 2012. p. 85 2 Id., 2012. p. 87 3 Maria Helena Diniz. O Estado Atual do Biodireito, 2001. p. 331. 4 Maria Helena Diniz. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Editora Saraiva, 2001. p. 320 5 G.n. J. Severo. Eutanásia: Matando os Doentes, os Deficientes eos Idosos em Nome da Compaixão. Disponível em: http://www.jesussite.com.br/download/EUTANASIA_Julio_Severo.pdf. Acesso em: 15/10/2015. p. 13. 2 O início da discussão contemporânea sobre a eutanásia data de 1967, quando foi debatida pela primeira vez a questão do consentimento prévio do paciente, o “living Will” (são documentos escritos pela própria pessoa que explicitam a vontade do paciente antes de se tomar conhecimento da doença com todas as diretrizes a serem tomadas caso ocorra alguma situação de inconsciência ou acometimento de estado terminal6). Em 1972, o Dr. Philip Handler7 declarou que o governo deveria elaborar uma política nacional a fim de eliminar recém-nascidos defeituosos8. Em 12 de Julho de 1974 (um segundo momento tutelando a autodeterminação do paciente) foi a elaboração do Belmont Report, documento que permitia ao paciente a decisão acerca dos procedimentos que aceitaria se submeter9. Em 1977, a maioria dos cirurgiões pediátricos afirmaram que não se esforçariam para salvar a vida de uma criança deficiente. Em 1982, foi permitida (com aprovação dos pais, médicos e juízes) a privação de alimento e água para uma criança com síndrome de Down. Porém, um detalhe a ser observado é o fato de que um veterinário foi multado em U$ 3.000,00 por deixar um cachorro morrer de fome10. O terceiro acontecimento foi a promulgação do Patient Self Determination Act (PSDA), Em 1991. A discussão do living will, a elaboração do Belmont Report e o PSDA ocorreram nos Estados Unidos. No Brasil, três fatos são importantes para assegurar a autodeterminação do paciente: o primeiro, em 1996, foi a Resolução nº 196/96 que “reconheceu a importância da materialização do consentimento livre e esclarecido de qualquer sujeito exposto a procedimento médico, ou à pesquisa”11. O segundo momento foi a edição da Portaria nº 1.820/2009 do Ministério da Saúde. Esta Portaria assegurou o direito do paciente ser informado e de decidir sobre o tratamento a ser seguido. O terceiro, trata da Resolução nº 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina. De acordo com a Resolução, proibiu-se a ”prorrogação do sofrimento do paciente terminal (distanásia), sem permitir a antecipação da morte (eutanásia)”. Significa dizer que a ortotanásia pode ser praticada apenas por meio de processos paliativos12. 4. A eutanásia e o nazismo A eutanásia no Estado nazista foi o meio utilizado para o extermínio de 6 milhões de judeus. Por mais novo que pareça a discussão do tema, em 1922, na Alemanha, Karl Binding 6 Maria Helena Diniz. O Estado Atual do Biodireito, 2001. p. 335. Presidente da Academia Nacional de Ciências dos EUA. 8 J. Severo. Eutanásia: Matando os Doentes, os Deficientes eos Idosos em Nome da Compaixão. Disponível em: http://www.jesussite.com.br/download/EUTANASIA_Julio_Severo.pdf. Acesso em: 15/10/2015. p. 31. 9 Matheus M. Mabtum; Veridiana T. R. Ozaki; João B. Penna. Eutanásia (...), 2012. p. 232. 10 J. Severo. Eutanásia: Matando os Doentes, os Deficientes eos Idosos em Nome da Compaixão. Disponível em: http://www.jesussite.com.br/download/EUTANASIA_Julio_Severo.pdf. Acesso em: 15/10/2015. p. 31-33. 11 Matheus M. Mabtum; Veridiana T. R. Ozaki; João B. Penna. Eutanásia (...), 2012. p. 232. 12 Matheus M. Mabtum; Veridiana T. R. Ozaki; João B. Penna. Eutanásia (...), 2012. p. 233. 7 3 (jurista) e Alfred Hoche (psiquiatra) escreveram a obra Legalizando a Destruição de Vida sem Valor. Com isso, buscava-se provar que as despesas com “pessoas inúteis” eram altas para o governo e para as famílias. Portanto, a “solução” era a prática da eutanásia em deficientes físicos e mentais13. Assim, vários médicos, juristas e psiquiatras renomados passaram a aceitar a ideia de que a eutanásia pudesse ser um caminho para “eliminar” aquelas pessoas que não fossem “produtivas”14. O primeiro passo para a viabilização da eutanásia foi a legalização do aborto. A justificativa do Estado nazista alemão eram motivações humanitárias e sociais. Assim, este “ato de compaixão” era reservada apenas aos alemães, sendo os judeus desprezados desse “tratamento”. O médicos recebiam autoridade para praticar a eutanásia com pacientes psiquiátricos e crianças deficientes. Eles faziam, muitas vezes, por iniciativa própria. Havia uma certa normalidade na execução de pacientes em determinadas circunstâncias. Ou seja, era normal a prática da eutanásia15. Júlio Severo apresenta duas leis editadas pelo Estado Alemão Nazista. A primeira foi editada em setembro de 1939, chamada de Ordem de Eutanásia. O dispositivo diz que: “a autoridade dos médicos é aumentada para incluir a responsabilidade de aplicar uma morte misericordiosa às pessoas que não têm cura” (SEVERO, p. 31). A segunda lei, de 1940, dizia que: “qualquer paciente que esteja sofrendo de uma doença incurável que leve à forte debilitação de si mesmo ou de outros pode, mediante pedido explícito e com a permissão de um médico especificamente nomeado, receber ajuda para morrer (sterbehilfe) de um médico” (SEVERO, p. 30-31). Dessa forma, pouco tempo depois, a abrangência das referidas leis não diziam respeito apenas aos doentes, indesejados sociais ou opositores políticos. Mas estendeu sua eficácia para outras pessoas de raças e religiões diferentes16. “O Dr. Leo Alexander, especialista médico americano, participou como membro do Tribunal de Crimes de Guerra em Nurembergue, Alemanha, em 1949. A missão desse tribunal internacional era investigar e condenar as atrocidades dos nazistas. O Dr. Leo disse: ‘ficou claro para todos nós que os crimes de grandes proporções que estávamos investigando tinham começado com pequenas proporções. No início houve apenas uma mudança na atitude dos médicos. Eles começaram a aceitar a ideia do movimento pró-eutanásia de que há tipos de vida que não são dignas de viver. No começo os médicos colocaram nessa categoria apenas os doentes crônicos e graves. Mas aos poucos essa categoria foi ampliada para incluir os que não produzia nada na sociedade, os que tinham alguma ideologia indesejada, os que patenciam a raças indesejadas e, no final, todos os que não eram alemães” (SEVERO, p. 47). 13 J. Severo. Eutanásia: Matando os Doentes, os Deficientes eos Idosos em Nome da Compaixão. Disponível em: http://www.jesussite.com.br/download/EUTANASIA_Julio_Severo.pdf. Acesso em: 15/10/2015. p. 27-28. 14 Id., p. 28. 15 Id., p. 27-28. 16 Id., p. 31. 4 As atrocidades causadas pelas Segunda Guerra Mundial, denunciadas no Tribunal de Nuremberg e aceitas pela classe médica mundial, teve como consequência algumas garantias para que aqueles “atos médicos” praticados pelos nazistas nunca mais ocorressem. Assim, houve uma reafirmação da sacralidade da vida17, isto é, “o médico não deve matar seus pacientes”. 5. Eutanásia, suicídio assistido, mistanásia, distanásia e ortotanásia Faz-se necessário também a diferenciação entre a eutanásia, o suicídio assistido, mistanásia, distanásia e ortotanásia. Pois, são conceitos que geram confusão. A distinção se faz necessária para separarmos o que é e o que não é eutanásia a fim de que delimitemos o assunto a ser discutido. O suicídio assistido é “a morte [que] decorre de ato praticado pelo próprio paciente, orientado ou auxiliado por terceiro ou médico”18. O caso mais famoso de suicídio assistido trata da experiência feita pelo Dr. Jack Kevorkian (conhecido também como “Doutor Morte”). A experiência consistia em um aparelho de eletrocardiograma equipado com um mecanismo que, ao ser acionado pelo paciente, injetava em si mesmo um anestésico (Thiopental), deixando-o inconciente. A seguir, injetava-se uma dose de cloreto de potássio, paralisando o coração e levando o paciente à morte. Kevorkian foi condenado pelo Estado de Michigan (EUA). O médico considerou sua condenação incoerente porque, por um lado, proibia-se um adulto consciente de decidir sobre o procedimento mais adequado a ele, ainda que colocasse fim a sua vida. Por outro, permitia-se o aborto, que termina com a vida sem o consentimento da vítima19. Ou seja, a eutanásia se diferencia do suicídio assistido, pois, no suicídio assistido, o próprio paciente causa a sua morte, enquanto que na eutanásia, um terceiro põe fim a vida de outrem20. O segundo ponto a ser identificado é a ortotanásia21. De acordo com Maria Helena Diniz: “a eutanásia passiva, ou ortotanásia, é a eutanásia por omissão, consistente no ato de suspender medicamentos ou medidas que aliviem a dor, ou de deixar de usar os meios artificiais para prolongar a vida de um paciente em coma irreversível, por ser intolerável o prolongamento de uma vida vegetativa sob o prisma físico, emocional e econômico, acatando solicitação do próprio enfermo ou de seus familiares” (DINIZ, 2001, p. 310). 17 Como já foi visto no tópico referente aos argumentos contra a eutanásia. Matheus M. Mabtum; Veridiana T. R. Ozaki; João B. Penna. Eutanásia (...), 2012. p. 234. 19 Maria Helena Diniz. O Estado Atual do Biodireito, 2001. p. 321. 20 Matheus M. Mabtum; Veridiana T. R. Ozaki; João B. Penna. Eutanásia (...), 2012. p. 235. 21 “A ortotanásia encontra-se prevista na Resolução nº 1.805/2006, do Conselho Federal de Medicina (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, Resolução CFM n. 1.805/2006, online). Em 2007, o Ministério Público Federal entrou com uma Ação Civil Pública [ACP n. 2007.34.00.014809-3] contra a referida resolução. Todavida em 2010, a ação foi julgada improcedente, entendendo tanto o juiz, quanto a procuradoria federal que a posição do Conselho Federal de Medicina é válida” (MABTUM; OZAKI; PENNA; 2012, p.236-237). 18 5 Assim, “a eutanásia não se confunde com a ortotanásia, pois, na primeira, há a abreviação da vida do doente; já, na segunda, suspende-se o tratamento inútil (veremos a seguir), de maneira que a morte possa ocorrer em seu tempo”. (MABTUM; OZAKI; PENNA; 2012, p.237). Outro conceito importante para o esclarecimento do tema é a mistanásia. A mistanásia diz respeito à morte miserável, infeliz, fora e antes da hora. Dessa forma, há três situações em que a mistanásia pode ocorrer: a) nos casos em que há razões políticas, sociais e econômicas, que não permitem o ingresso dessas pessoas no sistema de atendimento médico (caso da omissão de socorro estrutural); b) o segundo caso trata dos erros médicos. Conforme o Código de Ética Médica, há três tipos de erro: por imperícia por imprudência e por negligência; c) o último caso trata das vítimas da má prática. A má prática tem o caráter de prejudicar alguém de forma deliberada, quando a medicina é exercida de forma instrumental a fim de prejudicar a dignidade de outra pessoa, causando uma morte precoce ou dolorosa22. A professora Maria Helena Diniz (2001, p.315) ainda trata de forma breve sobre a eutanásia social ou mistanásia e a define como: “a morte miserável fora e antes da hora, que nada tem de boa ou indolor”. Assim, ela cita alguns exemplos: a) a mistanásia por razões politicas, sociais e econômicas que impedem o cidadão de acessar o sistema de saúde. A professora chama de “mistanásia passiva”. A mistanásia ativa trata de casos como nos campos de concentração nazistas, no uso de injeções letais em execuções nos Estados Unidos; b) a mistanásia em doentes crônicos ou terminais que acessam o sistema de saúde, mas que são vítimas de erro médico; c) a mistanásia em razão da má prática por questões econômicas, sociopolíticas ou científicas. Ou seja, o médico utiliza-se da medicina para prejudicar direta ou indiretamente o paciente, resultando em morte, a fim de garantir um benefício próprio ou não. Um último conceito a ser análisado que se conecta com a eutanásia, mas com ela não se confunde, é a distanásia. A professora Maria Helena Diniz expõe o tema em um capítulo em separado, ressaltando a importância do tema. Conforme a referida professora: “Pela distanásia, também designada obstinação terapêutica (L’acharnement thèraupetique) ou futilidade médica (medical futility), tudo deve ser feito mesmo que cause sofrimento atroz ao paciente. Isso porque a distanásia é a morte lenta e com muito sofrimento. Trata-se do prolongameto exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo da morte. Para Jean-Robert Debray, é o comportamento médico que consiste no uso de processos terapêuticos cujo efeito é mais nocivo do que o mal a curar, ou inútil, porque a cura é impossível, e o benefício esperado é menor que os inconvenientes previsíveis” (DINIZ, 2001, p. 316). A partir disso, podemos questionar: o que seria um tratamento fútil? Tratamento fútil seria aquele “tratamento” que não tem ligação com o fim desejado ou que não haja uma melhora do paciente. Ou seja, a interrupção do tratamento fútil é obrigatório. Diniz explica que tratamento fútil é aquele que não atinge o seu objetivo imediato; não é eficaz; não 22 Matheus M. Mabtum; Veridiana T. R. Ozaki; João B. Penna. Eutanásia (...), 2012. p. 235. 6 oferece uma qualidade de vida mínima; e não oferece uma esperança de sobrevida ao paciente. 6. Assistência e tratamento: há diferença?23 Existe diferença entre assistência e tratamento: Assistência é surprir necessidades básicas como nutrição, hidratação, calor humano, abrigo, apoio emocional e espiritual. Ou seja, necessidades básicas que todas as pessoas têm. Assim, a água e o alimento não são tratamentos, mas são necessidades que caso sejam retirados tem como decorrência a morte. Dentro da ética médica, isto é inadimissível. Pois, a medicina tem como essência a destruição da doença e não do paciente. Caso o paciente tenha a capacidade de ter estas necessidades básicas supridas, deverá sempre ser suprida. Existem casos em que o corpo não consegue mais metabolizar o alimento, sendo assim, a alimentação só viria a piorar o estado do paciente. Sendo, portanto, negada. Porém, esta medida é extremamente excepcional, cabendo ao médico o dever de suprir todas as necessidades básicas do paciente. Tratamento diz respeito à cura ou controle de problemas crônicos ou agudos de saúde. Geralmente, é utilizado medicamentos e cirurgias nos tratamentos para aliviar problemas de saúde ou aqueles causados por acidentes ou doença. Caso o tratamento não tenha a eficácia desejada, avalia-se a situação mediante o melhor interesse do paciente. Em casos nos quais o paciente está em estado terminal, o tratamento tem a finalidade de trazer conforto e alívio para o paciente. Portanto, caso o paciente esteja em estado terminal, a remoção de tratamentos que só prolonguem a “(sobre)vida”, pode ser uma opção saudável que respeita a morte natural (uma morte em conforto e paz). A diferença para esta conduta e a eutanásia está na possibilidade de se viver por mais tempo. Por exemplo, recém-nascidos que morrem porque não receberam água e alimento necessário para a conservação de sua vida. Sendo assim, se estes recém-nascidos tivessem sido nutridos e hidratados devidamente, estariam vivos. 7. Argumentos favoráveis à eutanásia O movimento a favor da eutanásia tem início por volta de 1900, na Inglaterra, como decorrência da teoria da evolução, de Charles Darwin. A referida teoria diz que os mais fortes sobrevivem enquanto que os mais fracos devem morrer. Ou seja, na Inglaterra o principal argumento pró-eutanásia era que existiam pessoas que sofriam de forma inútil, indigna. Muitas pessoas não deveriam continuar vivendo, pois, não valia mais a pena ou porque havia uma carga emocional muito grande para o paciente ou para os familiares24. Os argumentos que defendem este posicionamento são baseados em dois pilares fundamentais: 1) autonomia do indivíduo; 2) princípio da qualidade de vida. Estes dois pilares 23 J. Severo. Eutanásia: Matando os Doentes, os Deficientes eos Idosos em Nome da Compaixão. Disponível em: http://www.jesussite.com.br/download/EUTANASIA_Julio_Severo.pdf. Acesso em: 15/10/2015. p. 14-17. 24 J. Severo. Eutanásia: Matando os Doentes, os Deficientes eos Idosos em Nome da Compaixão. Disponível em: http://www.jesussite.com.br/download/EUTANASIA_Julio_Severo.pdf. Acesso em: 15/10/2015. p. 27. 7 não podem ser vistos de forma estanque, mas como elementos que andam juntos nas argumentações favoráveis à eutanásia. Conforme Siqueira-Batista e Schramm (2005, p.116), os defensores da eutanásia argumentam “que seja respeitada a liberdade de escolha do homem que padece, isto é, sua competência nesta vivência o processo de morrer, de acordo com seus valores e interesses legítimos”. No que diz respeito ao princípio da qualidade de vida, condena-se “os atos absurdos, causadores de sofrimento insuportável, que tenham como finalidade única sustentar uma (sobre)vida que pode ser mais um castigo que uma dádiva”25. Em contrapartida, ao argumento da “qualidade de vida” que os defensores da eutanásia utilizam, o Dr. Jack Willke diz que com os avanços da medicina, é possível o alívio das dores. Assim, “a chave de tudo é o médico. Se ele não sabe controlar a dor e não pode ou não quer [...] a ‘solução simples’ do médico é matar o paciente quando ele não poder matar a dor”26. “Vivemos numa época em que a medicina se desenvolveu a tal ponto que já é possível aliviar o sofrimento de pessoas que estão sofrendo as dores mais intensas. Anestesistas e outros especialistas afirmam que a medicina hoje pode dar adequado alívio paliativo em 99% dos casos. Mas muitos pacientes são impedidos de obter o alívio de suas dores porque alguns médicos acham que eles ficarão viciados aos medicamentos analgésicos e porque também muitos profissionais médicos não receberam um treinamento adequado na área de controle de dores e sintomas” (SEVERO, p. 19-20). Referente à autodeterminação do paciente, os Estados Unidos, em 1991, aprovou a lei chamada de The Patient Self-Determination Act – PSDA. A professora Maria Helena Diniz (2001, p. 335) elenca três efeitos principais decorrentes do PSDA: a) a garantia da autodeterminação do paciente frente a sua própria saúde; b) estimulo aos pacientes na garantia dos seus direitos e de suas objeções; c) recomendações diretivas para o tratamento, ou exigências antecipadas. O consentimento esclarecido por parte do paciente é uma vertente do princípio da autonomia da vontade27. Para que o paciente tenha um consentimento esclarecido, é necessário que o médico informe o diagnóstico, a terapia e, até mesmo, uma doença fatal. Mediante circunstâncias desagradáveis ao paciente, este pode vir a ter uma depressão e, consequentemente, procurar a morte antecipada. Dessa forma, entende-se que há casos em que pode-se ocultar determinados fatos do paciente, porém, seus familiares ou responsável devem ser informados. Assim, entende-se que “o dever de informar não deve ser entendido como o de fazer saber a verdade a qualquer custo”28. Deve-se ponderar o princípio de não causar maior dano físico ou psíquico ao paciente com o dever de informação e do consentimento livre e esclarecido. Em face deste julgamento de proporcionalidade, o art. 34 do Código de Ética Médica permite uma discricionariedade do médico ao dever de informar R. Siqueira-batista; F. R. Schramm. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. In: Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro. 2005. p. 115. 26 Id., 19. 27 Maria Helena Diniz. O Estado Atual do Biodireito, 2001. p. 332. 28 Id., 2001. p. 333. 25 8 caso a informação possa piorar a condição física ou psíquica do paciente, sendo obrigatória prestar informação a parente ou responsável. Frente a este reconhecimento do consentimento livre e esclarecido do paciente em estado terminal, isto é, o que se chama de “testamento vital”29. São documentos escritos no qual o paciente, em um momento prévio e tendo em vista uma possível eventualidade de ser acometido por uma doença terminal, decide por quais tratamentos e procedimentos ele deseja se submeter. “Testamentos em vida são documentos legais nos quais os pacientes dão instruções a seus médicos quanto ao não-uso de medidas de suporte à vida. Os médicos, contudo, devem exercer seu bom-senso, mesmo na ausência de um testamento em vida. No caso de surgirem questões importantes com relação a qualquer uma dessas decisões, o médico deve consultar a administração do hospital ou um advogado” (KAPLAN; SADOCK; GREBB, p. 87). No mesmo sentido, o PSDA tem a vantagem de se conhecer a vontade do paciente em um momento de lucidez. Assim, há três formas para que a pessoa decida sobre o tratamento em face a uma doença incurável: a) living will: são documentos escritos pela própria pessoa que explicitam a vontade do paciente antes de se tomar conhecimento da doença com todas as diretrizes a serem tomadas caso ocorra alguma situação de inconsciência ou acometimento de estado terminal. O living will permite a imunidade sobre a responsabilidade civil e penal do médico, ou seja, o médico se exime da responsabilidade; b) durable power of attorney for health care: nas palavras da professora Maria Helena Diniz (2001, p.335), “trata-se de um mandato em caso de incapacidade”; c) advance care medical directive: trata-se de um documento feito após a consulta com o médico explicitando os valores com que as decisões futuras deverão ser tomadas caso o paciente seja acometido por um estado terminal, para que o futuro curador (indicado no documento) auxilie na interpretação da provável vontade do paciente30. Para concluir, os movimentos a favor da eutanásia tem uma estreita relação com os movimentos pró-aborto. Os argumentos utilizados para a legalização do aborto tem como base casos excepcionais e raros a fim de ganhar a simpatia do público e, consequentemente, dos legisladores. Nos EUA e Europa, o caminho foi a questão das mulheres que engravidam por conta de estupro ou incesto. Assim, atualmente, nos EUA, mais de um milhão de crianças são abortadas por ano, sendo que a maioria não tem relação alguma com incesto, estupro ou defeitos congênitos. Trata-se apenas da prática do aborto como expressão do desejo da mãe31. Os defensores do aborto buscam o direito de “autonomia do corpo da mulher” com o slogan “meu corpo, minhas regras”. Assim como no aborto, os movimentos pró-eutanásia buscam convencer os doentes, os deficientes e idosos que precisam ganhar o direito legal de morrer. Ou seja, o que os defensores do aborto e da eutanásia buscam fazer “não é matá-los, O que é um equívoco a utilização do termo “testamento”, pois, não se trata de um testamento no sentido do direito de família regulado pelo Código Civil. 30 Maria Helena Diniz. O Estado Atual do Biodireito, 2001. p. 335-337. 31 J. Severo. Eutanásia: Matando os Doentes, os Deficientes eos Idosos em Nome da Compaixão. Disponível em: http://www.jesussite.com.br/download/EUTANASIA_Julio_Severo.pdf. Acesso em: 15/10/2015. p. 9-10. 29 9 mas convencê-los a se matarem”32 através destes artifícios legislativos, como o living will e o PSDA confirma e, dependendo da situação, praticamente obriga o paciente a cometer o suicídio. 8. Argumentos contra a eutanásia Aqueles que são contra a eutanásia utilizam-se do mesmo argumento da autonomia. Porém, “preocupam-se com a possibilidade de pessoas que na verdade querem continuar vivas possam vir a ser mortas, no caso da legalização da eutanásia. Indubitalvemente, qualquer lei aceitável que permitisse a eutanásia exigiria que as pessoas somente poderiam ser mortas se tivessem pedido, inequivocadamente, que lhes pusessem fim à vida”33. Em oposição ao princípio da qualidade de vida, há o princípio da sacralidade da vida. “A vida é sempre digna de ser vivida, ou seja, estar vivo é sempre um bem, independente das condições em que a existência se apresente”34. A questão que se coloca pelos defensores da eutanásia é: se a vida é um bem, não cabe ao detentor deste bem decidir sobre o que melhor lhe convém?35. Porém, a vida não é passível de intervenções da autonomia da vontade livre, porque o próprio titular deste direito deve respeitá-lo. Pois, a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, caput, considera a vida como um direito inviolável. Ou seja, a eutanásia e nem o suicídio assistido pode ser aceito, pois seria inconstitucional. “A disponibilidade da própria vida não pode ser tolerada como um direito subjetivo, por ser a vida um bem indisponível. Se ninguém é dono de sua própria vida, como pode sê-lo da de outrem, praticando eutanásia? Mesmo com anuência prévia e expressa do doente em estado terminal, ou de seu responsável, para remover aparelho de sustentação de sua vida, o médico não teria a obrigação de conservá-la, com o mínimo de sofrimento possível, diante do dever jurídico de socorro? Não se pode aceitar que o profissional da saúde tenha o poder de controlar a vida de pacientes. Deverá o médico esforçar-se para prolongar o quanto possível a vida do doente, mas sem alterar, de forma inaceitável, a qualidade da vida que lhe resta. Deve humanizar a vida do paciente terminal, devolvendo-lhe a dignidade perdida” (DINIZ, 2001, p. 340-341). Ainda dentro de um campo de argumentação legal, o Código de Ética Médica do Brasil (Resolução nº 1.931/2009), no artigo 14, veda-se a pratica ou indicação de atos médicos que sejam desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País. Sendo assim, conforme o artigo 122, do Código Penal (retomaremos mais adiante), a eutanásia não é permitida. Aqueles que se opõem à eutanásia utilizam o argumento do slippery slope36. Este argumento diz que é temerária a abertura para práticas que causem algum mal à sociedade, de forma geral. Pois, abre-se precedentes acerca desta prática, levando, então, a uma desconfiança na relação médico-paciente (que deveria ser baseada na confiança). Outro efeito 32 Id., p. 40-41. Matheus M. Mabtum; Veridiana T. R. Ozaki; João B. Penna. Eutanásia (...), 2012. p. 238. 34 R. Siqueira-batista; F. R. Schramm. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. In: Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro. 2005. p. 115. 35 Matheus M. Mabtum; Veridiana T. R. Ozaki; João B. Penna. Eutanásia (...), 2012. p. 238. 36 Em português, “ladeira escorregadia”. 33 10 seria a prática de atos sem fins altruístas, deteriorando o respeito à vida humana 37. “se se permitisse a eutanásia voluntária, não se estaria abrindo uma porta para a involuntária? E, além disso, não haveria possibilidade de um diagnóstico errôneo ou, até mesmo, de abuso por parte de médico e familiares?”38. “O médico que hoje aceita matar uma criança inocente na barriga da mãe, amanhã aceitará matar adultos idosos ou doentes”39. A professora Maria Helena Diniz (2001, p. 339-341) diz que, ainda que a ciência seja importante para o desenvolvimento da vida humana, ela não pode contrariar a natureza do ser humano e sua dignidade. Assim, o fato de ser cientificamente possível, não quer dizer que seja moral ou juridicamente possível. A professora ainda diz que o limite da autonomia científica é o direito de outra pessoa. Pois, a dignidade da pessoa humana se sobrepõe a qualquer interesse científico, indo no mesmo sentido que o desenvolvimento da humanidade. 9. Responsabilidade dos médicos A discussão acerca da eutanásia tem como perspectiva a autonomia do paciente, por conta da perspectiva dos autores de que existe uma relação de assimetria entre médico e paciente, já que o médico detém um conhecimento técnico que o paciente não o tem40. Dessa forma, caberia aos médicos, de acordo com os defensores da autonomia do paciente, de acatar o pedido da eutanásia.O médico poderia ser responsabilizado civilmente pela determinação da morte? Poderia ser responsabilizado por possível homicídio? Como ficaria a responsabilidade do médico? A primeira pergunta (o médico pode ser responsabilizado civilmente?) repondemos através do Código Civil de 2002. Os artigos 13 e 15, tratam da proteção da integridade do corpo e vida do paciente. Conforme o artigo 13, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando haja uma possível redução permanente da integridade física, salvo condições médicas necessárias. O artigo 15 veda a obrigatoriedade de submissão do paciente a tratamento médico ou intervenção cirurgica com risco de morte. Ou seja, os dois dispositivos colocam a vida em conformidade com a autonomia da vontade. Porém, o legislador não pensou no caso em que o paciente deseja que sua vida seja interrompida. Assim, como adequar a vontade do paciente e a sacralidade da vida? O Código de Ética Médica de 2009 pode nos suprir esta questão. No Brasil, o Código de Ética Médica (Resolução nº 1.931/2009, do CFM), veda ao médico que cause um “dano ao paciente, por ação ou omissão” (art. 1º, CEM). O parágrafo único do mesmo artigo diz que a responsabilidade médica é pessoal e não presumida. Ou seja, a responsabilidade não pode ser delegada a outra pessoa e deve ser provada (diferentemente R. Siqueira-batista; F. R. Schramm. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. In: Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro. 2005. p. 115. 38 Maria Helena Diniz. O Estado Atual do Biodireito, 2001. p. 307. 39 J. Severo. Eutanásia: Matando os Doentes, os Deficientes eos Idosos em Nome da Compaixão. Disponível em: http://www.jesussite.com.br/download/EUTANASIA_Julio_Severo.pdf. Acesso em: 15/10/2015. p. 36. 40 Matheus M. Mabtum; Veridiana T. R. Ozaki; João B. Penna. Eutanásia (...), 2012. p. 239. 37 11 da responsabilidade no Código de Defesa do Consumidor ou em alguns casos da CLT). O artigo 14 veda ao médico a prática ou indicação de atos médicos que sejam desnecessários ou proibidos pelo ordenamento jurídico. Conclui-se, então, que a eutanásia não poderá ser praticada. Primeiro, em conformidade com o artigo 122, do Código Penal; segundo, e ainda mais importante, por conta da Constituição Federal de 1988, que tem como direito fundamental a vida (art. 5º, caput, CF/88). No artigo 29 e 30, do Código de Ética Médica, há a vedação da execução da pena de morte e do uso da medicina para cometer ou favorecer crimes. Assim, penalmente falando, se o médico pratica a eutanásia, a pena será de “reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave”. Portanto, respondendo a segunda pergunta (o médico poderia ser responsabilizado penalmente?), o médico poderia sim ser responsabilizado penalmente ao praticar a eutanásia. Assim, confirma-se a obrigatoriedade do médico em não se praticar a eutanásia. Conforme o parecer da Associação Mundial de Medicina, em Outubro de 1987, sobre a eutanásia “é um procedimento que contraria a ética, o que não impede que o médico respeite a vontade do paciente, de permitir que o processo da morte siga seu curso natural na fase terminal da doença”. Parcialmente de acordo com o parecer da Associação Mundial de Medicina, O New York State Committee on Bioethical Issues (“Comitê sobre Questões Bioéticas do Estado de Nova Iorque”) concorda no que diz respeito à eutanásia, mas dá espaço para que o médico ofereça um tratamento efetivo para o alívio da dor e do sofrimento, ainda que possa antecipar a morte41. 10. Filosofia do “hospice” Questiona a professora Maria Helena Diniz: “não deveria a medicina aceitar a morte como um limite invencível, por ser parte do ciclo vital, e não como uma falha sua?”; “não deveria o profissional da saúde procurar curar uma doença mortal e não livrar o homem de sua mortalidade?”. Assim, a morte deveria ser aceita como parte do ciclo vital, como um “encargo” da condição humana, como algo inevitável. No mesmo sentido, Severo apresenta o seguinte: “A verdade é que ninguém precisa de um direito para morrer, pois a morte é inevitável. Todos, sem exceção, acabarão morrendo. Mas o movimento próeutanásia, buscando uma intervenção humana mais direta no processo da morte, procura manipular nossas emoções e mentes para que aceitemos o ato de matar ou apressar a morte de certas pessoas” (SEVERO, p. 41). Como bem observa a professora, “o ser humano pode ser curado de uma doença mortal, mas não de sua mortalidade”. Assim, “o papel do médico é curar, quando for possível, assistir sempre com paciência e amor, principalmente na circunstância em que não pode restabelecer a saúde. Parece-nos que o princípio da sacralidade e o da qualidade da vida não se opõem, mas se completam”. Diniz explica que estender o processo da morte pode ser mais 41 Harold I. Kaplan; Benjamin J. Sadock; Jack A. Grebb. Compêndio de Psiquiatria: Ciências do Comportamento e Psiquiatria Clínica. 7 ed. Porto Algre. Rio Grande do Sul. Greupo A: Editora Artmed, 2012. p. 87 12 maléfica que benéfica ao paciente. Dessa forma, a filosofia do asilo (hospice) aparece como alternativa que harmoniza a sacralidade e a qualidade da vida. A filosofia do asilo consiste: a) na aceitação da morte como parte do ciclo vital, portanto, natural; b) a morte deve ocorrer no momento exato, nem precocemente e nem de forma que estenda demasiadamente o processo da morte; c) interação do paciente com familiares e entes queridos; d) tutela por equipe interdisciplinar a fim de amenizar a dor psicológica, espiritual e física; e) tendo como objetivo atenuar a dor decorrentes da moléstia; e f) independencia da questão econômica do paciente42. “Os médicos têm obrigação de aliviar a dor e o sofrimento e de promover a dignidade e autonomia dos pacientes moribundos a seus cuidados. Esta obrigação inclui o oferecimento de um tratamento paliativo eficaz, embora este possa, ocasionalmente, apressar a morte. Entretanto, é vedado ao médico executar a eutanásia ou participar do suicídio assistido. Apoio, conforto, respeito pela autonomia do paciente, boa comunicação e controle adequado da dor podem diminuir dramaticamente a demanda por eutanásia e suicídio assistido. Em certas circunstâncias cuidadosamente definidas, é humano reconhecer que a morte é certa e o sofrimento, imenso. Entretanto, os riscos sociais do envolvimento dos médicos em intervenções que promovem a morte dos pacientes são demasiadamente grandes para endossarmos a eutanásia ativa ou o suicídio assistido” (g. n., KAPLAN; SADOCK; GREBB, p. 87). 11. Reações à morte iminente43 Conforme Elisabeth Kübler-Ross, existem cinco estágios que podem ser identificados antecedentes à morte (ainda que seja difícil encontrar uma regularidade). O primeiro estágio é a fase do choque e negação. Nesta fase, quando a pessoa toma conhecimento de sua iminente morte, há o choque sucedido da negação, pedindo, assim, uma “segunda opinião”. Existem pacientes que não passam desta fase, indo de médico em médico. Dessa forma, o médico deve comunicar e informar o paciente e a família de modo respeitoso e direto. A informação sobre a doença, prognóstico e opções para tratamento. O segundo estágio é a raiva. A raiva acompanha perguntas como: “por que eu?”. Podem colocar a culpa em Deus, destino, amigo, membro da família, etc. Portanto, cabe ao médico entender que a raiva expressada não é pessoal. A resposta deve ser empática e nãodefensiva. Uma das possíveis causas da raiva pode ser o sentimento de impotência frente a uma situação na qual não é possível se controlar. O terceiro estágio é a barganha. Isto é, o paciente passa a negociar a cura com médicos, amigos, Deus, etc. Assim, o paciente se vê vulnerável para receber em troca a cura de sua doença. Outro aspecto diz respeito sobre o pensamento ilusório de que sua bondade possa contribuir para que o médico o cure. Cabe ao médico esclarecer que todo esforço será feito e que as ações não serão determinantes para a sua cura. Porém, essa vontade de contribuir e auxiliar da melhor forma possível, por parte do paciente, deve ser encorajada. O quarto estágio é a depressão. Há sinais como: retraimento, retardo psicomotor, perturbações do sono, desesperança e ideação suicida. Caso a depressão se desenvolva de 42 Maria Helena Diniz. O Estado Atual do Biodireito, 2001. p. 325-327. Harold I. Kaplan; Benjamin J. Sadock; Jack A. Grebb. Compêndio de Psiquiatria: Ciências do Comportamento e Psiquiatria Clínica. 7 ed. Porto Algre. Rio Grande do Sul. Greupo A: Editora Artmed, 2012. p. 86. 43 13 forma agravante, são indicados os tratamentos com medicamentos antidepressivos ou terapia eletroconvulsiva (ECT). “A depressão maior e a ideação suicida ativa, entretanto, podem ser aliviadas e não devem ser aceitas apenas como uma reação normal à iminência da morte. Uma pessoa que sofre depressão maior pode ser incapaz de manter a esperança. A esperança também pode alterar a longevidade, e provavelmente melhora a dignidade e a qualidade da vida do paciente” (KAPLAN; SADOCK; GREBB, p. 86). O quinto e último estágio é a aceitação. Há uma percepção de que a morte é inevitável e universal. Dessa forma, os sentimentos podem variar entre o humor neurótico ao humor disfórico. “As pessoas com fortes crenças religiosas e que estão convencidas da vida após a morte podem encontrar conforto em suas crenças e em frases bíblicas”44. Para ilustrar esta parte do estudo, apresentaremos o caso de Alfred, um índio americano que morreu por conta de uma atitude omissiva da equipe médica: “Alfred era um índio americano, nascido e criado numa reserva tribal. Quando se tornou adulto, ele foi viver numa cidade grande e se tornou membro ativo de uma igreja na vizinhança onde morava. Depois de algum tempo, seus amigos começaram a notar que ele estava freqüentemente doente, até que um dia o encontraram desmaiado no chão de sua casa. Ao ser internado e recobrar a consciêcia, ele estava tão perturbado que tentou arrancar as sondas do próprio corpo. Sua doença era grave, mas havia possibilidade médica de tratá-la. Seus amigos disseram que Alfred havia recentemente falado de seus sonhos com a morte, e eles estavam apoiando sua decisão de não querer viver mais. Ele acabou arrancando todas as sondas e, como a equipe médica não quis intervir, ele morreu” (SEVERO, p. 11). Assim, em consonância com a professora Maria Helena Diniz, Julio Severo diz que o suicídio de Alfred não foi em decorrência de sua doença, mas da falta de esperança. “Ele estava deprimido, e a depressão pode levar qualquer pessoa, doente ou saudável, ao suicídio”45. 12. Considerações Finais Para concluirmos, faremos um breve resumo do que foi discutido: 1. Conceito e a “boa morte”: Para Kaplan, Sadock e Grebb, a morte deve ser oportuna, isto é, no momento oportuno. Conforme a professora Maria Helena Diniz, a “boa morte” deve ser entendida como aquela que se consuma com dignidade e respeito à autonomia do paciente. De acordo com a legislação, “Eutanásia é um ato médico que, ao utilizar-se de meios para evitar a dor e o sofrimento, acaba por abreviar a vida”. Porém, o Dr. J. C. Willke conceitua de forma mais direta: “a eutanásia hoje ocorre quando médico mata o paciente”. 2. Aspectos Históricos: o debate inicia-se em 1967 com a questão do consentimento prévio do paciente. Em 1974, o Belmont Report permitia a decisão por parte do paciente sobre os procedimentos que aceitaria se submeter. Em 1991, o Patient Self Determination Act (PSDA). No Brasil, em 1996, houve a Resolução nº 196/96 que seguiu o reconhecimento do 44 Harold I. Kaplan; Benjamin J. Sadock; Jack A. Grebb. Compêndio de Psiquiatria: Ciências do Comportamento e Psiquiatria Clínica. 7 ed. Porto Algre. Rio Grande do Sul. Greupo A: Editora Artmed, 2012. p. 86. 45 J. Severo. Eutanásia: Matando os Doentes, os Deficientes eos Idosos em Nome da Compaixão. Disponível em: http://www.jesussite.com.br/download/EUTANASIA_Julio_Severo.pdf. Acesso em: 15/10/2015. p. 12. 14 consentimento livre e esclarecido. Em 2009, a Portaria nº 1.820, do CFM, permitiu a distanásia mas não a eutanásia. 3. A eutanásia e o nazismo: o aborto e a eutanásia foi a porta de entrada para que os nazistas praticassem diversas atrocidades exterminando mais de 6 milhões de judeus. Através de argumentações utilitaristas, houve a aprovação de leis que permitiam a “ajuda para morrer” (sterbehilfe) e, posteriormente, estendendo-se não apenas aos doentes, indesejados sociais e opositores políticos. Acrescentou-se também pessoas de raças e religiões diferentes. Como consequência de todos os horrores da Segunda Guerra, houve a reafirmação da sacralidade da vida. 3. Eutanásia, suicídio assistido, mistanásia, distanásia e ortotanásia: suicídio assistido é quando o paciente comete suicídio com o auxilio (assistência) do médico (caso do Dr. Jack Kevorkian, “Dr. Morte”). Sua condenação foi vista como incoerente, pois, se se aceitava o aborto, porque não aceitar o suicídio assistido? A ortotanásia diz respeito à suspenção de tratamentos necessários para a manutenção da vida do paciente. A mistanásia é a morte miserável, por conta da falta de estrutura do sistema de Saúde que impede o ingresso de determinadas pessoas, por erros médicos ou pela má prática (prejudicar outrem de forma deliberada). A distanásia diz respeito ao prolongamento da morte e não da vida, ou seja, é quando não há cura para a doença, mas se insiste na perpetuação da dor e sofrimento do paciente. 5. Assistência e tratamento: assistência é o suprimento de necessidades básicas. Tratamento busca a cura ou controle de problemas crônicos ou agudos de saúde. 6. Argumentos favoráveis à eutanásia: os principais são: a proteção da autonomia do paciente e da proteção da qualidade de vida. Com base em fatos excepcionais e raros “convencendo” os pacientes a cometerem o suicídio. Desvirtuando todo o papel do médico, que é o de curar e aliviar a dor e o sofrimento. É um papel de esperança, como na filosofia do hospice. 7. Argumentos contra a eutanásia: utiliza-se o princípio da sacralidade da vida, ou seja, a vida deve ser sempre protegida. Pois, a Constituição Federal, no artigo 5º, caput, defende a vida como direito inviolável. Ou seja, a vida não é passível de intervenção da autonomia da vontade. O Código de Ética Médica do Brasil, no artigo 14, veda a a prática ou indicação de atos médicos que sejam proibidos pela legislação vigente no País. Outro argumento é o slippery slope. A prática da eutanásia seria temerária, pois, abriria as portas para a banalização da vida (assim como aconteceu no Estado Nazista Alemão). 8. Filosofia do “hospice”: é uma filosofia apresentada pela professora Maria Helena Diniz. Diz respeito à aceitação da morte como algo natural, que faz parte do ciclo vital. Assim, “o papel do médico é curar, quando for possível, assistir sempre com paciência e amor, principalmente na circunstância em que não pode restabelecer a saúde” (DINIZ, 2001, p. 326). Kaplan, Sadock e Grebb veem a orbigação do médico em aliviar a dor e o sofrimento. 9. Reações à morte iminente: Este estudo da tanatóloga Elizabeth Kübler-Ross foi necessário para reforçar a necessidade e a compreensão da filosofia do hospice. Assim, há cinco estágios 15 em reação à morte iminente: a) choque ou negação; b) raiva; c) barganha; d) depressão46; e e) aceitação. Para ilustrar o tema e não encerrar por aqui a discussão, apresenta-se o caso de Michael Martin: Michael Martin, 41 anos, casado e pai de família, sofreu um acidente o que lhe causou danos cerebrais. Sua esposa, Mary Martin, desejava que fosse tirada a sonda que alimentava o marido. Porém, Michael tem consciência e não é vítima de uma doença terminal. Ele não tem depressão, não apresenta sinais de frustração ou raiva. Sempre buscou cooperar com os tratamentos e não demonstrava desejo algum de suicídio. Sendo assim, a mãe e a irmã de Michael tentam evitar que o pedido de Mary seja acatado. A esposa de Michael argumenta dizendo que deseja que ele “morra com dignidade”. Em contrapartida, os irmãos de Mary questionam se existe dignidade na morte por decorrência de fome e sede, sozinho, carente de cuidados e consciente de sua iminente (e triste) morte. A vida não pode ser banalizada. Uma pessoa não perde o sentido da vida “só porque ele não pode estar em casa ou ser produtivo” (SEVERO, p.7-8). 13. Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasilia, CF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Código Civil. BRASIL. Resolução CMF n. 1931, de 17 de setembro de 2009. Código de Ética Médica. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina. 2010. DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Editora Saraiva, 2001. KAPLAN, Harold I.; SADOCK, Benjamin J.; GREBB, Jack A. Compêndio de Psiquiatria: Ciências do Comportamento e Psiquiatria Clínica. 7 ed. Porto Algre. Rio Grande do Sul. Greupo A: Editora Artmed, 2012. MABTUM, Matheus M.; OZAKI, Veridiana T. R.; PENNA, João B. Eutanásia e as Manifestações Prévias da Vontade do Paciente. In: MARCHETTO, Patrícia B.; BERGEL, Salvador D.; FALAVINHA, Diego H. S.; RAMPIN, Talita T. D. (orgs.). Temas Fundamentais de Direito e Bioética. São Paulo: Cultura Acadêmica: Editora UNESP, 2012. p. 229-250. SIQUEIRA-BATISTA R.; SCHRAMM, F. R. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. In: Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro. 2005. SEVERO, Julio. Eutanásia: Matando os Doentes, os Deficientes e os Idosos em Nome da Compaixão. Disponível em: http://www.jesussite.com.br/download/EUTANASIA_Julio_Severo.pdf. Acesso em: 15/10/2015. 46 frente à discussão da eutanásia, este é o ponto mais sensível 16