As Mulheres dos Césares

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Annelise Freisenbruch
As Mulheres dos Césares
Sexo, Poder e Política no
Império Romano
Tradução de Manuel Santos Marques
Índice
Lista de Ilustrações ...................................................................
9
Árvores Genealógicas ..............................................................
11
Introdução: Eu, Cláudia… .......................................................
19
Capítulo I – Ulisses de Vestido
Produção de uma Primeira-Dama Romana .........................
31
Capítulo II – Primeira Família
As Mulheres de Augusto ..........................................................
79
Capítulo III – Rixa Familiar
A Princesa do Povo e as Mulheres do Reinado de Tibério .. 131
Capítulo IV – Feiticeiras do Tibre
As Últimas Imperatrizes Julo-Claudianas ............................. 175
Capítulo V – A Pequena Cleópatra
Uma Princesa Judia e as Primeiras-Damas da Dinastia
Flaviana ...................................................................................... 225
Capítulo VI – Boas Imperatrizes
As Primeiras-Damas do Século ii .......................................... 263
Capítulo VII – A Imperatriz Filósofa
Júlia Domna e o «Matriarcado Sírio» .................................... 301
Capítulo VIII – A Primeira Imperatriz Cristã
As Mulheres na Época de Constantino ................................. 341
Capítulo IX – Noivas de Cristo, Filhas de Eva
As Primeiras-Damas da Última Dinastia .............................. 377
Epílogo ....................................................................................... 429
Agradecimentos ........................................................................ 433
Uma Nota de Convenções Usadas em Nomes de Datas ...... 436
Notas .......................................................................................... 438
Bibliografia Selecionada .......................................................... 482
Índice Remissivo ....................................................................... 501
Capítulo I
Ulisses de Vestido
Produção de uma Primeira-dama Romana
A característica da nação romana era a magnificência: as suas virtudes, os seus vícios, a sua prosperidade, os seus infortúnios, a sua
glória, a sua infâmia, a sua ascensão e queda, tudo foi igualmente grandioso. Até mesmo as mulheres, desprezando os limites que a barbárie e
a ignorância haviam consignado ao seu sexo noutras nações, imitaram
o heroísmo e a ousadia do homem.
Mary Hayes, Female Biography, vol. 2 (1801)
As labaredas pareciam ter irrompido do nada, surpreendendo
BRVFMFTRVFGPSBNBQBOIBEPTOBTVBUSBKFUØSJBFDFJGBOEPVN
rasgão através dos olivedos e pinhais de Esparta. Enquanto as
línguas de fogo se encrespavam no ar noturno, inundando-o com
o odor acre da seiva ardente, os ruídos secos dos ramos crepitantes entremeavam-se com gritos de pânico e um arfar pesado.
Um homem e uma mulher apressavam-se por entre uma floresta
incendiada. A marcha era perigosa: a dada altura, o cabelo da
mulher e a bainha roçagante do seu vestido ficaram chamuscados, mas não havia tempo para examinar os danos. As forças iniNJHBTFTUBWBNMIFTNFTNPOPFODBMÎPFKÈPTBTTFEJBWBNIBWJB
algum tempo. Semanas antes, o casal fugitivo e os seus companheiros de viagem quase haviam sido intercetados ao tentarem
embarcar secretamente num navio no porto de Nápoles, com o
pranto recalcitrante do seu bebé quase a deitar tudo a perder.
O nome do homem era Tibério Cláudio Nero, e ela era a sua
mulher de dezassete anos, Lívia Drusila2.
Estava-se no ano 41 antes de Cristo. Três anos antes, o assassínio do ditador Júlio César por dissidentes que tinham agido
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em nome da liberdade mergulhara a república romana na
guerra civil, dividindo a elite das suas classes dominantes em
dois campos ferozmente opostos: os que apoiavam os assassinos
Bruto e Cássio e os que apoiavam os paladinos autonomeados
de César, nomeadamente o seu sobrinho-neto de dezoito anos,
agora designado herdeiro, Gaio Octávio, mais conhecido como
0DUBWJBOPFPTFVUFOFOUF.BSDP"OUØOJP&NDPOKVOUPDPNP
ex-cônsul Marco Lépido, estes autoproclamados mosqueteiros
haviam constituído um frágil acordo de partilha tripartida do
poder, conhecida como Triunvirato, e trataram de esmagar Bruto
e Cássio na batalha de Filipos em outubro de 42 a. C.
No entanto, Octaviano e António depressa entraram em desavença e a elite romana viu-se obrigada a declarar mais uma vez
a sua lealdade, desencadeando confrontos violentos entre as
fações adversárias em Itália um ano mais tarde, confrontos esses
que obrigaram o nobre Tibério Nero, que optara pelo partido de
"OUØOJPFBTVBKPWFNNVMIFS-ÓWJBBMBOÎBSFNTFOBTVBEFTFTperada fuga. Estava agora em curso uma contagem decrescente
de dez anos, com todos os partidos a convergirem na batalha de
Ácio, em 31 a. C., a grande batalha naval em que Marco António, financiado pela sua amante egípcia, Cleópatra, se defrontaria com Octaviano para decidir o destino do império romano de
uma vez por todas.
No início do primeiro ato deste magnífico drama, Lívia
Drusila era apenas uma figurante na multidão, uma personagem invisível numa sociedade em que a poucas mulheres era
consentido adquirirem nome como figuras públicas. Porém,
PT BDPOUFDJNFOUPT EP TFHVOEP BUP FN RVF P IPNFN DVKBT
tropas a perseguiam por Esparta substituiu Tibério Nero como
seu marido, alcandoraram-na ao estatuto de atriz principal
e, na altura em que a peça alcançou o seu grandioso final,
Lívia estava prestes a tornar-se primeira-dama da era imperial
OBTDFOUFFBNÍFGVOEBEPSBEBEJOBTUJBKVMPDMBVEJBOBRVFB
inaugurou. Tendo sido provavelmente a mais poderosa, e sem
dúvida uma das mais controversas e formidáveis mulheres que
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alguma vez desempenharam aquele papel – o neto Calígula
veio depois a apodá-la de Ulixes stolatus (Ulisses de vestido),
uma referência híbrida ao guerreiro grego conhecido pela sua
astúcia e ao vestido stola usado pelas matronas romanas de
classe elevada –, Lívia foi o modelo pelo qual todas as subsequentes mulheres de imperadores romanos teriam de se
medir3. Nenhuma mulher viria a condensar melhor do que ela
as artimanhas e os paradoxos associados a ser-se uma mulher
romana na vida pública.
Ao contrário da sua congénere egípcia Cleópatra, relativamente a quem se viu forçada a aceitar um lugar de segundo
plano, tanto ao longo da década seguinte como na memória
histórica, Lívia Drusila não foi educada para o cargo de dinasta
imperial, mas também não era alheia à classe dirigente política
romana. Nascida a 30 de Janeiro de 58 a. C., na distinta família
patrícia dos Cláudios, que se gabavam de ser descendentes do
refugiado de guerra troiano Eneias, um dos fundadores míticos
da raça romana, Lívia tinha catorze anos quando o assassínio de
Júlio César a 15 de Março de 44 a. C. desencadeou uma guerra
civil entre a elite romana4. O clã claudiano, do qual descendia
pelo lado paterno – a mãe, Alfídia, era de uma família de classe
alta, mas menos aristocrática, natural da cidade costeira italiana
de Fundi –, fora uma presença de peso no panorama político
desde os primeiros dias da república romana, no século v a. C.,
alardeando nada menos do que vinte e oito consulados, cinco
ditaduras e seis triunfos (honras públicas atribuídas aos generais bem-sucedidos). Uma ligação adicional, através do pai, era
com a ilustre família liviana, de que um dos membros, Marco
Lívio Druso, fora um herói populista para comunidades italianas
que clamavam pela cidadania romana no começo do século i a.
C.56NBMJOIBHFNUÍPCSJMIBOUFNBSDPVBKPWFN-ÓWJBDPNP
um grande trunfo matrimonial para qualquer aspirante ao poder
político e, apropriadamente, apresentou-se um pretendente de
sucesso no ano 43 a. C.6.
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as mulheres dos césares
Tibério Claúdio Nero, ele próprio membro de um ramo um
pouco menos elevado do clã claudiano, era da mesma argamassa
política do abastado pai de Lívia, Marco Lívio Druso Cláudio,
que daria por si, um ano mais tarde, do lado derrotado de Filipos. Descrito numa carta pelo grande estadista romano Cícero
DPNPjVNKPWFNEFOBTDJNFOUPOPCSFUBMFOUPTPFDPNBVUPdomínio», Tibério Nero gozara de uma ascensão relativamente
auspiciosa pela escada romana do progresso ao longo dos anos
40, detendo primeiro a questura e depois a pretoria, um degrau
abaixo da mais elevada posição política possível, a de cônsul7.
Tendo gozado de algum favor durante o reinado de Júlio César,
DVKBGSPUBDPNBOEPVDPNÐYJUPEVSBOUFB(VFSSB"MFYBOESJOB
trocou ainda assim de alianças no rescaldo do assassínio de
César, optando, tal como o seu futuro sogro, por apoiar os assassinos Bruto e Cássio, mas transferindo posteriormente as suas
lealdades, uma vez mais, agora para Marco António.
A hierarquia política de Roma estava ainda desordenada na
sequência da morte de Júlio César quando Tibério Nero, frusUSBEP EF VN EFTFKP BOUFSJPS FN B $ EF EFTQPTBS B GJMIB
de Cícero, Túlia, optou antes pelo matrimónio com uma mulher
do seu clã, Lívia, que com quinze anos era provavelmente vinte
anos mais nova do que ele, uma diferença de idades habitual em
casais da sociedade romana8. O mais provável é que o casamento
tivesse sido combinado pelo pai de Lívia, embora as mães romaOBTQVEFTTFNDPNPÏFWJEFOUFUFSBMHVNWPUPOFTTFTBSSBOKPT
matrimoniais – a união da primeira escolha para noiva de Tibério Nero, Túlia com o seu terceiro marido Dolabela, por exemplo,
foi facilitada pela sua mãe, Terência, com a resignada aceitação
de Cícero9. No entanto, legalmente, quase todas as mulheres
romanas, com a exceção das seis sacerdotisas vestais virgens
RVFDVJEBWBNEPMBSEBEFVTB7FTUBFTUBWBNTVKFJUBTËBVUPSJdade total do pai, ou paterfamilias, enquanto ele fosse vivo e, do
século i a. C. em diante, a maioria permanecia ainda sob a autoridade paternal, mesmo após o casamento. Isto sucedia devido ao
aumento de casamentos sem manus (tendo aqui manus o sentido
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de possessão ou poder). Por outras palavras, tratava-se de casamentos em que uma mulher e, mais importante, o seu dote sob
BGPSNBEFEJOIFJSPFQSPQSJFEBEFQFSNBOFDJBTPCBKVSJTEJção legal do pai e não do marido. Tais disposições tornaram-se
OPSNBHSBÎBTBPEFTFKPEFDMÍTBCBTUBEPTDPNPPTEF-ÓWJBFN
conservarem as suas propriedades intactas e preservarem a integridade das suas famílias ao não permitirem que os seus membros passassem a ser controlados por outros paterfamilias10.
Uma rapariga na posição de Lívia teria sido tecnicamente
livre para recusar o casamento, mas só se tivesse podido provar
que a escolha do seu pai para noivo era um homem de mau caráter, uma opção que provavelmente poucas raparigas se sentiam
capazes ou propensas a aproveitar. O casamento era a única ocupação respeitável para uma mulher romana livre, mas era tamCÏNPVOUPFBDPMBEBIJFSBSRVJBQPMÓUJDBEF3PNB6NBKPWFN
aristocrata como Lívia, que dispunha de poucas oportunidades
de travar conhecimento com homens ou mulheres fora do seu
restrito círculo familiar, podia esperar casar-se mais do que uma
vez durante a sua vida, numa cultura de elite em que o matrimónio não era tanto uma união romântica como um facilitador de
alianças sociais e políticas entre famílias ambiciosas, alianças que
bem podiam assentar em areias movediças11.
Na véspera do seu sumptuoso casamento de alta sociedade,
-ÓWJBUFSJBTJEPTVCNFUJEBBPQSJNFJSPEFVNDPOKVOUPEFQSPcedimentos cerimoniais que simbolizavam a sua graduação da
infância para a idade adulta e a sua transição da casa do pai para
a do marido. Uma noiva romana punha de lado as suas coisas infantis – os brinquedos e a toga em miniatura que usara
BPMPOHPEBJOGÉODJBoFUSBKBWBVNWFTUJEPEJSFJUPEFMÍCSBODB
(tunica recta) que ela própria tecera num tear especial. No dia
seguinte, esta simples túnica branca nupcial era cingida à cintura
DPNVNDPSEÍPEFMÍDVKPDPNQMJDBEPOØIFSDVMBOPBDBCBSJB
por ser desfeito pelo marido. Os seus longos cabelos, que teriam
sido confinados durante a noite numa rede amarela, eram penteados num estilo austero que implicava a peculiar utilização de
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as mulheres dos césares
um dardo afiado para separar o cabelo em seis tranças bem apertadas antes de serem fixas com fitas de lã12.
O noivo e os convidados chegavam tipicamente a casa do
pai da noiva durante a tarde. Apesar de os casamentos romanos não serem de formato religioso, tinham lugar vários gestos
cerimoniais durante o dia, incluindo o sacrifício de um porco
para garantir bons presságios para a união. Eram trocadas palavras de consentimento entre o casal e o casamento ficava selado
quando uma convidada casada, ou pronuba, pegava nas mãos
direitas da noiva e do noivo e as unia. Poderia ser testemunhado
e assinado um contrato e o casal era brindado com a saudação Feliciter («Boa sorte»); um banquete matrimonial precedia
então a escolta final da noiva até ao seu novo lar, para onde
PNBSJEPKÈTFFODBNJOIBSBBGJNEFMÈBBHVBSEBS1PEFNPT
imaginar a cena enquanto os sons distantes de canções ecoavam
pela cidade, escutando-se logo acima do tráfego pedestre do
entardecer e do palrar dos negociantes que encerravam as suas
MPKBTBPBOPJUFDFS"TFSQFOUFBSQPSVNDBNJOIPEFOTBNFOUF
aromatizado com tochas de resina de pinheiro a arder, flautistas
tocavam enquanto a multidão rouca, bem estimulada pelo banquete de casamento que acabara de deixar, avançava trôpega em
grande euforia, a entoar os refrães nupciais de «Hymen Hymenae!» e «Talasio!» e atirando punhados de nozes para as crianças
em correria e residentes locais curiosos que haviam vindo ver a
procissão passar.
No meio da amálgama, o vistoso véu nupcial de Lívia, ou
flammeum, cor de gema de ovo, resplandecia como um farol na
FTDVSJEÍPEJTQPTUPTPCSFVNBDPSPBEFWFSCFOBFNBOKFSPOB
Pantufas (socci) amarelas a condizer, talvez bordadas com pérolas, a aparecerem e a desaparecerem por debaixo da sua túnica
cintada enquanto era arrastada por dois rapazinhos que lhe
pegavam nas mãos, escolhidos entre a prole de amigos casados
da família como mensageiros de esperança das crianças que ela
traria um dia ao mundo. Um terceiro rapaz caminhava à frente
com uma tocha e, em lugar de um bouquet, eram levados por
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ela através do caminho um fuso e uma roca, símbolo dos seus
novos deveres domésticos. Não obstante a presença destes símbolos inócuos da vida respeitável de casados, a atmosfera abundava em humor irreverente, mas bem-intencionado, e tinha de
se aguentar o desafio das brincadeiras maliciosas e das canções
carregadas de insinuações até a noiva conseguir chegar à casa
marital. Quando finalmente a escolta ruidosa de Lívia a entregou na porta de Tibério Nero, ela encontrou-a engrinaldada de
flores colocadas pelo noivo que a aguardava. Conforme de si se
esperava, untou cerimoniosamente as ombreiras da porta com
gordura animal e fixou nela meadas de lã por cardar, rituais que
visavam garantir abastança e prosperidade para si e para o seu
novo marido. Por fim, foi cuidadosamente levantada por sobre
BTPMFJSBQFMPTTFVTKPWFOTBVYJMJBSFTNBTDVMJOPT&SBOFDFTTÈria cautela, pois uma noiva tropeçar ao ser admitida através da
entrada na casa do seu novo marido era considerado um mau
presságio. Uma vez lá dentro, depois de ser presenteada com
PGFSUBTEFGPHPVNBUPDIB
FÈHVBOVNKBSSPPVCBDJB
QFMP
marido, a simbolizar a sua responsabilidade de mulher em cozinhar, limpar e supervisionar os assuntos domésticos, era levada
por outra mulher casada para o seu novo aposento, antes de aí
admitir o noivo para que se desse a consumação13.
O estatuto de Lívia como noiva adolescente era completamente normal. As raparigas de classe alta na república romana
tardia tinham tipicamente o seu primeiro casamento nos primeiros anos da adolescência, por vezes logo aos doze. Tirava-se assim partido dos seus anos mais férteis, numa era em que
a taxa de mortalidade infantil era elevada. Ter filhos, o ativo
pelo qual as mulheres romanas eram publicamente mais valorizadas, era um imperativo para uma mulher na posição de
-ÓWJB"FTUFSJMJEBEFDVKBDVMQBFSBJOWBSJBWFMNFOUFBUSJCVÓEBË
mulher e nunca ao marido, podia constituir fundamento para o
divórcio. Não é de surpreender que 16 de novembro de 42 a. C.
TFKBBEBUBEPQSJNFJSPBQBSFDJNFOUPEF-ÓWJBOBDSPOPMPHJB
romana, com a documentação oficial relativa ao nascimento
38
as mulheres dos césares
EP TFV GJMIP NBJT WFMIP 5JCÏSJP P SBQB[ DVKPT HSJUPT NBJT
tarde, quase denunciaram os pais quando se evadiam através
da cidade-estado grega de Esparta e que viria um dia a tornar-se imperador de Roma14.
O nascimento de Tibério teve lugar em casa, no monte Palatino, o bairro residencial mais exclusivo de Roma. Graças ao seu
acesso imediato ao fórum romano, o centro da cidade, e às suas
associações sagradas com momentos-chave do passado mítico
de Roma, como o nascimento dos gémeos fundadores da cidade,
Rómulo e Remo, o Palatino era o domicílio ideal para um político ambicioso como Tibério Nero. Um verdadeiro Quem é
Quem entre os reformadores e agitadores republicanos tardios,
tinham-no também escolhido como sua base, desde Cícero a
Octaviano e Marco António, e é provável que a própria Lívia ali
tivesse crescido na casa do seu pai15.
A maternidade era algo escrutinado de perto nas mulheres
do mundo romano. Desde o momento da conceção até à amamentação e estádios de desmame, era oferecida às futuras mães
uma torrente de conselhos, alguns baseados nas teorias de médicos respeitados, outros enraizados na charlatanice supersticiosa.
Disse-se que, antes da chegada do bebé Tibério, a própria Lívia
terá empregue várias técnicas antigas das mulheres para tentar
garantir o nascimento de um rapaz, incluindo a incubação de um
ovo de galinha entre as mãos, conservando-o quente nas pregas
do vestido, onde acabaria por chocar um galito de crista orgulhosa, em hipotética premonição de um bebé do sexo masculino16. Os conselhos mais pragmáticos, embora igualmente não
científicos, de peritos médicos como Sorano, que os escreveu
alguns anos depois, no século ii, recomendavam que a melhor
altura para a conceção era perto do final da menstruação e depois
de uma refeição ligeira e de uma massagem.
Os partos em casa eram a única variedade praticada, e as parturientes abastadas, como Lívia, eram assistidas num aposento
cheio de mulheres, incluindo várias parteiras, mantidas entre
o pessoal permanente das casas mais ricas. Os maridos não
Annelise Freisenbruch
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permaneciam na sala do parto – embora conste que o pai de
Octaviano, Gaio Octávio, tenha chegado atrasado a uma votação no Senado em 62 a. C. quando a sua mulher Ácia entrou
em trabalho de parto –, e a participação de médicos masculinos
no nascimento era praticamente inexistente. Uma notável lápide
em terracota de Isola Sacra, perto do porto romano de Óstia,
proporciona-nos uma imagem extraordinária de uma mulher
romana em processo de parto. Uma parteira (a quem provavelmente foi dedicado este relevo funerário toscamente talhado)
agacha-se num banco baixo diante de uma mulher em trabalho de parto, despida e firmemente agarrada aos braços de uma
cadeira de parto, com a parte superior do tronco apoiada por
outra mulher que está de pé por detrás dela. A partir de outras
fontes médicas, ficamos a saber o que o baixo-relevo não mostra:
que havia uma abertura em forma de crescente no assento dessas
cadeiras, através do qual era recebido o bebé por uma parteira
agachada17. Foi descoberto um espéculo vaginal de aspeto desagradável, feito de bronze, nas ruínas de Pompeia; tais instrumentos poderão ter sido utilizados para examinar o canal pélvico no
caso de complicações e, se fosse seguido o conselho registado
por Sorano, havia à mão azeite quente, água e compressas, e a
BUNPTGFSBFSBBSPNBUJ[BEBDPNFSWBTDPNPQPFKPNFOUPMBEPF
limão fresco para aliviar a mãe extenuada18.
Dar à luz era uma experiência perigosa na antiguidade, tanto
para a mãe como para a criança. Estima-se que cerca de um
quarto das crianças morresse antes do primeiro aniversário e os
epitáfios funerários mostram muitos hinos pesarosos às mães
que pereceram ao dar à luz19. Porém, no caso de um desfecho
bem-sucedido, como o parto seguro do pequeno Tibério pela
Lívia de dezasseis anos, a casa depressa era inundada por amigos
a felicitarem e darem palmadinhas nas costas do orgulhoso pai,
e existem provas literárias de que as mulheres beneficiavam de
apoio pós-parto da parte dos membros femininos da sua própria família20. Nove dias depois do nascimento, realizava-se um
dia de ritos purificadores cerimoniais, designados lustratio, em
40
as mulheres dos césares
prol do bebé, durante o qual recebia oficialmente o seu nome21.
O escrutínio público do modo como era criada a criança não se
ficava por aqui. Não obstante o facto de aparentemente a maioria dos membros da elite entregarem os seus filhos a amas para
que os amamentassem, muitas fontes antigas criticam a prática
e insistem que as mulheres deviam amamentar os seus próprios
filhos. Uma descrição do século ii evoca um filosofante visitante
chamado Favorino que criticou a mãe de uma rapariga por tentar
poupar a filha às exigências de amamentar logo após dar à luz,
JOTJTUJOEPRVFPDBSÈUFSNPSBMEBDSJBOÎBTFSJBQSFKVEJDBEPQFMP
leite de amas estranhas e servis, que além disso bem podiam ser
viciadas na bebida. E desenvolve a sua posição:
Que espécie de mãe incompleta, desnaturada e imperfeita
tem um filho e o envia de imediato para longe dela? […] Ou
talvez se pense […] que a natureza concedeu mamilos às mulheres como uma espécie de ponto de beleza, não para efeitos de
alimentarem os seus filhos, mas como adornos do peito?22
Embora tais críticas intelectuais não fossem bem-sucedidas
em travar as mães de elite dos tempos de Lívia de passarem os
filhos a amas de leite, e o compêndio ginecológico de Sorano
recomendasse até uma ama para as mães esgotadas, a troça das
mulheres que não queriam passar pelas provações e pelos danos
infligidos à sua figura pela maternidade eram bem aceites pelo
público com memórias remotas e rosadas. Tal narcisismo feminino era retratado pelos críticos da sociedade em que Lívia cresceu como estando em significativo contraste com os bons velhos
tempos da primitiva história de Roma, um período habitado por
mulheres incomparáveis, como Cornélia, uma muito celebrada
matriarca do século ii a. C., que se dizia que havia prescindido do
auxílio contratado e criara os seus filhos «ao peito» e «ao colo»23.
Uma antiga biografia de Tibério refere que a própria Lívia
recorreu a uma ama, ou nutrix, para cuidar do seu filho, sendo
este um dos muito raros vislumbres que temos deste período
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da sua vida24. Contudo, é importante, pois está em articulação
direta com a ideia romana de mulher ideal, um padrão pelo qual
Lívia e as suas sucessoras como primeira-dama romana seriam
avaliadas. As mulheres raramente são elogiadas nos escritos da
antiguidade por agirem de acordo com os seus próprios interesses; em lugar disso, eram louvadas por facilitarem os interesses
dos maridos e dos filhos e, através deles, contribuírem para a
glória de Roma. Cornélia, como mãe dos irmãos políticos populistas Tibério e Gaio Graco, foi celebrada pela assistência que lhes
proporcionou na infância, tendo-os criado para serem oradores
FMPRVFOUFTFKPWFOTNPSBMNFOUFSFUPTOVUSJEPTËCBTFEPMFJUF
materno. Do mesmo modo, chegaram até nós pormenores sobre
a educação dada a Tibério por Lívia, não porque os antigos biógrafos estivessem interessados em Lívia por si mesma, mas porque era importante compreender como a educação por ela dada
a Tibério poderia ter afetado o homem adulto e o imperador em
que ele viria a tornar-se.
Essas análises estavam ainda por escrever. Nesta fase, mau
grado a sua impressionante genealogia, Lívia continuava ainda
entre o elenco gigante de figurantes na grande narrativa histórica
deste tumultuoso período da história romana. Contudo, acontecimentos políticos em curso e as aspirações do marido depressa
a catapultaram para mais próximo do centro da ação.
/BTFRVÐODJBEBWJUØSJBDPOKVOUBEF.BSDP"OUØOJPFEF0DUBviano sobre Bruto e Cássio, em Filipos no ano 42 a. C. – a vitória que resultou no suicídio do pai de Lívia –, o período de lua
de mel para aqueles agora arquirrivais não durou muito tempo.
O relacionamento entre o carismático guerreiro veterano e o
ambicioso prodígio político fora sempre um casamento de conveniência. No regresso do cenário da sua vitória, António partiu para supervisionar o quinhão de território que lhe coubera,
no império romano do Oriente. Isto deixou o terceiro triúnviro, Lépido, com a responsabilidade pela província de África e
0DUBWJBOPDPNBKVSJTEJÎÍPTPCSF*UÈMJBFBJNQPQVMBSUBSFGBEF
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as mulheres dos césares
recuperar a posse da terra e redistribuí-la aos militares a quem
fora prometida uma recompensa por apoiarem os triúnviros
contra Bruto e Cássio. Depressa se instalou uma guerra fria entre
os campos octaviano e antonino, que poucos sinais de degelo
manifestou ao longo da década seguinte.
Com Lépido cada vez mais à margem, as classes dirigentes
romanas, cada vez mais fartas de guerra, viram-se pressionadas a
declarar a sua lealdade a um dos dois candidatos ao poder total e
em breve Tibério Nero fez a sua escolha, hasteando as suas cores
no mastro de António. Fazendo sair Lívia e o seu recém-nascido
filho de Roma em 41 a. C., chegaram a Perusia (agora Perugia),
na Itália central, onde encontraram a mulher de António, Fúlvia,
e o irmão dele, Lúcio, a espicaçarem o descontentamento popular contra Octaviano entre os italianos que haviam sido desapossados da sua terra25.
Fúlvia, terceira mulher de António, foi uma figura extremaNFOUFDPOUSPWFSTBOBTVBDBNQBOIBDVKPBTTBTTÓOJPEFDBSÈUFS
nas fontes antigas nos dá uma amostra daquilo com que podiam
contar as outras femmes dangereuses da era imperial. Roma era
uma sociedade agressivamente militarista que via a guerra como
uma esfera crítica e exclusivamente masculina de realização.
A presença de uma mulher na linha da frente constituía um anátema, fazendo de Fúlvia um alvo primordial para os opositores
de António, que retiravam capital político do fantasma de uma
mulher a gerir as operações do marido no campo. DescoberUBTBSRVFPMØHJDBTSFDFOUFTFN1FSVHJBEFQSPKÏUFJTEJTQBSBEPT
durante confrontos entre os lados oponentes dão-nos uma ideia
do género de retórica utilizada. Os achados incluíam munições
em que foram gravados insultos depreciativos a visar Fúlvia, slogans como «Estou a apontar à rata da Fúlvia» e «Lúcio António
Careca e Fúlvia, deem o cu»26. A cobertura que dela é feita nos
BOBJTEBIJTUØSJBSPNBOBOÍPÏNVJUPNBJTMJTPOKFJSBEPRVFFTUFT
crus graffitis27. Para um historiador antigo, a satisfação macabra
de Fúlvia com a morte do mais agreste crítico de António, Cícero,
DVKB DBCFÎB FMB FYJHJV RVF MIF GPTTF USB[JEB QBSB RVF QVEFTTF
Annelise Freisenbruch
43
espetar na língua, outrora rápido e sagaz mas agora sem vida,
do grande orador, um gancho de cabelo em ouro – uma variante
feminina e improvisada de um punhal ou espada – cristalizou
a sua reputação como um terrível híbrido com características
masculinas e femininas. O próprio Octaviano foi o alegado autor
de um poema obsceno acerca dela, no qual afirmava que Fúlvia,
frustrada com as relações de António com outras mulheres, intimara Octaviano a «combater-me ou foder-me», um convite que
ele declinou de modo trocista28.
O facto de uma mulher romana se tresmalhar pelo território
tradicionalmente masculino, como Fúlvia parecia estar a fazer,
não teria de conduzir automaticamente à sua condenação. A história ricamente idealizada pela cidade do seu próprio passado
NÓUJDPFTUBWBQPOUVBEBQPSMFOEBTEFNVMIFSFTDPNPBKPWFN
Cloélia, elogiada por resgatar um grupo de reféns femininas ao
rei etrusco Porsena, atravessando a nado com elas o Tibre sob
VNBTBSBJWBEBEFMBOÎBTJOJNJHBTDVKPBHSBEFDJNFOUPQÞCMJDP
se traduziu pela ereção de uma estátua na Via Ápia, uma honra
quase exclusivamente concedida a homens durante o período da
República. Outras mulheres, tanto fictícias como reais, foram
enaltecidas pela sua bravura «masculina» ao suicidarem-se.
"NBJTOPUÈWFMOFTUFHSVQPGPJ-VDSÏDJBDVKBWJPMBÎÍPQPS4FYUP
Tarquínio, filho do rei romano Tarquínio Soberbo, foi o episódio catalisador da queda do domínio monárquico em 509 a. C.
e da fundação da República sobre princípios ostensivamente
EFNPDSÈUJDPT -VDSÏDJB HSBOKFPV VNB BENJSBÎÍP EVSBEPVSB
como modelo de mulher romana por se apunhalar a si mesma
no coração após ter sido violada, não permitindo que o comprometimento da sua castidade levasse a desonra ao seu pai e
ao marido. Havia depois as mulheres que intervinham diretamente para mediarem a paz entre fações masculinas desavindas, como Vetúria e Volúmnia, que em resposta a um apelo de
outras matronas romanas no interior da cidade, negociaram o
afastamento dos portões da cidade do respetivo filho e marido,
Coriolano, quando este ameaçou invadir Roma no século v a. C.;
44
as mulheres dos césares
FBTNVMIFSFTTBCJOBTDVKPSBQUPQFMPTQSJNFJSPTDPMPOPTSPNBnos ameaçou desencadear a guerra entre os recém-chegados e os
TFVTWJ[JOIPTTBCJOPTDVKPTBQFMPTËSFDPODJMJBÎÍPDPOEV[JSBNË
paz. Todas estas histórias foram fixadas em tempos de acentuada
mudança na história romana, quando tiranos eram derrubados
ou frustrados e a paz era restaurada. A mensagem era que, se ao
menos todas as mulheres fossem tão castas como Lucrécia, tão
DPSBKPTBTDPNP$MPÏMJBFUÍPTFOTBUBTDPNP7FUÞSJBF7PMÞNOJB
então Roma nunca cairia nas armadilhas do vício, da corrupção e
do despotismo que a haviam atormentado em vários momentos
da sua história29.
No entanto, e em regra, mulheres como Fúlvia e, mais tarde, a
amante de Marco António, Cleópatra, que se imiscuíam no território político e militar dos homens, eram classificadas como prenunciadoras de um mundo virado de pernas para o ar. A linha
divisória entre a esfera feminina da vida doméstica e o mundo
público dos homens era fixa e ai de qualquer mulher que fosse
apanhada a pisá-la. Uma dessas mulheres extraviadas da era da
república foi Clódia Meteli, citada num discurso de tribunal proferido em 56 a. C. por Cícero, quando defendia o antigo amante
dela, Caélio Rufo, de uma acusação de a tentar assassinar. Cícero,
que defendia que a alegação fora cozinhada pelo irmão de ClóEJB$MØEJPDPNRVFN$ÓDFSPUJOIBKÈIÈNVJUPVNBEJTTFOTÍP
desacreditou Clódia como testemunha ao afirmar que ela integrava um grupo social turbulento, ébrio e sexualmente promíscuo que frequentava o popular lugar costeiro de Baiae, a sul de
Roma. A palavra incriminatória que ele usou foi que ela tinha
«notoriedade», o que implicava que Clódia quebrara a regra não
escrita da sociedade romana, que ditava que o lugar da mulher
era ser vista e não ouvida30.
Os verdadeiros alvos de tal vilipêndio, porém, eram geralmente os homens que logo à partida toleravam a incursão de uma
mulher na esfera pública e que, segundo as definições romanas
de masculinidade, eram por isso vistos como sendo eles próprios
fracos e efeminados, incapazes de conservarem a ordem nas suas
Annelise Freisenbruch
45
QSØQSJBTDBTBT&SBNQFMPNFOPTFTUFTPTTFOUJNFOUPTTVCKBDFOUFT
à descrição de Fúlvia feita por Plutarco como «uma mulher que
não se preocupava nada com a fiação ou o trabalho doméstico, e
não estava interessada em ter poder sobre um marido que fosse
apenas um cidadão privado, mas queria dominar um governante
e comandar um comandante – e consequentemente Cleópatra
devia a Fúlvia os honorários por ensinar António a submeter-se a uma mulher»31. Em acentuado contraste, os epitáfios funerários nos túmulos das mulheres desse período encomiavam as
ocupantes como modelos de desempenho domésticos que, sem
exceção, tinham filhos, amavam o marido, governavam a casa,
fiavam lã e conseguiam manter uma conversa, mas sabiam qual
o seu lugar32. Para a maneira de pensar romana, a dona de casa
que trabalhava a lã era a mulher ideal, moldada à imagem da
heroica mártir Lucrécia que fiava no seu tear quando o violador
a viu pela primeira vez. O contraste entre ela e a descarada Fúlvia
não poderia ser mais acentuado.
No final, a campanha de Fúlvia e Lúcio para incitar a oposição a Octaviano em favor de António foi atacada de surpresa
no começo de 40 a. C., quando as forças de Octaviano montaram cerco ao acampamento deles, obrigando os rebeldes a uma
fuga caótica em que Tibério Nero e Lívia foram apanhados.
O ano seguinte das suas vidas foi passado no exílio peripatético e
a cronologia dos seus vários movimentos a partir desse momento
torna-se incerta. Forçados a dirigirem-se primeiro para Preneste, a leste de Roma, daí seguiram para Nápoles, onde foi por
pouco que não depararam com as forças de Octaviano devido ao
choro de Tibério, que teve de ser passado de mão em mão, entre
Lívia, a ama e outros companheiros de viagem, numa tentativa
de o silenciarem, enquanto caminhavam sub-repticiamente pelo
porto. Ao chegar a Sicília, as esperanças do marido de Lívia que
esperava receber a proteção de outro renegado, Sexto Pompeio,
que usara a ilha como sua base desde que fugira de cena aquando
da derrota do seu pai Pompeio às mãos de Júlio César, foram
esmagadas quando Octaviano começou a fazer propostas de paz
46
as mulheres dos césares
a Sexto Pompeio. Lívia e Tibério Nero tiveram de seguir para a
Grécia, onde Esparta parece ter concedido ao casal de refugiados
políticos um acolhimento caloroso, provavelmente graças às portas abertas pela família claudiana, que tinha direitos adquiridos
OBSFHJÍP2VBOEPPTFVFTDPOEFSJKPGPJEFTDPCFSUPGPSBNPCSJgados a fugir através do incêndio da floresta espartana33.
Assim foi a natureza tumultuosa da primeira viagem de Lívia
pelo panorama mortífero da república tardia. Nos seus detalhes mais expressivos, tal como o chamuscar do seu vestido e
cabelo enquanto corria através das labaredas daquela floresta
de Esparta e os seus esforços frenéticos para silenciar o choro
do filho, leem-se quase como os preliminares da história de um
DBOEJEBUPQPMÓUJDPBNCJDJPTPWÓUJNBEFJOKVTUJÎBFBEFCBUFSTF
contra as probabilidades. É impossível não nos interrogarmos
TPCSFPRVFBKPWFN-ÓWJBBDIBWBEBTVBTJUVBÎÍP/BBVTÐODJB
de testemunho em primeira mão – ou mesmo em segunda –
nunca poderemos saber se ela foi uma cúmplice voluntária dos
PCKFUJWPTQPMÓUJDPTEF5JCÏSJP/FSPPVBQFOBTVNBQBSUJDJQBOUF
QBTTJWBDVKBÞOJDBPQÎÍPTFSFTVNJBBTFHVJSEJMJHFOUFNFOUFOP
encalço do marido. Graffitis de Pompeia datados do século i, em
que mulheres romanas, apesar de privadas do direito de votar,
instigavam ao apoio a determinados candidatos eleitorais, a par
do exemplo ativo dado por matronas republicanas como Fúlvia,
ilustram como as mulheres podiam de facto promover as causas
políticas em favor dos seus homens34. Não obstante o conceito
romano de discurso público como mais um dos elementos-chave
constitutivos da identidade exclusivamente masculina, o protesto
e a rebelião feminina em seu próprio nome não passavam despercebidos. A ocorrência mais famosa deu-se um ano antes do
cerco de Perusia de 42 a. C., quando Hortênsia, filha de um dos
grandes oradores da época, Hortênsio, pronunciou um discurso
contra a imposição pelos triúnviros de um tributo às mulheres
NBJTSJDBTEF3PNBQBSBBKVEBSBQBHBSBHVFSSBDPN#SVUPF
Cássio, um imposto que mais tarde foi parcialmente revogado.
A própria Lívia, agora que o pai estava morto e ela era sui iuris
Annelise Freisenbruch
47
(independente, exceto pela supervisão de um curador que vigiava
alguns dos seus negócios), estava legalmente livre para abandonar Tibério Nero se o quisesse. Em lugar disso, ao permanecer
KVOUPEPNBSJEPFTUBWBBBHJSEFVNBGPSNBRVFBUÏBRVFMFTRVF
BJOKVSJBSBNQPTUFSJPSNFOUFSFDPOIFDFSBNUSBUBSTFEFVNQBQFM
honroso para uma mulher, como o historiador Tácito reconheceu
quando escreveu com aprovação acerca da virtude demonstrada
por mulheres noutros tempos turbulentos que «acompanharam
os filhos na fuga [e] seguiram os maridos para o exílio»35.
Todavia, torna-se evidente que se as circunstâncias não se
tivessem alterado, um casamento prolongado com Tibério Nero,
com todas as suas significativas credenciais, poderia nunca ter
trazido a Lívia mais do que um reconhecimento fugaz nos anais
da história de Roma. Em vez disso, enquanto ela e o marido se
recompunham das adversidades, foi outra mulher que deu por si
TPCPGPDPUFNQPSÈSJPEBQSPKFÎÍPQÞCMJDB
Numa tentativa de colmatar as brechas na sua frágil aliança,
Octaviano e António concordavam agora esquecer as guerras perusianas e estabelecer tréguas. No porto de Brindisi, na
costa adriática de Itália, foram fixados os termos de um tratado
em outubro de 40 a. C., que confirmavam a concessão das províncias orientais do império a Marco António e as ocidentais a
Octaviano, enquanto o terceiro membro, Lépido, foi despachado
para a província de África, bem arredado do centro da ação. Para
selar o acordo, Octaviano agarrou-se a uma página do manual de
negociação do seu tio-avô Júlio César, oferecendo em casamento
ao seu adversário a sua irmã mais velha recentemente enviuvada,
Octávia, que treze anos antes servira de engodo num contrato
semelhante proposto por César ao seu rival Pompeio (embora
FMBUFOIBTJEPQPSFTUFSFKFJUBEB
'ÞMWJBGBMFDFSBEFEPFOÎBOP
início desse ano, quando tentava reunir-se a António na Grécia,
removendo qualquer obstáculo pelo seu lado, e embora o protocolo romano recomendasse que deveriam seguir-se dez meses de
luto após a morte em maio do anterior marido de Octávia, Gaio
48
as mulheres dos césares
Cláudio Marcelo, antes que ela contraísse novo matrimónio, as
necessidades políticas do irmão não podiam esperar. O tratado
e o casamento associado garantiram a paz entre António e Octaviano, com a Octávia de vinte e nove anos a fazer da cola que
conferia firmeza ao pacto36.
Octávia foi, em certos aspetos, a mulher tranquila desta
era da política romana, agora principalmente lembrada como
uma espectadora passiva obrigada ao papel de segundo violino perante Cleópatra, a sua rival mais exótica nas afeições
de António. Na sua tragédia António e Cleópatra, Shakespeare
descreveu-a como tendo «uma conversa piedosa, fria e suave»,
DVKBGSJHJEF[FNQVSSBSJB"OUØOJPQBSBPTCSBÎPTEBTVBjUBÎB
egípcia», e um filme televisivo recente acerca do império romano
retratou-a como uma lastimosa desmancha-prazeres, um peão
prostituído nos planos da sua maquinadora mãe, Ácia37. A reputação de Octávia na antiguidade era bastante mais impressionante. Além de inspirar declarações de devoção do seu irmão
0DUBWJBOPGPJBQSFTFOUBEBDPNPBMHVÏNDVKBCFMF[BIPOSBF
prudência poderia domar com êxito o interesse pelo sexo oposto
EPEFCPDIBEP"OUØOJP"DJNBEFUVEPFMBHSBOKFPVBQMBVTPT
como mãe. Nos três anos que se seguiram a Brindisi, deu à luz
EVBTGJMIBT"OUØOJB.BJPSF"OUØOJB.FOPSBTRVBJTDSJPVKVOtamente com o filho e as duas filhas do seu primeiro casamento,
bem como com os seus dois enteados da relação de António com
Fúlvia, ao todo uma ninhada de sete38. Resumindo, Octávia figurou na mentalidade romana como o antídoto perfeito, passivo e
diligente para mulheres perversas como Cleópatra e Fúlvia, um
QBESÍPNBUFSOBMËTFNFMIBOÎBEF$PSOÏMJBFBMHVÏNDVKPFYFNQMPPVUSBTNVMIFSFTEBTVBHFSBÎÍPTFSJBNFODPSBKBEBTBTFHVJS
Porém, numa importante vertente, o papel criado para Octávia no seu casamento com António representou uma rutura
com o passado. Pouco depois do matrimónio, António mandou
cunhar uma série de moedas de ouro, prata e bronze de casas
da moeda que operavam em várias cidades orientais sob o seu
domínio, retratando-o com a sua nova noiva. Chegaram até nós
Annelise Freisenbruch
49
exemplares minúsculos, do tamanho de uma unha, dessas moedas, onde se veem as efígies de Octávia e António lado a lado, os
retratos do casal impressos individualmente um em cada face ou
DPOKVHBEBNFOUFDPNPTQFSGJTBTPCSFQPSFNTF"FNJTTÍPEFTsas moedas foi um ato poderoso. Além de publicitarem a nova
aliança dinástica que unia as duas metades do império numa
harmonia ostensivamente ditosa, fizeram de Octávia a primeira
mulher viva claramente identificável a aparecer numa cunhagem
oficial romana por direito próprio e, que se conheça, foi a primeira vez que a imagem de uma mulher romana foi usada a par
da do marido para reforçar as suas credenciais políticas39.
A escolha de uma moeda como veículo de estreia pública
de uma mulher romana foi especialmente poderosa. As moedas duplicavam e distribuíam tais imagens a uma vasta escala
e abriam rapidamente caminho pelas palmas das mãos e bolsos dos súbditos de um soberano. A certo nível, o primeiro
retrato público de Octávia foi um caso decididamente tradicional, representando-a como a boa e fiel mulher da lenda romana,
uma serena apoiante do marido. Até mesmo o estilo de penteado
WFJDVMBWBBNFOTBHFNVNBSSBOKPNFUJDVMPTPDPOIFDJEPDPNP
nodus (literalmente, «nó»), em referência ao distintivo rolo de
cabelo puxado severamente para cima sobre a testa. Este rígido
pompadour estava muito em voga tanto entre as mulheres abastadas como entre as menos favorecidas do século iB$QSPKFUBOEP
a sua grave austeridade a imagem apropriada para a mulher e
mãe romana respeitável, e era um estilo de que Octávia nunca se
desviou ao longo de toda a sua vida, pelo menos nos retratos oficiais40. Contudo, apesar da familiaridade confortável do nodus,
as moedas pós-Brindisi perturbavam o status quo que se recusara
anteriormente a contemplar a imagem de uma mulher viva na
iconografia patrocinada pelo Estado. Tinham aparecido retratos
de mulheres em moedas das províncias orientais do império, mas
nunca nas que eram diretamente emitidas pela própria Roma41.
Que o Senado sancionasse a imagem de uma mulher numa
NPFEBDVOIBEBQBSBSFQSFTFOUBSPHPWFSOPEF3PNBKVOUPEPT
50
as mulheres dos césares
seus súbditos era uma inovação espantosa. Octaviano usá-la-ia a
curto prazo para tirar o tapete ao seu adversário42.
Mas, por agora, o efeito visado consistia em recordar aos súbditos a unidade do casal representado e a unidade no âmago do
triunvirato, com Octávia a simbolizar o que cimentava todo o
edifício. Pelo menos durante algum tempo, a ilusão de estes antigos e amargos rivais se comportarem como famílias felizes parece
ter funcionado, e as tréguas acordadas em Brindisi lubrificaram
as águas encrespadas da política mediterrânica. Como parte das
condições de um acordo separado estabelecido por António e
Octaviano com Sexto Pompeio, que montara base na Sicília, foi
permitido àqueles que haviam apoiado este fora da lei contra os
triúnviros que regressassem do exílio sem sofrerem represálias,
uma amnistia que acabou por permitir a Lívia, ao marido e ao
filho deixarem a sua desconfortável vida de fugitivos. Regressaram a Roma em 39 a. C. Todavia, como punição pela deslealdade,
alguns opositores dos triúnviros só veriam devolvido um quarto
dos seus bens confiscados. Tibério Nero estava entre aqueles a
quem este castigo foi aplicado. Tal implicava, sem dúvida, o fim
de quaisquer perspetivas de uma carreira política brilhante para
o marido de Lívia, com uma obscura saída de cena a arrastar o
antigo pretor. Contudo, a vida de Lívia estava prestes a sofrer
uma reviravolta surpreendente43.
Quando António partiu para oriente nesse mês de outubro,
com uma nova mulher a reboque, o seu novo cunhado reavaliava as suas próprias opções matrimoniais. Descendente de
VNDMÍFRVFTUSFSFTQFJUÈWFMNBTBQBHBEPDVKPTMBÎPTDPN+ÞMJP
César através da mãe constituíam o único fundamento da sua
pretensão à fama, o extremamente ambicioso Octaviano carecia
NBJTEPRVFRVBMRVFSPVUSPEFVNDBTBNFOUPWBOUBKPTP"TVB
decisão um ano antes, em 40 a. C., de desposar Escribónia, uma
mulher divorciada por duas vezes e cerca de dez anos mais velha
que ele, fora motivada pelas estreitas ligações da família dela com
o renegado siciliano Sexto Pompeio, com quem o Triunvirato
estava na altura a tentar entender-se. Foi o segundo casamento
Annelise Freisenbruch
51
de Octaviano e seguiu-se ao fim de uma breve – e, afirmou ele,
não consumada – união com a filha de Fúlvia, Claúdia, dissolvida quando ele no início se incompatibilizou com o padrasto de
Cláudia, Marco António. Antes disso, Octaviano contava pelo
menos com um noivado rompido, o que enfatizava a rapidez e
a facilidade de noivado, divórcio e novo casamento entre a elite
romana, num meio em que maridos, pais e irmãos necessitados
EFGPSKBSBMJBOÎBTDPNGBNÓMJBTJOGMVFOUFTVTBWBNBTTVBTQBSFOtes como uma moeda de troca imprescindível44.
Contudo, antes de o ano 39 a. C. findar, numa demonstração impiedosa de como se podiam formar e quebrar facilmente
essas alianças, Octaviano divorciara-se de Escribónia – apenas
poucas horas depois de ela ter dado à luz a filha única de ambos,
Júlia – e convidara a ex-mulher grávida de um dos seus opositores políticos para ir viver com ele, como prelúdio a desposá-la.
A mulher grávida em questão era Lívia. Um ano que ela iniciara
como exilada política encerrava-o como consorte de um dos dois
homens mais poderosos do mundo45.
De que modo este par se encontrou e veio a abandonar os resQFUJWPTDÙOKVHFTUFNTJEPUFNBEFVNBDPOGVTÍPFDPOUSPWÏSTJB
consideráveis. Posteriormente, Octaviano escreveu sobre a sua
decisão abrupta de se divorciar de Escribónia decorrido apenas
um ano de casamento: «Não conseguia suportar a maneira como
ela me censurava46.» Os seus críticos, como Tácito, que observavam retrospetivamente os eventos da posição privilegiada do
século seguinte, afirmaram que, pelo contrário, Octaviano ficou
fascinado e tentado pela beleza de Lívia e a roubara a Tibério
Nero pela força. Cartas rebarbativas de António para o seu rival,
conservadas pelo biógrafo imperial Suetónio, insinuavam que
GPJNPTUSBEBBQPSUBEBSVBB&TDSJCØOJBQPSUFSPCKFUBEPDPN
excessivo vigor a ter uma rival, e que Octaviano era tão devasso
que certa vez seduzira a mulher de um convidado – talvez Lívia,
FNCPSBOÍPGJRVFFYQMÓDJUPoOVNKBOUBSEFTNBODIBOEPMIFP
penteado e fazendo-a voltar corada para a mesa47. Outras fontes, no entanto, retratam Tibério Nero menos como um marido
52
as mulheres dos césares
traído do que como cúmplice complacente, afirmando que ele
chegou a substituir o pai da ex-mulher na cerimónia de casamento, entregando-a ao noivo e participando no banquete subsequente48.
Ainda mais intrigas envolvem o facto de, na altura do seu
TFHVOEPOPJWBEPOPPVUPOPEFB$-ÓWJBKÈFTUBSHSÈWJEBEF
seis meses do seu segundo filho, Druso, que deu à luz em 14 de
KBOFJSPEFB$RVBOEPWJWJBTPCPUFUPEF0DUBWJBOP%JTQÙT
apenas de três dias para recuperar do parto antes da cerimónia
EFDBTBNFOUPBEFKBOFJSPEFB$49. Previsivelmente, a
gravidez de Lívia deu origem a mexericos. A relatada ansiedade
de Octaviano quanto às conveniências, chegando a consultar
sacerdotes acerca da permissibilidade de desposar uma mulher
grávida, não evitou a inevitável especulação acerca da paternidade de Druso, sintetizada num epigrama sarcasticamente espirituoso que gozou de muita popularidade:
Que afortunados são esses pais para quem
O filho permanece apenas três meses no útero!50
As anedotas que rodeiam a união causam perplexidade ao
serem aprofundadas e foram propostas várias teorias numa
tentativa de desfazer o nó narrativo da história. Sugeriu-se, por
exemplo, que pessoas mal-intencionadas próximas de António
poderão ter alimentado os rumores sobre a ilegitimidade de
Druso. Outros argumentam que os próprios filhos de Tibério
Nero poderão ter posteriormente tentado abafar as insinuações
de que o pai era de algum modo um infeliz cornudo, ao afirmaSFNBTVBBRVJFTDÐODJBFNUPEPTPTBSSBOKPT51. Ambas as ideias
são plausíveis, dada a propensão da elite romana para levantar
cortinas de fumo que ocultassem episódios históricos desconfortáveis. Mas por detrás da preservação destas histórias está claraNFOUFFNKPHPPVUSBBHFOEB"RVFMFTRVFMFSBNPVFTDVUBSBN
relatos sobre a tomada de Lívia a Tibério Nero por Octávio estavam a ser convidados a examinarem as credenciais masculinas
Annelise Freisenbruch
53
dos rivais, o eixo em que se travavam todas as batalhas políticas
romanas. Alguns queriam retratar Tibério Nero como o ocupante
do plano moral mais elevado; outros estavam a ser incitados a
concluir que Octaviano era o mais másculo dos dois52.
Pelo menos uma conclusão segura acerca dos motivos para
o casamento de Octaviano e Lívia pode ser retirada. A fertilidade comprovada e a linhagem de Lívia teriam sido trunfos sem
preço para o seu novo marido. O relacionamento de Octaviano
com o ditador assassinado Júlio César abrira-lhe muitas portas
na sua ascensão pela escada da vida pública acima, mas as origens da sua própria família eram decididamente de classe média,
deixando-o vulnerável ao desprezo da aristocracia política de
Roma, rápido a detetar o odor do burguês. O casamento com
Lívia, com a sua ascendência familiar imaculada a ligá-la a duas
das maiores e mais reverenciadas dinastias políticas, os claudianos e os livianos, podia silenciar eficazmente esses críticos. Tais
considerações não podiam estar distanciadas do espírito ambicioso de Octaviano ao virar as suas atenções para a mulher de
um dos seus adversários.
2VFS5JCÏSJP/FSPUJWFTTFPCKFUBEPPVOÍPBUFSTJEPQPTUPEF
lado pela sua mulher em favor do seu rival mais novo, de pouco
lhe teria valido protestar. A sua estrela estava em decadência,
o seu crédito político estava mais ou menos gasto em Roma e
perdera a maior parte dos seus bens devido ao ostracismo – um
acentuado contraste com a ascensão estratosférica de Octaviano,
agora a apenas um passo de ficar na posse de todos os ases do
baralho imperial. Ceder de boa vontade era provavelmente a
melhor opção de que dispunha. Viveu num retiro tranquilo por
mais cinco anos após o divórcio, antes de morrer por volta do
ano 32 a. C., depois de ter nomeado Octaviano como tutor dos
seus dois filhos. Eles tinham vivido com Tibério Nero desde o
divórcio, conforme era prescrito pela lei romana, que normalmente concedia a custódia dos filhos ao pai53. Foi o pequeno
Tibério, com nove anos, que trepou para o palanque dos oradores no fórum romano para proferir o elogio fúnebre do pai.
54
as mulheres dos césares
Escribónia retirou-se para a obscuridade e parece nunca ter
voltado a casar, embora tivesse vivido para lá dos oitenta anos,
uma idade muito avançada na Antiguidade. Não é claro se a
sua pequena filha, Júlia, foi autorizada a ficar com a mãe ou se
ficou com o pai; apesar de a lei conceder automaticamente ao
pai a guarda das crianças, permitia-se que estas ficassem com
as mães quando fosse conveniente. Dada a infância de Júlia e a
agenda política de Octaviano, é provável que a menina tivesse
ficado ao cuidado da mãe54. No entanto, a história de Escribónia
cruzar-se-ia dramaticamente com a de Júlia mais para diante.
O retrato hostil que Octaviano traçou da sua ex-mulher como
uma enervante megera continua a ser a sua mais influente descrição, mas outros na Antiguidade foram maiores admiradores.
O filósofo Séneca chamou-lhe gravis femina (uma mulher «séria»
ou «digna») pelo conselho robusto que deu muitos anos depois
a um sobrinho-neto caído em desgraça, sobre como enfrentar a
sua punição como um homem. Noutro contexto, o elegiógrafo
de uma das suas filhas de um casamento anterior referiu-se-lhe
MJTPOKFJSBNFOUFDPNPjRVFSJEBNÍF&TDSJCØOJBx55. Tratava-se de
um epíteto recorrente no vocabulário do obituarista, contudo a
lealdade incondicional de Escribónia como mãe acabou por ser
de facto o seu mais notável legado.
Após a morte do pai em 32 a. C., o lar dos filhos de Lívia,
Tibério e Druso, este com cinco anos, veio a ser uma elegante
– ainda que relativamente modesta – propriedade em pedra cinzenta, no monte Palatino, ocupada pela sua mãe de vinte e seis
anos e pelo novo padrasto. A casa fora confiscada por Octaviano,
durante a vaga de proscrições no rescaldo da batalha de Filipos,
à família de Quinto Hortênsio, o famoso orador e grande rival
EF$ÓDFSPRVFBDVNVMBSBVNBGPSUVOBOBTVBDBSSFJSBKVSÓEJDBF
legara depois a moradia à sua filha Hortênsia e ao filho Quinto
Hortênsio Hórtalo. Ambos os filhos eram ferozes opositores de
Octaviano. Hortênsia, que herdou o dom do pai para a oratória,
tornou-se uma heroína para as mulheres de espírito republicano
Annelise Freisenbruch
55
do século xviii, como a historiadora britânica Catherine Macaulay (que era muito admirada pela primeira-dama Abigail Adams
e outras mulheres de letras americanas), pela sua tomada de posição contra Octaviano e os seus planos para tributar as mulheres
romanas abastadas em 42 a. C. O irmão de Hortênsia morreu em
Filipos, a combater ao lado de Bruto e Cássio. Ao adotar a casa da
família deles como sua, Octaviano não só esfregava sal nas suas
GFSJEBTNBTQVCMJDJUBWBPTEFTQPKPTEBTVBWJUØSJBFN'JMJQPTEB
maneira mais ruidosa possível.
Sobreviveram escassos vestígios dos passos de Lívia como
mulher de Octaviano ao longo da década seguinte. Podemos,
porém, esboçar o quadro de um estilo de vida faustoso a que,
como matrona romana que se movia nos principais círculos da
sociedade republicana romana, ela tinha acesso. Fontes como
a correspondência de Cícero fornecem uma ideia dos prazeres
domésticos e da ambiência social glamorosa de que gozavam
as mulheres em voga e bem relacionadas, como a sua própria
NVMIFS5FSÐODJBDVKBFOPSNFGPSUVOBQFTTPBMGPJVTBEBQBSB
BKVEBSBGJOBODJBSBDBSSFJSBQPMÓUJDBEF$ÓDFSPFBTVBGJMIB5ÞMJB
FNUFNQPTDPSUFKBEBQPS5JCÏSJP/FSP57.
Escritas nas duas décadas que precederam o seu assassínio
brutal em 43 a. C., as cartas de Cícero, dirigidas principalmente
ao seu confidente mais íntimo Ático, compõem um retrato prazenteiro de uma idílica vida em família. Escutamos referências
a Terência e Túlia em indolentes passeios estivais pelas propriedades da família à beira-mar, bem providas de pessoal, em
estâncias costeiras como Âncio, a sul de Roma, um destino de
férias particularmente popular entre os plutocratas do império. Também a vida citadina proporcionava imensas distrações.
Embora lhes estivesse interdita a entrada em edifícios públicos
como o Senado, as mulheres romanas gozavam de uma relativa
liberdade de movimentos, sobretudo quando comparadas com
as suas antecedentes atenienses, que eram mulheres sequestradas. Para além das reuniões religiosas só para mulheres, como
os rituais da deusa Bona Dea, havia muito entretenimento para
56
as mulheres dos césares
QSPDVSBS SFQSFTFOUBÎÜFT UFBUSBJT F KPHPT QÞCMJDPT FN RVF BP
contrário do que viria a acontecer em anos posteriores, ainda era
QFSNJUJEPËTNVMIFSFTTFOUBSFNTFKVOUPEPTIPNFOT5BJTPDBsiões eram oportunidades para socializarem com amigos, além
de assistir a espetáculos, como o poeta subversivo Ovídio obserWPVKPDPTBNFOUFOVNQPFNBBMHVOTBOPTEFQPJTFTDSFWFOEP
que o circo era um bom lugar para iniciar uma relação amorosa e
aconselhando os seus leitores masculinos a tentarem tornar mais
BSEFOUFPPCKFUPEBTVBBGFJÎÍPDPNVNQSPHSBNBEFDPSSJEBTB
fim de lhes conquistar os sorrisos58.
)BWJBEFQPJTPTKBOUBSFTGFTUJWPTQBSBQMBOFBSBDPMIFSFDPNparecer, onde, em contraste com as suas irmãs atenienses clássicas, as mulheres romanas respeitáveis comiam reclinadas em
divãs ao lado dos homens, embora se franzisse o sobrolho ao seu
consumo excessivo de vinho59. Uma das nossas poucas referências ao paradeiro de Lívia durante os anos 30 informa-nos que
em 36 a. C. ela, os filhos e Octaviano foram autorizados a dar
um banquete público anual para celebrar a vitória final sobre
Sexto Pompeio, com quem qualquer ilusão de tréguas fora destruída pelo divórcio de Octaviano e Escribónia. Sucederam-se
vários embates navais antes da derrota de Sexto pelo tenente de
Octaviano, Marco Agripa, na batalha de Naulocus. Se este banquete de celebração tivesse obedecido ao protocolo tradicional
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e Octávio os homens60. Uma vez que os homens podiam com
decoro comparecer sozinhos a festas, mas as mulheres tinham
de ser acompanhadas por alguém do sexo masculino, é provável que fosse frequente os convidados masculinos ultrapassarem
os femininos, e como os seus congéneres nas festas mistas do
século xix, as mulheres eram exortadas a confinarem as suas
observações a assuntos aceitáveis e não tentarem insinuar-se nas
conversas masculinas que incidissem em tópicos como a obra
dos poetas mais em voga. Por vezes, porém, era-lhes permitido
deixarem-se ficar para os entretenimentos que se seguiam ao
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Annelise Freisenbruch
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de anões, embora nalguns setores se reprovasse que as mulheres
assistissem a tais espectáculos61.
Tal como Terência, a rotina diária de Lívia decorreria em
grande medida em torno da do marido, que era dominada, pelo
menos durante a primeira metade do dia, pela salutatio, a obrigatória receção só para homens que se iniciava com a aurora
e testemunhava um caudal constante de amigos e clientes a
atravessarem a soleira de homens proeminentes, como Cícero
e Octaviano, em busca do seu auxílio ou aconselhamento em
várias matérias pessoais ou de negócios. O próprio Cícero afirNBWB EFUFTUBS FTTBT PCSJHBÎÜFT EJÈSJBT QSPUFTUBOEP KVOUP EF
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e dos filhos. Entretanto, esperava-se que as mulheres de elite passassem a manhã a delegar tarefas ao pessoal e a supervisionarem
os trabalhos da casa. Não se sabe ao certo se, no decurso da fase
tardia da república, as mulheres na posição de Lívia e Terência
recebiam as suas próprias delegações de visitantes durante a salutatio matinal, embora Lívia indubitavelmente o tivesse feito na
era imperial. Temos, contudo, conhecimento de convites feitos
por mulheres a outras mulheres para que lhes fizessem visitas de
cortesia. Ocasionalmente, as mulheres chegavam até a receber
visitantes masculinos de confiança sem acompanhante, como
aconteceu com a mulher de Ático, Pília, quando teve de empréstimo a casa de campo de Cícero no lago Lucrino, certo verão,
para umas férias sem o marido nem a filha62.
As famílias elegantes de Roma reservavam tipicamente várias
propriedades para seu uso privado, mudando-se no começo da
primavera das casas citadinas de inverno para as suas luxuosas
moradias nas costas das zonas turísticas mais em voga, como
Âncio, e retirando-se nos meses abrasadores do verão para a
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encostas estavam salpicadas de refúgios estivais dos privilegiados63. Como ilustram as cartas de Cícero, era perfeitamente
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de Itália entre casas de família sem a escolta dos maridos. Sabe-se
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as mulheres dos césares
que certas mulheres abastadas desse período, incluindo Terência, Fúlvia e a própria Lívia, foram elas mesmas proprietárias de
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conhecida como Prima Porta, a quinze quilómetros da cidade,
na Via Flamínia, uma das principais estradas de saída de Roma
nem direção a norte. Uma significativa anedota localiza-a aí não
muito depois do seu casamento com Octaviano.
Descoberta pela primeira vez em 1596, foi só com as escavações do esqueleto desta moradia em finais do século xix que se
estabeleceu a ligação entre ela e uma propriedade na região que
se sabe ter pertencido a Lívia, validada em parte pela descoberta
ali feito da chamada Prima Porta Augustus, a mais famosa estátua
existente do marido de Lívia64. Instalada numa colina elevada, a
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vista magnífica para lá do vale do rio Tibre, na direção de Roma,
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de santuários. Devido à pedra vermelho-ferrugem do terreno
local, que também foi usada na construção da casa de Lívia, na
Antiguidade a Prima Porta era chamada Saxa Rubra, ou Rochas
Vermelhas, enquanto os antigos conheciam a própria villa pelo
nome de ad Gallinas Albas, que se traduz coloquialmente por
Casa da Galinha Branca65.
Os proprietários de villas romanas privilegiavam a frescura
e a sombra nas suas casas das vertentes. Fontes com cascatas e
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e os proprietários preferiam situar as alcovas e as zonas de refeição no meio da casa, afastadas do calor das paredes exteriores66.
Havia, ainda assim, maneiras de deixar o exterior penetrar no
interior, como demonstra a notável descoberta, em 1863, na
villaEF-ÓWJBEFVNBWBTUBTBMBEFKBOUBSTVCUFSSÉOFBEFWFSÍP
(triclinium), medindo pouco menos de seis por doze metros. As
paredes estavam pintadas com a extraordinária ilusão interior de
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Annelise Freisenbruch
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papoilas, rosas de Damasco, pervincas e crisântemos. Sobre uma
paleta de fundo de um cálido tom de turquesa, melros, rouxinóis, perdizes e tordos esvoaçavam entre os ramos de limoeiros,
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numa balaustrada de mármore e um belo relvado cercado por
uma vedação de canas e vime. Abrigada do calor abrasador do
verão por este fresco aposento subterrâneo, acessível por uma
íngreme escadaria, Lívia teria em tempos desempenhado o papel
de anfitriã política dos convidados do marido, vindos das moraEJBTWJ[JOIBTPVUFOEPWJBKBEPEBWJ[JOIB3PNB&MBQPEFSÈBUÏ
ter sido responsável por encomendar a conceção única e a decoração do triclinium67.
Os visitantes que observarem mais de perto este luxuriante
mural botânico e ornitológico, agora iluminado na atmosfera
refrescada a ar condicionado do Museo Nazionale em Roma,
encontrarão um pormenor intrigante. Aninhados entre as palmeiras e pinheiros meticulosamente recriados nas paredes da
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romanos, mas com uma ressonância particular neste caso. A presença de loureiros no esquema decorativo, a par da referência
a galinhas brancas no nome da villa, ecoava um famoso augúrio que se dizia ter recaído sobre Lívia enquanto permaneceu
na residência, um augúrio que constituía um elemento-chave da
história autoglorificante de vencedor do marido nos anos que se
sucederam a Ácio.
Conforme é narrada por mais de uma fonte da Antiguidade, a
história conta que, pouco depois do seu matrimónio com Octaviano, Lívia estava de regresso à villa quando de súbito uma cria
de galinha branca, deixada cair do bico de uma águia que passava
por cima, lhe caiu no colo. Preso no bico da galinha estava um
raminho de loureiro que Lívia retirou e decidiu plantar no solo,
aconselhada pelos áugures. E enquanto a galinha produziu uma
saudável prole de pintos, o raminho de loureiro medrou num
viçoso matagal de árvores. A ave a cair a prumo do céu para o colo
de Lívia parece bom demais para ser verdade, mas escavações
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as mulheres dos césares
recentes no local da villa indicam que o bosque de loureiros talvez fosse menos mítico. Foram encontrados potes perfurados de
plantação em barro, com a configuração ideal para cultivar loureiros, no recanto sudoeste da encosta em Prima Porta, cozidos
nos fornos da própria villa68.
&NCPSBPQSØQSJPNBUBHBMEFMPVSFJSPTUFOIBBUÏIPKFFTDBpado aos escavadores, a ideia da sua existência serviu de talismã
poderoso a gerações de herdeiros de Lívia e Octaviano. Em anos
posteriores, quando os imperadores romanos deles descendentes desfilavam em procissões triunfais, dizia-se que os ramos
de louro que exibiam bem alto e com os quais eram coroados
haviam sido colhidos das árvores da villa69. Enquanto os loureiros continuassem a crescer na villa de Lívia, a dinastia encabeçada pelo seu marido continuaria a vingar e o loureiro, uma
árvore associada ao deus romano Apolo, tornar-se-ia a insígnia
de Octaviano, um emblema do seu direito a governar de atribuição divina. Deste modo, Lívia, ainda uma adolescente em
termos históricos, viu ser-lhe atribuído o seu primeiro papel de
importância para desempenhar como castelã no mito de vitória
do marido. A sua figura inculcar-se-ia cada vez mais no espírito
do público romano ao longo dos anos seguintes.
Contudo, com a década a concluir-se, Lívia continuou a
desempenhar um papel de retaguarda relativamente à sua
cunhada nos anais da época. Octávia colhia ainda os aplausos
pela sua intervenção como mediadora entre os homens mais
poderosos do império. Na primavera de 37 a. C., por volta da
altura em que ela trazia no ventre a sua filha mais nova, Antónia
Menor, foi chamada a extinguir mais um incêndio entre o marido
e o seu irmão e a atuar como intermediária na renegociação do
acordo de partilha do poder entre ambos no golfo de Tarento, no
sul de Itália70. Recordando o papel desempenhado pelas lendárias pacificadoras Vetúria, Volúmnia e as Sabinas, comentadores antigos do novo tratado relatam que foi somente através da
diplomacia serena de Octávia que se alcançou um compromisso
aceitável, pelo qual António e Octaviano aceitavam emprestar
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