Medicina na mitologia grega

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Medicina na mitologia grega
Medicina na mitologia grega
Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
Vênus de Milo, modelo grego de beleza – e de saúde.
A história das mentalidades assinala que a relação entre a
Medicina e a compreensão mítica da realidade se perde no
tempo. É impossível separar os muitos mitos relacionados ao
entendimento que as pessoas fazem da saúde e da doença. É
possível que esse pressuposto esteja vinculado ao apoio
oferecido pelos mitos para apaziguar a angústia pessoal e
coletiva nas sociedades que ainda não conseguem explicar de
outra forma as contradições da vida e da morte.
É importante assinalar que os mitos com as respectivas
metamorfoses nascem da relação com o mundo da natureza
empírica, mas acima do meramente empírico.
As primitivas relações míticas do homem com outros animais, na
pré-história, resultaram na valorização do sangue como o mais
importante elemento simbólico. Posteriormente, depois do
sedentarismo dos caçadores-coletores, o sangue foi substituído
pelas novas relações com a terra cultivada, quando ocorreu o
deslocamento dos mitos de origem em direção aos valores dos
frutos da terra.
A lenda do guaraná dos índios maués, no Amazonas, tratando a
fruta como remédio para todos os males, é um entre muitos
exemplos de como os mitos de origem podem se relacionar com as
mentalidades, sustentando, durante centenas de anos,
explicações pontuais da saúde e da doença, da vida e da morte.
Nesse sentido específico, a construção dos mitos junto à terra
cultivada contribuiu para fortalecer o uso das plantas na
busca da saúde.
Muitos traços dessa mitologia passando do sangue à terra
cultivada, como elementos essenciais à sobrevivência dos
homens e das mulheres, evoluíram da Epopeia de Gilgamesh, dos
babilônios, à gênese judaico-cristã, passando pela Yebá beló,
a lenda dessana da criação do Sol.
Apesar da melhor compreensão da transformação do pensamento
mítico e das incontáveis metamorfoses, a dificuldade da
interpretação aumenta na proporção do tempo passado.
No Ocidente, a partir do século VI a.C., na Grécia, é possível
construir, com alguma segurança, um perfil mítico da Medicina,
em torno de metamorfoses que perduram até os dias atuais.
Na mitologia grega, a Medicina começou com Apolo, filho da
união de Zeus com Leto. Inicialmente, Apolo era considerado
como o deus protetor dos guerreiros; depois, foi identificado
como Aplous, aquele que fala verdade. Esse deus curava as
pessoas purificando a alma por meio de lavagens e aspersões e
remédios obtidos das plantas medicinais. Por essa razão, Apolo
era considerado como o deus que lavava e libertava o mal.
Um dos seus filhos, Asclépio recebeu educação do centauro
Quíron para ser médico. A escolha do centauro não foi por
acaso; ocorreu porque dominava os saberes da música, magia,
adivinhações, astronomia e Medicina. Além dessas habilidades,
Quíron possuía incomparável destreza: manejava com a mesma
habilidade o bisturi e a lira.
Nos muitos templos espalhados nos territórios sob influência
grega, Asclépio, o deus da Medicina grega, era celebrado em
grandes festas públicas, no dia 18 de outubro.
Asclépio conquistou fama inimaginável: demonstrava a
delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do
cirurgião. Os doentes que não obtinham a cura em outros
oráculos procuravam os milagres desse deus taumaturgo. Mais
cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as
tentas para drenar as feridas. Chegou a ressuscitar os mortos
e por ordem de Zeus, temendo que a ordem do mundo fosse
transtornada, foi morto com os raios dos Ciclopes.
Asclépio deixou duas filhas e dois filhos. As filhas: Hígia,
celebrada como a deusa da saúde perfeita; Panaceia, como
vínculo das relações míticas com os frutos da terra cultivada,
curava todas as doenças por meio das plantas medicinais. Os
filhos, Machaon e Podalírio, os famosos médicos guerreiros,
descritos por Homero, se destacaram recuperando a saúde dos
guerreiros feridos na guerra de Troia.
Coube a Panaceia continuar a linhagem de médicos, fazendo do
seu filho Hipocoonte, um médico famoso e ancestral de
Hipócrates.
Existem muitas comprovações arqueológicas das dádivas de
agradecimentos dos doentes para Asclépio. Especialmente, na
ilha de Cós, onde floresceu a Escola Médica de Hipócrates, na
Grécia, foram encontradas várias esculturas com o nome do
doente a descrição da doença e da cura obtida. Outras
esculturas contendo o nome de Asclépio, produzidas entre os
séculos 6 e 2 a.C., contêm a serpente enrolada num bastão.
O simbolismo mítico da serpente ligado à Medicina já estava
presente na civilização babilônica, dez séculos antes da
formação da polis grega. Existe no Museu do Louvre, em Paris,
um vaso de cerâmica encontrado na região de Lagash,
representando o deus da cura babilônico – Ningishida – duas
serpentes entrelaçadas.
De modo geral, os mitos que envolvem a serpente ligam-se à
transcendência da morte. Entre as mais conhecidas explicações
para entender a relação da Medicina com a serpente se
destacam: a serpente pode viver em cima e embaixo da terra,
atuando como mediador entre os dois mundos, e a capacidade da
serpente para mudar a pele de tempos em tempos, encenando o
renascimento. Esta última interpretação está relatada no Rig
Veda (1.79,1), no qual os Adityas são descritos como os
descendentes das serpentes, que, ao perderem a pele velha,
venceram a morte e adquiriram a imortalidade.
Após a conquista romana da Grécia, Asclépio foi latinizado
como Esculápio e as festas de celebração desse deus curador
foram mantidas no dia 18 de outubro.
Com a cristianização de Roma, a partir de Constantino, no
século 4, as festas populares comemorando o poder curador de
Asclépio, no dia 18 de outubro, continuaram e se espalharam na
Europa cristã.
O poder eclesiástico romano, sem força para interromper essa
festa greco-romana, decidiu que o dia 18 de outubro, marcado
pelas celebrações de Asclépio e Esculápio, fosse associado ao
nascimento de São Lucas, o Evangelista médico.
A serpente de Asclépio se enrolou na cruz cristã e formou um
dos mais belos sincretismos da história da humanidade. A
primeira, símbolo da imortalidade embaixo da terra; a cruz,
como a representação do inatingível acima da terra, fecham o
ciclo mítico pendular entre o desconhecido situado acima da
cabeça e abaixo dos pés do homem.
É possível que alguns dos médicos que se reúnem, nos dias
atuais, para festejar a Medicina no dia 18 de outubro,
desconheçam que continuam celebrando Asclépio.
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Asclépio, com a serpente, e os filhos Hígia, Panaceia, Machaon
e Podalírio.
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