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Como ler Jean-Jacques Rousseau (Como ler filosofia) by José Benedito de Almeida Junior [de Almeida Junior, José Benedito] (z-lib.org)

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Índice
Introdução
Parte 1
Capítulo 1 - Condenado em Paris e Genebra
Capítulo 2 - Infância e juventude
Capítulo 3 - Enfim, a celebridade
Capítulo 4 - Os últimos anos
Parte 2
Capítulo 5 - O discurso sobre a desigualdade
Reações ao Discurso sobre a desigualdade
Conclusão
Capítulo 6 - O contrato social
O pacto social
Soberano
Vontade geral
Governos
Religião civil
Capítulo 7 - Julie ou a Nova Heloísa
Capítulo 8 - Emílio ou da Educação
Os cinco livros
Livro 1
Livro 2
Livro 3
Livro 4
Livro 5
A educação da natureza
A educação intelectual
Educação moral
Sofia, ou a mulher. A educação feminina
A profissão de fé do Vigário de Saboia. A educação religiosa.
Emílio e Sofia, ou os solitários
Epílogo
Referências
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Introdução
Provavelmente, o amigo leitor já deve ter ouvido falar em Rousseau. Em geral, é
lembrado por ter defendido a ideia de que “o ser humano é bom por natureza e que é
a sociedade quem o corrompe”. Podemos dizer que essa frase resume, de forma
adequada, seu pensamento; no entanto, é preciso entender quais argumentos
sustentam essa tese.
O que o amigo leitor talvez não tenha ouvido falar sobre Rousseau é que sua vida
foi cheia de aventuras, dificuldades, conquistas, não parecendo em nada com a vida
de um filósofo, como estamos acostumados a imaginar: sentado em seu escritório,
“em sua torre de marfim”, isolando-se do mundo para pensar sobre ele; ou ainda, um
douto acadêmico, vivendo entre livros de autores diversos, passando a vida a não
pensar, senão pela cabeça alheia. O nosso filósofo viveu entre os homens de seu
tempo: artistas, intelectuais, pessoas da corte, camponeses; conheceu grandes
dificuldades financeiras e momentos de relativa tranquilidade.
Este livro será dividido em duas partes: na primeira, apresentaremos o homem
Rousseau, como ele viveu e a importância que as situações existenciais pelas quais
passou exerceram na composição de suas obras. Tal proposta é, ao mesmo tempo,
fácil e complexa. Fácil porque Rousseau escreveu mais de uma autobiografia: As
confissões; Rousseau, juiz de Jean-Jacques e Os devaneios do caminhante solitário;
além das cartas, que formam um volume considerável de material de pesquisa, sendo
as Cartas a Malesherbes o conjunto mais importante. A complexidade da tarefa
reside no fato de que deveremos selecionar algumas informações, em meio a
inúmeras, sobre as situações de sua vida: pessoas com quem se relacionou, seus
sentimentos, suas faltas, seus sucessos, os lugares onde morou, os motivos que o
levaram a escrever suas obras.
A segunda parte deste livro apresentará quatro das principais obras de Rousseau:
O discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens;
Contrato Social; Julie ou a Nova Heloísa e Emílio ou da Educação. Nessa etapa,
interessa-nos somente a elaboração dos conceitos, a argumentação, a articulação de
seu pensamento em suas obras, em suma, enquanto a primeira parte oferece uma
apresentação das relações entre “vida e obra”, a segunda nos traz uma apresentação
das relações “entre as obras”, analisando alguns dos principais conceitos de
Rousseau.
Espero que nosso trabalho agrade ao leitor e que seja um estímulo para futuras
leituras de Rousseau, em particular, e dos filósofos em geral.
Jean-Jacques Rousseau não se formou nem nos colégios, nem em academias; não
foi, exatamente, autodidata, pois estudou com mestres das mais diferentes áreas:
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latim, música, botânica, química, aritmética, entre outras. Sua infância e adolescência
foram marcadas pelas leituras das obras dos grandes historiadores Suetônio, Heródoto
e aquele que exerceu maior influência em seu pensamento, Plutarco; além de
romances que estimularam sua imaginação, como Robinson Crusoé, de Daniel Defoe.
Para Ernst Cassirer, vida e obra de Rousseau estão profundamente ligadas. Para ele:
“Estes dois aspectos são tão intimamente ligados que toda tentativa de dissociá-los
comete uma violência à pessoa e à obra (CASSIRER, 1987, p. 13).
Rousseau buscou sempre a liberdade. Em relação aos meios de sobrevivência, não
se sentia à vontade tendo de garantir seu sustento trabalhando diretamente com algum
poderoso de sua época. Quando pôde, escolheu suprir suas necessidades com os
recursos oriundos de suas obras e também como copista de partituras, trabalho
autônomo que lhe dava prazer e não o colocava na dependência de ninguém em
particular. Em relação ao seu pensamento, não aceitou a autoridade ancorada em
títulos acadêmicos ou de nobreza, assim, declarou de modo corajoso no prefácio do
Emílio: “E se por vezes adoto o tom afirmativo, não é para influir no espírito do
leitor, e sim para lhe falar como penso. Por que proporia em forma dubitativa aquilo
de que pessoalmente não duvido? Digo exatamente o que se passa no meu espírito”
(1992,
p. 6). Mais adiante, na mesma obra afirmou:
Leitores, lembrai-vos sempre de que quem vos fala não é um sábio nem um filósofo, e sim um homem
simples, amigo da verdade, sem partido, sem sistema; um solitário que, vivendo pouco com os homens,
tem menos oportunidades de se imbuir de seus preconceitos e mais tempo para refletir sobre o que o
impressiona quando com eles vive (1992, p. 101).
Esse parágrafo nos remete à frase que melhor define Rousseau, escrita no Emílio:
“Leitores vulgares, perdoai meus paradoxos; é preciso fazê-los quando se reflete;
prefiro ainda ser homem a paradoxos do que homem a preconceitos” (1992, p. 79).
Este é o melhor retrato de Rousseau: não temeu dizer, em Paris, que as ciências e as
artes reduziram o apreço dos homens pela honra e pela cidadania; que, para a
educação, trata-se mais de perder tempo do que ganhar; que os caraíbas são metade
mais felizes do que os europeus.
Para seu próprio dissabor, na maior parte das vezes, não soube calar o que pensava
e sentia. Em determinado momento definiu a si mesmo como um “coração de cristal”,
não somente por amar a transparência, mas, acima de tudo, por não poder ser
diferente: “Viram que, durante toda minha existência, o meu coração, transparente
como o cristal, nunca pôde esconder, por um minuto inteiro, um sentimento um
pouco mais ardente que ali se refugiasse” (1965, p. 476).
Starobinski (1991) explicou bem os inúmeros significados desse amor pela
transparência. O teórico observou que, para Rousseau, é nas mãos do homem que
tudo degenera (citando o Emílio), e não no coração. Ao menos no dele, Jean-Jacques,
pois, como afirma várias vezes, cometeu uma série de erros, de equívocos, mas seu
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coração não estava tomado pelos vícios. A transparência se opõe aos obstáculos,
assim como a liberdade do campo aberto se opõe à da cidade.
Quando expusermos, na primeira parte, algumas peripécias de sua itinerância pela
vida, veremos Rousseau falar de dois assuntos que estarão presentes em sua obra o
tempo todo, talvez com exceção única do Contrato social: a vida na sociedade e os
amores. Sendo um homem de seu tempo, frequentou salões. Segundo Badinter:
Manter um salão foi a atividade mais comumente procurada pelas mulheres. Sinal de sua liberdade, pois
elas podiam receber a quem quisessem, era também a ocasião de verificar seu poder e interesse pelas suas
pessoas. Não sendo mais a Corte, desde o fim do reinado de Luís XIV, o lugar exclusivo da vida mundana,
algumas mulheres tentaram recriar em torno de si minúsculas cortes. À maneira do Rei Sol, esses
pequenos astros procuravam atrair para sua órbita o máximo de personagens notórios. A qualidade dos
convidados testemunhava seu poder de atração (2003, p. 36).
Assim, acompanharemos Rousseau, ora sob a proteção de Madame de Warens, ora
sob Madame Dupin, ora sob Madame d’Épinay, Madame Luxembourg e outras. O
solitário Jean-Jacques via-se em meio à sociedade e ainda mais, obrigado a participar
dos jantares e reuniões nas quais, muitas vezes, não se sentia bem, porque, no jogo
social em que as máscaras contam mais do que aquilo que as pessoas realmente
sentem e pensam, sua tendência à transparência fazia dele um alvo certo para as
intrigas. No Discurso sobre as ciências e as artes, inaugurou o tema que continuaria
perseguindo em outros trabalhos: a diferença entre ser e parecer; entre aquilo que se
diz e o que se faz.
Um episódio significativo de sua vida pode ser conhecido por meio da narrativa de
um de seus perseguidores, o Barão d’Holbach; evidencia o apreço de Rousseau pela
transparência e seu mal-estar perante os costumes dos homens de letras. Um jovem
padre, autor de uma tragédia, apresentava sua composição no salão do Barão
d’Holbach, no qual estavam presentes Grimm, Diderot, Rousseau, o próprio Barão e
outros ilustres convidados. Como, durante a apresentação, parte dos convidados
estava debochando do jovem, Rousseau não se conteve e levantando-se disse: “Sua
peça e seu discurso não valem nada, todo mundo está caçoando do senhor, saia daqui
e volte para a sua paróquia!” (MATOS, 2009, p. 21). O Barão d’Holbach, no registro
de suas memórias, acreditava que a raiva de Rousseau fosse momentânea, pois ele
abandonou furioso o salão; porém, desde então, ela só cresceu. O que teria ofendido
Rousseau? Alguma passagem da tragédia composta pelo jovem padre? Não. O que o
ofendeu fora a atitude de seus colegas que zombavam cruelmente de uma pessoa.
Dentre outros assuntos que vieram a se tornar um dos mais importantes para o
nosso autor, está, sem dúvida, o amor. Rousseau olhava com certa indignação a
instituição social dos amores clandestinos que, àquela época, eram aceitos por todos;
desde que não fossem públicos, mas ocultos em alcovas. Assim, vemos a expressão
“Madame Fulana (sobrenome do marido), amante de Beltrano” com frequência. A
maior paixão de Rousseau, Sophie d’Houdentot, tinha por amante o jovem Saint6
Lambert. Rousseau perdoava-lhe a adesão ao costume da época, pois seu casamento,
como muitos, fora arranjado, e não havia qualquer chama de amor entre ela e o
marido, tendo sua honra salva por sua “fidelidade ao amante”. Rousseau aceitou o
mesmo costume, em outro momento, e até certo ponto, por parte de Madame de
Warens, sua “mamãe” e primeira protetora.
Quanto à educação, vemos Rousseau apontar constantemente, no Emílio e em
Julie ou a Nova Heloísa, que, embora a educação coubesse aos pais, as famílias não
estavam cumprindo esse dever sagrado. As mulheres de posses renunciavam à tarefa
de cuidar dos filhos e de outros deveres domésticos. Sobre esse assunto, Badinter
afirma: “O mínimo que se pode dizer é que o ideal materno e caseiro não estava em
moda. Mesmo para as burguesas mais favorecidas era repugnante cuidar de seus
filhos e realizar seus deveres domésticos” (2003, p. 35). Da mesma forma, o amor
conjugal também não estava em moda: “Como a libertinagem substituíra a paixão,
que se tornara fora de moda, como o amor conjugal ainda não era de uso [...]” (2003,
p. 35).
Como dissemos, Rousseau escreveu muito sobre si, em suas autobiografias
Confissões, Rousseau, juiz de Jean-Jacques: diálogos e Devaneios do caminhante
solitário. Mas por que o fez?
Quando começou a ser perseguido pelos inimigos, alvo de intrigas, percebeu que
dele falavam pelas costas. Resolveu, então, dizer a verdade toda: quem ele era, o que
fez e o que a ele disseram ou fizeram, tudo por escrito, para mostrar que nada tinha a
esconder da sociedade e, se era para falarem de sua vida, de suas atitudes e,
especialmente, de suas faltas, então, ele mesmo o faria. Assim, leu as Confissões nos
salões, até que Madame d’Épinay o impediu, por meio da justiça, que fizesse leituras
públicas.
Acompanhar essas autobiografias nos ajuda a entender a gênese das obras de
Rousseau, mas não é o suficiente para compreendê-las totalmente. Embora o estudo
da biografia nos faça compreender alguns elementos do contexto no qual as ideias
foram desenvolvidas, um segundo passo faz-se necessário para entendermos a
complexidade do universo conceitual no qual essas ideias estão imersas. Assim, como
dissemos, na segunda parte deste trabalho, dedicar-nos-emos a analisar os conceitos e
os princípios que constituem algumas de suas obras fundamentais. A escolha dessas
obras é dirigida pelo próprio Rousseau em uma passagem das Confissões, quando se
queixa da censura imposta às obras de 1762:
Tudo o que há de atrevido no Contrat social já surgira antes no Discours sur l’Inégalité; tudo o que há de
audacioso em Émile já o era em Julie. Ora, essas afirmativas audaciosas não excitaram nenhum escândalo
contra as duas primeiras obras, logo, não foram elas quem o excitaram contra as duas últimas (1965, p.
435).
Vamos, pois, à vida do nosso “coração de cristal”, homem de paradoxos, por
vezes rabugento, medroso, mas também heroico e, acima de tudo, autêntico.
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Parte 1
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Capítulo 1
Condenado em Paris e Genebra
Rousseau atravessou Paris em uma carruagem modelo cabriolé que, sendo aberta,
não era adequada para quem estava tentando passar incógnito. Depois de muita
insistência dos amigos, resolveu partir da França para pôr-se a salvo da perseguição
que o aguardava. Provavelmente, já tomado pelo delírio que acompanha os
perseguidos, achou que muitas pessoas o cumprimentavam, sem que conhecesse
nenhuma delas. No caminho entre La Barre e Montmorency, passou por um carro de
aluguel, ocupado por quatro homens de preto que, como aquelas pessoas
desconhecidas, o saudaram sorrindo. Mais tarde soube por Thérèse que, pelo aspecto
que apresentavam e pela hora em que chegaram, deveriam ser os meirinhos
encarregados de prendê-lo.
No mesmo ano (1762), o Contrato social e o Emílio foram publicados e, em
poucos meses, censurados; Rousseau foi condenado à prisão em Genebra e Paris. Sua
obra conseguiu desagradar gregos e troianos, ou mais precisamente, protestantes e
católicos. Como ele mesmo afirma, não é de se espantar que seus livros contenham
erros – de raciocínio e de doutrina –, porque sendo humano está condenado a falhar;
ele mesmo, relendo o que escreveu, percebeu inúmeros erros. Sua revolta diante
dessa situação foi motivada pelo fato de que, em ambos os casos, o autor foi
condenado sem direito a defesa. Primeiramente decretou-se sua prisão, depois lhe
concederiam o direito de se defender. Ele até estava disposto a se entregar, mas os
amigos advertiram-no de que não deveria se deixar prender, pois não era um
julgamento justo que o aguardava.
Em Paris, houve a censura do arcebispo Christophe de Beaumont em sua Carta
Pastoral, na qual advertia os fiéis de que o Emílio era um livro ímpio e proibia sua
leitura. O arcebispo afirma: “[...] em uma palavra, tenta conciliar as luzes e as trevas,
Jesus Cristo e Belial. E tal é especialmente, meus caros irmãos, o objetivo que parece
estar proposto em uma obra recente, intitulada Emílio ou da Educação” (2005, p. 36).
Logo depois da censura pela Igreja, o Parlamento decreta a prisão do autor e os
meirinhos, citados no primeiro parágrafo, recebem ordem de prendê-lo.
Em Genebra, um mesmo processo censurou as obras, tanto o Emílio quanto o
Contrato Social, e condenou o autor à prisão. Lentamente, o caso Rousseau foi
tomando corpo em sua cidade natal, movido especialmente por uma atitude radical de
Rousseau: ele renunciou à cidadania genebrina, porque se sentiu abandonado por seus
amigos. A partir daí, alguns amigos e parentes resolveram apresentar as
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“representações”; na linguagem jurídica de hoje, seria algo como recursos contra a
decisão do tribunal. Não obtendo sucesso, pediram que o próprio Rousseau
escrevesse sua defesa. Por fim, quando o caso ganhou as proporções políticas que
tinha, aparece um texto anônimo que defendia as decisões do tribunal contra
Rousseau; o texto é intitulado As cartas escritas do campo. Não levou muito tempo
para que se descobrisse o autor: Jean-Robert Tronchin, o procurador-geral do
Pequeno Conselho, isto é, o mesmo homem que havia escrito a peça jurídica de
condenação de Rousseau! Como diz Tronchin, “estes livros são ímpios, escandalosos,
temerários, cheios de blasfêmias e de calúnias contra a religião. Sob a aparência de
dúvidas, o autor aí reuniu tudo que visa solapar, abalar e destruir os principais
fundamentos da religião revelada. Atacam todos os governos” (2006, p. 689).
Contra a Carta pastoral, Rousseau redigiu sua Carta ao Arcebispo Christophe de
Beaumont. Em sua resposta, Rousseau argumenta que não faz sentido censurar o
Emílio sendo que outras obras do autor, como O discurso sobre a desigualdade
(1754) e Julie ou a Nova Heloísa (1761) continham ideias muito semelhantes às do
Emílio e não foram censuradas. Questiona também como o Parlamento de Paris se dá
o direito de condenar um estrangeiro, por um livro impresso na Holanda.
Curiosamente, a frase mais conhecida de Rousseau sobre sua fé encontra-se na Carta
a Christophe Beaumont: “Sou cristão, senhor Arcebispo, e sinceramente cristão,
segundo a doutrina do Evangelho. Sou cristão não como discípulo dos padres, mas
como discípulo de Jesus Cristo” (2005, p. 72). Sendo assim, com tal declaração de fé
de cunho absolutamente protestante, era de se esperar que ele fosse aclamado em
Genebra pela resposta tão enfática ao arcebispo da Igreja Católica, mas qual! Em sua
terra natal as coisas ficaram tão ou mais difíceis.
Contra as Cartas escritas do campo redigiu as Cartas escritas da montanha. Essa
obra retoma vários argumentos que Rousseau havia exposto sobre a religião:
problemas relativos aos milagres, à revelação, aos profetas; retoma, também, as
implicações políticas do protestantismo, que, em sua opinião, deveria primar pela
liberdade religiosa e de interpretação do Evangelho. Encontrou tanta intolerância do
lado dos calvinistas de Genebra quanto do lado dos católicos. Sua mágoa, porém, foi
ainda maior porque supunha que suas obras deveriam ter sido bem recebidas em sua
pátria:
Quanto mais me orgulhava de ter prestado serviços à Pátria, mais cruelmente fui ultrajado. Se minha
conduta necessitasse de aprovação, poderia razoavelmente esperar obtê-la. No entanto, com um afã sem
exemplo, sem advertência, sem citação, sem exame, precipitaram-se em atingir meus livros. Fizeram mais:
sem se preocuparem com meus sofrimentos, com meus males, com meu estado, decretaram minha prisão
com a mesma precipitação, nem sequer evitaram os termos que são empregados para os malfeitores (2006,
p. 147).
Em Genebra, a situação política agravou sensivelmente a situação de Rousseau:
além das questões de fé, os motivos sociopolíticos levaram à sua perseguição.
Genebra tinha por volta de vinte mil habitantes e era caracterizada, do ponto de vista
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político, por ser uma república e, do ponto de vista religioso, pelo calvinismo. Nem
todos os que habitavam essa cidade tinham direitos políticos plenos. A população era
dividida nos seguintes grupos: patriciado, burguesia, habitantes, nativos,
estrangeiros e súditos. O patriciado, ou aristocracia, e os burgueses eram os únicos
que tinham os direitos políticos e econômicos, portanto podiam votar e ser eleitos
para os órgãos de administração da cidade, exceto para o Pequeno Conselho do qual
participavam somente as famílias tradicionais. Os burgueses haviam comprado seus
direitos e se estabeleceram historicamente em Genebra, em decorrência da fuga das
regiões onde havia intolerância. Os habitantes eram estrangeiros que haviam
comprado o direito de residência em Genebra, mas esse direito podia ser revogado a
qualquer momento. Os nativos eram filhos dos estrangeiros, tinham direitos
econômicos restritos e não participavam de forma alguma do poder; além disso, sobre
eles recaíam pesados impostos. Os estrangeiros moravam temporariamente em
Genebra, muitas vezes esperando obter direitos na condição de habitantes. Por fim, os
súditos eram soldados mercenários ou camponeses dos territórios submetidos a
Genebra e eram proibidos de adquirir os direitos de burguesia.
Em suma, havia dois grupos dominantes em Genebra que dispunham de direitos
políticos e detinham o poder. De um lado, uma aristocracia financeira, e, de outro, a
burguesia. Os dois principais órgãos do governo eram o Conselho Geral ou Conselho
dos Duzentos, composto por duzentos e cinquenta cidadãos, que exercia o papel
legislativo e o Pequeno Conselho, composto por vinte e cinco pessoas, que exercia o
papel de executivo. A aristocracia genebrina dominava o Pequeno Conselho e utilizou
esse órgão para concentrar ainda mais poder para si. No início do século XVIII, o
caso “Pierre Fatio” levou a uma dura repressão contra a burguesia que tentara
restaurar seus direitos que lentamente vinham sendo perdidos. Novas tentativas de
revolta ocorreram durante esse século e, como reação a elas, a aristocracia fechou-se
ainda mais no domínio desse conselho.
Rousseau herdara a condição de burguesia de seu pai, e, desde que adquirira a
celebridade, tornara-se um nome para a luta contra a concentração de poder pela
aristocracia. Sua condenação foi mais um golpe do patriciado contra a burguesia.
Condenar Rousseau e suas obras era mais um sinal do poder do patriciado sobre os
interesses dos burgueses. Ao final das Cartas escritas da montanha, Rousseau incita
seus conterrâneos burgueses a lutarem pelos seus direitos, para que não se tornem
escravos nem do patriciado, nem da França.
O Emílio e o Contrato Social são obras gêmeas. Foram finalizadas ao mesmo
tempo e publicadas no mesmo ano, 1762. Rousseau esperava publicar o Emílio antes
do Contrato, afinal, ele contém um resumo dessa obra, mas isso não ocorreu.
Trataremos, na segunda parte deste livro, das ligações conceituais entre essas obras.
Agora, o leitor poderia se perguntar: qual era a consciência que Rousseau tinha do
impacto que suas obras causariam? Desconfiava ele de que um dia seria motivo de
tantas perseguições?
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Quando recebeu alguns exemplares do Emílio para a avaliação final, enviou-os a
alguns amigos para que lessem e lhe dessem um parecer. Rousseau percebera pelas
atitudes desses leitores que as coisas ficariam difíceis. Malesherbes e Madame
Boufflers enviaram cartas comentando a obra e pedindo, ao final, que ele devolvesse
aquelas correspondências. D’Alembert enviou uma carta sem assinatura. Duclos
evitou falar-lhe sobre o livro por escrito e somente Clairaut não teve qualquer receio
de elogiar o Emílio. A reação mais significativa foi a de Blaire, que, ao devolver-lhe o
original, enviou-lhe o seguinte comentário: “eis um livro muito belo, mas do qual
dentro em pouco se falará mais do que o autor desejaria” (1965, p. 574).
Por mais que seus amigos o advertissem, obstinava-se em não dar a atenção que o
assunto merecia. Não tinha, com certeza, ideia da perseguição que o aguardava. Ele
mesmo declara mais adiante que, apesar dos “surdos ribombos que antecedem a
tempestade” darem seus sinais, nada receava, pois estava convicto de sua retidão e
inocência. Rousseau, em vez de se esconder, continuava exposto à sociedade,
conforme relata em suas Confissões: “No dia 8 de junho, véspera do decreto, fiz meu
passeio com dois mestres da oratória, o padre Alamanni e o padre Mandard. Levamos
para Champeaux uma merenda que comemos com apetite” (1965, p. 614).
Desde o momento em que foi condenado e as ordens de prisão expedidas,
Rousseau teve de se abrigar com os amigos dispostos a protegê-lo. Viveu em
Yverdon, Neuchâtel e Moitiers. Um dos problemas que enfrentou foi o de evitar que
sua companheira Thérèse (de quem falaremos mais adiante) sofresse ainda mais,
participando dessa sua vida itinerante, sem lar fixo. Por algum tempo ela residiu em
Paris, depois veio ficar com ele em Moitiers, onde um dos mais contundentes
episódios de sua vida se passou. Sua casa foi apedrejada por populares, instigados
pelas constantes intrigas que envolviam seu nome e o tornavam indesejado onde quer
que estivesse.
À meia-noite, ouvi grande barulho na galeria que dava para a parte de trás da casa. Grande quantidade de
pedras jogadas contra a janela e contra a porta que davam para aquela varanda, caíram ali com tanto ruído
que o meu cão, que dormia na varanda e que tinha começado a latir, calou-se apavorado e se refugiou num
canto, rosnando e arranhando o chão para procurar fugir. Ao ouvir o barulho, eu me levanto; ia sair de
meu quarto para ir à cozinha, quando uma pedra, lançada por mão vigorosa, atravessou a cozinha depois
de ter quebrado a vidraça, veio abrir a porta de meu quarto e caiu junto a meu leito; de modo que, se
tivesse me adiantado um segundo, receberia uma pedrada no estômago. Julguei que o barulho fora feito
para me atrair e a pedra jogada para pegar-me quando saísse. Ali encontro Thérèse que, tendo se levantado
também, toda trêmula abraçou-se comigo. Encostamo-nos à parede, fora da direção da janela, para evitar
as pedras e deliberar sobre o que tínhamos a fazer: pois sair para buscar socorro seria o meio de fazer com
que nos matassem (1965, p. 670-671).
Entre inimigos que o difamavam incessantemente e amigos que o protegiam,
Rousseau foi à procura de um lugar onde pudesse “passar sua velhice em paz”,
segundo suas próprias palavras. O processo em Genebra ainda estava correndo, mas
ele não tinha outra pretensão senão a de se dedicar a sua nova paixão, a botânica, e de
simplesmente existir. Nesse ínterim surgiu uma oportunidade que lhe agradou muito:
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morar na ilha de Saint Pierre, em Berna. Ali, teria a oportunidade de ficar no
recolhimento que tanto desejava. Curiosamente, ele que, até então, quis viver em
meio à sociedade e fruir das vantagens de ser conhecido e célebre, queria encerrar
seus dias completamente isolado naquela ilha, onde habitava o cobrador com sua
família e alguns empregados. Ali se estabeleceu com sua querida Thérèse, mandou
vir seus livros que nem sequer tirou das caixas. Tudo parecia estar de acordo.
Registrando a botânica da ilha, começou a escrever sua obra Flora Petrinsularis.
Assim descreveu esse momento:
Portanto, de certo modo eu me despedia de meu século e de meus contemporâneos, e dava meu adeus ao
mundo ao confinar-me naquela ilha para o resto de minha vida; porque essa era minha intenção e era lá
que eu contava executar por fim o grande projeto de vida ociosa, ao qual até então tinha consagrado
inutilmente o pouco de atividade que o céu me concedera. Aquela ilha ia tornar-se para mim a de
Papimanie, aquele bem-aventurado país onde se dorme (1965, p. 676).
Não é que deu tudo errado novamente? Veio uma mensagem oficial dizendo que
ele deveria se retirar da ilha e dos territórios de Berna. Rousseau, num primeiro
momento, achou que se tratava de uma mentira, alguém querendo atormentar-lhe a
alma, mas depois a realidade se impôs e ele percebeu que deveria deixar sua pequena
ilha. De lá partiu para a Inglaterra, em 1765, aceitando a cortesia que o filósofo inglês
David Hume tão gentilmente lhe oferecera para escapar das perseguições implacáveis
que lhe atormentavam no continente. O livro As confissões acaba com Rousseau
partindo para a Inglaterra, que deixou mais tarde tendo certeza de que Hume também
era um de seus secretos inimigos. Depois ele voltará ao assunto dos acontecimentos
de sua vida nas obras Diálogos: Rousseau, juiz de Jean-Jacques e Os devaneios do
caminhante solitário.
Deixemos Rousseau por aqui, partindo para a Inglaterra, um tanto de má vontade,
e suponhamos que, enquanto viajava, refletiu sobre sua vida, tentando entender por
quais caminhos e descaminhos Jean-Jacques teria chegado a essa situação.
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Capítulo 2
Infância e juventude
Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra, em 1712. Sua mãe morreu por
consequência de um parto difícil, e ele foi criado pelo pai, juntamente com seu irmão
mais velho que, alguns anos depois, deixou a família e “perdeu-se na vida à custa de
aventuras”;1 dele, Jean-Jacques nunca mais ouviu falar. Aprendeu a ler com o pai e
passava noites a fio mergulhando em obras que influenciaram sua forma de ver o
mundo. Pelos romances e as obras clássicas de autores como Heródoto e Plutarco
aprendeu a conhecer o coração dos homens e tomou um gosto inequívoco pelos
estudos.
No século XVIII, a Europa não conhecia os sistemas públicos de ensino; em
termos de educação coletiva havia os colégios católicos ou protestantes, onde se
ensinava o que hoje pode ser considerado o currículo das escolas de educação básica.
Esses colégios eram frequentados por alunos cujos pais tinham condições de pagar
bastante caro pelo estudo dos filhos e alguns outros que conseguiam suas vagas por
meio da caridade. Nas Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau insiste
que a educação é o principal tema da legislação e que deveria haver leis específicas
para ela. Critica, também, as diferenças tradicionais entre os colégios (para a nobreza
pobre) e as academias (para a nobreza rica). Segundo ele, “todos sendo iguais pela
constituição do Estado, devem ser educados juntos e da mesma maneira e, se não se
pode oferecer uma educação pública totalmente gratuita, é preciso ao menos oferecêla a um preço que os pobres possam pagar” (1982, p. 37). Eis Rousseau acenando
para uma necessidade que iria se tornar a peça crucial para a formação dos Estados
burgueses: a instituição de uma educação pública.
Assim, àquela época, quem desejasse oferecer uma educação escolar aos filhos
poderia seguir dois caminhos. O primeiro era trilhado por aqueles que tinham grandes
recursos financeiros, como a maioria dos membros da aristocracia e a burguesia rica,
implicando a contratação de um preceptor, isto é, de um professor que ia até a casa
dos seus alunos para ensiná-los de forma integral, ou seja, todas as “disciplinas” e ao
longo de várias horas por dia. Assim, o preceptor era contratado para trabalhar com
uma família. Quando essa família morava no campo ou em lugares próximos das
cidades, mas com acesso difícil, o preceptor passava a morar na casa da família,
enquanto tivesse o contrato para ensinar as crianças ou adolescentes.
Outro expediente era mandar as crianças regularmente à casa de um preceptor que
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recebia os alunos por algumas horas para ensiná-los. Isso também acontecia quando
se queria aprofundar em alguma ciência em particular – por exemplo, um jovem
querendo estudar mais matemática, geometria, química, segundo podemos ver pela
própria experiência de Rousseau. Por fim, esse expediente nos lembra um pouco o
que temos hoje com professores autônomos de música que muitas vezes vão até a
casa dos alunos ou os recebem em suas próprias casas, no entanto, essas aulas mal
duram uma hora.
Durante sua primeira infância, estudou livremente com o pai e a tia, amando a
música, a literatura, a história. Um acontecimento inusitado, porém, fez com que os
rumos de sua educação mudassem. O pai de Rousseau teve uma contenda com um
capitão e teve de fugir da cidade para não ser injustamente preso. A partir daí,
Rousseau ficou sob os cuidados de um tio que residia na aldeia de Bossey; ali
conheceu a educação formal e o campo, que se tornaram temas importantes na sua
vida. Na educação, viria propor – como vimos mais acima – uma completa revolução,
na qual o Estado assumisse a responsabilidade pela educação de todos. Quanto ao
campo, continuou sendo seu modelo ético contra os modos de vida, os costumes, e,
portanto, os vícios da cidade.
Rousseau deixou essa fase de estudos na infância quando teve que lidar com uma
importante instituição social da época: o trabalho, e a consequente escolha de uma
profissão. Era preciso que os jovens aprendessem uma profissão para garantir seu
sustento desde os onze anos, idade hoje considerada muito precoce. O modo pelo
qual se adentrava em uma prática profissional era o jovem ir trabalhar com um
profissional na função de aprendiz, recebendo, além do salário, também a estada na
casa de seu mestre. Para Rousseau, esses foram os anos nos quais alguns dos vícios
da sociedade entraram em seu coração. Por conta da violência e dos maus-tratos do
seu patrão, aprendeu a mentir, enganar, praticar pequenos furtos, que considerava
como uma espécie de vingança contra o patrão malvado.
O ofício que Rousseau aprendia na casa do senhor Ducommun era o de gravador.
Em Genebra, o artesanato era uma das atividades mais profícuas e seus produtos
tinham presença em toda a Europa. Uma arte ligada à dos relojoeiros era a de
gravador, o artesão que imprime brasões, iniciais, desenhos nos relógios e nos metais
em geral. Ora, certa vez, o jovem aprendiz foi pego fazendo pequenas medalhas com
belos brasões, posto que desenhar e trabalhar com o buril eram ocupações que o
agradavam, com as quais ele e os colegas de aprendizado brincavam, sem se dar
conta de que desperdiçavam tempo e material; vendo a arte do garoto, o patrão o
“moeu de pancadas”. O coração juvenil foi se revoltando não apenas com essa
situação em que se encontrava, como também com o hábito de castigar fisicamente
crianças e jovens como forma de educação.
O episódio mais marcante desse período, porém, ocorreu quando, por volta de
dezesseis anos, o jovem Jean-Jacques empreendeu uma aventura que mudaria o rumo
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de sua vida. Ele mesmo diz que, se tivesse tido a sorte de servir a um bom patrão,
talvez tivesse ficado no seio de Genebra, feliz com sua pátria e sua religião, tendo
uma vida, se não rica, ao menos confortável.
Aos domingos, Jean-Jacques costumava passear com os amigos fora dos muros da
cidade de Genebra. Nesses momentos, entregava-se à liberdade com tanto afã que,
por duas vezes, esqueceu-se de voltar antes do fechamento dos portões. Numa tarde
de domingo, estava com dois amigos relativamente longe dos muros quando ouviram
o toque de recolher. Correram a todo fôlego, mas não lograram êxito. Revoltado,
esmurrou portões e a terra de raiva, afinal, nas duas ocasiões anteriores em que isso
ocorrera, fora duramente castigado e haviam lhe prometido um castigo ainda mais
severo se acontecesse novamente, mas, acima de tudo, sentia-se injustiçado, pois os
portões fecharam antes da hora. Os amigos riram de seu desespero, provavelmente
conformados com as pancadas que viriam na manhã seguinte. Ele, porém, decidiu
outra coisa: não mais voltaria para a casa de seu patrão. A partir daquele momento,
abandonava Genebra!
No dia seguinte, pediu aos colegas que avisassem o primo Bernard de sua
resolução e que viesse encontrá-lo ainda mais uma vez. O primo veio e, em vez de
tentar demovê-lo daquela temerária resolução, deu-lhe algum dinheiro e uma pequena
espada, da qual Rousseau sempre gostara, em sinal de apoio a sua decisão. A partir
dali começam as aventuras de Jean-Jacques pela Europa. Como estudioso de sua
obra, esse episódio sempre me intrigou: como um jovem de apenas dezesseis anos
resolve deixar tudo para trás e aventurar-se no mundo? Lembremos de que o “tudo”
que ele estava deixando para trás eram somente situações que, de forma alguma,
prendiam-lhe o coração: 1) a mãe morrera quando de seu nascimento; 2) o irmão mais
velho sumira no mundo anos antes; 3) o pai já não morava na cidade; 4) a família do
primo, que o acolhera, parece ter apoiado sua decisão; e 5) a casa de seu patrão não
tinha qualquer atrativo para que voltasse. Por que ficar em Genebra? O que o mundo
lhe traria de mais solidão do que sua própria pátria?
Assim, Jean-Jacques saiu da cidade de Genebra em direção à sua liberdade. Eis
como descreve esse momento:
O momento em que o terror me sugeriu o projeto de fugir me parecera tão triste quanto me pareceu
encantador aquele em que o executei [...] A independência que julgava ter ganho era a única impressão
que guardava comigo. Livre e senhor de minha pessoa, cria poder fazer tudo, tudo alcançar: basta
arremessar-me para subir e voar nos ares [...] Meu comedimento inscrevia-me numa esfera estreita, mas
deliciosamente escolhida, onde tinha certeza de reinar. Minha ambição se limitava a um só castelo;
favorito do soberano e da Madame, namorado da jovem, amigo do irmão e protetor dos vizinhos, ficava
contente; não me era preciso mais nada (1965, p. 58).
Minha grande dúvida sobre o que aconteceu depois da sua partida é: como
sobreviveu depois que ficou só no mundo? A resposta para isso nos ajudará a
entender um pouco melhor outras instituições sociais desse tempo.
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Vivenciou, pela primeira vez, a experiência de “caminhante solitário”, errando por
bosques, estradas e lagos. Nas casas dos camponeses encontrava abrigo e alimento.
Em suas andanças, foi parar nas terras de Saboia, e ocorreu-lhe conhecer o Padre
Pontverre, nome famoso da história da república. O padre o recebeu e não dispensou
longas considerações sobre a heresia de Genebra. Jean-Jacques sentia-se mais erudito
que o bom homem, mas não quis debater, a fim de não ofender aquele que o acolhera
com tanta hospitalidade.
O padre sugeriu que procurasse a Madame de Warens,2 recém-convertida ao
catolicismo, que ajudava àqueles que necessitavam de abrigo. E assim foi que ele
conheceu sua “mamãe”. Ignorando o que o aguardava, não teve pressa de ir a esse
encontro e perambulou alguns dias esticando o trajeto. Chegando às terras de Annecy,
foi ao encontro da senhora e deparou-se com uma mulher jovem e muito bela – um
tanto rechonchuda – de vinte e oito anos, cujo aspecto o agradou imediatamente. Ela
acolheu o jovem por poucos dias, mas o suficiente para afeiçoarem-se mútua e
profundamente por toda a vida. Para se ter uma ideia, cinquenta anos mais tarde
escreveu as páginas finais de sua última obra, Os devaneios do caminhante solitário,
inteiramente dedicadas à Madame de Warens. Sua benfeitora pagou-lhe uma bolsa
num asilo para catecúmenos em Turim e, sem que outros soubessem, deu-lhe um
pequeno pecúlio que lhe seria, como veremos, muito útil mais tarde.
Antes de seguirmos os passos de Jean-Jacques no seminário em Turim, vejamos
um pouco mais de perto seus sentimentos por Madame de Warens. Essa paixão teve
dois aspectos: primeiro, um filial. Rousseau, tendo perdido sua mãe ao nascer, foi
criado pela tia paterna. Assim, faltou-lhe o amor maternal que encontrou no carinho,
na atenção e nos cuidados que sua tia Suzanne, apesar de sua bondade, não havia lhe
oferecido. Teve uma ligação erótica com a tia na infância, por meio das “surras” que
recebia. As palmadas, aos poucos, foram adquirindo certo prazer que ele mesmo
confessa e , quando a tia percebeu, evitou esse tipo de contato.
Por outro lado, tinha uma paixão erótica por Madame de Warens, mesmo porque
era jovem e bonita, uma combinação explosiva para o seu “complexo de Édipo”, ao
qual faltava o objeto principal.
O episódio vivido por Rousseau nos permite vislumbrar um pouco dos costumes
da época; observa-se que havia a prática do acolhimento aos viajantes, tanto da parte
dos camponeses, quanto da parte dos párocos e das Madames. É claro que houve, no
caso dele, o fato de que, sendo calvinista e sendo recebido por católicos, poderia se
tornar mais uma alma convertida. Seu jovem coração, enternecido pela imagem e
pelos modos sublimes de Madame de Warens, o fez aceitar os caminhos pelos quais o
destino o estava levando. Feito o acordo com sua benfeitora, Rousseau partiu para
Turim.
Um detalhe interessante, mas do qual ficamos apenas com as impressões dos
sentimentos, é que, segundo nos conta, seu pai foi procurá-lo em Annecy, alguns dias
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depois de sua partida para Turim. Supôs Jean-Jacques que o pai poderia tê-lo
alcançado, assim como o tio Bernard, que o havia procurado junto ao padre
Pontverre. No entanto, para o autor das Confissões, o fato de o pai estar há tanto
tempo longe dele e de ter um novo casamento dando-lhe uma nova família para
cuidar – a esposa e os sogros – teria feito com que o amor paterno arrefecesse. Assim,
em suas impressões considerou que o pai e o tio resolveram deixá-lo partir.
Em Turim, frequentou o seminário e ali ouviu, por vários dias, sermões sobre o
catecismo e participou de todas as atividades dos outros jovens. Jean-Jacques
converteu-se ao catolicismo um mês depois de sua chegada ao asilo. Foi realizada
uma cerimônia para celebrar essa conversão, a qual ele descreve em detalhes. O final
é que nos surpreende:
Tudo isso terminado, no momento em que julgava enfim ser colocado segundo minhas esperanças,
puseram-me à porta com um pouco mais de vinte francos, em miúdos, que as esmolas me tinham rendido.
Recomendaram-me que vivesse como um bom cristão e que fosse fiel à graça; desejando-me boa sorte,
fecharam a porta sobre mim e tudo desapareceu (1965, p. 85).
Ei-lo, novamente, sem lar, dessa vez em uma cidade italiana, mal conhecendo o
idioma. Seu espírito aventureiro soprou-lhe a seguinte ideia: em vez de voltar para os
braços de sua “mamãe”, por que não ficar em Turim por mais algum tempo? Passou
dias a vaguear pela cidade, dormindo em uma pensão de baixo custo e vivendo
daqueles francos que lhe foram dados. Gostava de ir à missa do rei da Sardenha pelas
manhãs, para ouvir a execução das músicas da “melhor orquestra da Europa”,
segundo se dizia. Em seus sonhos juvenis imaginava que, numa dessas missas em
Turim, iria conhecer a jovem princesa que ficara em seus sonhos, quando
perambulava pelos campos de Genebra.
Com o dinheiro acabando, resolveu procurar emprego, mas de que? Quando saiu
de Genebra, ainda não era um gravador profissional. Teve várias recusas até achar
uma casa comercial na qual a dona se interessou pelo seu serviço e aceitou o jovem
aprendiz de gravador. Chamava-se Madame Basile: era uma italiana jovem, bela e
morena. Aos poucos, Jean-Jacques foi adquirindo sua confiança e logo tornou-se,
também, auxiliar de contas da loja. Porém, apaixonou-se pela Madame Basile e, em
seus arroubos de juventude, deixou transparecer seus sentimentos, despertando a fúria
do marido de sua empregadora. Foi posto para fora da casa e do seu trabalho;
advertiram-no de que nem passasse na porta da casa novamente, sob ameaça de levar
uma surra!
Novamente desempregado, agora com um pouco mais de recursos, voltou a
procurar ocupação e tornou-se redator de cartas de uma Madame que estava muito
doente, chamada Verceilles. Ali teve momentos mais tranquilos, mas a função de
lacaio não o agradava e esquivou-se dela o quanto pode. Para a sua formação
filosófica, porém, a estada nessa casa foi fundamental, pois ali travou conhecimento
com os padres Gaime e Gouvon. Deste, tornou-se secretário e aluno de latim, depois
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da morte da Madame Verceilles. Do primeiro, ouviu as lições sobre moral e virtudes
que se tornaram parte da “Profissão de fé do vigário de Saboia”, um intertexto do
Emílio ou da Educação, a ser analisado na segunda parte deste trabalho.
Novamente, não se contentou com a situação na qual vivia e, com dezenove anos,
resolveu partir dali em nova aventura, em busca de fazer fortuna. Dessa vez, estava
acompanhado de um amigo, que conhecera em Turim, chamado Bacle. O modo pelo
qual pensavam enriquecer era o seguinte: Jean-Jacques havia ganhado uma Fonte de
Heron, um artefato que, por meio de tubos e hidrostática, fazia uma pequena fonte
jorrar. Imaginaram que seria uma grande atração: sem dúvida, as pessoas pagariam
para ver aquela pequena maravilha! Assim, saíram em busca da fortuna que jorraria,
tal qual a água, da pequena fonte! Seis semanas depois, estavam, Jean-Jacques e
Bacle, ambos exatamente como a fonte: quebrados. Resolveram seguir seus rumos.
Jean-Jacques, finalmente, voltava para a casa de sua “mamãe”.
A Madame de Warens o recebeu ternamente. A partir daí seguem-se inúmeras
aventuras e, em meio a elas, Rousseau continuava lendo os clássicos da literatura,
dessa vez, também em latim; aprendeu noções de música e tornou-se professor, o que
o fez exercer ainda mais conhecimentos que, veremos mais adiante, foram
fundamentais para tornar-se célebre em Paris e em toda a Europa. Rousseau precisava
trabalhar e fez de tudo.
Procurava empregos que o agradassem, mas tinha dificuldade em adaptar-se ao
que lhe pediam; mesmo assim, como todo jovem, tinha que obter dinheiro para suas
despesas. Procurou emprego em outras terras, como Lausanne e Berna. Conseguiu
um bom emprego, porém temporário, no serviço de recenseamento do rei da
Sardenha. Largou esse emprego pelo de professor de música, no qual tinha
experiência e ganhava mais. Nesse momento, entendeu que, se quisesse ser
compositor, precisaria estudar mais sua arte, e foi ter aulas de harmonia e
composição. Interessante observar que tornara-se leitor contumaz, porém, não
frequentara colégios ou academias. Muitos estudiosos de sua obra insistem que ele foi
autodidata, mas não é bem assim. Tomou aulas de latim, de música e, mais tarde, terá
também aulas de geometria, aritmética, ciências, química e, ao final da vida, aulas de
botânica. Nunca deixou de estudar e teve sempre humildade para aprender com
algum mestre.
Sua curiosidade intelectual o levou a estudar diversos tipos de áreas do saber:
química, medicina, botânica, música, línguas, filosofia e astronomia! Esta última
quase lhe causou um grande problema ainda na juventude, porém, tudo não passou de
uma grande e inusitada trapalhada. Rousseau ganhara um mapa das constelações e
teve a ideia de comparar seu mapa com as estrelas de fato. À noite, provavelmente, de
lua nova e céu limpo, subira num terraço para seu exercício; com um sistema
rudimentar iluminava seu mapa, com velas, por baixo, e com uma luneta conferia a
posição das estrelas. Para evitar o frio, usava um grande chapéu e um casaco grosso.
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Diante de toda essa parafernália, o que os passantes, fiéis cidadãos religiosos, podiam
deduzir daquela cena? Um bruxo! Provavelmente, preparando um sabá com seu
vaivém frenético de algo iluminado (um caldeirão fervente, talvez) e estranhos
objetos! A situação só não terminou pior porque os padres jesuítas encarregados de
interrogar o jovem Jean-Jacques, entendendo a causa do burlesco espetáculo, não o
denunciaram, mas pediram que deixasse em paz a imaginação dos passantes. Assim,
abandonou a pretensão, se alguma houve, de ser astrônomo.
Rousseau permaneceu em Saboia por alguns anos junto à Madame de Warens, até
que novos acontecimentos marcaram para sempre seu coração.
Madame de Warens o ensinou a comportar-se, vestir-se e, principalmente,
observar os homens da sociedade. Ela desejava transformá-lo em um homem, e isso
incluía uma das lições mais importantes, o trato com as mulheres. Assim, ela o
preparou para o dia em que ele a tomaria nos braços como mulher:
Pela primeira vez me vi nos braços de uma mulher e duma mulher a quem eu adorava. Fui feliz? Não;
experimentei o prazer. Não sei que invencível tristeza envenenava-lhe o encanto; era como se eu tivesse
cometido um incesto. Duas ou três vezes, apertando-a com transporte em meus braços, inundava seu seio
de lágrimas (1965, p. 219).
Desde então, chorando ou não, Jean-Jacques passou a ter mais esta familiaridade
com sua protetora. Conforme Rousseau, ela adquirira esse costume da época contra
os sentimentos do seu coração, por força dos sofismas de seus mestres, especialmente
os filósofos; eles a convenceram de que a união dos sexos, por si mesma, nada
significava; que as infidelidades ignoradas nada significam para os maridos traídos,
assim como para as consciências. Enfim, tal como Cândido aprendera o lema de seu
mestre Pangloss, “melhor dos mundos possíveis”, o senhor Tavel ensinara para a sua
aluna uma máxima filosófica cuja prática se aproximava do nosso conhecido dito
popular: “o que os olhos não veem o coração não sente”, iludindo, dessa forma, o
coração da “pobre mamãe” para obter-lhe os favores do corpo. Mas como tudo o que
se faz nesta vida, aqui se paga, o senhor Tavel foi punido com ciúmes loucos ao
desconfiar que Madame de Warens dava, a ele, o mesmo cuidado com o qual a
ensinara tratar o marido.
Certa feita, Jean-Jacques às voltas com suas doenças, foi instigado pela “mamãe”
a ir tratar-se com um renomado médico irlandês. Teve, então, ocasião de estudar
algumas noções de medicina – inclusive anatomia – que mais tarde seriam usadas em
algumas reflexões do Vigário de Saboia: “vejo o corpo humano como uma máquina”,
dirá, em consonância com as Confissões, chamando seu corpo de “minha máquina”
(p. 1965, 171). Ora, Rousseau, depois de alguns meses de viagem, resolveu voltar
para a casa de Madame de Warens, por quem ardia de saudades. Quando chegou,
porém, achou as coisas meio estranhas: a empregada ficara surpresa ao revê-lo e sua
“mamãe”, ao encontrá-lo, perguntou-lhe como estava e se havia se recuperado. Dessa
forma, percebeu que ela não lera ou dera pouca atenção às suas cartas, que, aliás, ela
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mal havia respondido.
Eis, então, o motivo de certa distância da “mamãe”: Madame de Warens
encontrava-se acompanhada de um jovem chamado Wintzenried que, anteriormente,
havia feito alguns trabalhos na casa; agora, porém, o jovem morava ali e, pasme o
leitor, ocupando o antigo “lugar” de Rousseau, o de “preferido” junto à sua mamãe.
Assim que percebeu os ciúmes de Jean-Jacques, Madame de Warens tratou de
explicar-lhe que não perdia seu lugar, em nada seriam menos íntimos; teria os
mesmos momentos junto a ela, agora os partilhando com outro. Isso já havia ocorrido
antes, com um homem mais velho, chamado Claude Annet. Mas quem era afinal de
contas o rival, que despertou tamanho ciúme? Assim o autor das Confissões o
descreve. O jovem era tão ativo quanto ele era passivo, fazia-se ver em todos os
lugares: no pátio, no bosque, no feno; era um rapaz grande, loiro, bem feito de corpo,
de bela voz, mas o rosto não demonstrava “um espírito com vivacidade”. Para além
dessas qualidades, o jovem recém-chegado era diligente e zeloso nas tarefas das quais
foi incumbido. Segundo Jean-Jacques, Wintzenried tinha outra característica: “Seu
grande prazer consistia em carregar e descarregar, ceifar ou partir lenha; sempre era
visto com o machado ou com a enxada na mão; viam-no correndo, malhando,
gritando com toda força dos pulmões. Não sei de quantos homens fazia ele o trabalho,
porém fazia sempre barulho por dez ou doze” (1965, p. 286). E toda essa atividade
certamente impressionou a Madame de Warens, que resolveu mantê-lo ali usando
todos os expedientes dos quais dispunha, “inclusive com o qual mais contava” (1965,
p. 287).
Ora, Jean-Jacques não poderia ser “sócio” de tal homem e tomou a resolução de
afastar-se de Madame de Warens, vendo-a e tratando-a somente como sua “mamãe”.
Para seu espanto ela não reclamava sua presença como antes; na verdade, o procurava
algumas vezes, mas, em geral, para queixar-se do novo amante; quando ela estava
bem com o jovem, ficava dias inteiros sem perceber a ausência de Jean-Jacques.
Dois elementos dessa história picaresca ainda não ficaram claros. O primeiro:
quando apresenta o rival, Jean-Jacques nos diz que ele era um tolo, ignorante e
insolente, como entender que, a despeito dessas qualidades, era “o melhor rapaz do
mundo”? O segundo: o jovem dizia ter trabalhado como cabeleireiro antes de
empregar-se na casa de Madame de Warens; que nessa profissão enfeitara a cabeça de
muitas marquesas e de seus respectivos maridos! Porém, pela descrição dele, esse
rapaz que gosta de “carregar e descarregar, andar com o machado nas mãos” parece
ter, com Madame de Warens, negligenciado parte das tarefas que cumpria com as
marquesas: afinal, não o vemos cuidando de suas perucas, mas de outros vários
interesses dela.
Enfim, uma vez percebendo que não poderia mais ficar ali, tomou a resolução de
partir. Precisava de um meio para ganhar a vida e Madame de Warens conseguiu que
ele fosse indicado para ser preceptor dos filhos do senhor de Mably. Esse episódio é
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importante, porque Jean-Jacques elabora um projeto para essa tarefa, o Projeto para a
educação do senhor de Sainte Marie, que virá a ser a primeira semente que irá, mais
tarde, florescer no tratado de educação, o Emílio. Fez-se, então, preceptor, por um
ano, residindo na casa dessa família. Experiência da qual ele não gostou muito:
Mas finalmente, aborrecido com um emprego em que não me dava bem, e diante da situação muito penosa
que nada tinha de agradável para mim, depois de tal tentativa, durante a qual não poupei meus esforços,
resolvi abandonar os alunos bem convencido de que nunca conseguiria instruí-los (1965, p. 293).
Sua demissão foi bem recebida pelo seu patrão. O leitor pode se perguntar como
um homem que não se deu bem como preceptor pôde atrever-se a escrever um livro
sobre educação. Ora, no Emílio há duas confissões que indicam como Rousseau
entende essa experiência. Em determinada passagem do livro I, afirma que, em outro
momento, quando já célebre, um nobre propôs-lhe que educasse seus filhos e ele,
evidentemente, recusou, argumentando que a experiência não poderia ser positiva de
forma alguma: ou seu método daria certo e o filho recusaria os títulos aos quais tinha
direito, ou ele falharia novamente. Então, para que tentar? Além disso, como veremos
mais adiante, a chave de leitura do Emílio é muito peculiar: “Na impossibilidade de
cumprir a tarefa mais útil, ousarei, ao menos, tentar a mais fácil: a exemplo de tantos
outros, não porei a mão na massa, e sim na pena; e ao invés de fazer o que é preciso,
esforçar-me-ei por dizê-lo” (1992, p. 27). Depois dessa experiência, Rousseau resolve
ir a Paris, em busca de fama que lhe garantisse espaço para divulgar suas criações
(sonhava ser músico) e a subsistência por outros meios que não trabalhos aos quais se
dedicara com afinco, mas para os quais não tinha a menor inclinação. Precisa ganhar
dinheiro suficiente para ser independente.
Dessa vez, em vez de sonhar fazer fortuna com sua pueril Fonte de Heron, levava
consigo sólidos conhecimentos musicais.
O período que agora descreveremos é a passagem do jovem para o adulto. Vimos
que, por volta dos 30 anos, Rousseau resolveu tentar a sorte em Paris. Tinha a
oferecer sua peça de teatro Narciso ou o amante de si mesmo, escrita alguns anos
antes, e um projeto de nova notação musical. Foi recebido pela Academia de
Ciências, mas seu projeto foi recusado. Algum tempo depois, o compositor JeanPhilippe Rameau (1682-1764) fez algumas considerações sobre o projeto de
Rousseau que o ajudaram a ver no que seria preciso melhorar. A comédia Narciso
não foi encenada nem publicada. Rousseau deparara-se com a dificuldade dos autores
desconhecidos de conseguirem editoras que se interessassem por suas obras.
Como tinha algum dinheiro, deixou-se ficar em Paris, tal como fizera em Turim.
Frequentou algumas rodas de amigos e aprendeu a jogar xadrez. Antes que seu
dinheiro acabasse, um amigo seu, o padre Castel, lhe deu um conselho: “Já que nem
os músicos, nem os sábios cantam em uníssono com você, mude de corda e vá
procurar as mulheres” (1965,
p. 311). Isso significava procurar as Madames, que costumam empregar profissionais
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liberais para a administração de seus bens. Assim foi que Jean-Jacques conheceu a
Madame Dupin e dali travou conhecimentos que o levaram a ser secretário do senhor
Montaignu, que se tornara embaixador em Veneza. Fez as malas e viajou para a Itália
novamente. Parece-nos interessante observar que, nesse período, compôs
parcialmente a ópera As musas galantes e estudou química (esse estudo renderá
algumas linhas no Emílio sobre a destilação do vinho).
Eis que, depois de algum tempo, descontente com a vida de secretário do
Embaixador, inclusive por questões éticas e de relacionamento com seu empregador,
resolve deixar a vida de “burocrata”. Não era uma vida autêntica. Ele precisava
dedicar-se àquilo que sonhava fazer. Assim, fazendo as malas novamente, partiu para
Paris decidido a ser reconhecido pelos seus talentos musicais.
1 Tomamos de empréstimo, aqui, o verso de Renato Teixeira, da canção “Romaria”.
2 Na tradução de Wilson Lousada, mantém-se a expressão Madame de Warens, Madame d’Épinay, assim
como no livro Rousseau: o bom selvagem; na tradução de Raquel de Queirós, utiliza-se a expressão Sra. de
Warens, Sra. d’Épinay. Achamos melhor manter a expressão Madame, que mantém um certo ar da época e
transporta o leitor para aquele ambiente.
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Capítulo 3
Enfim, a celebridade
Em 1744, Rousseau retornou a Paris. Ali, dois acontecimentos importantes
marcaram a fase da maturidade: conheceu Thérèse e terminou a ópera As musas
galantes, que foi apresentada em Paris e em Versalhes. Vejamos como se deram esses
dois fatos.
A essas alturas, com mais de trinta e cinco anos, precisava de uma forma para
garantir sua sobrevivência, posto que não possuísse renda, estava envolvido com
Thérèse e suas despesas aumentavam. Vale ainda lembrar que seu projeto pessoal era
de alcançar independência financeira e dedicar-se somente à música.
Thérèse de le Vasseur foi sua companheira por toda a vida e mãe de seus cinco
filhos. Foi ela quem recebeu parte das rendas de Rousseau, inclusive a pensão
vitalícia que o editor Rey lhe concedeu pelos sucessos financeiros que obtivera com
suas obras. Também foi com ela que Rousseau casou-se, 23 anos após o início do
relacionamento, que se deu da seguinte forma: Jean-Jacques resolvera deixar Veneza
e o trabalho rotineiro e burocrático como secretário; estava resolvido a alcançar o
sucesso como músico em Paris, por isso dedicou-se a concluir As musas galantes.
Escolheu morar em um hotel mais afastado do centro da cidade, por ser mais barato e
para ter mais tranquilidade para trabalhar. O problema é que se tratava de um hotel
mais simples, frequentado por homens barulhentos e de poucos modos, de tal forma
que ele era o único que falava e se comportava decentemente. Foi nesse ambiente que
conheceu uma jovem de olhar doce e gestos delicados servindo as mesas.
Certa noite, alguns dos clientes mexeram com a moça; foram rudes e grosseiros.
Jean-Jacques não pôde se controlar diante do comportamento hediondo daqueles
homens sem modos e, na mesma hora, os chamou à ordem. Imagino-o levantando-se
de supetão e gritando:
– Biltres! Exijo que parem de importunar esta jovem!
Os malfeitores partiram para cima dele e logo o atracaram, tentando fazê-lo
arrepender-se da ousadia! Uma vez a contenda resolvida, recebeu o justo fruto de sua
coragem cavalheiresca! Jean-Jacques e Thérèse se tornaram mais próximos, mas os
sofrimentos da moça ainda não tinham se esgotado. A hoteleira não gostou de ver sua
empregada envolvendo-se com um hóspede, e a maltratava ainda mais do que antes
de Jean-Jacques protegê-la dos homens rudes. Logo, sua presença era o único
conforto para o coração sofredor da moça, e sua ternura, o bálsamo para uma alma já
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bastante marcada pelos sofrimentos.
O tempo encarregou-se de transformar a amizade em amor e a timidez, que
poderia afastar aqueles corações ternos, formou a ponte que os uniu; ele como seu
herói, ela como sua “gata borralheira”. Certo dia, Thérèse resolveu abrir seu coração
para Jean-Jacques e dizer-lhe por que se sentia angustiada diante do homem honrado
que a protegia dos males que a cercavam, único alento que lhe refrigerava as dores da
alma. Jean-Jacques ficou ainda mais enternecido com a confissão do crime que ela
supunha ter cometido. Em sua inocência, deixou-se enganar por um sedutor que,
depois de obtido o prêmio, abandonou-a. Ele garantiu a ela que não estava aborrecido
de não encontrar aquilo que não procurara, que a verdadeira inocência repousa no
coração. Jurou que não a abandonaria jamais, mas pela transparência que seus
sentimentos lhe impunham, jurou, também, que não a desposaria.
Conforme vemos em sua narrativa, ele nunca “queimou de paixão” por Thérèse,
sentia por ela um amor terno que o acalmava. Conhecera-a depois de sua separação
da Madame de Warens, e ela preencheu o vazio que sentia no coração:
Sempre considerei o dia que me uniu a Thérèse como aquele que fixou o meu ser moral [...] Mamãe
envelhecia e se aviltava! Fora-me provado que ela não mais podia ser feliz nessa terra. Restava-me
procurar uma felicidade que fosse mais minha, tendo perdido a esperança de algum dia partilhar a dela
(1965, p. 442).
Quanto à música, pela descrição de Jean-Jacques, Rameau não nutria grande
simpatia pelo jovem genebrino, pois, sendo de uma família de músicos, não via com
bons olhos os estudos independentes e autônomos do “filho do relojoeiro” que queria
ser músico. O fato é que gozou de alguma consideração entre os músicos a partir de
então e foi convidado, algum tempo depois, a refazer alguns trechos da ópera A
princesa de Navarra, composta por Voltaire e Rameau. A ópera composta a seis
mãos logrou grande sucesso. Em suas Confissões, Rousseau afirma que ambos os
autores ficaram bem descontentes em ver seus nomes associados ao dele. Fato é que a
ópera foi executada tendo somente o nome de Voltaire como compositor.
Jean-Jacques obtinha, assim, algum reconhecimento por seus talentos musicais,
mas ainda não tinha a tão desejada autonomia financeira e sua situação pessoal estava
ficando cada vez mais difícil, pois o romance com Thérèse tornara-se cada vez mais
profundo e os compromissos aumentando com a idade. Por isso, teve de aceitar as
oportunidades que a vida lhe oferecia: voltou a trabalhar como secretário – dessa vez,
do senhor Francueil e de M. Dupin, que lhe dava uma renda estável. Essa situação
não era de seu agrado e continuou em busca de espaço no cenário artístico de Paris.
Algum tempo depois, absolutamente descontente com a situação em que vivia,
resolveu deixar o cargo de secretário, cujas obrigações não lhe agradavam, e tornouse copista de partituras, profissão que lhe permitia ficar em contato com a música
mais tempo e lhe rendia mais do que a profissão de secretário. A partir daí, o que
veremos é o sucesso – junto ao público e também financeiro – do Discurso sobre as
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ciências e as artes oferecer a Rousseau uma vida na qual podia se dedicar ao que
sempre quis: aos estudos e à escrita, mas vejamos como nosso filósofo chegou lá.
Jean-Jacques e Diderot tornaram-se amigos no período de seu retorno a Paris. Por
sua narrativa, percebe-se que admirava o amigo e preocupou-se seriamente quando
este foi preso. Foi também por meio da amizade com Diderot que logrou espaço entre
os editores e pôde iniciar sua carreira como escritor. Aliás, Jean-Jacques apresentou
outros dois amigos a Diderot: Grimm e Condillac.
Durante os jantares em que conversavam sobre suas ideias e sentimentos,
Rousseau elaborou o plano de uma novela que seria escrita a quatro mãos com seu
amigo, o Persifleur. O projeto não foi para frente, mas foi a ocasião na qual conheceu
outro amigo de Diderot: d’Alembert. Os dois, a essas alturas, já tinham preparado o
primeiro volume da Enciclopédia e o convidaram para escrever o verbete sobre
Música, pelo qual nada recebeu.
A publicação da Carta sobre os cegos (1749), de Diderot, desagradou alguns
nomes poderosos da época, e ele foi preso na torre de Vincennes, ficando
incomunicável. Nessa obra, Diderot tece algumas considerações filosóficas sobre a
perspectiva do materialismo. Partindo da obra do matemático e cientista inglês
Nicholas Saunderson (1682-1739), Diderot começa a questionar verdades e valores
metafísicos que parecem ser universais, mas não fariam sentido para os cegos, assim
como, por exemplo, o pudor, a comiseração, pois sofremos muito mais pelos outros
quando os vemos em seu sofrimento do que quando ouvimos falar.
Jean-Jacques escreveu a algumas pessoas importantes que havia conhecido na casa
da Madame Dupin, como a Madame Pompadour. Evidentemente, suas cartas não
surtiram efeito. Algum tempo depois, foi concedido a Diderot o direito de ficar no
castelo e no bosque de Vincennes, e não mais na masmorra. Com isso, pôde passar a
receber visitas e Jean-Jacques não deixou de fazê-lo. Vejamos como ele descreve o
momento em que pôde rever o amigo:
Voltando a Paris, tive a agradável notícia de que Diderot tinha saído da prisão e que lhe haviam dado o
castelo e o parque de Vincennes como prisão, sob palavra, com permissão de ver os amigos. Quanto me
custou não poder correr imediatamente para vê-lo! Mas retido por dois ou três dias em casa de Madame
Dupin, devido a cuidados indispensáveis, depois de três ou quatro séculos de impaciência voei para os
braços de meu amigo. Inexprimível momento, Diderot não estava só: d’Alembert e o tesoureiro da SantaCapela estavam com ele. Ao entrar, só o vi a ele: dei apenas um salto e um grito; colei meu rosto ao dele,
apertei-o estreitamente sem lhe falar, a não ser com minhas lágrimas e meus soluços; sentia-me sufocado
pela ternura e pela alegria (1965, p. 374).
A partir desse dia, frequentou Vincennes para visitar seu amigo. Essa foi a ocasião
em que ocorreu o famoso episódio da iluminação de Vincennes. O castelo fica a mais
ou menos dez quilômetros de Paris. Rousseau não tinha recursos para ir de condução,
então ia a pé, descansando pelo caminho e lendo nessas pausas. Certa vez, não levou
um livro, mas o jornal Mercure de France, no qual apareceu a notícia sobre o
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concurso da Academia de Dijon. Os candidatos deveriam redigir um ensaio sobre o
tema: Se o progresso das ciências e das artes tinha contribuído para corromper ou
aprimorar os costumes. Ele acrescenta que divisou outro universo, tornou-se outro
homem após a leitura. Os detalhes da iluminação estão narrados numa das cartas a
Malesherbes:
Senti a cabeça tonta, como se fosse embriaguez. Uma palpitação violenta... não mais podendo respirar ao
caminhar, deixei-me cair sob uma árvore da avenida e ali fiquei meia hora em tamanha agitação que, ao
me levantar, diviso toda a frente de minha roupa molhada de lágrimas, sem ter sentido que eu as
derramava (segunda Carta, 1965, p. 375).
Diderot foi o primeiro a ouvir as ideias de Jean-Jacques para o seu Discurso sobre
as ciências e as artes. Gostou, incentivou o amigo a escrevê-las e depois fez uma
leitura crítica para ajudá-lo a melhorar. Rousseau enviou seu manuscrito para a
Academia de Dijon e esqueceu-se do assunto. No ano seguinte, 1750, veio o anúncio
de sua premiação: a obra obtivera o primeiro lugar. Finalmente passamos de JeanJacques a Rousseau; teve o reconhecimento que procurava e recebeu um prêmio em
dinheiro, razoavelmente bom. Não foi com a música como ele esperava, mas com a
filosofia.
Sobre o seu primeiro Discurso, ele mesmo foi severo crítico mais tarde:
Que será a celebridade? Eis a obra infeliz a que devo a minha. É certo que essa peça, que me valeu um
prêmio e me deu um nome, será, no máximo, medíocre e, ouso acrescentar, uma das menores deste
repositório. Que abismo de misérias não teria evitado o autor, se esta primeira obra tivesse sido recebida
como a merecia! Mas era preciso que um favor inicial injusto me trouxesse, aos poucos, uma severidade
que ainda é mais injusta (1973, p. 338).
O comentador José Oscar Marques, em sua tradução da Carta sobre a música
francesa, observa que o prêmio concedido pela Academia de Dijon, por si mesmo,
não poderia causar tanto estardalhaço, pois era uma instituição “provinciana e
recente”, não poderia “trazer tamanha notoriedade se não fosse um aspecto paradoxal,
habilmente explorado pelos periódicos da capital: Rousseau, amigo de Diderot e
colaborador da Enciclopédia, havia escrito um ensaio que contradizia em todos os
pontos o ideário que sustentava aquele monumental empreendimento” (2005, p. 1).
Esse prêmio ainda não foi suficiente para livrá-lo de ter alguma ocupação para
sobreviver, mas ser copista de partituras não lhe causava desprazer. Diderot
providenciou a publicação de seu Discurso sobre as ciências e as artes, ou,
simplesmente, seu primeiro Discurso. Depois da publicação, ele passou a receber
cartas de críticos cujas respostas demandavam muito tempo. Uma tarefa que, aos
poucos, tornou-se penosa, porém, não mais do que as visitas que lhe roubavam o
tempo até mesmo para continuar pensando e escrevendo. Segundo Rousseau, seu
pequeno quarto passou a ser visitado constantemente por gente da sociedade que o
queria ter em seus salões para jantares e festas. Como ele se recusasse, tornou-se um
prêmio cada vez mais caro, e todos disputavam sua presença, pois a curiosidade era
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saber como vivia aquele homem, em sua pobreza e independência, que ousara
escrever ideias tão fortes no seu Discurso.
O fato é que Rousseau, de tanto recusar convites, foi ganhando fama de
misantropo. No ano de 1751 foi passar alguns dias na casa de um amigo, fora de
Paris, a fim de se recuperar de uma das suas crises de dor nos rins. Ali, teve uma
espécie de nova iluminação e, numa manhã, compôs o início da sua ópera O Adivinho
da aldeia. Voltou a Paris e em três semanas terminou todo o trabalho. Evidentemente,
queria ouvi-la representada, mas não tinha vontade de ir à Ópera oferecê-la. Como
não podia mandar representá-la às suas expensas, cedeu às exigências do destino.
O senhor Duclos gostou do trabalho e atendeu ao pedido de Rousseau: que seu
fracasso com as Musas galantes não influenciasse os músicos e o público
negativamente em relação ao Adivinho da aldeia. A peça foi ensaiada e encenada
anonimamente. Somente depois da aclamação geral é que foi revelado o nome do
compositor. Tal era a qualidade da obra que houve uma disputa entre Duclos e o
senhor Cury. Este queria levar a ópera para ser representada na corte, em
Fontainebleu, e Duclos queria que ela estreasse em Paris. A disputa foi bastante
acirrada e acabaram concedendo o privilégio à autoridade. Com grande galhardia,
Rousseau foi a Fontainebleu para a estreia de sua ópera.
Todavia, o autor não gostou da representação de sua peça e voltou ao seu
desânimo natural, embora o sucesso fosse cada vez maior. Assim foi que outro
episódio marcou sua vida. No dia seguinte à apresentação, o senhor Cury procurou
Rousseau dizendo que ele deveria apresentar-se ao rei, e que acreditava tratar-se de
uma pensão que sua majestade queria conceder a Rousseau pessoalmente. Ora, a
princípio, para quem estava procurando uma forma de se sustentar fazendo o que
mais gostava – que era justamente compor –, pareceria ser o final da jornada, o
objetivo teria sido atingido, mas não para o nosso filósofo.
Rousseau, com medo de que suas dores o fizessem passar um vexame diante de
todos, teve uma noite tormentosa. Imaginava-se diante do rei, teria que dizer algo que
fosse elogioso e verdadeiro, mas como preparar algo para dizer ao rei? Como ele diz,
“sua maldita timidez” poderia traí-lo:
Para preparar, de antemão, uma resposta feliz, seria preciso prever exatamente o que ele podia dizer-me; e
eu tinha certeza de que não encontraria em sua presença uma só palavra das que havia preparado. O que
seria de mim naquele momento, sob os olhos de toda a corte, se escapasse em minha perturbação algumas
das minhas asneiras habituais? Aquele perigo assustou-me, amedrontou-me, fez-me estremecer a ponto de
resolver, a qualquer risco, não me expor a ele (1965, p. 406).
Rousseau foi embora, não se apresentou ao rei! Os amigos e os inimigos tomaram
sua atitude como de um orgulho e vaidade extremas. Diderot censurou-o duramente
por recusar apresentar-se ao rei e a aceitar a pensão. Eu mesmo ouvi mais de uma vez
dos colegas rousseauistas que ele recusara a pensão para garantir a independência
política e de pensamento. Porém, sempre li e reli esse trecho das Confissões, e
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entendo sua recusa muito mais como consequência de uma timidez quase doentia, ou
até mesmo de uma autoestima baixíssima na linguagem de hoje, que o fez não se
achar digno de postar-se diante de um rei. O fato é que o Adivinho da aldeia também
não lhe proporcionou independência financeira, mas projetou seu nome na sociedade
parisiense como alguém ligado às belas artes, e isso era o bastante para abrir-lhe
espaço junto ao restrito mundo do mercado editorial.
As consequências da celebridade que o cercaram foram os inúmeros convites e as
recusas obstinadas. O episódio da recusa da pensão levou seus amigos a questionar
seus métodos, e a amizade com Diderot foi se abalando. Rousseau achava que deixara
claro que era timidez e vontade de se recolher – mais para frente, nas Confissões, dirá
que suas obras nascem do seu coração e não do talento da pena –, e os amigos
acharam que era pedantismo e misantropia. Para ele, outro fator que degenerou suas
amizades foi certa inveja de seu talento:
Quanto a mim, penso que meus pretensos amigos teriam podido perdoar-me o fazer livros, e livros
excelentes, porque aquela glória não lhes era desconhecida; porém, nunca puderam perdoar-me o ter
composto uma ópera, nem os sucessos brilhantes que tal obra teve, porque nenhum deles se sentia em
condições de emparelhar comigo nem podia aspirar às mesmas honras. Só Duclos, acima dessa inveja,
pareceu demonstrar um aumento de amizade por mim e apresentou-me em casa de mademoiselle
Quinault, onde fui alvo de tantas atenções, cortesias, carícias, quanto pouco encontrara dessas coisas em
casa de M. d’Holbach (1965, p. 415).
Rousseau aproveitou a relativa independência e viajou com Thérèse de volta a
Genebra. Ali reviu alguns amigos e fez contatos que futuramente lhe seriam de
grande valia, quando de seu processo em Genebra. Rousseau achou que era o
momento de retomar a religião de sua pátria, isto é, o calvinismo que abjurara quando
chegara ainda adolescente em Turim. Esse episódio foi um dos problemas centrais
quando de seu processo em Genebra, pois seus adversários questionaram a validade
de sua volta ao credo calvinista. Um dos debates interessantes a esse respeito é que
Rousseau afirma que sua proximidade com os filósofos, especialmente os
Enciclopedistas, não o afastou da religião e de suas convicções, ao contrário, lhe deu
ainda mais convicções e o levou a reler a Bíblia mais algumas vezes.
Nesse ínterim, foi visitar Madame d’Épinay, que o surpreendeu com um presente
que ele não esperava. Ela ordenou que construíssem para ele uma casa, em sua
propriedade, num lugar que o próprio Rousseau admirava: uma paisagem
absolutamente bucólica, para que ele não precisasse mais deixá-la. Assim que pôde,
Rousseau se instalou em sua casa em l’Ermitage e ali meditou suas obras capitais:
Julie ou a Nova Heloísa, Emílio e Contrato Social. Nesse período, Rousseau
encontrara a paz que desejava no campo, longe das cidades pelas quais ele não nutria
paixões; chega a registrar o dia em que deixou de habitá-la: dia 9 de abril de 1756.
Tinha estabilidade financeira suficiente para se estabelecer sem depender de auxílios
ou pensões. Além dos recursos obtidos com suas obras publicadas, sua ópera e sua
peça, Narciso ou o amante de si mesmo, lhe deram recursos mais significativos.
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Todavia, continuava o trabalho de copista de partituras, que, segundo ele, não era um
trabalho lucrativo, mas era certo e bastava para oferecer-lhe independência e sustento.
Adivinhe, amigo leitor, o que aconteceu? Novamente cercado por intrigas e
confusões, Rousseau acabou se vendo na constrangedora situação de ter de se mudar
de sua casa em l’Ermitage, depois de romper com Madame d’Épinay. Ofendido com
uma troca de correspondências mais ácida, por conta de vários desentendimentos,
mudou-se às pressas e foi residir em uma casa bem mais modesta, onde tinha ao
menos mais independência. Algum tempo depois, Monsieur e Madame Luxemburgo,
vendo a situação precária da casa onde foi residir, ofereceram-lhe estadia em um
edifício que ficava em suas terras, ao qual chamavam de “pequeno castelo”. O ano
era de 1759, ele já havia terminado Julie ou a Nova Heloísa e estava concluindo o
Emílio, inspirado pela paisagem bucólica que a casa oferecia.
Foi nesse edifício solitário que me deram à escolha um dos quatro apartamentos completos que ele
contém, além do res do chão composto duma sala de baile, duma sala de bilhar e duma cozinha. Fiquei
com o menor e o mais simples, em cima da cozinha, que eu também tinha. Era duma limpeza de encantar;
a mobília era branca e azul. Foi naquela solidão profunda e deliciosa, no meio dos bosques e das águas,
ouvindo o concerto dos pássaros de toda espécie e sentindo o perfume da flor de laranjeira, que compus
num contínuo êxtase o quinto livro do Émile, cujo colorido tão fresco devo, em grande parte, à viva
impressão do local em que o escrevia (1965, p. 554).
Com d’Alembert Rousseau teve poucas relações pessoais, geralmente ligadas às
publicações, em primeiro lugar, de seus verbetes na Enciclopédia e, depois, em
relação a um dos episódios mais interessantes sobre livros e política. D’Alembert
escreveu o verbete Genebra na Enciclopédia, com o objetivo de favorecer o
estabelecimento do teatro nessa cidade. Foi o próprio Diderot que incentivou
Rousseau a escrever uma longa carta, que virou uma publicação independente,
questionando aquilo que d’Alembert havia dito, pois envolvia não somente o teatro,
mas também questões relativas à religião. Rousseau compôs sua Carta a d’Alembert,
que circulou pela Europa e causou grande agitação, angariando muitos partidários da
posição de Rousseau, que não era favorável à instalação do teatro.
Sobre essa carta há duas questões que chamam a atenção. A primeira delas é sobre
o teatro em Genebra. D’Alembert defendeu, no verbete, que, se Genebra permitisse a
instalação de um teatro, ganharia muito com a arrecadação que esse tipo de casa de
espetáculos pode oferecer, e a Europa ganharia também, pois, graças ao rigor dos
costumes em Genebra, saberia que os artistas (os quais, na época, eram chamados de
comediantes) poderiam ser pessoas de bem e não devassos. Resumamos três aspectos
principais da carta.
Em primeiro lugar, Rousseau admite que o teatro é um entretenimento e que o
homem precisa deles, mas o teatro não é uma forma de diversão natural, e sim
artificial, como tantas outras. Dessa forma, poderá ser bom para determinado povo,
para as cidades, mas não é verdade que o seja para todos. Enfim, o teatro não é bom
ou mau em si, mas em relação aos usos e costumes de cada povo. Em segundo lugar,
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para Rousseau, o teatro não possui a função educativa que d’Alembert alega, pois,
para agradar, deve acentuar as inclinações dos povos e não contrariá-las: “Um povo
feroz e ardente quer sangue, combates, paixões atrozes. Um povo voluptuoso quer
música e danças. Um povo galante quer amor e polidez. Um povo brincalhão quer
gracejos e coisas ridículas” (1993, p. 41).
Sobre o teatro, não deixa de chamar a atenção um interessante paralelo com as
ciências. Rousseau insiste, mais de uma vez, que o espetáculo que o teatro oferece é
em um lugar fechado, iluminado artificialmente, e que os povos simples preferem
espetáculos a céu aberto. Neste, prevalece a transparência, naqueles, o obstáculo.
Esse gosto por lugares abertos também o levou a definir que tipo de ciências mais
gostava de estudar, e a vitória da botânica foi questão de tempo. Como sabemos, ele
estudou medicina, anatomia, química e física. Assim, por experiência própria, lembra
em seus Devaneios do caminhante solitário que os laboratórios de química e física
são ambientes fechados em que, em meio a fornos e cadinhos, respira-se a fumaça de
vapores sufocantes; nos laboratórios de anatomia, o espetáculo é de cadáveres em
decomposição, com suas carnes moles e vapores pestilenciais. “Dou minha palavra
que não é lá que J. J. irá procurar seus divertimentos. Brilhantes flores, coloridos
prados, sombras frescas, regatos, bosquezinhos, verdura, vinde purificar minha
imaginação maculada por todos esses hediondos objetos” (1986, p. 97).
A outra questão não é relativa ao teatro, mas à religião de Genebra. D’Alembert
afirmou em seu texto: “Para resumir, muitos pastores de Genebra têm como única
religião um socinianismo perfeito, rejeitando tudo o que chamamos de ‘mistérios’, e
imaginando que o primeiro princípio de uma verdadeira religião é não propor nada
que se choque com a razão” (1993, p. 157). Ora, Rousseau não admite essa afirmação
– que de fato é bem estranha.
O socinianismo ao qual d’Alembert se refere é uma das “religiões racionais” mais
conhecidas. Foi fundada por Lélio Sozzini ou Socino e se caracteriza por ser
antitrinitária, rejeitar os mistérios, a doutrina do pecado original e considerar que o
batismo é meramente simbólico, nada tendo a ver com a salvação. Essa corrente
religiosa teve continuidade por Fausto Paolo Sozzini, sobrinho de Lélio, que se fixou
na Polônia. Ora, como vemos, a religião sociniana está de fato muito distante da
religião calvinista, na qual os mistérios são aceitos e o batismo tem uma função mais
do que simbólica. Enfim, é muito estranho, de fato, d’Alembert ter confundido essas
duas religiões.
Quanto a Voltaire, suas relações nunca foram de amizade. Voltaire era um autor
mais do que consagrado quando Rousseau ainda era um desconhecido. Seu primeiro
contato foi quando, mesmo diante do fracasso das Musas galantes, Rousseau foi
chamado para concluir a ópera de Voltaire e Rameau. Até aí, houve cordialidade, mas
Voltaire não lhe devotava qualquer atenção especial. Depois, apareceram seus
comentários críticos a Rousseau, a respeito das obras que este publicara, em especial
31
o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. O maior problema entre
eles se deu por conta da questão do teatro em Genebra. Voltaire era o maior defensor
da causa e tinha muitas influências em Genebra que, mais tarde, fizeram a vida de
Jean-Jacques ser bem difícil durante o processo contra suas obras e ele próprio.
Além disso, as rusgas entre os dois ficaram registradas em um episódio muito
interessante. Em 1755, houve um grande terremoto em Lisboa que provocou a morte
de milhares de pessoas. Voltaire, impressionado com o tamanho do desastre, compôs
e publicou o texto Poema sobre o desastre de Lisboa ou o exame deste axioma: Tudo
está bem, cujo teor principal é o questionamento sobre a suposta bondade divina.
Rousseau escreveu-lhe uma carta em resposta que circulou pela Europa, intitulada
Carta a Voltaire sobre a Providência e foi publicada mais tarde em meio a certa
confusão, pois nem Rousseau, nem Voltaire haviam autorizado a publicação dessa
carta. Eis, enfim, a conclusão, da parte de Rousseau sobre o que pensava de Voltaire:
Não gosto de sua pessoa, senhor; fez-me males que poderiam molestar-me muito, a mim, um seu discípulo
e um entusiasta seu. O senhor perdeu Genebra pelo prêmio do asilo que ali recebeu; o senhor afastou de
mim os meus concidadãos, pelo prêmio dos aplausos que eu lhe prodigalizei entre eles; [...] é o senhor que
me faz morrer em terra estrangeira, privado de todos os consolos que os moribundos merecem, e lançado,
com toda honra, no monturo [...] Eu o odeio, enfim, porque o senhor assim o quis [...] Se em sua pessoa só
posso prestar honras ao seu talento, a culpa não é minha. Nunca faltarei ao respeito que é devido à sua
inteligência, nem à conduta que esse respeito exige. Adeus, senhor (1965, p. 575).
No Poema, vemos Voltaire criticar os filósofos otimistas que têm alvos certos: o
filósofo inglês Alexander Pope (1688-1744) e o alemão Gottfried Wilhelm Von
Leibniz (1646-1716). Por outro lado, Voltaire também põe em questão o problema da
teodiceia, ou seja, da origem do mal no mundo. Como explicar que um Deus
onisciente e bom possa admitir um desastre dessa grandeza?
Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra!
Ó agregado horrendo que a todos os mortais encerra!
Exercício eterno que inúteis dores mantém!
Filósofos iludidos que bradais: “Tudo está bem!”;
Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas,
Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas,
[...] Direis vós: “Eis das eternas leis o cumprimento,
Que de um Deus livre e bom requer o discernimento?”
Direis vós, perante tal amontoado de vítimas:
“Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes?”
Que crime, que falta cometeram estes infantes
Sobre o seio materno esmagados e sangrantes?
Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios
Que Londres, que Paris, mergulhados nas delícias?
Lisboa está arruinada e dança-se em Paris (VOLTAIRE, 2006).
Voltaire, não se engane o leitor, não é ateu. Acredita na existência de um Deus de
razão, mas o poema leva ao impasse porque o aborda do ponto de vista teológico
32
(bondade e onisciência de Deus) e metafísico (a ordem do mundo). Rousseau mudará
o enfoque, escapará das questões metafísicas sobre a ordem no mundo, admitindo a
bondade e a onisciência de Deus. O problema não é filosófico, mas histórico:
Sem abandonar o vosso assunto de Lisboa, deveis convir, por exemplo, que a natureza não havia
absolutamente ajuntado ali vinte mil casas de seis a sete andares, e que, se os habitantes dessa grande
cidade estivessem espalhados mais igualmente e mais levemente alojados, o estrago teria sido muito
menor e, talvez, nulo. Todos teriam fugido ao primeiro abalo, e no dia seguinte teriam sido vistos a vinte
léguas de lá, tão alegres como se nada tivesse acontecido; mas foi preciso ficar, teimar em permanecer em
volta das casas, expor-se a novos tremores, porque o que se deixa vale mais do que aquilo que se pode
levar.
Rousseau admirava Voltaire, mas não podia deixar de responder a um poema que
não faz jus à Providência divina, que, para ele, nada tinha a ver com o desastre, pois
este, como vimos, não foi causado pelo terremoto, mas pela cidade e pela vida das
pessoas tão ligadas aos bens materiais.
Quanto a Grimm, as rusgas também foram grandes. Grimm veio da Alemanha em
1748, e rapidamente se inseriu no meio artístico parisiense. Seu primeiro amigo e
aquele que o apresentou ao círculo, especialmente a Diderot, foi Rousseau, que não se
cansou de dizer, várias vezes, que Grimm não o pagou na mesma moeda, que jamais
apresentou a Rousseau os amigos que fez quando “já andava com as próprias pernas”
no meio artístico e literário. O maior conflito, no entanto, foi, sem dúvida alguma, o
imbróglio de l’Ermitage. A Madame d’Épinay, que havia recebido Rousseau, foi
amante de Grimm e, para Rousseau, este a envenenou contra si, até que ela rompeu
relações com ele. Trocaram cartas bastante ácidas e não mais se falaram.
Quanto a Madame d’Épinay, trata-se de uma mulher que, no século XVIII, ousou
pensar por si mesma e escrever. Em especial, interessou-se pelo tema da educação e,
nos momentos em que Rousseau esteve com ela, em l’Ermitage, tiveram mútua
colaboração sobre esse assunto. Segundo Badinter:
Como seu principal interesse dissesse respeito à educação de seus filhos, não parava de questionar a seu
redor sobre esse tema. Descontente com o fato de que sua família tivesse abafado seu primeiro sentimento
maternal, impedindo-a de amamentar e a retirando à presença de seus bebês, Madame d’Épinay fez apelo
a seus amigos Duclos, Rousseau e Grimm, para aprender a arte pedagógica (2003, p. 207).
A respeito de Diderot, já vimos o quão importante ele foi pessoal e
profissionalmente para Rousseau. Esteve presente e foi o primeiro a conhecer as
ideias das quais surgiu o Discurso sobre as ciências e as artes. Nos momentos
difíceis de convívio com Madame d’Épinay, Grimm e outros, manteve a estima e a
confiança no amigo. No entanto, Rousseau desconfiou que Diderot, voluntária ou
involuntariamente, levou ao conhecimento de todos confissões que lhe haviam sido
feitas pessoalmente, o que levou a sua indignação: “Tu também, Diderot! Exclamei.
Indigno amigo!” Procurando um meio para anunciar o rompimento de forma
diplomática, Rousseau inspirou-se na ruptura de Montesquieu com o padre
33
Tournemine: o autor do Espírito das Leis declarou publicamente a ruptura para evitar
que as maledicências, de ambas as partes, tivessem algum crédito. Como fazê-lo?
Ora, o texto da Carta a d’Alembert estava pronto, inseriu no prefácio uma pequena
alusão ao caso, tomada de empréstimo ao Eclesiástico3 e poupando o nome do amigo
com quem ele rompia. A expressão é a seguinte: “Eu tinha um Aristarco severo e
judicioso, não mais o tenho, não quero ter outro, mas sinto contínuas saudades dele, e
ele me falta muito mais ao coração do que aos meus escritos” (1993, p. 31). O efeito
dessa declaração pública foi devastador para Rousseau. Todos souberam de sua
ruptura com Diderot, mas acharam o golpe desleal e, novamente, ele foi considerado
arrogante e mal-intencionado.
Nesse rompimento com Diderot, em que novamente foi mal compreendido, talvez
pudesse ter se lembrado de um episódio pelo qual havia passado muitos anos antes e
que é narrado no Emílio. Estando em uma casa como convidado, ouviu as lições do
preceptor de um dos filhos; não concordava com o que dizia, mas manteve-se quieto.
Logo, todos concordavam com o mestre; Jean-Jacques sentiu vontade de expor sua
opinião, que era contrária à de todos, mas nesse momento, uma mulher, que estava
quieta até então, voltou-se para ele e lhe disse ao pé do ouvido: “Cala-te, JeanJacques, eles não te compreenderão!” (ROUSSEAU, 1992, p. 102). Tivesse carregado
essa lição consigo, teria se poupado de outros episódios semelhantes.
O leitor deve estar se perguntando, agora, “afinal de contas, qual confissão lhe
fora segredada, que Diderot espalhou, causando tanta indignação de Rousseau?” Para
responder a essa pergunta, vamos voltar um pouco no tempo e abordar um tema
interessante da vida de Rousseau, detalhadamente descrito em suas Confissões:
Sophie d’Houdentot. Além de sua importância por ser pivô da ruptura entre os dois
filósofos, Sophie oferece parte significativa do comportamento das duas principais
personagens femininas de Rousseau: sua homônima no livro V do Emílio e Julie,
heroína da Nova Heloísa. Ambas serão mais bem analisadas na segunda parte desta
obra.
Foi Sophie o primeiro e único amor de toda a sua vida! O amor que sentia por
Madame de Warens e por Thérèse o levava a um sentimento calmo, tranquilo. Por
Sophie experimentou o amor em toda a sua fúria: palpitações, frêmitos, vertigens!
Esse amor o deixou tão cego que não percebeu, à sua volta, aproximar-se uma
tempestade de sentimentos negativos como ciúmes e inveja; quando sentiu os
primeiros respingos, permaneceu em sua atitude, confiante de que a transparência de
seu coração e a inocência de seus sentimentos bastariam para aparar os golpes que se
armavam.
Quando a viu pela primeira vez, ela ainda não estava casada e nada de mais houve
entre eles. Somente depois de algum tempo a paixão despertou, pelo convívio em
alguns encontros em l’Ermitage. O marido e o amante Saint-Lambert estavam em
uma campanha militar e Sophie foi residir perto de sua cunhada, Madame d’Épinay.
34
A amizade firmou-se e logo as visitas e os passeios pelo campo foram se tornando
frequentes. Certa vez, Sophie, que, pela descrição do próprio Rousseau, não era muito
bonita, mas era encantadora, foi visitá-lo a cavalo, vestida de homem. Ele estranhou a
necessidade da mascarada, mas nesse mesmo momento percebeu que o amor nascera.
A partir dali, procurou forças para declarar-se, até que um dia, em uma paisagem
bucólica, tomou coragem. Numa noite, passeando em um belo jardim à luz do luar, ao
som de uma cascata artificial, sentados na relva, debaixo de uma acácia coberta de
flores, ousou declarar seu amor. Entre as palavras doces, suas lágrimas caíam
abundantemente e a faziam chorar também. Por motivos diferentes. Ela dizia entre
soluços que não havia outro homem mais digno de ser amado, mas que seu coração
não saberia amar duas vezes. Quanto mais ela recusava seu amor, mais ele a amava
por suas virtudes. Enfim, ficou desse modo: ele caindo de amores por ela e ela por
Saint-Lambert.
Pelo que podemos entender, o problema desses encontros entre os dois é que se
fizeram “debaixo do nariz” de Madame d’Épinay que, pelo visto, não gostou de ver
seu protegido esquecer de seus deveres para com ela, reduzindo-lhe as visitas e os
cuidados para dedicar-se à cunhada. Badinter nos dá uma pista sobre os sentimentos
de Madame d’Épinay por Rousseau:
Madame d’Épinay amou muito Rousseau e tudo fez para provar-lhe seu sentimento. Se é verdade que ela
soube tirar proveito dessa relação de amizade, é certo que ele nunca lhe dedicou sentimentos tão ternos
quanto os que nutria por ele (BADINTER, 2003, p. 91).
Grimm aproveitou-se da situação e logo ocupou o lugar de preferido. Numa trama
novelística, Madame d’Épinay tentou obter as cartas dos supostos amantes –
pressionando Thérèse a entregá-las – e provar a Saint-Lambert que o homem em
quem ele confiou para cuidar de sua amante o traíra. No meio da confusão, Rousseau
desabafou com seu grande amigo Diderot sobre os sentimentos e as tramas em que
estava sendo envolvido. Diderot, por sua vez, foi se aconselhar sobre o que acontecia,
adivinhe com quem: Saint-Lambert! Dessa forma, ele teve a certeza das tentativas de
sedução.
A partir daí as rusgas ficaram tão evidentes que Rousseau, mesmo em pleno
inverno e adoentado, encontrou outra casa e mudou-se às pressas da casa de Madame
d’Épinay. O desdobrar da história foi o rompimento definitivo com Sophie, que lhe
pediu as cartas de volta e garantiu que queimara as dele.
Thèrése foi também envolvida nos conflitos pessoais de Rousseau. Segundo ele,
Diderot e Grimm fizeram várias tentativas de separá-la dele e, em meio ao conflito
que envolvera Madame d’Houdentot, ela foi pressionada a obter as cartas entre
Rousseau e sua amada. Ele, no entanto, achou que o segredo que Thérèse guardou
dessas situações nas quais foi envolvida foram motivos para “magoarem seu
coração”. Mesmo assim, ele jamais se queixou dela e, alguns anos depois, a desposou
para garantir-lhe o sustento em sua ausência, mesmo tendo prometido que não o faria.
35
Aliás, não houve promessa de casamento, mesmo! Comparando seu romance com
Thérèse com o de Diderot e sua Nanette, Rousseau afirma:
Ele tinha a sua Nanette, assim como eu tinha minha Thérèse; era mais uma semelhança entre nós. Mas a
diferença era que minha Thérèse, pessoa tão agradável fisicamente quanto sua Nanette, era de gênio doce
e amável, talhada para prender um homem honrado; ao passo que Nanette, de mau gênio e briguenta, nada
possuía para descontar sua má educação aos olhos dos outros. Todavia ele a desposou. Foi coisa muito
justa, já que lhe havia prometido fazê-lo. Quanto a mim, que nada tinha prometido de semelhante, não
quis tratar de imitá-lo (1965, p. 370-371).
Falar sobre Thérèse nos leva ao tema mais delicado e complexo da vida de
Rousseau: seus filhos. O que dizer a esse respeito, que o próprio Rousseau já não
tenha dito? O fato é que o autor de Emílio ou da Educação, mestre em educação dos
filhos para Madame d’Épinay e outras damas, abandonou seus cinco filhos. Segundo
ele, havia discordância entre a opinião dos pais dos rejeitados. Enquanto ele tomou a
resolução de deixá-los, Thérèse, talvez muito imbuída do espírito da época, submissa
ao companheiro e pai de seus filhos, apesar de não concordar com esse ato, “obedecia
chorando” (1965, p. 370).
Conforme Martins (2009), Rousseau abandonou o primeiro filho em 1746, o
segundo em 1748, dois em 1751 e outro ainda em 1752, recorrendo a uma instituição
social da época, o Enfants-Trouvés ou a “roda dos enjeitados”. Trata-se de um
recurso para que os genitores das crianças não as abandonassem à morte. Surgiu na
Itália, durante a Idade Média, foi criada justamente porque era alto o número de
recém-nascidos encontrados mortos. Assim, a Igreja Católica desenvolveu a
possibilidade de uma entrega anônima das crianças para adoção. O mecanismo
conhecido como “roda dos enjeitados” ou ainda “dos desvalidos”, “dos expostos” e
outros nomes, era um cilindro giratório com um compartimento no qual se depositava
a criança; girando-o, ele se fechava e não se via quem entregou a criança. Tocava-se
uma campainha para avisar que um recém-nascido fora entregue.
Lousada (1965) e Martins (2009) observam que o abandono dos dois primeiros foi
consequência de uma concepção de vida: Rousseau vivia em uma roda de amigos
bastante liberais na casa de Madame la Selle, em Paris. “Isso me seduziu; formei meu
modo de pensar de acordo com o que via dominar entre pessoas tão gentis e no fundo
tão honradas; e a mim mesmo disse: Já que este é o costume da terra, posso segui-lo,
porque nela vivo” (1965, p. 368). Outra hipótese era deixar os filhos sob os cuidados
da família de Thérèse, mas ele descartou, pois não se dava bem com seus familiares,
acreditava que a mãe os mimaria muito e a família faria deles “monstros”.
Quando o terceiro filho nasceu, em 1751, Rousseau já era famoso, especialmente
por causa de seu primeiro Discurso. Como ele mesmo diz, enquanto meditava sobre
os deveres dos homens, foi obrigado a meditar sobre os seus, pois Thérèse
engravidou pela terceira vez e o obrigou a pensar em qual decisão seria a mais
acertada. Nunca, num só instante de sua vida, Jean-Jacques pôde ser um homem sem
36
sentimentos, sem entranhas, um pai desnaturado. “Pude enganar-me, mas não ficar
empedernido” (1965, p. 381). Assim, resolveu-se que o melhor seria deixar as
crianças à adoção, pois ele mesmo não tinha recursos suficientes para tratar delas e
não poderia acompanhar a educação. Rousseau, ao destinar os filhos a ser operários e
camponeses – fim mais comum daqueles que cresciam nos asilos –, e não
aventureiros ou “cavaleiros de indústria”, julgava: “...agi como cidadão e como pai, e
considerava-me como um membro da república de Platão. Mais de uma vez, desde
então, os gemidos de meu coração me disseram que me havia enganado; mas longe
de minha razão me dizer o mesmo” (1965, p. 383).
Rousseau confessou esse seu segredo a poucas pessoas: Madame Dupin,
Chenonceaux e Madame Francueil, que gozavam de sua inteira confiança. Rousseau
teve certeza de que seu segredo fora revelado por Madame d’Épinay, Grimm e
Diderot, depois da ruptura com eles. Jamais os perdoou por tal traição. Várias vezes
reconheceu sua culpa, mas não teve jamais o desejo de prejudicar ninguém, ao
contrário dos amigos que divulgaram seu segredo com o objetivo de prejudicá-lo. Na
carta à Madame Francueil (1751), Rousseau argumenta sobre as razões de suas
decisões, adiantando parte das ideias que desenvolverá mais tarde no segundo
Discurso ou também conhecido como Discurso sobre a origem da desigualdade
entre os homens.
“Não se deve fazer filhos quando não se pode alimentá-los”. Perdoe-me, Madame, a natureza quer que
sejam feitos, pois a terra produz o suficiente para alimentar todo mundo; mas é o estado dos ricos, é o seu
estado que rouba ao meu o pão dos meus filhos. A natureza quer também que sua subsistência seja
garantida, foi o que fiz; se não existisse para eles um asilo, eu cumpriria meu dever e decidiria eu mesmo
morrer de fome, mas não deixaria de alimentá-los (1988, p. 134).
Quando publicou o Emílio (1762), Rousseau ainda não ousou declarar
publicamente que destino dera aos seus filhos. Somente o fez no texto que nos serve
de guia para esta primeira parte. Mas em sua obra sobre a educação não deixou de
tocar no tema do “dever dos pais” e ali inseriu algumas observações que bem
demonstravam seus sentimentos. Para ele, a educação dos filhos é um dever dos pais.
A verdadeira ama é a mãe, assim como o verdadeiro preceptor é o pai, mas alegando
os negócios, as funções, os deveres, os compromissos se esquivam do mais
importante deles. Rousseau insere uma longa nota de rodapé no livro I do Emílio,
descrevendo que Catão, o censor, educou o filho desde o berço; que, conforme
Suetônio, Augusto encarregou-se de ensinar a escrita e a natação aos próprios netos.
Ora, questiona, estes eram homens medíocres demais para entender as grandes
questões que absorvem os homens de seu tempo e que não os deixam cumprir a mais
importante de todas, a educação dos próprios filhos?
Quando descreve uma família, procura demonstrar que esta, quando unida, forma
espíritos muito amáveis. Então, critica o costume de sua época, segundo o qual os
pais devem enviar seus filhos para serem criados em pensões, conventos e colégios,
levar para “alhures o amor à casa paterna, ou melhor, a esta levarão o hábito de não se
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apegarem a nada” (1992, p. 25). No seu caso, aponta nos Devaneios do caminhante
solitário – obra que ficou incompleta –, uma das razões mais fortes para achar que
seus filhos estariam melhor no Enfants-Trouvés do que com ele:
Não estando em condições de educá-los pessoalmente, ter-me-ia sido preciso, em minha situação, que a
mãe os criasse, o que os tornaria mimados e educados por sua família, que deles teria feito monstros.
Ainda estremeço só em pensar (Oitavo Passeio, 1965, p. 383).
O argumento mais importante, porém, vem no parágrafo logo a seguir.
Observemos que é dividido em três temas: uma resposta aos seus acusadores, uma
sentença em que parece se redimir do que escrevera a Madame Francueil e, por fim,
quase a expressão pública de seus atos e dos sentimentos que estes provocavam em
Rousseau.
Um pai, quando engendra e alimenta seus filhos, não faz nisso senão o terço de sua tarefa. Deve homens a
sua espécie, deve à sociedade homens sociáveis; deve cidadãos ao Estado. Todo homem que pode pagar
essa dívida tríplice e não o faz é culpado, e mais culpado ainda, talvez, quando a paga em parte. Quem não
pode pagar os deveres de pai, não tem o direito de ser pai. Não há pobreza, nem tarefas, nem respeito
humano que o dispensem de nutrir seus filhos e de educá-los ele próprio. Leitores, podeis acreditar em
mim: prediz que quem quer que seja tenha entranhas e negligencie tão santos deveres derramará por sua
causa lágrimas amargas e nunca se consolará (1992, p. 25).
Observe que nesse único parágrafo há diversos elementos, cuja análise se faz
absolutamente necessária. Em primeiro lugar, responde aos amigos que o acusaram
de não cumprir seus deveres por não ter cuidado dos próprios filhos. Dividindo a
tarefa em três demonstra que cumpriu apenas a terça parte dela, mas que a maioria
dos homens não as cumpre todas, por isso não teriam o direito de acusá-lo de
negligência. A outra parte que chama a atenção é aquela na qual parece discordar do
que havia escrito para Madame de Francueil, cujo trecho reproduzimos algumas
páginas atrás. Na carta o vemos dizer que, de certa forma, sua pobreza o impediu de
cuidar dos filhos, mas no trecho que lemos acima vemos que ele mudou de opinião:
não há qualquer desculpa para que um pai não se deixe nutrir e educar os próprios
filhos oferecendo mais do que homens à espécie, mas homens sociáveis e bons
cidadãos.
Por fim, a última parte do parágrafo não está mais no campo das desculpas ou
justificações. Vemos Rousseau fazer uma declaração que é comovente. Lembremos
que ele não havia assumido publicamente o abandono dos filhos, mas eis que deu
todas as indicações de que o teria feito e que, por isso mesmo, sabe que não cumprir
os “santos deveres” significa carregar esse peso para o resto da vida: “[...] derramará
por sua causa lágrimas amargas e nunca mais se consolará” (1992, p. 25).
3 “Ainda que tenhas arrancado a espada contra o teu amigo, não desesperes, porque o regresso é possível;
ainda que tenhas dito contra ele palavras desagradáveis, não temas, porque a reconciliação é possível. Salvo se
se tratar de injúrias, afrontas, insolências, revelação de um segredo ou golpes à traição; em todos esses casos
fugirá de ti o teu amigo” (22, 26-27).
38
Capítulo 4
Os últimos anos
Deixamos Rousseau a bordo do navio, partindo para a Inglaterra, a convite de
Hume. Já chegando, alojou-se em uma casa excelente, numa região campestre
chamada Wootton, pertencente ao amigo de Hume, Mr. Davenport. Rousseau
escreveu a Hume expressando seus agradecimentos pela acolhida e pelo apoio que o
amigo lhe dera, material e espiritualmente, naqueles tempos difíceis que vivia.
Porém, houve mais um imbróglio em sua vida. Ao que consta, um amigo de Hume,
Mr. Horace Walpole, publicou uma carta na qual se fazia passar pelo Rei Frederico
da Prússia e convidava Rousseau a residir naquele país. Rousseau tomou
conhecimento da carta e achou que Hume era o autor da farsa e que seu objetivo era
ridicularizá-lo. Foi embora às pressas da Inglaterra em 1766. Hume, quando ficou
sabendo de tudo, ofendeu-se com Rousseau e compôs o seu “Um conciso e genuíno
relato da disputa entre o Sr. Hume e o Sr. Rousseau”. Era o fim de mais uma
amizade, era mais uma mudança de endereço.
Rousseau continua mudando de endereço até o final, sempre envolvido em
conflitos. Não obstante a vida pessoal intensamente perturbada, seus últimos anos
renderam obras de alto valor literário e filosófico. Retorna a Paris sob o nome de
Renou, depois volta a assinar como Rousseau; em 1768, casa-se com Thérèse. Nesse
ano, finalmente, consegue publicar seu Dicionário de música, arte com que, como
vimos, até os seus 35 anos contava ganhar fama em Paris. Em 1770, conclui as
Confissões, que lia nos salões parisienses não sem certo escândalo; novamente a
censura provocada por solicitações de Madame d’Épinay o fez calar. No entanto, ao
final do texto afirma que fez a leitura à condessa d’Egmont, ao senhor príncipe
Pignatelli, à marquesa de Mesmes e ao marquês de Juigné.
Escreveu em 1771 uma de suas obras políticas – à qual voltaremos no estudo do
Contrato Social –, intitulada Considerações sobre o governo da Polônia e sua
reforma projetada, a pedido do conde Wielhorski, um dos nobres poloneses que
organizavam uma revolta contra o governo do Rei Stanislas Poniatowski, que era
subalterno aos interesses de Catarina II da Rússia.
Em 1775, conclui o trabalho também autobiográfico Rousseau juge de JeanJacques: Dialogues. Quis colocar esta obra sob a proteção de Deus no altar-mor da
Catedral de Notre-Dame, mas foi impedido de fazê-lo, porque os portões do altar
estavam fechados. Esse episódio, segundo narra Rousseau, foi sua penúltima tentativa
de ver seu nome inocentado de todas as acusações que lhe imputavam, ou melhor, se
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não seu nome, ao menos seu coração. Ele ainda sonhava, de alguma forma, com o
convívio pacífico com seus contemporâneos. Mas o incidente das grades do altar,
fechadas, o deixou tão revoltado que escreveu um panfleto: A todo francês que ainda
ama a justiça e a verdade, que distribuiu aos passantes em frente à Catedral de NotreDame sem conseguir a atenção de ninguém. Essa tentativa desesperada e a acolhida
fria do desprezo o fizeram perceber que deveria deixar a esperança de voltar ao
convívio da sociedade.
Como afirmou Cassirer, a vida e a obra de Rousseau estão profundamente
imbricadas. Tentar desfazer esses elos nos impedirá de compreender completamente a
obra. A gênese de seus trabalhos, por mais teóricos e abstratos que sejam, está sempre
vinculada às experiências de vida pelas quais passou e pelas questões de seu tempo,
para as quais acreditava poder oferecer respostas.
Vimos Jean-Jacques, como ele diz nas Confissões, em sua inteireza, sem nada
esconder, nem de suas fraquezas, nem de suas convicções; vimo-lo aventurar-se sem
dinheiro e sem qualquer recurso pelo campo; viver entre os homens da sociedade;
bater-se contra biltres que ofendiam uma pobre camareira; ser processado e
perseguido. Enfim, vimos um homem que, como todos nós, existiu nesta terra com
todos os seus infortúnios e com suas benesses.
Nos dois últimos anos de sua vida, viveu recluso com Thérèse, trabalhando em
seus estudos de botânica; colhendo, estudando e catalogando plantas para seu
Dicionário de Botânica. Decidiu escrever aquela que seria uma de suas obras mais
belas: os Devaneios do caminhante solitário, que ficou inconclusa. Nas primeiras
linhas deixa transparecer sua situação: “Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo
apenas a mim mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia. O mais sociável e o
mais afetuoso dos humanos dela foi proscrito por um acordo unânime” (1986, p. 23).
Para ele, os inimigos, ao tentarem destruí-lo completamente, ofereceram-lhe a ocasião
para voltar à tranquilidade: retirando-lhe todas as esperanças de voltar ao convívio
dos homens, não lhe deixaram mais nada além de ficar só; e nessa solidão, o coração
purificado no “cadinho da adversidade”, encontrando a tranquilidade que sempre
buscara.
Rousseau encerrou seus dias com a maior felicidade que podia sentir naquele
momento. Estava próximo à natureza, estudando as plantas; em companhia de
Thérèse. Por suas opções e pelos acidentes que lhe ocorreram, talvez não tenha
desfrutado daquela que era a maior felicidade por ele mesmo definida no Discurso
sobre a desigualdade: “O hábito de viver junto fez com que nascessem os mais doces
sentimentos que são conhecidos do homem, como o amor conjugal e o amor
paterno”. Esse paradoxo, contudo, não nos parece ter sido elaborado por Rousseau,
mas parece ser uma situação da existência humana, que não se pode prever.
Eis como terminou a aventura que foi a vida de Jean-Jacques desde que deixou
Genebra. Lembremos do que ele registrou nas Confissões quando deu seus primeiros
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passos para uma vida independente: “Minha ambição se limitava a um só castelo;
favorito do soberano e da Madame, namorado da jovem, amigo do irmão e protetor
dos vizinhos, ficava contente; não me era preciso mais nada” (1965, p. 58). Não
estava em um castelo, não tinha amigos, não pôde proteger os vizinhos – se bem que
tentou, senão com a espada, ao menos com seus livros –, nem casou-se com sua
princesa verdadeiramente amada.
Todavia, não é dessa forma que encerraremos esta primeira parte. Em geral, os
estudiosos de seu pensamento e de sua vida nos apresentam um Rousseau
melodramático, melancólico, alguém que, ao final da vida ainda estava à procura da
felicidade, remoendo, em seus últimos escritos, suas amarguras. Como todo mundo,
teve momentos de tristeza, desespero, mas também de felicidade. É com um episódio
assim, vivido nos últimos meses de sua vida, que encerro esta parte biográfica:
Um domingo, fomos, minha mulher e eu, almoçar na porta Maillot. Após o almoço, atravessamos o
bosque de Boulogne até Muette; lá, sentamos na relva, à sombra, esperando que o sol baixasse, para
voltarmos, em seguida, tranquilamente, por Passy. Umas vinte meninas, conduzidas por uma espécie de
Religiosa, vieram, algumas para se sentar, outras para se divertir, bastante perto de nós. Durante seus
jogos, passou um vendedor de oublies, com seu mostrador, procurando clientes. Vi que as meninas
cobiçavam as oublies, e duas ou três entre elas que evidentemente possuíam alguns liards, pediram
permissão para jogar. Enquanto a Governanta hesitava e argumentava, chamei o vendedor e lhe disse:
fazei com que todas essas donzelas tirem à sorte, cada uma por sua vez e eu vos pagarei o total. Essas
palavras produziram em todo o grupo uma alegria que teria mais do que pago minha bolsa, se a tivesse
usado só para isso (1986, p. 121).
Esse episódio, sim, descreve verdadeiramente Rousseau: a tranquilidade ao lado
de Thérèse; a verdadeira felicidade que, para ser obtida, não requer mais do que
alguns liards; o contato com a natureza e, acima de tudo, o convívio com as crianças
a quem ele amou a vida inteira.
Mudou-se para o Ermenoville em maio de 1778 e faleceu pouco mais de um mês
depois. Foi enterrado na ilha de Peupliers, e seus restos mortais foram transferidos ao
Panteon em 11 de outubro de 1794, ao som das árias do Advinho da aldeia. Thérèse
casou-se com Jean-Henri Bally em 1779, e com ele viveu até sua morte, em Le
Plessis-Belleville, em 1801.
41
Parte 2
42
Introdução
As principais obras de Rousseau foram escritas entre 1750 e 1761. Portanto, num
período de onze anos saem de sua pena: o primeiro (1750) e o segundo (1754)
Discursos; Julie ou a Nova Heloísa (1760); Emílio ou da Educação e ainda Do
contrato social (ambos de 1762). Há pequenos textos anteriores a essa produção que
estão profundamente ligados aos mesmos princípios, como, por exemplo, os verbetes
da Enciclopédia “Economia política” e “Música”. Outras obras sucederam-se àquelas
capitais, como resposta à condenação de Genebra: Cartas escritas da montanha; as
Considerações sobre o governo da Polônia, além das autobiografias já citadas. A
escolha dessas quatro obras deveu-se à sua importância decisiva para o pensamento
de Rousseau; importância destacada pelo próprio autor que, nas Confissões, declara:
“Tudo o que há de atrevido no Contrato social já surgira antes no Discours sur
l’Inégalité; tudo o que há de audacioso em Émile já o era em Julie. Ora, essas
afirmativas audaciosas não excitaram nenhum escândalo contra as duas obras, logo,
não foram elas que o excitaram contra as duas últimas” (ROUSSEAU, 1965, p. 435).
No entanto, para realizar nossa análise, vamos fragmentar nosso exercício em dois
blocos. O primeiro será composto pelo Discurso sobre as origens e os fundamentos
da desigualdade entre os homens (1754) e o Do contrato social (1762); o segundo
bloco será composto por Julie ou a Nova Heloísa (1761) e pelo Emílio ou da
Educação (1762).
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Capítulo 5
O discurso sobre a desigualdade
Esse discurso foi escrito por Rousseau em 1753, motivado por outro concurso da
Academia de Dijon, cujo tema era: Qual é a origem da desigualdade entre os
homens, e ela é autorizada pela lei natural? Apesar de ter enviado o texto para os
juízes do concurso, tinha certeza de que, dessa vez, não seria premiado. De todo
modo, havia obtido a celebridade e sua resposta à questão interessava ao público. Isso
o motivou a publicar o discurso em 1754. Os editores foram felizes: a obra provocou
grande polêmica e Rousseau, novamente, foi alvo de críticas dos seus inimigos, ora
mais graves, ora mais irônicas.
Do ponto de vista da história da filosofia, nessa obra Rousseau adentrou o debate
sobre o problema da teodiceia, isto é, como explicar a origem do mal no mundo. Em
especial, saber se o homem é bom ou mau por natureza. O dilema em questão é: se o
homem é mau por natureza, como explicar que Deus, sendo sumamente bom e
poderoso, pôs o mal no coração do homem? Por outro lado, se Deus não fez isso, e o
homem nasceu bom por natureza, como explicar a origem do mal? Rousseau
retomará os mesmos princípios da Carta a Voltaire: o mal que os homens vivem é
somente consequência de suas próprias criações, portanto, a desigualdade –
provavelmente, o maior de todos os males – nada tem a ver com a obra de Deus.
Assim como os maus sentimentos que temos: ciúmes, raiva, ira, medo nada têm a ver
com a obra de Deus, mas com a dos próprios homens.
Essa obra merece um lugar especial na história da filosofia, porque apresenta
certas peculiaridades. Em primeiro lugar, o prefácio, dedicado à República de
Genebra, repleto de implicações políticas; depois, destaca-se a concepção do homem
natural, de forma original a dos seus antecessores, e a passagem mais conhecida,
aquela na qual Rousseau define a origem da desigualdade entre os homens na
propriedade privada. Do ponto de vista metodológico, a obra é interessante pela
forma como Rousseau articulou diversas fontes para descrever o homem em estado
de natureza. As narrativas de viajantes europeus na América, África e Ásia
forneceram importantes informações, pois foi possível comparar os modos e os
costumes dos europeus aos de outros povos, permitindo vislumbrar a diferença entre
o que estava por trás das máscaras da educação e do hábito daquilo que é próprio da
natureza humana. Dentre outras, destacaram-se a obra do padre dominicano JeanBaptiste du Tertre (1610-1687), História geral das Antilhas habitadas pelos
franceses (1671); a de Georges Louis Leclerc, o conde de Buffon, principal autor e
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organizador da História natural geral e particular, publicada entre 1749 e 1804.
A descrição das fontes nos leva imediatamente ao ponto principal da primeira
parte da obra: em nenhum momento Rousseau confunde os povos nativos da América
ou da África com o “homem em estado de natureza”. Tais povos podem estar mais
próximos da natureza que os europeus, mas não nos dão o exato registro da natureza
humana. O próprio Montaigne, por mais lúcidas que fossem suas reflexões em seus
Ensaios, não se salvou da armadilha que já enredara outros contemporâneos de
Rousseau. Montaigne pecava em sua análise, pois, ao descrever os horrores do
canibalismo, acreditava que o mal estivesse na natureza humana.
A dedicatória é um grande elogio à República de Genebra, que teria superado,
inclusive, os exemplos paradigmáticos de Atenas e Roma. Elogia os magistrados, os
cidadãos, os burgueses e compreende que ali se encontra a “maior liberdade
possível”, uma vez que as virtudes individuais são iguais às virtudes civis. Em
especial, elogia as “amáveis e virtuosas cidadãs” que, com seus bons modos, são a
origem da virtude dos cidadãos; assim como as mulheres de Esparta governavam os
homens, porque pariam homens, as de Genebra governavam os genebrinos.
Muitos intérpretes afirmam que Rousseau exagerou nos louvores à sua cidade
natal, criando uma Genebra mítica. Depois da condenação do autor e das obras em
1762, será que ele manteve o mesmo tom elogioso? Suas afirmações nas Cartas
escritas da montanha viriam contradizer o prefácio do segundo Discurso?
Acreditamos que não. Nas Cartas, há distinção entre “o Estado legítimo de Genebra”,
suas leis e suas instituições sociais do “Estado atual”, ou seja, como, a despeito das
leis, o Estado é governado. Portanto, criticar o governo de Genebra nas Cartas não é
o mesmo que criticar as leis de sua terra natal; seus argumentos são desenvolvidos,
justamente, para que Genebra volte ao império das leis e não dos governantes.
O prefácio é uma obra muito interessante. Ali demonstra a importância de seu
objeto: “O mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos pareceme ser o do homem, e ouso afirmar que a simples inscrição do templo de Delfos
continha um preceito mais importante e mais difícil que todos os grossos livros dos
moralistas” (ROUSSEAU, 1973, p. 234). A inscrição acima referida é a que Sócrates
adota como sua máxima: Conhece-te a ti mesmo.
Para conhecer o homem da natureza, é preciso distinguir o que é da natureza
humana e o que foi acrescentado pela educação;4 distinguir o natural do artificial.
Essa tarefa não é exatamente científica, porque os testemunhos da história são
“incertos”, assim como os dos viajantes. Então, o máximo que se propõe a fazer é
reduzir a questão ao seu “verdadeiro estado”, em vez de propor a resposta definitiva a
ela. Como será possível ver o homem tal qual a natureza o fez depois que tantas
intervenções do próprio homem se sobrepõem à sua obra? Rousseau retoma a
metáfora da estátua do deus Glauco, que se encontra no livro X da República de
Platão, e insere pequenas mudanças que o levam ao seu próprio objeto de reflexão:
45
Como a estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries tinham desfigurado de tal modo que se
assemelhava mais a um animal feroz do que a um deus, a alma humana, alterada no seio da sociedade por
milhares de causas sempre renovadas, pela aquisição de uma multidão de conhecimentos e de erros, pelas
mudanças que se dão na constituição dos corpos e pelo choque contínuo das paixões, por assim dizer
mudou de aparência a ponto de tornar-se quase irreconhecível e, em lugar de um ser agindo sempre por
princípios certos e invariáveis, em lugar dessa simplicidade celeste e majestosa com a qual seu autor a
tinha marcado, não se encontra senão o contraste disforme entre a paixão que crê raciocinar e o
entendimento delirante (ROUSSEAU, 1973, p. 233).
Podemos observar aqui dois elementos fundamentais da primeira parte do segundo
Discurso. O primeiro elemento se refere aos “princípios certos e invariáveis” que
podem se referir aos “instintos” que os homens possuem, semelhantes ao dos outros
animais; os animais vivem somente a partir desses princípios e o fazem muito bem.
Por outro lado, também é da natureza humana aquilo que a diferencia dos outros
animais, as paixões, mas elas não necessariamente conduzem às paixões que vemos
nos homens da sociedade: ciúmes, inveja, ira, amor aos bens materiais etc. Estas não
são naturais. Assim, veremos Rousseau, mais para frente, definir o que são, para ele,
as paixões naturais humanas.
Abordando especificamente o tema do concurso, afirma que há dois tipos de
desigualdade: uma natural e outra moral ou política. A primeira é caracterizada pela
diferença de idade, saúde, forças do corpo, bem como pelas “qualidades do espírito e
da alma”. A outra é caracterizada pelos privilégios que a sociedade concede a alguns:
riqueza, honrarias e poder. A tese da obra é a de que essas duas fontes de
desigualdade nada têm em comum; as desigualdades sociais não encontram sua
origem na natureza ou na desigualdade natural. O fato de existirem servos e senhores,
pobres e ricos, não deriva do fato de haver pessoas fortes e fracas, mais ou menos
dotadas de “espírito”. Enfim, a desigualdade civil e moral é inteiramente obra
humana; a natureza humana não prepara um indivíduo para ser escravo e outro
senhor, como acreditavam Platão, Aristóteles e outros filósofos.
Rousseau irá analisar o homem natural a partir do corpo e também dos aspectos
metafísicos e morais. A natureza dotou o homem de condições suficientes para
sobreviver em meio a outros animais: se não é o mais forte, possui habilidades
suficientes para se defender e caçar. Cada homem, vivendo isoladamente, poderia
prover sua própria subsistência sem precisar contar com o auxílio de outrem. Dessa
forma, não haveria necessidade de acumular bens; nem de enfrentar conflitos que
colocassem em risco sua existência: se um animal mais forte, inclusive outro homem,
o ameaça, ele poderá resistir até o ponto que interesse para sua sobrevivência, não
lutaria “até a morte” por um pedaço de carne ou por um abrigo. Vive em completa
independência e essa é a garantia de sua paz.
Do ponto de vista moral e metafísico, as características são as seguintes. Os outros
animais não conseguem desviar-se do que a natureza lhes impõe, a perfeição de seu
estado é derivada desse limite. O homem, por sua vez, é livre e, na maior parte das
46
vezes, não obedece à natureza; indo contra ela, colhe prejuízos. Se essa liberdade
humana é facilmente observada, não parece ser, por outro lado, fácil apontar sua
origem. Como explicar que um animal da natureza foi dotado, por ela mesma, da
capacidade de não lhe seguir os impulsos? Para Rousseau, há uma característica
natural e exclusiva do ser humano que pode justificar o fato de ser capaz de superar
os limites da própria natureza: a perfectibilidade.
Mas, ainda quando as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem por um instante de causar
discussão sobre diferença entre o homem e o animal, haveria outra qualidade muito específica que os
distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade
que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós,
tanto na espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por
toda vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro desses milhares (ROUSSEAU,
1973, p. 249).
Portanto, Rousseau discorda da ideia de que a razão ou a linguagem é que são os
elementos de diferenciação entre os homens e os animais. Na sociedade essa
diferença é evidente, mas ela também tem uma origem que é a perfectibilidade. O uso
da razão pressupõe o desenvolvimento de muitas faculdades humanas, assim como a
linguagem. Aqui podemos fazer também uma crítica à interpretação de Marx sobre o
mesmo problema. O autor de O Capital indica como elemento diferenciador entre os
homens e os animais o trabalho, mas este, tal como a razão e a linguagem, é fruto de
uma série de progressos e não da possibilidade de surgirem esses progressos. Até
mesmo poderíamos dizer que o trabalho, na perspectiva de Marx, surgiu somente
depois que a razão e a linguagem estavam muito desenvolvidas.
Rousseau utiliza raciocínios paradoxais para chamar a atenção do leitor; esses
raciocínios deixam hiatos entre as premissas e a conclusão, de tal modo que chocam a
razão. Ora, esses hiatos devem ser preenchidos pelo próprio leitor, que é levado a
retomar o princípio do texto, o que torna a obra objeto de cuidadosa leitura. O
primeiro é “Por que só o homem é suscetível de se tornar imbecil?” (p. 249), e o
segundo: “o animal que raciocina é um animal depravado?”. Quanto ao primeiro
paradoxo, temos o seguinte: o homem é o único animal que pode escapar às
exigências da natureza, isso lhe dá condições de decidir o que fazer, ao contrário dos
animais, que seguem necessariamente o instinto. Dessa forma, ao ter liberdade,
muitas vezes escolhe o pior para si e seus semelhantes (“tornar-se imbecil”) assim
temos: o homem é um ser natural – possui liberdade de escolha –, pode escolher entre
o que é melhor e o que é pior para ele – frequentemente escolhe o pior.
O segundo paradoxo apresenta o mesmo sentido e se explica da seguinte forma. O
animal que raciocina é diferente dos outros animais que podem até ter ideias, mas não
raciocínios complexos; seu raciocínio o leva a ter poder de escolher o que é melhor
para si e seus semelhantes. Frequentemente, levado por uma multidão de vícios,
acaba escolhendo o que é pior. Por isso, só o homem tem a capacidade de se tornar
“depravado e imbecil”. Rousseau não está dizendo que essa é a nossa única opção
47
enquanto homens.
Afinal de contas, como o homem passou da condição de ser inteiramente natural,
só e independente, a viver em sociedade? Há uma longa série de acontecimentos que
conjecturam sobre essa passagem. Até aqui, Rousseau dedicou-se a demonstrar como
ela foi possível pela própria natureza humana. Trata-se de uma série de acidentes
geográficos que levaram o ser humano a progredir. Insistimos, novamente, os outros
animais também estavam sujeitos aos mesmos acidentes, por que não progrediram?
Porque não possuíam a perfectibilidade.
Rousseau concebe no homem em estado de natureza duas paixões naturais: o amor
de si e a piedade natural, observáveis também em outros animais. Em estado de
natureza, o homem seria um ser amoral. Quando Rousseau afirma que o homem é
bom por natureza, não quer dizer que ele possua os princípios das virtudes sociais que
conhecemos. Estas, tais quais os vícios, são sociais. Assim, a sua bondade deriva,
antes de mais nada, de não haver qualquer princípio de “maldade”. Quando Hobbes
afirma que o homem é egoísta, e Pascal, que ele é tímido, não estão falando de
paixões do homem em estado de natureza, mas do homem em sociedade; tais paixões
não existem na natureza. O amor de si o leva a preservar-se, a piedade natural, à
comiseração com outro ser que sofre. O amor de si, desenvolvendo-se na sociedade,
torna-se, ao se degenerar, amor próprio;5 a piedade natural, por sua vez, é a fonte de
todas as virtudes sociais, e, moderando o amor de si, concorre para a preservação da
espécie.
O homem em estado de natureza continuaria a sentir sua existência, preocupandose em preservar-se – como todos os outros animais –, se não fosse pelo fato de a
perfectibilidade lhe permitir desenvolver suas paixões e comparar-se com outros
animais. Seu sentimento foi de superioridade e orgulho de si e, a partir daí,
comparou-se com seus semelhantes. Aqui, Rousseau responde a um problema legado
por Aristóteles. Para esse filósofo, o homem é naturalmente sociável, mas Rousseau,
discordando da tese, quer conjecturar como a sociabilidade também é fruto de
princípios que lhe são anteriores.
Os homens fizeram suas primeiras associações para atingir um fim comum: a
caça, por exemplo. Uma vez atingido o objetivo, a sociedade se desfazia e não havia
mais compromisso mútuo. Aliás, para ele, assim também os homens se reproduziam:
uma vez o casal associado, e satisfeito o desejo, separavam-se e não se estabelecia
qualquer compromisso moral. Somente aos poucos, os homens foram desenvolvendo
o sentimento da sociabilidade e, comparando-se com outros homens, adquirindo os
princípios de compromissos que não estão inscritos na natureza.
Foi preciso saltar “uma multidão de séculos” para que o homem desse estado de
natureza começasse a se aperfeiçoar e desenvolver sentimentos: “os primeiros
progressos do coração resultaram numa situação nova que reunia, numa habitação
comum, maridos e mulheres, os pais e os filhos. O hábito de viver juntos fez com que
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nascessem os mais doces sentimentos que são conhecidos do homem: o amor
conjugal e o amor paterno” (ROUSSEAU, 1973, p. 268). Então, chegamos à nossa
primeira conclusão: o primeiro passo para passarmos de seres independentes para a
sociedade foi a formação das famílias, a partir dos sentimentos.
Depois vieram as primeiras comunidades: “Os homens habituaram-se a reunir-se
diante das cabanas ou em torno de uma árvore grande; o canto e a dança, verdadeiros
filhos do amor e do lazer, tornaram-se a distração, ou melhor, a ocupação dos homens
e das mulheres ociosos e agrupados” (ROUSSEAU, 1973, p. 269). Assim, as
comunidades foram crescendo juntamente com o afeto mútuo, mas também com
sentimentos um tanto negativos, pois surgiram comparações como o mais belo, o
mais forte, o que cantava melhor e assim, inveja, desprezo e vergonha começaram a
brotar no coração humano.
Chegamos ao momento em que, conforme a linha de raciocínio do segundo
Discurso, seria o ápice da existência humana: a formação de pequenas comunidades
autossuficientes, nas quais todas as necessidades eram providas pelo trabalho comum,
e não havia nada que um homem não pudesse fazer sozinho. O critério é, portanto, o
da independência, seja do homem ou das comunidades, nas quais não havia divisão
entre ricos e pobres:
Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a costurar com
espinhos ou com cerdas suas roupas de peles, a enfeitar-se com plumas e conchas, a pintar o corpo com
várias cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus arcos e flechas, a cortar, com pedras agudas, algumas canoas
de pescador ou alguns instrumentos grosseiros de música – em uma palavra: enquanto só se dedicaram a
obras que um único homem podia criar e a artes que não solicitavam o concurso de várias mãos, viveram
tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza, e continuaram a gozar entre si das
doçuras de um comércio independente (ROUSSEAU, 1973, p. 270-271).
Vemos, então, que, mesmo que consideremos uma “queda” na história humana, de
um modelo ontológico superior para um inferior, não se trataria do momento inicial
da humanidade, pois ali os homens se encontram no mesmo estado dos outros
animais: em completa dependência da natureza; nem dos momentos posteriores em
que os homens, iniciando seu desenvolvimento, ainda vivem em completa
independência uns dos outros, sem formar famílias. Mas é a partir do momento em
que estas comunidades se estabelecem que se inicia a possível queda. A sequência do
texto é significativa, como veremos. A desigualdade social nasce no instante em que
se perde a independência:
[...] mas, desde o instante em que um homem sentiu necessidade de socorro de outro, desde que se
percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a
propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis,
que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e
crescerem com as colheitas [...] (ROUSSEAU, 1973, p. 271).
Eis a origem da desigualdade! Aqui, pela estrutura do texto, já entramos na
segunda parte, mas fizemos uma leitura que evita o estilo de Rousseau e seguimos
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“cronologicamente” sua explicação. Rousseau, retoricamente, aponta a propriedade
privada como “origem”, mas ele mesmo admite que, para chegar a essa ideia, a
humanidade já teria progredido bastante no caminho da desigualdade. Assim, afirma
que, enquanto para o poeta, o ouro e a prata produziram uma grande revolução,
gerando a desigualdade, para ele foram a metalurgia e a agricultura. Quanto mais o
gênero humano crescia, mais alimentos eram necessários, porém, para que a
agricultura pudesse ser mais produtiva, precisaram de melhores ferramentas; logo,
havia homens dedicando-se somente a uma arte ou outra. A agricultura levou à
partilha das terras. Para Rousseau, a ideia de propriedade nasce da ideia de trabalho:
cada agricultor reivindica o fruto daquilo que cultivou na terra, logo, dá-lhe direito
sobre a gleba em que trabalhou, enquanto ali está o produto do seu trabalho;
renovando-se essa posse todo ano, logo surge a ideia de propriedade. Agora sim,
podemos – a partir desse “recorte” da obra de Rousseau – entender como a
propriedade é a mãe da desigualdade:
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de
dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras,
assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou
enchendo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estaríeis
perdidos se esquecerdes de que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!” Grande é a
possibilidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao ponto de não poder mais permanecer
como eram, pois essa ideia de propriedade, dependendo de muitas ideias anteriores que só poderiam ter
nascido sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito humano (ROUSSEAU, 1973, p. 265).
O outro estágio da desigualdade foi o estabelecimento do falso pacto ou o pacto
social do rico, pelo qual os mais ricos, para manter o que possuíam, induziram os
mais pobres a defender seu interesse, imaginando que defendiam os interesses de
todos:
Unamo-nos para defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse
daquilo que lhe pertence; instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a
conformar-se, que não abram exceção para ninguém e que, submetendo igualmente a deveres mútuos o
poderoso e o fraco, reparem-se de certo modo os caprichos da fortuna. Em uma palavra, em lugar de voltar
nossas forças contra nós mesmos, reunamo-nos num poder supremo que nos governe e defenda todos os
membros da associação, expulse os inimigos comuns e nos mantenha em concórdia eterna (ROUSSEAU,
1973, p. 275).
Rousseau em nada poupa o estabelecimento da sociedade civil como uma forma
de legitimar a desigualdade entre ricos e pobres; ela já existia “de fato”, mas não “de
direito”. Como vimos, ao longo de toda a segunda parte do Discurso sobre a
desigualdade, demonstra como, das primeiras comunidades, surgem as primeiras
relações de trabalho que começam a diferenciar pobres de ricos. Se as sociedades se
limitassem a uma situação em que todos teriam o necessário e trabalhassem de
comum acordo, sem haver a necessidade de um explorar o trabalho do outro, então
não teríamos necessidade do estabelecimento do Estado.
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Reações ao Discurso sobre a desigualdade
Rousseau enfrentou duras críticas ao seu discurso. O Mercure de France publicou,
em 1775, uma carta assinada pelo senhor Philopolis (pseudônimo do genebrino
Charles Bonnet). O termo escolhido ilustra a leitura mais comum dessa obra: pode ser
entendido como “defensor da civilização”, pois o termo “polis” não remete somente à
cidade-estado, mas ao modo de vida nas cidades: “policiado”, sinônimo de civilizado.
Ora, tal termo quer opor-se ao segundo Discurso que, para muitos, atacou a
civilização, “defendendo” um retorno à vida natural.
A resposta ao senhor Philopolis nos serve de guia para ler o próprio Discurso
sobre a desigualdade. Em primeiro lugar, insiste que, via de regra, ao definir a
natureza humana, muitos filósofos atribuíram a ela características que só poderiam ter
vindo da sociedade, sendo, portanto, fruto dos hábitos e da educação. Os filósofos
observaram os homens civilizados e deduziram de seu comportamento a natureza
humana e, por que não dizer, de certa forma deduziram que o próprio Estado é
natural. Rousseau demonstra como, de certa forma, Aristóteles havia influenciado
decisivamente a antropologia filosófica e a filosofia política: ao dizer que o homem é
um “animal político”, conclui-se que o Estado é, portanto, natural.
Outra reação bastante negativa foi a de Voltaire. Ele recebeu um exemplar do
Discurso sobre a desigualdade e fez a seguinte observação:
Recebi, senhor, vosso novo livro contra o gênero humano. Obrigado. Nunca se empregou tanta sutileza no
sentido de nos bestializar; dá vontade de andar de quatro, quando acabamos de ler o seu livro. Não
obstante, como perdi tal hábito há mais de sessenta anos, desgraçadamente sinto ser impossível recuperálo, e deixo essa postura natural aos que são mais dignos dela do que o senhor e eu (VOLTAIRE, 2011, p.
183-184).
Apesar da ironia espirituosa e de provocar risos até mesmo nos estudiosos de
Rousseau, a crítica de Voltaire não atinge o cerne do segundo Discurso, pois o
autor do Cândido parte do mesmo princípio de outros leitores de Rousseau, ou
seja, o princípio de que o segundo Discurso é uma espécie de elogio ao estado de
natureza e que Rousseau está propondo o abandono do estado de civilização. Por
que não dizer, até mesmo do contrato social? Ao que parece, alguns anos depois,
numa peça de teatro, um personagem entrava engatinhando. Ao perguntarem quem
era ele, dizia: sou o homem natural de Rousseau!
Conclusão
À guisa de conclusão desta apresentação do segundo Discurso, poderíamos dizer
que essa obra, em virtude dos paradoxos e da retórica de Rousseau, provocou uma
série de polêmicas, e ainda hoje provoca, até mesmo para os estudiosos do seu
pensamento. Muitos intérpretes consideram que, para Rousseau, a humanidade vive
uma “história em declínio”. Tal concepção, vista sob o ângulo dessa obra, é
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adequada, pois é na sociedade que surgem as relações servis de trabalho, a exploração
do homem pelo homem, as sociedades políticas que nada mais fazem do que defender
os interesses dos ricos etc. Assim, apontam um “pessimismo histórico” ao lado de um
“otimismo antropológico”, ou seja, apesar da história da humanidade ser um declínio,
a alma humana manteve-se íntegra.
Não há dúvida de que uma visão como a de Rousseau sobre a história humana é profundamente negativa.
Pois o que é, afinal, esse longo processo de evolução senão a gênese de nossos vícios e dos nossos males,
e a nossa história senão um movimento de queda, tal como o relato bíblico? Expulso do paraíso, o homem
está condenado a ser o lobo do homem. Todo esse pessimismo histórico, pelo menos, salva o homem e sua
natureza essencial [...] ao pessimismo histórico contrapõe-se um otimismo antropológico (FORTES,
1989, p. 45).
Havemos de considerar, porém, que essa obra tem um determinado objetivo e que
pode não ser a última palavra de Rousseau a respeito do tema, nem relativamente à
história nem ao contrato social. A interpretação da “história em declínio”, portanto,
não é a única possível. Observemos que, por exemplo, várias nações são descritas por
Rousseau como sociedades em que se viveu com liberdade, destacando-se Esparta,
Roma (republicana) e sua própria Genebra. Então, ao lado do “otimismo
antropológico” haveria também um “otimismo político”. Em tais exemplos, os
cidadãos expulsaram os tiranos e salvaram a nação da morte, criando um Estado tão
livre quanto possa ser.
Há ainda outro aspecto a ser levado em conta: o início do Contrato social. Nessa
obra encontramos algumas passagens que auxiliam a elucidação de alguns conceitos
do segundo Discurso. No início do capítulo 1 do Contrato Social lê-se: “O homem
nasce livre e, por toda parte encontra-se a ferros [...] Como adveio tal mudança?
Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão” (ROUSSEAU,
1973, p. 28). Como bem observa o comentário de Machado na edição de Os
Pensadores, Rousseau não ignora como ocorreu essa mudança, ela está descrita no
Discurso sobre a desigualdade, mas ele não quer voltar ao tema. Seu objetivo é
analisar a seguinte situação: o retorno ao ápice da sociedade humana não é mais
possível, só o que podemos esperar é viver em sociedades organizadas politicamente,
dessa forma, sob leis, governo etc. Assim, como essa é a condição atual, “os homens
como são e as leis tais quais podem ser”, pode-se encontrar um modo de legitimar a
vida em sociedade, tornando os homens “tão livres quanto possam ser”.
Por fim, há ainda uma passagem mais contundente no início do Contrato que nos
remete diretamente ao segundo Discurso. Trata-se do capítulo do estado civil:
A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável,
substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes
faltava. É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito o lugar do apetite, o
homem, até aí levando em consideração apenas sua pessoa, vê-se forçado a agir baseando-se em outros
princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas inclinações. Embora nesse estado se prive de muitas
vantagens que fruem da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se exercem e se
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desenvolvem, suas ideias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto
que, se os abusos dessa nova condição não o degradassem frequentemente a uma condição inferir àquela
donde saiu, deveria sem cessar bendizer o instante feliz que dela o arrancou para sempre e fez, de um
animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem (1973, p. 42, os grifos são nossos).
Sem dúvida alguma, Rousseau não vê a vida nas cidades, dos homens “policiados”
ou “civilizados”, como modelo ideal, ao contrário, para ele a vida nas cidades
prejudica tanto o corpo quanto a alma. O campo é o modelo paradigmático que adota
e ele mesmo preferiu, como vimos na primeira parte deste livro, viver mais próximo à
natureza do que às cidades e seus homens. Vimos que o ápice do gênero humano foi a
vida das comunidades nas quais ainda reinava a independência de cada um e somente
os laços afetivos mantinham todos unidos. No entanto, em nenhum momento vemos a
proposta de retorno à vida simples, como se propusesse que se destruíssem as cidades
ou algo parecido, nem tampouco, por outro lado, um pessimismo histórico.
É uma obra teórica, por isso, são várias as interpretações possíveis, mas acho
interessante encerrar esta apresentação com as palavras do autor no prefácio: “[...]
não constitui empreendimento trivial separar o que há de original e de artificial na
natureza atual do homem, e conhecer com exatidão um estado que não mais existe,
que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá” (ROUSSEAU,
1973, p. 324).
CONTINUAR A PENSAR
Quando Rousseau escreveu o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens, afirmou que há dois tipos de desigualdade: a natural e a artificial ou da sociedade. Para Rousseau,
a primeira não justifica, de forma alguma, a segunda. Você acha que nos tempos de hoje, século XXI, a
resposta de Rousseau ainda vale? Por quê?
4 Aqui devemos fazer uma distinção da linguagem de Rousseau para a dos nossos dias. Hoje diríamos
tranquilamente: saber distinguir o que é da natureza humana e o que é da cultura. Rousseau não utiliza a ideia
de cultura da mesma forma que nós, mesmo porque é um dos inspiradores da antropologia ou das “ciências do
homem”, nas palavras de Durkheim. Assim, quando ele se refere ao que chamaríamos hoje de “cultura” de
cada povo, ele usa a expressão “usos”, “modos” ou “costumes”. Outra expressão que exprime bem seu
pensamento é a que se encontra no Emílio: “Amanham-se as plantas pela cultura e o homem pela educação”.
Por isso, utilizaremos aqui o termo “educação”, e não “cultura”.
5 Na linguagem geral da psicologia de hoje, diferenciam-se estes princípios mais ou menos da seguinte
forma: por egoísmo entende-se algo como o “amor de si” e por egocentrismo, o amor próprio, pois o altruísmo
levado ao extremo seria um atentado contra a própria existência.
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Capítulo 6
O contrato social
Com certeza, essa é a obra mais famosa de Rousseau e, consequentemente, a que
mais se prestou a interpretações equivocadas. Há dezenas de edições do Contrato
social, algumas mais simples, somente com o texto; outras mais complexas, incluindo
comentários críticos. Está presente nos livros didáticos para o Ensino Médio e em
todos os cursos de graduação em Filosofia. Rousseau havia concebido a ideia de um
livro sobre a filosofia política antes do Contrato intitulado Instituições políticas. Os
originais foram destruídos pelo autor, mas sobraram algumas cópias que foram
utilizadas pelos estudiosos para compreender melhor seus conceitos. Destaca-se o
estudo crítico da coleção das obras completas da editora Plêiade, indicada nas
referências bibliográficas.
Antes de apresentar os principais conceitos do Contrato, colocaremos em destaque
o que os estudiosos chamam de “chaves de leitura”. Elas são importantes para que
diversos aspectos sutis de interpretação sejam compreendidos, o que não elimina,
evidentemente, alguns debates acerca da obra de Rousseau.
Em primeiro lugar, observamos que, conforme os projetos de Rousseau, o Emílio
deveria ser publicado alguns meses antes do Contrato, o que prepararia o público
para esta obra. Inseriu um resumo do Contrato no livro V, quando Emílio conta com
aproximadamente vinte anos e irá viajar pelo mundo para conhecer a realidade
política de outros Estados. Para tanto, viajar somente não adiantaria nada, é preciso
observar, analisar e comparar as diferentes realidades, para que possa julgar sua
própria terra e tornar-se melhor cidadão.
No Emílio, Rousseau afirma que o direito político é uma ciência que ainda estava
por nascer. Para ele, nem Hugo Grotius (1583-1645) nem Thomas Hobbes (15881679) teriam conseguido compreender as exigências desse tema; quanto a
Montesquieu (1689-1755), por quem ele guarda profundo respeito, afirma que
também não conseguiu divisar o direito político, sua obra O espírito das leis (1748)
trataria somente do direito positivo dos governos estabelecidos. Então, Rousseau
apresenta seu método que define o sentido do Contrato:
Antes de observar, é preciso observar regras para as observações; é preciso uma escala para as medidas
que tomamos. Nossos princípios de direito político são essa escala. Nossas medidas são as leis políticas de
cada país (ROUSSEAU, 1992, p. 553).
Essa apresentação nos leva diretamente ao ponto: o Contrato social não é um
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“manual de governo”, não se assemelha aos livros da história da Filosofia Política,
porque quer escapar das circunstâncias e apresentar uma obra que analise os
princípios do direito político para todas as sociedades humanas. É um projeto ousado,
de cujo sucesso a posteridade é testemunha. No próprio Contrato há também uma
declaração dos métodos que Rousseau pretende empregar para atingir esses objetivos.
O que legitima a situação atual dos homens, isto é, como ou quanto podemos ser
livres, mesmo vivendo sob as leis do Estado? Para tanto, é preciso tomar os “homens
como são e as leis como podem ser” (ROUSSEAU, 1973, p. 27).
Entro na matéria sem demonstrar a importância de meu assunto. Perguntar-me-ão se sou príncipe ou
legislador, para escrever sobre política. Respondo que não, e que por isso escrevo sobre política. Se fosse
príncipe ou legislador, não perderia meu tempo, dizendo o que deve ser feito; haveria de fazê-lo, ou calarme (ROUSSEAU, 1973).
Ora, Rousseau deixa claro que seu objetivo não é propor um “manual de
governo”, como, de certo modo, podemos compreender O Príncipe de Maquiavel.
Não se trata de orientar a melhor forma de manter o Estado e o governo, e sim quais
são os princípios que podem tornar legítima a situação em que todos se encontram:
submetidos às leis do Estado. No original do Contrato, Rousseau discute essa
situação a partir da seguinte metáfora: os homens, hoje, não podem mais retornar ao
estado de natureza, de absoluta independência, porque, desde o nosso nascimento,
estamos vinculados a um Estado; como os “compostos químicos” que não podem
mais ser separados, uma vez adentrando o estado civil, não há mais retorno. Por isso,
afirmará no capítulo do direito de vida e morte que, de certo modo, nossa vida
biológica é submetida à vida política, um “dom do Estado”. Tese que, no século XX,
será muito debatida pelos teóricos da ética e filosofia política.
Nosso objetivo não é apresentar um resumo dos quatro livros do Contrato, pois
seria uma tarefa exaustiva e de pouco proveito para o leitor. Há bons resumos nas
edições críticas. Gostaríamos de apresentar alguns conceitos-chave que permitirão
uma visão analítica da obra.
O pacto social
É preciso abstrair a concepção desse conceito para compreender a proposição de
Rousseau. Hume, por exemplo, sempre questionou-o a partir do ponto de vista de que
o tal pacto original nunca aconteceu de fato. Rousseau sabia muito bem disso e sobre
essa questão havia adiantado a resposta nas linhas iniciais do primeiro capítulo do
livro I: “O homem nasce livre e por toda parte encontra-se a ferros. O que se crê
senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal
mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão”
(ROUSSEAU, 1973, p. 28). Não se trata de fazer uma pesquisa histórica, mas
abstrata, para, indo além da história das constituições, encontrar os fundamentos do
poder político, aquilo que legitima o poder do Estado.
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Thomas Hobbes, em seu Leviatã, propõe a ideia de que um povo nasce quando um
grupo de pessoas dispersas (multitude) pactua entre si, combinando criar um poder
comum que a todos governe. Uma vez estabelecido, esse povo cede todos os seus
direitos a um soberano, que poderá ser um homem ou uma assembleia que terá o
direito de governar a todos. Portanto, para Hobbes há somente um pacto: o de cada
um com todos; o soberano não pactua com ninguém! Ele permanece em absoluta
independência em relação ao corpo de cidadãos que lhe cedem os direitos.
Samuel Pufendorf (1632-1694), discordando de Thomas Hobbes, propõe a tese do
duplo pacto. O primeiro é aquele que faz com que uma multidão se torne um povo, é
o pacto de união (pactum unionis) e, depois desse, o pacto firmado entre o povo e o
soberano, que é o pacto de submissão (pactum subjuctionis). Pufendorf não gostava,
portanto, da ideia de que o povo entregava-se a um soberano que não tinha qualquer
compromisso com ele, por isso, destaca a necessidade de um segundo pacto.
A solução de Rousseau, em relação à de seus antecessores, é original. Para ele, há
somente um pacto: aquele pelo qual o povo foi instituído. Ora, a princípio, parece
concordar com Hobbes, mas aqui há uma diferença: ao instituir-se como povo,
constitui-se imediatamente como soberano: o povo é o próprio soberano. Aqui cabe
diferenciar, cuidadosamente, a noção de soberano e de governo. O soberano é aquele
a quem cabe legislar; o governo é assumido por homens, integrantes do pacto, a quem
cabe zelar pelo cumprimento das leis, mas sem nenhum direito legislativo!
Desses esclarecimentos, e confirmando o capítulo XVI, resulta que o ato que institui o governo não é de
modo algum um contrato, mas uma lei; que os depositários do poder executivo não são absolutamente
senhores do povo, mas seus funcionários; que ele pode nomeá-los ou destituí-los quando lhe aprouver; que
para eles não cabe absolutamente contratar, mas obedecer; e que, incumbindo-se das funções que o Estado
lhes impõe, não fazem senão desempenhar seu dever de cidadãos, sem ter, de modo algum, o direito de
discutir as condições (ROUSSEAU, 1973, p. 119).
Essa, sem dúvida, é uma das passagens que fazem com que Rousseau seja
considerado um defensor da democracia: afinal, o governo não tem qualquer direito
de discutir as condições com as quais governará, deve apenas cumprir o que lhe é
determinado pelas leis, isto é, pelo que o próprio povo designou. Como dissemos,
trata-se de entender essas ideias do ponto de vista abstrato, e não das circunstâncias
reais: os governos, via de regra, tentam tomar o poder para si mesmos, querendo ter
liberdade de governar a seu bel-prazer, mas isso não invalida o princípio geral.
Soberano
A soberania apresenta duas características fundamentais: ela é inalienável e
indivisível. Da mesma forma que um indivíduo não pode dar-se como escravo a
outro, pois tal ato seria nulo, um povo não pode dar-se a um senhor, como queria o
filósofo Hugo Grotius em seu Direito de paz e guerra (1625). Se um povo limitar-se
a obedecer a um chefe deixará de ser “povo” justamente porque sua principal
56
característica é a liberdade, que ele perderia caso fosse legítimo esse ato.
Cada indivíduo, como vimos, ao adentrar o pacto social, deixa a liberdade natural
e ganha a liberdade civil. Na hipótese de alguém abrir mão dessa liberdade, voltaria
ao estado de natureza e não lhe restaria qualquer direito civil. Trata-se da figura
jurídica do homo sacer, isto é, “entregue aos deuses”, pois dos homens não lhe cabe
mais nenhuma proteção das leis. Em geral, supõe-se que ainda estamos em condição
de fazer essa opção, mas isso não é mais possível; como vimos acima, desde o nosso
nascimento somos protegidos pelo Estado e dele fazemos parte.
O indivíduo, no entanto, faz parte do corpo soberano sob duas perspectivas.
Quando estamos reunidos em assembleia, decidindo as leis que deverão submeter a
todos igualmente, somos cidadãos, portanto, ativos. Quando a assembleia se dissolve
e voltamos à vida civil comum, somos súditos, portanto passivos diante da lei, mas
absolutamente livres, porque submetidos às leis que nós mesmos ajudamos a elaborar
e aprovar.
Aqui, faremos uma breve digressão sobre duas passagens em obras diferentes. A
primeira é relativa ao Emílio. Quando o preceptor pergunta a Emílio o que decide,
depois de ter viajado o mundo e comparado seus diversos sistemas de legislação. O
jovem – então com mais ou menos vinte e dois anos – é indagado sobre em que
Estado pretende viver. Então ele responde: “Que me importa minha condição na
terra? Que me importa onde esteja? Onde quer que haja homens estou com meus
irmãos; onde quer que não os haja, estou em minha casa” (ROUSSEAU, 1992, p.
571). Tendo sido feito homem, mas não cidadão, Emílio estava preparado para sentir
que era “irmão” de todo o gênero humano; mesmo sendo-o de fato, o preceptor o
chama à ordem, para que perceba a dívida que tem para com a terra que o nutriu e
protegeu até ali:
Há sempre um governo e simulacros de leis sob os quais viveu tranquilo. Que importa se o contrato social
não foi observado, desde que o interesse particular tenha sido protegido, como o fizera a vontade geral,
desde que a violência pública o tenha garantido contra as violências particulares, desde que o mal que viu
fazerem o tenha levado a amar o que era bem, desde que nossas próprias instituições o tenham feito
conhecer e odiar suas próprias iniquidades? Ó, Emílio, onde está o homem de bem que nada deva ao seu
país. Quem quer que seja, ele lhe deve o que há de mais precioso para o homem, a moralidade de suas
ações e o amor à virtude. Nascido no fundo de um bosque, teria vivido mais feliz e mais livre; mas nada
tendo a combater para seguir suas inclinações, teria sido bom sem mérito, não teria sido virtuoso, e agora
ele o sabe ser apesar de suas paixões (ROUSSEAU, 1992, p. 572).
Esse discurso do preceptor a Emílio atenua um pouco o tom mais inconformado
que encontra-se no Economia política (1752), onde Rousseau afirma que, quando o
contrato social não cumpre sua função, o indivíduo fica numa condição pior do que o
estado de natureza, pois nessa condição não conta com o auxílio da sociedade para
proteger-se, mas é livre para defender-se o quanto possa. No estado de sociedade, se
não somos protegidos por todos, pela “violência pública” também não podemos
defender-nos com nossas próprias forças.
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Tais considerações necessitam, ainda, de outro conceito, igualmente abstrato e
fundamental para o edifício conceitual do Contrato social: a noção de vontade geral.
Vontade geral
O pacto social deu existência ao povo; a lei é a manifestação de sua vontade. Aqui
adentramos no conceito de vontade geral. Sua primeira característica é que ela jamais
erra, ela é sempre certa e tende à utilidade pública. As deliberações do povo, porém,
nem sempre são tão certas e, muitas vezes, o tempo prova que estavam erradas.
Assim, como é possível entender que a vontade geral é sempre certa e a lei, que é a
manifestação de sua vontade, pode, por vezes, estar errada? Trata-se de entender que
a vontade geral não é uma lei específica, nem o conjunto de leis positivas que estejam
em vigor, mas a própria possibilidade de fazer e derrubar leis. Quando o povo se
reúne em assembleia para deliberar, isto já é a manifestação da vontade geral;
independentemente do que se delibere em cada ocasião, o fato de se reunir e deliberar
já é manifestação da soberania popular.
O erro das leis pode advir do fato de o povo nem sempre saber divisar
corretamente o que lhe é bom e o que não é. As facções ou os partidos tendem a fazer
com que seus membros deliberem todos da mesma forma, fazendo confundir o que é
melhor para um pequeno grupo, ou para os governantes, com o que é o bem geral. Os
erros de julgamento ocorrem porque nos afastamos da situação ideal: que cada um
julgue por si mesmo. O que se observa é que, lentamente, os grupos ou as facções das
sociedades particulares deturpam o julgamento público. Uma sociedade torna-se cada
vez mais escrava de seus representantes quando, em vez de cada um deliberar por si,
vê-se que as facções ou partidos deliberam pelo povo, diminuindo a “voz” da vontade
geral, e a situação se agrava quando um desses grupos domina os demais. Aqui
adentramos no problema dos governos.
Governos
Vimos no início da análise do Contrato social que o governo não assume, para
Rousseau, em nenhum momento, o poder soberano. Também vimos que não há pacto
entre o povo e o governo. O poder soberano é intransferível. Então, com que poder o
governo comanda? Com o poder que a lei lhe concede; e somente detém o poder para
fazer cumprir a lei e não para fazer leis. No entanto, há uma tendência inevitável de
os governos tentarem controlar o poder soberano também. O remédio para isso seria a
realização de assembleias periódicas necessariamente convocadas para deliberar os
seguintes assuntos: se apraz ao soberano conservar essa forma de governo; se apraz
ao povo deixar a administração com os atuais encarregados. Esse meio não evitará a
decadência do Estado, afinal, sendo obra humana, não poderá mesmo ser eterna,
contudo servirá para retardar se essas assembleias forem, de fato, realizadas e se as
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facções ou partidos não calarem a vontade geral.
Há um aspecto que foi assinalado acima que é importante discutir na história da
filosofia política. Rousseau fala em “forma de governo”, posicionando-se ante um
debate tradicional da área. Aristóteles, em sua Política, afirmou que havia três formas
de governo boas: monarquia, aristocracia e forma constitucional. Em todos esses
casos, a característica comum é que, sendo o governo de um só, de uma minoria ou
da maioria, o objetivo é o bem comum de todos. As três formas degeneradas de
governo são, respectivamente, a tirania, a oligarquia e a democracia. A tirania é o
governo de um só que visa o bem somente do governante; a oligarquia é o governo de
uma minoria que visa o bem próprio; a democracia é governo da maioria que não visa
o bem comum.
Thomas Hobbes ironizou essa análise de Aristóteles dizendo que os homens
chamam de tirania a monarquia na qual não são privilegiados; de oligarquia, a
aristocracia da qual não obtém nenhum ganho, reduzindo o problema da teoria geral
para as circunstâncias.
Rousseau, por sua vez, mais próximo de Aristóteles do que de Hobbes, concorda
que o Soberano pode estabelecer três formas legítimas de governo. A primeira forma
é quando confia o governo a todos ou à maioria, trata-se, portanto, da democracia.
Observamos aqui que, para Rousseau, esse conceito tem um significado positivo, ao
passo que, para Aristóteles, negativo. Quando o Soberano confia o governo a um
pequeno número de cidadãos, trata-se da aristocracia, e quando a um só, monarquia.
Todos os três tendem a degenerar.
Evidentemente, a partir da perspectiva de Rousseau, a democracia é a forma na
qual somos mais livres, porque somos partícipes do Soberano e temos a possibilidade
de participar, também, do governo. Contudo, não é em todas as situações que o
governo poderá ser democrático, é preciso levar em conta outras circunstâncias que
ajudam a definir qual é a melhor forma de governo em cada caso.
Para desenvolver esse assunto, Rousseau, apesar de algumas divergências, toma o
Espírito das leis, de Montesquieu, como referência. Podemos dizer que ambos os
filósofos estão na raiz do que os geógrafos chamarão, mais tarde, de determinismo
geográfico. Rousseau afirma no capítulo VIII do livro III, Que qualquer forma de
governo não convém a qualquer país:
Não sendo a liberdade um fruto de todos os climas, não está ao alcance de todos os povos. Quanto mais se
medita sobre esse princípio estabelecido por Montesquieu, tanto mais se sente sua verdade, e, quanto mais
é contestado, tanto mais se oferecem ocasiões de firmá-lo com novas provas (ROUSSEAU, 1973, p. 100).
Mais importante que os climas, porém, é a extensão do território e a complexidade
da formação do povo. Quanto mais extenso um território, mais difícil fica reunir todo
o povo em assembleias periódicas para que delibere; assim, as democracias são mais
adequadas para povos com identidades culturais mais próximas e em territórios
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pequenos, como Genebra e Córsega. Por outro lado, Estados como a França e a
Inglaterra, cuja extensão é imensa, a forma aristocrática ou a monárquica são as mais
indicadas.
Evidentemente, se é menos livre na França do que em Genebra. A necessidade da
representação política enfraquece o soberano, pois à medida que elegemos
representantes para fazer as leis estamos nos tornando, no âmbito político, escravos
dos nossos próprios representantes. Rousseau ironiza a pretensão dos ingleses de ser
um povo livre, por ter uma forma mista de governo: a monarquia parlamentar,
segundo a qual o rei não governa livremente, mas sob a constituição. Para ele, o
essencial é que o povo não faz as leis, mas elege representantes que as façam por ele,
o que significa uma restrição à liberdade.
Religião civil
O último capítulo do Contrato Social é também o maior e o que rendeu os maiores
dissabores da perseguição política e religiosa. O próprio Rousseau, talvez, tenha
antevisto o impacto que essa obra causaria, pois na primeira versão que enviou ao seu
editor não constava esse capítulo. Foi encontrada sua primeira versão escrita nos
versos das páginas sobre o Legislador, mostrando a profunda ligação entre esses
temas. Além disso, apesar do cuidadoso resumo do Contrato no Emílio, não há
referências à questão da religião civil.
Ao inserir esse capítulo, estava tocando num tema que, no século XVIII, ainda era
uma “ferida aberta”. As guerras de intolerância que mancharam a Europa de sangue
nos séculos anteriores ainda faziam ecoar os gritos de horror que elas causaram; a
intolerância entre católicos e protestantes era candente. Rousseau, em sua vida
pessoal, foi protestante e católico, depois retornou ao seio do calvinismo, mas as
censuras vieram dos dois grupos: foi censurado e condenado pelos católicos da
França e pelos protestantes de Genebra. Afinal de contas, o que há nesse capítulo (e
na Profissão de fé do Vigário de Saboia, que analisaremos mais para a frente) que
pode ter provocado tanta fúria e desencadeado uma onda de perseguições contra o
autor?
O capítulo sobre a religião civil pode ser dividido em três partes: na primeira,
analisa as religiões nacionais; na segunda, o fenômeno do cristianismo, e na terceira,
propõe os dogmas da religião civil. Na primeira parte, conclui que a religião nacional
era o modelo predominante na Antiguidade; cada povo tinha seus próprios deuses
tutelares, inclusive o povo de Israel. O cristianismo, porém, provocou uma mudança
que jamais deixou a política e as guerras serem como sempre foram. O fenômeno
provocado pelo advento do cristianismo foi a expansão de uma religião para outros
povos. Dessa forma surgiu, pela primeira vez, a possibilidade de cidadãos de um
mesmo Estado não possuírem a mesma religião “oficial” e, por outro lado, cidadãos
de Estados diferentes estarem unidos pelo culto da mesma divindade.
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Alguns estudiosos lembram-se de que Roma viveu momentos de grande tolerância
religiosa e que os cultos de deuses de diversas religiões eram praticados na capital do
Império, inclusive por cidadãos romanos. Não seria esse um fenômeno semelhante ao
do cristianismo? Parece-nos que não. Os cultos a Ísis, por exemplo, praticados por
muitos romanos na capital do Império, se inserem num contexto no qual admitia-se a
existência de deuses que não os da sua pátria e, até mesmo, pelo visto, valia a pena
pedir benesses a eles. Isso não quer dizer que o romano que cultuava Ísis ou Mitra
deixasse de cultuar os deuses da cidade e seus antepassados, apenas que acrescentava,
no rol de suas crenças, deuses alheios.
Com o cristianismo, a situação é radicalmente diferente: os primeiros cristãos
renunciavam ao culto de outros deuses para adorarem somente aquele revelado pela
Bíblia, e essa exclusividade fez diferença. O cidadão passou a ser dividido entre a
obediência que devia ao padre e ao governo. Para Rousseau, essa divisão enfraqueceu
o Estado.
Quando analisa as três espécies de religião, chama a esta – que divide o cidadão
entre dois senhores – de religião do “sacerdote”, uma espécie de direito misto
religioso que em nada contribui para a solidez do Estado. As outras espécies de
religião são a nacional, que, como vimos, era um modelo adequado para a
Antiguidade, mas não tem mais lugar no mundo moderno, onde o cristianismo mudou
completamente o ethos religioso e instaurou uma nova forma de sociedade. Por fim,
resta a religião natural ou o teísmo. É uma religião do indivíduo, sem altares, ritos ou
cultos, sem sacerdotes. Esta é, para Rousseau, a “pura e verdadeira religião do
Evangelho”. Essa religião, boa, santa e sublime é muito boa porque é tolerante, mas
seu efeito civil não é adequado para os propósitos do Soberano:
Mas esta religião, não tendo nenhuma relação particular com o corpo político, deixa as leis unicamente
com a força que tiram de si mesmas, sem acrescentar-lhes qualquer outra, e, desse modo, fica sem efeito
um dos grandes elos da sociedade particular. Mais ainda, longe de ligar os corações dos cidadãos ao
Estado, desprende-os, como de todas as coisas da terra. Não conheço nada mais contrário ao espírito social
(ROUSSEAU, 1973, p. 147).
Ora, essa é, literalmente, a religião descrita na Profissão de fé do Vigário de
Saboia, e seu efeito foi aquele que vimos na decisão de Emílio: para ele, todos os
homens da terra eram seus irmãos, então não se importava em qual Estado viveria.
Seu preceptor o fez ver que tinha uma dívida com o Estado no qual nasceu. Portanto,
apesar de “boa e santa”, essa religião não serve de modelo para a profissão de fé civil.
Parece-nos interessante, porém, destacar uma sutil diferença entre o deísmo e o
teísmo. Tal diferença é sutil, mas apresenta perspectivas bem diferentes. O deísmo é
uma religião racional; a crença em Deus deriva das conclusões da própria razão: a
ordem do Universo não pode ser decorrente do acaso. Há uma metáfora que define
sua posição: é como se da explosão de uma gráfica pudesse nascer a Ilíada: um todo
organizado e racional (e belo) não pode surgir do acaso. O deísta, porém, não crê na
revelação, na eternidade da alma, portanto, no castigo futuro dos maus e na salvação
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dos bons. É uma espécie de epicurismo moderno, tendo em Voltaire seu mais ilustre
representante. Quanto ao teísmo, além de acreditar na existência de um Deus por
questões de razão, crê também na eternidade da alma e seus corolários: o castigo dos
maus e a recompensa aos bons.
O cristianismo, como dissemos, não serve de modelo para a profissão de fé civil, e
tentar fazer dessa religião o sustento das leis é criar uma contradição insolúvel. Para
Rousseau, dois filósofos abordaram esse tema, mas propuseram soluções extremas
que anulam uma à outra. O primeiro foi Pierre Bayle (1647-1706) que propôs –
segundo Rousseau6 – que nenhuma religião seria útil ao corpo político. A outra
proposta é a de Warbuton, que propõe o cristianismo como religião fundamental do
Estado. Para ele, ambos estão equivocados. O primeiro, porque Estado e leis não
podem subsistir sem religião; o segundo, porque propõe uma religião que não pode
sustentar as leis. Também são ineficazes as artificiais, como as da Rússia e da
Inglaterra, que quiseram unir novamente religião e Estado sob uma única coroa; para
Rousseau, tornaram-se mais servidores dos sacerdotes do que seus líderes e, por outro
lado, o fato de haver uma religião oficial não impedia que os súditos estabelecessem
sua fé em outras religiões, gerando somente conflitos.
Rousseau foi cristão e crê que o Evangelho foi revelado por Deus. Afirma isso em
diversas obras. Quando analisa os homens que podem ser tomados como modelo de
humanidade cita Licurgo, de Esparta; Catão, o Velho, de Roma; Sócrates, de Atenas,
mas o modelo que está acima de todos os outros é Jesus Cristo. Em um texto
publicado postumamente, intitulado Ficção ou peça alegórica sobre a revelação,
descreve o processo de desvelamento da verdade: o simples filósofo não consegue
revelar a verdade aos homens; Sócrates também não; por fim, somente Jesus
consegue libertar os homens da cegueira da servidão aos falsos ídolos. Reafirmou sua
fé em Cristo tanto ao arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, quanto aos seus
conterrâneos de Genebra, nas Cartas escritas da Montanha.
Todavia, apesar de cristão-teísta, acreditava na importância de seguir a religião
dos pais. Ele mesmo renunciou ao calvinismo e tornou-se católico, mas insiste que
era muito jovem e que a figura da Madame de Warens o impeliu ao catolicismo
graças aos seus modos. Mais tarde volta a Genebra e oficialmente ao calvinismo,
ação cuja legalidade foi contestada por seus adversários. Enfim, apesar de cristão,
reconhecia a dificuldade dessa religião “santa e sublime” tornar-se religião oficial,
pois isso prejudicava tanto o Estado quanto a própria religião.
Resta, pois, a religião do homem ou o cristianismo, não o cristianismo de hoje, mas o do Evangelho, que é
completamente diverso. Pois nessa religião santa, sublime, verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus,
reconhecem-se todos como irmãos, e a sociedade que os une não se dissolve nem com a morte. Mas essa
religião, não tendo nenhuma relação particular com o corpo político, deixa as leis unicamente com a força
que tiram de si mesmas, sem acrescentar-lhes qualquer outra, e, desse modo, fica sem efeito um dos
grandes elos da sociedade particular. Mais ainda, longe de ligar os corações dos cidadãos ao Estado,
desprende-os, como de todas as coisas da terra. Não conheço nada mais contrário ao espírito social
62
(ROUSSEAU, 1973, p. 147-148).
A expressão “espírito social” pode se prestar a algumas confusões, em especial
acreditar que trata de virtudes sociais como a comiseração, a piedade, a justiça, a
verdade e outras; essa expressão, em nosso entendimento, significa o mesmo que
“espírito de cidadania”, pois Rousseau não está falando da sociedade geral do gênero
humano, mas, como se pode ler no trecho citado, das sociedades particulares ou
Estados.
Por fim, adentramos na parte principal do capítulo: a definição do que seria a
religião civil. Ela deverá evitar a confusão dos dois “mundos”; não lhe importa como
se chega ao outro mundo, desde que os fiéis sejam bons cidadãos nessa vida terrena.
Esses dogmas devem ser estabelecidos pelo soberano, ou seja, por lei. Não são
dogmas religiosos, mas de “sentimentos de sociabilidade”, sem os quais é impossível
ser cidadão ou súdito. Aqueles que não quiserem fazer essa “profissão de fé civil”
poderão ser banidos do Estado como incapazes de sociabilidade. Chega a dizer que
aqueles que fizerem o juramento desses dogmas e, depois, comportarem-se como se
não acreditassem neles deveriam ser “punidos com a morte”, pois cometeram o pior
dos crimes: mentira às leis!
Rousseau define os dogmas positivos da religião civil do seguinte modo:
Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno número, enunciados com precisão, sem
explicações ou comentários. A existência da Divindade poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e
provisora; a vida futura, a felicidade dos justos; o castigo dos maus; a santidade do contrato social e das
leis [...] (ROUSSEAU, 1973, p. 150).
A análise desses dogmas nos indica os elementos principais do teísmo, mas com
um acréscimo, por assim dizer, civil e político. Em especial a “santidade do contrato
social e das leis”, que não derivam das reflexões sobre a religião, mas da política.
Para Rousseau, é impossível ser bom cidadão se não acreditar que, de alguma forma,
as leis são divinas. No capítulo do soberano, do livro I, afirma que o corpo político
existe pela “santidade” (la saintenté du contrat) do contrato, não pode obrigar-se,
mesmo com outrem. Na edição em português que utilizamos neste livro, a tradutora
optou por usar a expressão “integridade”, ao invés de “santidade”, a nosso ver, um
tanto equivocadamente.
Curiosamente, Voltaire, tal como Rousseau, também não consegue conceber uma
sociedade que não tenha uma religião oficial. Em seu Dicionário filosófico, propõe a
criação de uma “religião de Estado” semelhante à de Rousseau no conteúdo, porém
com algumas diferenças na forma, em especial porque Voltaire não propõe dogmas
civis, mas insiste na necessidade de ritos públicos. De onde provém essa coincidência
entre dois filósofos, cujas ideias, na maior parte das vezes, estiveram tão distantes?
Do fato de que, para ambos, os ateus de seu tempo, em suas ferozes argumentações
contra todo tipo de religião, acabaram por tornar-se tão intolerantes quanto os
fanáticos religiosos; afirmavam que havia, na história da humanidade, três
63
impostores, em referência aos fundadores do judaísmo, do cristianismo e do
islamismo. O próprio Voltaire afirma que há um quarto impostor: o ateu.
Voltando aos dogmas da religião civil, de Rousseau, o único dogma negativo da
religião civil é o seguinte:
Na minha opinião, enganam-se os que estabelecem uma distinção entre a intolerância civil e a teológica.
Essas duas intolerâncias são inseparáveis. É impossível viver em paz com pessoas que se acredita réprobas
[...] Atualmente, quando não existe mais e não pode mais existir qualquer religião nacional exclusiva,
devem-se tolerar todas aquelas que toleram as demais, contanto que seus dogmas em nada contrariem os
deveres do cidadão (ROUSSEAU, 1973, p. 150-151).
O limite para admitir uma religião no corpo do Estado é que ela não seja
intolerante, pois, como se pode deduzir do pensamento de Rousseau, a tolerância com
o intolerante é uma contradição flagrante que põe em risco a segurança de toda a
sociedade. Num Estado teocrático, a religião deve ser necessariamente exclusiva, mas
isso não é mais possível, como vimos, depois do advento do cristianismo.
Dessa forma, o dilema era bastante delicado: por um lado, nenhuma religião pode
mais arvorar-se no direito de ser exclusiva, por outro, nenhum Estado conseguiria
manter-se coeso, as leis amadas e respeitadas, se não tivesse, de alguma forma, uma
religião que as sustentasse. A proposta da religião civil surge com o objetivo de
resolver esse dilema, tão intenso no século XVIII. Podemos dizer que Rousseau
estava ligado a uma concepção de Estado que exigia a religião como fundamento das
leis. É o que ele declara no livro segundo do Contrato social, ao dizer que os pais das
nações (os legisladores) tiveram que recorrer “à intervenção do céu e a honrar nos
deuses sua própria sabedoria, a fim de que os povos, submetidos às leis do Estado,
assim como às da natureza” (1973, p. 65) reconhecessem os mesmos poderes,
portanto, os mesmos deuses ou deus, na formação do homem e da cidade.
Rousseau encerra o Contrato social reafirmando o que havia dito no início: que
sua obra apresenta uma originalidade em relação ao estabelecimento dos princípios
do direito político. Sua dificuldade era, o tempo todo, andar “na corda bamba” que
representa apoiar-se na História para refletir sobre seu tema, sem fazer de leis e
fenômenos particulares desta ou daquela nação leis gerais, tentando encontrar
somente os princípios que fazem parte da natureza do Estado.
Ora, não se trata do mesmo método utilizado no Discurso sobre a desigualdade
para identificar o que é natural e o que é artificial no homem? O Contrato social ou
os princípios do direito político são, nessa perspectiva, uma tentativa de separar o que
há de artificial e de natural nos Estados. A frase do que seria o prefácio do Contrato,
e que já citamos algumas vezes, “tomar os homens como são e as leis como podem
ser”, apresenta exatamente o elo entre essas duas obras: em ambos os casos, não se
trata de impor a natureza à sociedade, mas distingui-las; não se trata de propor que o
homem civil volte a ser homem natural (isso seria impossível, como vimos, e até
mesmo – se fosse possível – indesejável), nem que as nações recuem àquele
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momento, descrito no segundo Discurso, em que os homens viveram livres, sadios,
bons e felizes em suas cabanas, pois, tendo ele passado, não é mais possível retornar.
Para que, no entanto, distinguir o natural do artificial? Para que saber se o homem
é bom por natureza ou não, se o que importa são os homens tais quais são? Talvez,
quando o assunto for educar as crianças, fazê-lo de tal forma que as preparem para
serem pessoas “livres, sadias, boas e felizes”, para tanto, é preciso saber o que é
próprio da natureza e o que é próprio do homem, preparando o aluno para a vida em
sociedade.
Passemos, agora, à análise das obras Julie ou a Nova Heloísa e Emílio ou da
Educação, que, diferentemente das duas anteriores, adotam, principalmente, o
indivíduo como eixo em torno do qual os conceitos são formulados.
CONTINUAR A PENSAR
Ao escrever o Contrato Social, Rousseau resolveu um problema para o qual a filosofia política ainda não
tinha uma resposta concreta: a separação entre governo e soberano. Segundo Rousseau, aqueles
escolhidos para governar não têm direito ilimitado a tudo o que querem, pois devem submeter-se à
vontade do soberano expressa pelas leis. O impeachment de Fernando Collor de Melo (1992) seria um
exemplo da aplicação desse princípio? (p. 77)
6 Insistiremos na expressão “segundo Rousseau” quando se trata de apresentar as ideias de outros filósofos,
porque, quando ele os cita, tem em vista construir sua teoria e não analisar, ao modo dos exegetas acadêmicos
de hoje (inclusive este que vos escreve), com precisão os conceitos dos filósofos. Assim, os estudiosos de
Bayle, Hobbes, Montesquieu e outros podem se incomodar com as expressões que usamos, mas estamos
apresentando as interpretações de Rousseau, e não as nossas, sobre as obras dos filósofos que ele cita.
65
Capítulo 7
Julie ou a Nova Heloísa
Rousseau vivia uma angústia existencial por volta do ano de 1755. Apesar de
possuir uma alma sensível, ainda não tivera um amor de verdade, a despeito dos seus
relacionamentos com Madame de Warens e Thérèse. Assim, resolveu expandir esses
sentimentos na literatura, uma vez que a vida real não lhe oferecia ocasião. Nascem
os primeiros esboços da Nova Heloísa. Faltavam-lhe, contudo, os sentimentos reais
que emprestam veracidade aos personagens. Na primavera de 1757, Rousseau,
apaixonado por Sophie d’Houdentot toma-a como modelo para sua Julie.
Conforme Moretto, o livro foi um sucesso editorial e teve mais de cem edições ou
contrafações. Rousseau opta por escrever seguindo o modelo de “romance epistolar”,
estilo em moda no seu tempo:
De fato, faziam sucesso na época de as Cartas persas, de Montesquieu (1721); Pamela e Clarisse
Harlowe, de Richardson, traduzidas respectivamente em 1742 e 1751; as Cartas portuguesas, publicadas
em 1669. Além disso, as Cartas de Abelardo e Heloísa, publicadas em 1697, tiveram uma grande
influência na vida e na literatura do século XVIII (ROUSSEAU, 1994, p. 17).
Lembremos que Rousseau apaixonou-se por Sophie; ela, porém, havia casado com
o senhor d’Houdentot, para atender às conveniências sociais; tinha, porém, no
coração, o jovem Saint-Lambert, seu amante, a quem decidiu manter-se fiel. No
enredo da Nova Heloísa, o jovem preceptor Saint-Preux apaixona-se por sua aluna,
Julie, mas esse amor é proibido pela família da moça que, sendo de origem nobre, não
admite o seu casamento com um plebeu. Depois, a família a compromete com o
Barão de Wolmar, criando mais um obstáculo para os dois amantes.
Julie estava decidida a seguir os mesmos passos de Sophie d’Houdentot, no
entanto, no dia do seu casamento, jura a si mesma que será fiel ao marido, mesmo
amando Saint-Preux. Em suas idas e voltas de Clarens, o nome das terras do senhor
de Wolmar, marido de Julie, Saint-Preux passa por diversas aventuras. A Madame de
Wolmar confessa ao marido seus sentimentos e também seu juramento; ele, por sua
vez, com sua bondade e inteligência, conquista-lhe o respeito. Dessa forma, quando a
ocasião surge, o senhor de Wolmar oferece hospitalidade a Saint-Preux. Assim, o
triângulo amoroso, pleno de virtudes, se estabelece, como Rousseau desejara na vida
real. O senhor de Wolmar acreditava, porém, que poderia “curar” os jovens amantes e
que o tempo transformaria em amizade o ardente amor.
O romance tem um desfecho trágico. Julie mergulha no lago para salvar seu filho
mais novo de um afogamento certo. Ela contrai uma pneumonia que a levará à morte.
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Antes de morrer, a heroína escreve uma carta a Saint-Preux e o conclama a casar-se
com uma amiga comum deles, Claire d’Orbes, então mãe e viúva; pede a ele que vá
residir em Clarens e cuide da educação de seus filhos. Ao final, conforme Custódia
Martins: “O romance termina com Claire, Saint-Preux e Wolmar a viverem juntos na
mesma propriedade e unidos pela lembrança de Julie” (2009, p. 208). Julie, porém,
diz a Saint-Preux que espera poder reunir-se com ele no céu, uma vez que sua virtude
na terra a impediu; o tempo, a despeito do que pensava o virtuoso Barão de Wolmar,
não conseguiu transformar o verdadeiro amor em amizade.
Observa-se, nessa obra, sobretudo a antecipação de temas que serão desenvolvidos
especialmente no Emílio. A oposição ética entre campo e cidade, os divertimentos da
cidade, o luxo, entre muitos outros. Interessam-nos, sobretudo, dois deles: a educação
e a profissão de fé de Julie.
Quanto à educação, nota-se que o discurso de Julie está em perfeita harmonia com
o do preceptor do Emílio; poder-se-ia argumentar que a proximidade temporal entre
as obras justificaria, facilmente, o acordo entre elas, o que seria absolutamente
correto. Contudo, lembremos que as obras de Rousseau se caracterizam por serem
elaborados para fins muito claros e que, por vezes, inclusive quando tratam do
mesmo tema, as ideias são diferentes por causa das circunstâncias. No Emílio, é um
preceptor que se encarregará da educação; na Nova Heloísa, será a própria mãe.
Apesar das diferenças que tais circunstâncias podem acarretar, os princípios
continuam os mesmos: seguir a natureza. O trecho a seguir é da V parte, III carta:
A natureza, continuou Júlia, quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se quisermos
alterar essa ordem, produziremos frutos precoces que não terão nem maturidade nem sabor e não tardarão
a corromper-se; teremos jovens doutores e velhas crianças. A infância tem maneiras de ver e de pensar, de
sentir, que lhe são próprias. Nada é menos sensato do que a elas querer substituir as nossas e preferiria
exigir que uma criança tivesse cinco pés de altura que ele tivesse julgamento aos dez anos (ROUSSEAU,
1994, p. 486).
A respeito da religião, o próprio Rousseau chamou a atenção dos seus acusadores
de que, na Nova Heloísa, a profissão de fé de Julie é de uma protestante, ao passo que
a do Vigário de Saboia é a de um católico. Se os católicos da França, por exemplo,
não haviam condenado a da Nova Heloísa, por que se incomodariam com a do
Vigário? Ou os protestantes em Genebra, por que, ao julgarem o Emílio, não o
compararam com a Nova Heloísa? Quando Julie está com suas últimas forças se
esgotando, mantém a serenidade, mostrando não temer a morte.
Vivi e morro na comunhão protestante que extrai sua única regra da Santa Escritura e da razão; meu
coração sempre confirmou o que pronunciava minha boca e quando não tive por vossas luzes toda a
docilidade necessária, talvez fosse esse um efeito de minha aversão por toda espécie de fingimento; não
pude dizer que acreditava no que me era impossível acreditar, sempre procurei sinceramente o que estava
de acordo com a glória de Deus e com a verdade. Pude enganar-me em minha procura, não tenho orgulho
de pensar ter tido sempre razão; talvez tenha estado sempre errada, mas minha intenção foi sempre pura e
sempre acreditei no que dizia acreditar. Era, nesse ponto, tudo o que dependia de mim. Se Deus não
67
esclareceu minha razão além desse ponto, ele é clemente e justo, poderia pedir-me contas de um dom que
não me deu? (ROUSSEAU, 1994, p. 612-613).
As palavras finais de sua profissão de fé são realmente muito belas; ela afirma que
a clemência de Deus é maior do que qualquer culpa que pode ter. Sobre a sua morte,
enternece o pastor e os presentes com uma frase que demonstra sua confiança: “Quem
adormece no seio de um pai não está preocupado com o despertar” (ROUSSEAU,
1994, p. 612).
Adiantando parte do próximo capítulo, acredito que seria interessante comparar a
religião de Julie com a de Sofia. Enquanto a primeira tem uma profissão de fé
protestante, Sofia parece ser mais próxima da religião natural:
Sofia tem uma religião, mas uma religião baseada na razão, e simples, poucos dogmas e com menos
práticas de devoção. Ou melhor, não conhecendo como prática essencial senão a moral, ela dedica sua
vida inteira a servir Deus fazendo o bem (ROUSSEAU, 1992, p. 476).
Assim, essas personagens femininas apresentam características próprias, mas
remetem, de uma forma ou de outra, às mulheres que Rousseau amou: Thérèse,
Madame de Warens e Sophie d’Houdentot.
68
Capítulo 8
Emílio ou da Educação
O Emílio é pouco conhecido do público em geral, especialmente em relação ao
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e ao Do
contrato social. No meio acadêmico, no entanto, principalmente nos cursos de
Filosofia e Pedagogia, essa obra é bem conhecida. Tendo sido publicado no mesmo
ano do Contrato e um ano após a Julie ou a Nova Heloísa, apresenta vários pontos
em comum com essas obras.
Na primeira parte deste livro, O Emílio trouxe a Rousseau grandes dissabores
políticos; ele teve os sinais, “surdos ribombos” do que viria após sua publicação, mas
não lhes prestou a devida atenção, justo ele que, no Ensaio sobre a origem das
línguas, havia declarado que a linguagem de sinais é mais eficiente do que a falada.
Seu amigo, Blaire, devolveu o original juntamente com o seguinte comentário: “eis
um livro muito belo, mas do qual, dentro em pouco, se falará mais do que o autor
desejaria” (1965, p. 574).
Antes de explicar os fundamentos teóricos e a estrutura do livro, é preciso
lembrar, rapidamente, de quais eram as opções de educação no tempo de Rousseau.
Basicamente, havia os colégios – católicos e protestantes – que não diferiam muito
em termos de método e concepção filosófica da educação. Em linhas gerais, nessas
instituições predominava uma visão centrada no “conteúdo”, no processo de ensino, e
não no de aprendizagem. Conhecia-se muito mal o desenvolvimento físico,
emocional e intelectual das crianças e dos adolescentes. No início do Emílio, o autor
deixa bem claro o que pensa dessas instituições, inclusive na nota de rodapé que
reproduzimos juntamente com o trecho:
Não encaro como uma instituição pública esses estabelecimentos ridículos a que chamam colégios.
[Agora, a nota de rodapé:] Há, em muitas escolas, e sobretudo na Universidade de Paris, professores que
amo, que muito estimo, e que acredito muito capazes de instruir a juventude, se não fossem forçados a
obedecer aos usos estabelecidos. Exorto um deles a publicar o projeto de reforma que concebeu. Ser-se-á
enfim tentado a curar o mal, ao ver que não é sem remédio (ROUSSEAU, 1992, p. 14).
A outra opção era a educação doméstica, na qual os preceptores iam até a casa dos
alunos; especialmente no campo, residiam na casa dos alunos a fim de
acompanharem, em tempo integral, o desenvolvimento. Como vimos, Rousseau
chegou a exercer essa função por algum tempo, mas abandonou-a por sentir-se sem
talento para as exigências próprias. Mais uma suposta contradição? Veremos, adiante,
como ele explica essa relação entre teoria e prática na educação.
69
O Emílio pode ser considerado um “romance de formação”, ou seja, um gênero
literário que tem por objetivo, via de regra, acompanhar o desenvolvimento de uma
pessoa desde o seu nascimento até a maturidade, refletindo sobre os processos que
levam ao desenvolvimento da personalidade, da inteligência, das habilidades etc.
Dessa forma, o mestre, ou preceptor, assume um papel tão relevante quanto o do
educando. Como bem observa Maquiavel no Príncipe, o centauro Quíron – preceptor
de Aquiles e Jasão, entre outros – é a síntese dessa arte, porque, compartilhando dessa
dupla origem, conhece tanto a natureza quanto os homens.
Várias são as fontes que inspiraram essa obra. Podemos destacar, sem dúvida
alguma, A república de Platão, cuja influência analisaremos mais adiante; A política
de Aristóteles, especialmente no que se refere à ideia de educação pública; Vidas
Paralelas, de Plutarco, na qual colhe os exemplos do efeito da educação pública em
Esparta, em especial na Vida de Licurgo. Entre os modernos, podemos destacar a
obra de John Locke Sobre a educação, muitas vezes criticada por Rousseau; também
As aventuras de Telêmaco, de François Salignac de La Mothe, ou simplesmente
Fénelon. Este romance exerceu tal influência sobre a educação e sobre o papel do
preceptor que o mestre do jovem Telêmaco, Mentor, tornou-se sinônimo de professor.
Emílio empreenderá a viagem para conhecer as outras nações e homens, mas
Rousseau, em vez de descrevê-las, diz: “Mas deixemos os leitores imaginarem nossas
viagens, ou as fazerem com um Telêmaco na mão; e não lhes sugiramos aplicações
aflitivas que o próprio autor afasta ou faz contra a vontade” (ROUSSEAU, 1992, p.
564).
Comentamos, anteriormente, sua breve experiência como preceptor em 1740, na
casa de Jean Bonnet de Mably. Apesar de não ser bem-sucedida, a experiência foi de
grande valia para as ideias gerais sobre educação, registradas em seu Projeto para a
educação do senhor de Sainte Marie. Esse tema foi motivo de muitos debates,
inclusive com a Madame d’Épinay; no Emílio, afirma que foi convidado por alguém
para ser preceptor de seu filho, mas, dessa vez, recusou a proposta, ou porque, se o
seu método estivesse errado, seria uma educação falhada, ou porque, caso fosse bemsucedido, o filho do nobre senhor renunciaria ao título e não quereria mais ser
príncipe.
Os estudiosos do pensamento de Rousseau observam que até mesmo os primeiros
originais do Emílio são de grande valia para a compreensão da obra. Dentre eles o
Manuscrito Favre, no qual encontramos uma divisão que apresenta a divisão das
“idades” do homem: até doze anos, é a idade da natureza; até quinze, a idade da
razão; até vinte, a idade da força vital; até vinte e cinco, a idade da sabedoria; a partir
daí, a bondade. Evidentemente, a função desse esquema não é ser rígido, mas orientar
o período das transformações. No Emílio, a divisão será mais complexa.
A obra é dividida em cinco livros, orientados, pelas diferentes características de
cada uma das idades. Rousseau tentou registrar com máxima precisão suas
70
observações e indicou, no prefácio, que o seu princípio é “conhecer o aluno”. Essa
máxima fará uma grande revolução nas ciências da educação nos séculos seguintes,
em especial para o progresso da didática e da psicologia do desenvolvimento,
considerando a seguinte questão: as crianças se acham em condições de aprender o
que pretendemos ensinar-lhes? O Emílio é dividido em cinco livros, entre os quais
encontramos três importantes intertextos: A profissão de fé do Vigário de Saboia;
Sofia, ou a mulher; e Das viagens. Por fim, há uma continuação intitulada Emílio e
Sofia ou os solitários, que analisaremos mais adiante. Para efeito didático, vamos
apresentar um resumo dos cinco livros, começando pelo prefácio e pela introdução e,
depois, uma análise de alguns temas que aparecem ao longo da obra: além dos
conceitos fundamentais de educação da natureza e educação negativa, temas
específicos como as educações moral, religiosa e feminina.
No prefácio, encontramos a “chave de leitura” de todo o livro. Rousseau não
pretende fazer um manual de educação. Da mesma forma que o Contrato social é
uma “escala de medidas” da liberdade dos povos, podemos dizer que o Emílio é uma
“escala de medidas” sobre a bondade original do homem:
Assim uma educação pode ser praticável na Suíça e não o ser na França; outra pode sê-lo entre os
burgueses e outra ainda entre os nobres. A facilidade maior ou menor da execução depende de mil
circunstâncias impossíveis de se determinar a não ser através de uma aplicação particular do método a tal
ou qual país, a tal ou qual condição social. Ora, não sendo essenciais ao meu assunto, todas essas
aplicações particulares não se incluem no meu plano (ROUSSEAU, 1992, p. 7).
É importante destacar, também, o ponto de vista de Rousseau, quando escreve
essa obra. No Contrato social, declara que pode escrever sobre política, mesmo não
sendo príncipe ou legislador, pois, se o fosse, deveria fazer política e não escrever
sobre ela. No Emílio, não é o preceptor que escreve, mas o teórico, por isso: “Na
impossibilidade de cumprir a tarefa mais útil, ousarei, ao menos, tentar a mais fácil: a
exemplo de tantos outros, não porei a mão na massa, e sim na pena; e ao invés de
fazer o que é preciso, esforçar-me-ei por dizê-lo” (ROUSSEAU, 1992, p. 27).
Os cinco livros
A introdução do Livro I abrange todos os outros. Trata das diferenças entre a
educação pública e a educação doméstica; a primeira, com o objetivo de formar o
cidadão; a segunda, o homem. Como não é mais possível a educação pública
conforme os modelos que tem em vista, Esparta e Roma, então o melhor é que a
educação doméstica forme o homem. Lembremo-nos, porém, que, ao final da obra,
Emílio, fruto da educação natural, opta por ser cidadão da pátria na qual nasceu
induzido por seu mestre.
O tema da educação pública havia sido tratado no verbete Economia política e
voltará a ser abordado nas Considerações sobre o governo da Polônia. Rousseau
71
considera que essa forma de educação é superior à doméstica, mas, como dissemos,
não tem esperanças de vê-la renascer. Em todo caso, não sendo mais possível formar
um cidadão, ainda é possível formar um homem por meio da educação da natureza. É
importante observar, porém, que os princípios fundamentais da pedagogia
rousseauísta, como a educação negativa, a educação moral, a educação do corpo,
entre outras, estão presentes também na educação pública.
Livro 1
Esse livro abrange o período que vai de zero a dois anos. Trata de assuntos cuja
atualidade é espantosa: questões relativas à higiene das crianças, do choro, da
alimentação, a água do banho, os primeiros brinquedos e, em especial, da
amamentação. As mulheres da “sociedade” não costumavam amamentar seus filhos
por razões estéticas, e seus médicos justificavam tal atitude alegando que a
amamentação prejudicava a saúde das jovens damas, as quais, por sua vez,
encenavam passar mal quando amamentavam seus filhos, demonstrando a todos que
não tinham perdido o espírito materno, mas estavam impossibilitadas de fazê-lo por
causa da saúde.
Os hábitos ruins em relação às crianças eram (ou são?) vários. Rousseau observa
que o choro é uma forma de a criança dominar as amas, pois mesmo antes de falar as
crianças já aprendem; acorrer logo ao primeiro choro é uma forma de deixá-la
mimada; observa, também, opostamente a esse, que muitas amas “penduravam” as
crianças em pregos na parede (isso mesmo!), para que parassem de chorar. Ora, como
ficavam sem ar, evidentemente paravam. Outro costume bastante ruim era o de
“enfaixar” as crianças. Seus membros eram atados para que não fizessem
movimentos bruscos e não se machucassem. Observando os outros animais, perguntase por que os filhotes de cães e gatos não se machucam, mesmo não sendo atados.
Livro 2
Esse livro abrange o período entre dois e doze anos. Em linhas gerais, trata-se do
período em que se deve priorizar as atividades físicas para o fortalecimento do corpo.
A máxima que orienta essa ideia é a de que um corpo sadio é escravo da alma, ao
passo que, quando é doentio, torna-se seu senhor. O aprendizado ou desenvolvimento
do espírito deve ser feito em contato com as coisas; para tanto, deve-se estar em meio
à natureza, nos bosques. Fazendo caminhadas se estará sempre em contato com
objetos.
Para Rousseau, nesse período, pode-se observar que a criança aprende uma série
de coisas sozinha e nós, ao invés de cuidarmos de ensinar-lhes o que não podem
aprender por conta própria, insistimos em dar-lhes lições que aprenderiam mais
facilmente com as próprias coisas. Por isso, em vez de lições abstratas, o preceptor
cria uma série de situações-problema, cuja solução está ao alcance de Emílio, não
como conhecimento pronto, mas como fruto de associações do que ele já sabe.
72
Não se pode sacrificar o presente em razão de um futuro incerto; por que dar
limites às crianças, que elas não entendem, tendo como objetivo prepará-las para um
futuro que não conseguem vislumbrar? Educando-as sempre perto da natureza, do
mundo real, evita-se um grande mal: o alargamento da imaginação! Essa proposição
paradoxal é explicada a partir da definição de felicidade: essa é a igualdade entre
poder e vontade; ou seja, entre forças e desejos. Aquele cujas necessidades
ultrapassam as forças – elefante ou leão – é fraco; aquele cujas forças ultrapassam as
necessidades é forte. A imaginação faz com que as necessidades aumentem
rapidamente, sem que as forças consigam acompanhar essa velocidade.
Livro 3
Esse livro abrange o período entre doze e quinze anos. Sua máxima é: a educação
consiste mais em perder tempo do que ganhar. Martins (2009) observa que, chegando
ao final do livro, Rousseau afirma que Emílio não avançou na quantidade de
conhecimentos. Acrescentaríamos, em complemento, que avançou em qualidade,
porque, pelo método aplicado, foi forçado a aprender pela própria razão, sempre a
partir das próprias coisas; assim, aprendeu sempre pelo uso da própria razão, e não
pela de outrem. Essa autonomia permitiu poucos avanços, mas grandes conquistas,
eis a qualidade do aprendizado.
O princípio da educação é o da utilidade. Emílio aprenderá a partir do seu
interesse, e não do interesse do preceptor. Nessa idade, o adolescente interessasse-se
mais em aprender aquilo que lhe parece útil, que ele pode dizer o para quê e o porquê
das coisas. Evidentemente, como se pode observar ao longo de uma leitura atenta, o
preceptor induz determinadas situações que excitam a curiosidade de Emílio, daí
nasce seu interesse. Assim, Emílio iniciará o aprendizado de uma profissão que tenha
o mesmo princípio, que seja útil e que “as coisas” ensinem mais do que o mestre. A
profissão escolhida é a de marceneiro: por mais que lhe ensinem técnicas, é somente
praticando que se aprende de fato.
Há também uma passagem muito curiosa a respeito dos livros: “Detesto livros; só
ensinam a falar do que não se sabe” (1992, p. 199). O único livro cuja leitura
recomendaria é Robinson Crusoé. Trata-se de uma metáfora com o próprio
desenvolvimento humano na fase em que Emílio se encontra. Nessa idade, ainda está
só em seu mundo, por mais que se relacione com os outros homens, não saberá
exatamente o que é relacionar-se. Assim, o livro torna-se interessante porque:
Robinson Crusoé na sua ilha, sozinho, desprovido da assistência de seus semelhantes e dos instrumentos
de todas as artes, provendo, contudo, a sua subsistência, a sua conservação, e alcançando até uma espécie
de bem-estar, eis um objeto interessante para qualquer idade e que temos mil meios de tornar interessante
às crianças (ROUSSEAU, 1992, p. 200).
Os conhecimentos de Emílio, por fim, não são muitos, mas são “verdadeiramente
seus”. Nisso reside a qualidade da educação, superando em muito o princípio, ainda
73
em voga, da quantidade.
Livro 4
Esse livro abrange o período entre 15 e 20 anos. É nesse período que Emílio
adentrará o mundo moral; é o seu segundo nascimento. Para Rousseau, nas cidades os
jovens são levados a amadurecer muito rapidamente, e isso encobre completamente
os ditames da natureza. Em sua opinião, um jovem, aos dezesseis anos, sabe o que é
sofrer, “mal sabe, porém, que os outros sofrem” (ROUSSEAU, 1992, p. 248).
Esse período, no qual os sentimentos “estão à flor da pele”, deve ser
compreendido pelo preceptor como natural, e é a partir dele que deve mudar o modo
como, até aqui, conduziu a educação do aprendiz. Rousseau descreve, desse modo, o
início da adolescência:
Assim como o mugido do mar precede de longe a tempestade, essa tormentosa revolução se anuncia pelo
murmúrio das paixões nascentes; uma fermentação surda adverte da aproximação do perigo. Uma
mudança de humor, exaltações frequentes, uma contínua agitação do espírito tornam o menino quase
indisciplinável. Faz-se surdo à voz que o tornava dócil; é um leão na sua febre; desconhece seu guia, não
quer mais ser governado (ROUSSEAU, 1992, p. 234).
O que fazer? Para que ele entenda seus sentimentos, precisa comparar-se aos
demais, porém, até agora, o jovem não conhecia verdadeiramente as outras pessoas;
estava fechado em sua ilha, não física. Emílio não está isolado da sociedade, como se
não tivesse qualquer contato com outras pessoas, mas não tinha condições de
compreender a alteridade. Agora tem condições, e é fundamental que aprenda a
conhecer os homens.
É importante observar que Rousseau insiste que não se deve impedir que os jovens
– e os homens – tenham paixões; elas são próprias da natureza humana. Afirma
mesmo que um homem sem paixões seria um péssimo cidadão.
Nossas paixões são os principais instrumentos de nossa conservação: é, portanto, empresa tão vã quanto
ridícula querer destruí-las; é controlar a natureza, é reformar a obra de Deus. Se Deus dissesse ao homem
que aniquilasse as paixões que lhe dá, Deus quereria e não quereria, estaria em contradição consigo
mesmo. Nunca Deus deu tão insensata ordem, nada de semelhante está escrito no coração humano; e o que
Deus quer que um homem faça não o faz dizer por outro homem; di-lo ele próprio, escreve-o no fundo do
coração do homem (ROUSSEAU, 1992, p. 235).
Trata-se, isto sim, de dirigir a estima e a afeição dos jovens para objetos que
suscitem a sociabilidade. Rousseau retoma, então, os conceitos de piedade natural e
amor de si, desenvolvidos no Discurso sobre a desigualdade, e os aplica ao Emílio,
mostrando como, para os jovens da sociedade, o amor de si degenera-se em amor
próprio.
A partir de agora, olhando para seus semelhantes, começa a comparar-se com eles.
No entanto, é preciso conhecer o coração humano e não os jovens por suas máscaras,
pois, para isso, não precisa do mestre. Conhecendo o coração dos homens, poderá
74
entender a diferença entre o ser e o parecer. Para conhecer verdadeiramente os
homens, é preciso vê-los agindo e não falando, pois as palavras, como o rosto,
formam máscaras obstáculos. O preceptor quer tornar o coração humano transparente
para Emílio.
Para ver os homens agindo, é preciso estudá-los, primeiramente, na história, e não
no livro dos filósofos. A partir daí, demonstra que os grandes nomes da história
clássica escreveram belos livros, mas suas lições nem sempre são adequadas aos
jovens. Uns interessam mais aos “velhos”, outros, ao espírito filosófico. O melhor
dentre todos eles é Plutarco, em sua obra Vidas paralelas.
Uma vez tendo conhecido os homens “de longe”, é hora de conhecê-los “de
perto”. Eis Emílio apresentado à sociedade e em condições de reconhecer, nos jovens
de sua idade, as máscaras. Percebendo qual é o comportamento deles, afasta-se dessa
sociedade e procurará conhecer a si mesmo. Nesse momento, inicia o intertexto A
profissão de fé do Vigário de Saboia, a educação moral e religiosa de Emílio, que
veremos adiante. Depois, será apresentado a Paris, onde conhecerá os espetáculos,
porém, com um conhecimento que o previne de ser envolvido pelas máscaras: saberá
observar no comportamento dos homens seu verdadeiro caráter. Emílio estará livre do
império das paixões.
Livro 5
Esse livro abrange o período entre 20 e 25 anos. Basicamente, trata da educação
de Sofia, que veremos adiante. Ao final desse longo intertexto, vemos Emílio
conhecer a jovem Sofia e logo, novamente graças às artimanhas de seu preceptor,
apaixonarem-se. Ele deixará que se envolvam bastante, para, depois, à moda
romanesca, provocar uma separação que, longe de enfraquecer, irá fortalecer o amor
entre ambos. Emílio viajará para conhecer outras sociedades e a natureza da política.
Retornará dois anos depois e, enfim, poderá casar-se com Sofia. Rousseau observa
que, no livro de Locke, o preceptor deixa o aluno quando ele se torna adulto; em seu
livro, só o deixará depois de casado.
Passemos, agora, para a análise de alguns temas que percorrem a obra e os
intertextos, bem como à continuação intitulada Emílio e Sofia ou os solitários.
A educação da natureza
Esse é o tema central do Emílio, seus princípios percorrem toda a obra. A ideia
central é que possuímos uma natureza e que a educação pode interferir em seu
desenvolvimento, mas não impedi-lo de ocorrer. “Amanham-se as plantas pela
cultura e os homens pela educação” (ROUSSEAU, 1992,
p. 10). O debate em questão, e que ainda hoje perdura, é saber se o que somos é fruto
exclusivamente da educação – dos hábitos – ou também da natureza. Rousseau
75
debateu com contemporâneos que acreditavam que nada tínhamos de natural, tudo era
resultado da educação.
Para ele, no entanto, há três mestres: a natureza, as coisas e os homens. Os três nos
ensinam coisas:
O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que
nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e o ganho de nossa própria
experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas (ROUSSEAU, 1992, p. 11).
Para que a educação seja bem-sucedida, é preciso observar a orientação da
natureza e segui-la; educando conforme a natureza, ensinando aquilo que o aluno está
em condições de aprender, o resultado será um aprendizado consistente. Para tanto, é
preciso seguir outra máxima: a educação negativa. Ela consiste, precisamente, em
nada fazer quando se trata de deixar a natureza orientar o caminho. Muitos intérpretes
entendem a educação negativa como uma espécie de não intervenção absoluta, como
se o bebê possuísse, em estado latente, todas as virtudes sociais. Na verdade, é
preciso que todas as crianças sejam educadas, mas não se deve tentar fazer o papel da
natureza e acelerar processos que ela somente com o tempo desenvolverá. A ideia de
educação negativa está presente, também, nas Considerações sobre o governo da
Polônia, quando Rousseau trata da educação pública, o que demonstra a importância
desse conceito para a educação.
Nossa educação tradicional, porém, ansiosa por colocar todos os conhecimentos
que julgamos úteis na cabeça dos jovens, assim como os objetos de desejos em seus
corações, muitas vezes quer modificar a própria natureza, reformá-la. Em mais uma
diatribe contra os filósofos, Rousseau afirma:
Dizem que muitas parteiras pretendem, com massagens na cabeça das crianças recém-nascidas, dar-lhe
uma forma mais conveniente, e aceita-se isso! Nossas cabeças estariam erradas, se em obediência ao
Autor de nosso ser; cumpre-nos modelá-las de fora pelas parteiras e, por dentro, pelos filósofos. Os
caribes são metade mais felizes do que nós (ROUSSEAU, 1992, p. 17).
Assim dizendo, insistimos, parece que a educação da natureza em Rousseau nada
tem a acrescentar aos alunos, é como se nascessem sabendo tudo, mas não é disso que
se trata. Abordaremos a seguir, com a brevidade necessária, alguns elementos da
educação positiva, isto é, as lições e conteúdos que os homens ensinam às crianças,
as quais, sem o ensino do que a tradição nos legou, talvez não se desenvolvessem
pelas próprias forças.
A educação intelectual
Emílio aprenderá noções de botânica, astronomia, física, química; aprenderá a ler
e escrever; os números e suas relações; geografia e história; filosofia; religião;
literatura e outros conteúdos. A questão, portanto, é que nada lhe faltará dos
conhecimentos escolares tradicionais; no entanto, a forma e o momento de ensino é
76
que serão significativamente distintos. A crítica de Rousseau não é contra o
aprendizado das ciências e das humanidades – ele mesmo, como vimos na primeira
parte deste livro, estudou largamente todos esses conteúdos –, mas o modo como são
ensinadas pela educação tradicional.
Os princípios que dirigirão a educação intelectual serão a utilidade e o
aprendizado pelas coisas. Quanto à utilidade, trata-se de entender que as crianças e
adolescentes não têm, por natureza, o desejo de aprender alguma coisa que não lhes
pareça, de alguma forma, útil. Muitos educadores querem, justamente, que os jovens
entendam que nem tudo o que se aprende tem utilidade imediata, mas futura; é
preciso, então, que eles tenham a dimensão de tempo e compromissos sociais para os
quais não estão preparados. Muitas vezes os mestres dizem aos adolescentes que, em
cinco anos, aquela lição será útil, sem perceber que esse número de anos é, pelo
menos, a metade do tempo que eles têm consciência de si.
O aprendizado pelas coisas atende ao princípio pedagógico de que não se aprende
– pelo menos de forma consistente – por palavras, pelos livros que são apenas a
representação das coisas e não elas mesmas. O aprendizado por meio de
representações fica limitado à memória, como é o caso da educação tradicional. De
certa forma, para irmos mais longe, Agostinho havia adiantado esse problema em seu
De magistro, quando observou que, pelas palavras, aprendemos somente palavras, e
não as coisas que elas representam.
Esses princípios também aparecem na concepção de educação pública em
Rousseau, exposta nas Considerações. Ali, ele sugere aos poloneses que os pais que
desejarem educar os filhos em casa poderão fazê-lo, que a instrução pode ser
particular, mas a educação deverá ser pública e deverão comparecer aos jogos
públicos, juntamente com as outras crianças. Entendemos, pois, como instrução o
ensino dos conteúdos das disciplinas.
Educação moral
Assim como há uma educação positiva que ensina, na qualidade de terceiro
mestre, os conteúdos intelectuais, evidentemente, contando com o auxílio dos outros
dois, há também uma educação positiva dos valores morais. Ensina-se moral às
crianças, não se pode pressupor que as noções de sociabilidade, como a verdade, a
humildade, a comiseração sejam naturais; e muito menos ainda que os vícios – como
a inveja, a ira, os ciúmes e outros – estejam no coração humano desde o nascimento.
Vimos que, para Rousseau, há duas paixões naturais: a piedade natural e o amor
de si; a criança nasce com esses dois princípios, mas somente o primeiro é ativo; a
criança, porém, sente que existe, mas não o sabe. As virtudes sociais nascerão da
piedade natural; os vícios do amor próprio, degeneração do amor de si.
A crítica de Rousseau à educação tradicional não é o ensino de moral, mas sim
77
como e quando pretende ensinar moral às crianças. Diríamos que o tema da moral é
recorrente em todo o Emílio. Desde os primeiros choros até a decisão de Emílio de
residir no país em que nasceu, há elementos da educação moral. Há tantos exemplos
que seria impossível fazer uma síntese deles. Por isso, vamos nos ater a dois casos.
Locke, segundo Rousseau, insiste que se deve raciocinar com as crianças, mas
será que esse é um bom caminho? Querer ensinar a moral por meio de raciocínios é
uma tarefa vã, pois
conhecer o bem e o mal, sentir as razões dos deveres do homem, não é da alçada de uma criança. A
natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens [...] a infância tem maneiras de ver,
de pensar, de sentir que lhe são próprias; nada menos sensato do que querer substituí-las pelas nossas
(ROUSSEAU, 1992, p. 75).
Exatamente o mesmo discurso vale para os jovens e adolescentes: querer ensinarlhes a “moral” por meio de longos discursos, que recorrem, portanto, a raciocínios,
não é um bom método. O problema, no caso dessa idade, não é somente o raciocínio
em si, mas as ilações que nele estão contidas, pois são repletas de noções de
compromissos sociais, deveres, juramentos que a natureza não os preparou, ainda,
para compreender. Não há um objeto, uma coisa mesma, somente noções abstratas. A
esse respeito, Rousseau diz: “Não gosto das explicações em discurso; os jovens
prestam pouca atenção e não as retêm. As coisas! As coisas! Nunca repetirei bastante
que damos demasiada importância às palavras; com nossa educação tagarela, não
fazemos senão tagarelas” (ROUSSEAU, 1992, p. 192).
Sofia, ou a mulher. A educação feminina
Abordemos, agora, o intertexto Sofia, ou a mulher, para, a partir dele, termos
alguma ideia de como Rousseau concebe a educação feminina. Para Custódia Martins
(2002), Rousseau concebe a necessidade de uma educação diferente para homens e
mulheres porque são diferentes por natureza e o princípio da educação deve continuar
o mesmo: seguir a natureza. No entanto, para Rousseau:
Em tudo o que não se prende ao sexo, a mulher é homem: têm os mesmos órgãos, as mesmas
necessidades, as mesmas faculdades; a máquina é construída da mesma maneira, as peças são as mesmas,
o jogo de ambos é igual, o aspecto semelhante; e sob qualquer ângulo que os consideremos, só diferem
por mais ou menos (ROUSSEAU, 1992, p. 423).
Ora, se em tudo, ou quase tudo, são iguais, por que a educação deve ter
peculiaridades para um e para outro? No que têm em comum, são iguais; no que têm
de diferentes, são incomparáveis, e essa diferença se deve à natureza do sexo. A
respeito das diferenças, destacam-se as seguintes: enquanto os homens são “ativos e
fortes”, as mulheres são “passivas e fracas”. A mulher é feita para “agradar e ser
subjugada” (1992, p. 424). Ora, a mulher, no entanto, deve usar sua natureza para
dominar aquele que é mais forte; ao tornar-se agradável, mas associando a isso a
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modéstia e o poder, inverte a situação e o fraco escraviza o forte. Mais adiante, no
Emílio, dirá que as mulheres foram feitas para governar os homens, não como os
homens governam. Quando querem governar sozinhas, à força, o lar é conduzido à
desordem, mas quando usam o dom natural do “império da doçura”, “suas ordens são
carinhos, suas ameaças são lágrimas. Ela deve reinar na casa como um ministro de
Estado, fazendo com que comandem o que quer fazer” (ROUSSEAU, 1992, p. 489).7
Assim, no que tange ao relacionamento entre marido e mulher, ele, apesar de
forte, é dominado pelos encantos e pela modéstia. A educação diferente não significa
que caberá às mulheres aprender somente as tarefas do lar:
Deduzir-se-á disso que deva ser educada na ignorância de tudo e adstrita unicamente às tarefas do lar?
Fará o homem sua criada de sua companheira? [...] Para escravizá-la ainda mais, impedi-la-á de conhecer
o que quer que seja? Fará dela uma verdadeira autômata? (ROUSSEAU, 1992, p. 432).
Quanto à educação intelectual das mulheres, encontramos um Rousseau, pelo
visto, mais conservador do que em todos os outros aspectos do seu pensamento:
A procura de verdades abstratas e especulativas, dos princípios, dos axiomas nas ciências, tudo o que
tende a generalizar ideias não é da competência das mulheres, seus estudos devem todos voltar-se para a
prática; cabe a elas fazerem a aplicação dos princípios que o homem encontrou, e cabe a elas fazerem as
observações que levam o homem ao estabelecimento de tais princípios [...] elas não têm bastante precisão
e atenção para brilhar nas ciências exatas (ROUSSEAU, 1992, p. 465).
Ainda que tais ideias sejam “estranhas” para o leitor de hoje, talvez o modelo que
Rousseau tinha sob as vistas não facilitava outra apreciação do tema. Segundo
Badinter, Madame du Châtelet estudou a física de Newton com grande talento, sua
obra é essencialmente especulativa e metafísica; por outro lado, tinha uma
personalidade forte e tratava a todos com muito rigor:
Nisso, Émilie é de uma natureza tradicionalmente mais viril que feminina. O que não deixaram de notar os
que a rodeavam. Voltaire é o primeiro a compará-la sempre a um grande homem. Ela lhe aparece com um
ser andrógino que reúne a virtudes dos dois sexos. Mulher na aparência, homem pelo espírito
(BADINTER, 2003, p. 87).
O peso da opinião pública sobre as mulheres é maior do que sobre os homens.
Para elas, não basta serem pudicas, é preciso que assim sejam vistas por todos. Para
tanto, não basta serem dóceis, é preciso que aprendam a desenvolver um talento
natural que lhes compensa a falta de força: a astúcia.
São inúmeras as críticas à educação das mulheres de seu tempo, mas gostaríamos
de colocar uma ainda mais em destaque: a ideia de alguns religiosos de que os
divertimentos podem perverter as mulheres. Muitos educadores severos acreditavam
estar encaminhando bem as meninas ensinando-lhes que uma mulher não deveria ter
outro divertimento senão a oração e o trabalho, que, como afirma o autor do Emílio,
são estranhos divertimentos para meninas de dez anos. Sobre essa educação Rousseau
afirma:
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Escravizando as mulheres honestas unicamente a deveres, tira-se do casamento tudo o que poderia tornálo agradável aos homens. Será de se espantar se a taciturnidade que veem reinar em casa os expulse de
casa ou se sentem tão tentados a abraçar estado tão desagradável? À força de exagerar todos os deveres, o
cristianismo os torna impraticáveis e vãos; à força de proibir às mulheres o canto, a dança, e todos os
prazeres da sociedade, ele as torna insossas, rabugentas, insuportáveis em seu lar. Não há religião em que
os casamentos estejam sujeitos a deveres tão severos, e nenhuma em que tão santo compromisso seja tão
desprezado (ROUSSEAU, 1992, p. 444).
Rousseau cria sua Sofia com todas as qualidades que são naturais das mulheres.
Ela não é bonita, mas sua docilidade e seu jeito fazem com que vá se tornando bela à
medida que o tempo passa, e essa impressão não mais se desfaz; ela encanta, sem
ofuscar, e, conforme Rousseau, não se sabe dizer por quê. Enfim, ele e a mãe dela
tramarão o encontro dos jovens.
A profissão de fé do Vigário de Saboia. A educação religiosa.
A educação religiosa de Emílio se encontra no intertexto A profissão de fé do
Vigário de Saboia. Pelo seu teor, apresentando uma série de paradoxos, também
atraiu a ira de muitos de seus acusadores. Os princípios das concepções de religião
em Rousseau estão registrados nessa obra. Das obras anteriores, podemos destacar a
Ficção ou peça alegórica sobre a revelação e a Carta a d’Alembert. Depois da
publicação e das consequentes condenações, defendeu-se das acusações em Paris com
a Carta a Christophe de Beaumont e das acusações em Genebra com as Cartas
escritas da Montanha, mantendo os mesmos princípios expostos na Profissão de fé.
Rousseau se opõe ao ensino de religião para crianças. Em uma de suas frases de
efeito afirma que “toda criança que crê em Deus é idólatra”. O arcebispo de Paris,
evidentemente, não gostou da expressão, mas, observando-a do ponto de vista da
teoria de Rousseau, a ideia de Deus é abstrata; como as crianças e adolescentes
devem aprender a partir das coisas, é uma tarefa impossível fazê-las compreender
esse conceito, assim como as convenções sociais que dependem de uma série de
relações para as quais elas ainda não estão preparadas.
O momento do ensino dos princípios da religião deve ocorrer somente depois dos
dezesseis anos; é preciso esperar o momento certo para que as questões ligadas à
religião façam sentido para sua razão e seu coração; antes disso, todas elas serão
inúteis ou terão o mesmo fim dos outros conteúdos da educação tradicional, resumirse-ão a meras palavras. Mesmo assim, essas lições não devem começar pelos dogmas
misteriosos; a preferência é para os dogmas morais, que ensinam a preferir e fazer
sempre o bem.
Como o próprio Rousseau narra nas Confissões, as ideias do Vigário de Saboia
nasceram de dois padres que Rousseau, na juventude, conheceu: “[...] e reunindo M.
Gâtier com M. Gaime, fiz desses dois dignos padres o original do Vigário de Saboia.
Orgulho-me da imitação não ter desonrado os modelos” (ROUSSEAU, 1965, p. 138).
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É de se supor que, ao lado dos princípios expostos pelos seus mestres, ele acrescentou
suas próprias reflexões sobre o assunto. A frase mais conhecida de Rousseau sobre
sua fé encontra-se na Carta a Christophe Beaumont: “Sou cristão, senhor Arcebispo,
e sinceramente cristão, segundo a doutrina do Evangelho. Sou cristão não como
discípulo dos padres, mas como discípulo de Jesus Cristo” (2005, p. 72).
A religião natural de Rousseau encaixa-se, como dissemos, no modelo do teísmo,
mas, declarando-se cristão, diferencia-se daquele Deus de razão dos deístas. O teísmo
cristão de Rousseau é uma forma que ele encontrou para escapar da angústia que
sentia diante dos sistemas filosóficos, sempre tentando explicar o mundo, em eterna
contradição entre eles mesmos:
Vede em minha exposição unicamente a religião natural; é estranho que se faça necessária outra. De que
maneira conhecerei essa necessidade? De que posso ser culpado servindo a Deus segundo as luzes que dá
a meu espírito e segundo os sentimentos que inspira a meu coração? (1992, p. 344).
Assim, para Rousseau, a filosofia não tem condições de descobrir a verdade. Só o
que ela produz são sistemas, sempre defendidos pelo orgulho e pela vaidade. A
metafísica aumenta as dúvidas, ao invés de superá-las.
Uma das concepções religiosas da modernidade era a chamada “religião natural ou
racional”, em oposição às “religiões reveladas”. Os filósofos partidários dessa
concepção acreditavam que a religião fazia parte da natureza humana, acreditavam na
existência de um Deus supremo, inteligente, arquiteto de todo o universo. A questão
central está em torno de acreditar se esse Deus se revelou a um povo em especial.
Para os deístas e teístas, Deus fala diretamente aos homens, sem precisar de
intermediários, emissários ou representantes.
A religião natural caracteriza-se por não ter necessidade de ritos e cultos, que são
apenas elementos das religiões positivas. Em uma passagem contundente do Emílio
afirma:
O culto que Deus pede é o do coração, e este, quando sincero, é sempre uniforme. É de uma vaidade
maluca imaginar que Deus se interesse tanto pela forma da vestimenta do padre, pela ordem das palavras
que ele pronuncia, pelos gestos que faz no altar, por todas as suas genuflexões (1992, p. 345).
Contudo, essa não é sua última palavra sobre os ritos. Os padres de quem ele
aprendeu a lição continuaram no serviço da Igreja por acharem que ela exerce uma
função social insubstituível, tanto pela religião natural quanto pelos sistemas
filosóficos. Ele mesmo, quando retornou a Genebra, entendia a importância de
participar dos cultos públicos; por isso, apesar da análise filosófica dos ritos, do ponto
de vista da razão, na perspectiva da sociabilidade eles exercem uma função
fundamental.
Outro aspecto da religião natural em Rousseau é o papel da consciência. Os
filósofos deístas apoiavam-se na razão, Rousseau forja o conceito de consciência, que
se coloca ao lado dos sentimentos e da própria razão e deveria ser, na maior parte dos
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casos, o guia das ações. A religião natural apoia-se, por um lado, na razão como
critério de conhecimento e, por outro, no sentimento interior, menos de conhecimento
e mais de orientação. Esse sentimento manifesta-se nos homens como consciência.
Consciência! Consciência! Instinto divino, voz celeste e imortal; guia seguro de um ser ignorante e
limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, que tornas o homem semelhante a Deus,
és tu que fazes a excelência de sua natureza e a moralidade de suas ações; sem ti nada sinto em mim que
eleve acima dos bichos, a não ser o triste privilégio de me perder de erro em erro com a ajuda de um
entendimento sem regra e de uma razão sem princípios (1992, p. 338).
A fé e a razão são luzes que Deus dá aos homens e, por isso, não podem negar-se
mutuamente. Talvez a consciência seja o elemento que torna possível o equilíbrio
entre a razão e as paixões.
Outra das grandes questões em torno da religião natural está na liberdade de
pensamento e na livre interpretação da Bíblia. Ora, para Rousseau, seria um absurdo
acreditar que Deus nos deu a razão para depois nos impedir de usá-la. No entanto, sua
leitura da Bíblia é diferente daquelas dos amigos filósofos, que acabam por, de certo
modo, ridicularizar algumas passagens do texto sagrado. Rousseau também confessa
que não compreende várias passagens e que algumas chocam a razão, mas, nesse
caso, prefere guardar um silêncio respeitoso a afirmar coisas sobre as quais nada
entende. Sua definição do Evangelho arrancou elogios até mesmo de Christophe
Beaumont.
Diremos que a história do Evangelho foi inventada por prazer? Meu amigo, não é assim que se inventa; e
os fatos de Sócrates, de que ninguém duvida, são menos atestados que os de Jesus Cristo. No fundo, é
afastar a dificuldade sem a destruir. Seria mais inconcebível que vários homens de comum acordo
tivessem fabricado esse livro, que o fato de um só ter fornecido o assunto. Nunca os autores judeus teriam
encontrado nem esse tom nem essa moral; e o Evangelho tem traços de verdade tão grandes, tão
impressionantes, tão perfeitamente inimitáveis que seu inventor seria mais espantoso do que o herói. Com
tudo isso, esse mesmo Evangelho está cheio de coisas incríveis que ferem a razão e que um homem
sensato não pode conceber nem admitir. Que fazer em meio a todas essas contradições? Ser sempre
modestos e circunspetos, meu filho; respeitar em silêncio o que não se pode rejeitar nem compreender e
humilhar-se diante do grande Ser, o único que sabe a verdade (1992, p. 362-363).
Há uma série de elementos sobre a religião em Rousseau: o problema dos
milagres, das profecias, o pecado original, entre outras. Infelizmente, tendo de
abreviar nossa análise, escolheremos como último tema o papel de Cristo no
pensamento de Rousseau. Por vezes, não é necessária qualquer referência à religião
para elaborar suas concepções teóricas, por exemplo, sobre a política e a educação da
natureza, mas, por vezes, a concepção religiosa, o teísmo cristão, faz-se fundamental
para delimitar alguns conceitos.
A antropologia de Rousseau não necessita das noções de pecado original; seus
modelos se encontram em Esparta e Roma; há muitos homens do seu tempo para os
quais ele não poupa elogios, pelo seu caráter, mas, em termos de “modelo
paradigmático”, Cristo supera Licurgo, Sócrates, Catão e todos os outros. Eis um dos
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parágrafos em que descreve essa comparação:
Quando Platão pinta seu justo imaginário, coberto com todo o opróbrio do crime e digno de todos os
prêmios da virtude, pinta traço por traço Jesus Cristo: a semelhança é tão impressionante que todos os Pais
da Igreja a sentiram, e não é possível enganar-se. Que preconceitos, que cegueira é preciso ter para
comparar o filho de Sofronisque ao filho de Maria! Que distância de um a outro! Sócrates, morrendo sem
dor, sem agonia, sustentou facilmente até o fim de seu personagem; e se essa morte fácil não tivesse
honrado sua vida, duvidar-se-ia que Sócrates, com todo seu espírito, fosse outra coisa que um sofista [...]
Sim, se a vida e a morte de Sócrates são de um sábio, a vida e a morte de Jesus são de um Deus! (1992, p.
362).
O Emílio ou da Educação é uma obra que, como pudemos observar nessa breve
apresentação, apresenta uma série de concepções inovadoras, não somente no campo
da educação, mas da antropologia, da religião, da ética e muitas outras. Talvez isso se
deva ao fato de que não se trata de um livro sobre as ideias dos outros, mas as do
próprio autor.
Emílio e Sofia, ou os solitários
Essa continuação foi escrita no ano de 1768. Trata-se de duas cartas de Emílio ao
seu mestre, as quais ele não sabe se irá ler – ou se ainda está vivo – e que, talvez,
ninguém leia. Conta suas desventuras dez anos depois de casado com Sofia, como
tudo começou e os anos que se sucederam. Segundo o autor da introdução à edição
brasileira, Walter C. Costa, o texto inacabado teria dois finais possíveis, sendo que
diferem apenas em detalhes. Emílio e Sofia se reconciliariam e iriam viver numa ilha,
o que nos lembra, evidentemente, a estada de Rousseau e Thérèse na ilha de SaintPierre. Conforme Custódia Martins, o texto foi escrito em 1768.
Na primeira, e mais longa, carta, Emílio narra suas desventuras. Sofia ficou
sorumbática depois da morte do pai, da mãe e, especialmente, da filha. Emílio tentava
de tudo para reanimá-la e não obtinha sucesso. Entrementes, teve a oportunidade de ir
a Paris para ver alguns negócios e ocorreu a ideia de levar Sofia. Ali começaram suas
desgraças.
Um pequeno trecho do Emílio assume um tom profético nessa história. Rousseau
adiantava a peripécia que causaria todas as desgraças de seu aluno: fazer com que os
jovens, educados dentro de padrões morais mais próximos da natureza, tivessem que
ir morar em Paris, onde, tal como Emílio e Sofia, perder-se-iam entre os
divertimentos e a solidão da cidade grande:
Quantas jovens mulheres eu vi, trazidas à capital por maridos complacentes e com possibilidades de ficar,
dissuadi-los elas próprias, partindo de bom grado para seus lugares de origem, dizendo com ternura na
véspera da partida: “Ah! Voltemos para nossa cabana, nela se vive mais feliz do que nos palácios daqui”
(ROUSSEAU, 1992, p. 466).
A vida de divertimentos foi tirando dele o doce prazer do convívio com a família.
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Emílio reconheceu, depois da desgraça instituída no seio de sua família, que foi o seu
abandono e desprezo para com sua esposa que a levaram a fazer o que fez. Somandose o descuido de Emílio como marido, a influência dos modos de Paris e a filosofia
licenciosa sobre os deveres matrimoniais, Sofia traiu Emílio e, como desgraça pouca
é bobagem, engravidou do amante. Emílio, ainda ignorando a verdade, insistiu em
recuperar o amor de sua esposa – que estava distante e fria –, quando ela confessoulhe tudo: “[...] e, fitando-me com um olhar que o desespero e a fúria tornavam
assustador: ‘pare, Emile’, ela me disse, ‘e saiba que não sou mais nada para você. Um
outro maculou sua cama, estou grávida, nunca mais em minha vida você irá me
tocar’” (ROUSSEAU, 1994, p. 63).
Emílio sai caminhando sem rumo. Chega a um vilarejo, onde, para prover seu
sustento e esquecer suas mazelas, começa a trabalhar como artesão. Custódia Martins
observa que, ao longo das páginas que se seguem, Emílio reflete sobre a educação
que teve e percebe como ela lhe foi útil para ultrapassar todos os obstáculos que
enfrentou depois da traumática separação. Quanto às questões de consciência, pensou
em tudo: voltar para Sofia, pois seu coração assim pedia; vingar-se dela, mas como?
Matando-a? Tirando-lhe o filho? Depois, em virtude de alguns acontecimentos,
conclui que tirar o filho dela seria um castigo ainda maior para a própria criança: não
se tira o filho de uma mãe.
Quanto às lições práticas, foram de grande valia. Emílio aprendera o ofício de
marceneiro e, não só pela habilidade, mas pelo hábito de trabalhar, adquiriu uma
têmpera que lhe faria diferença nos acontecimentos vindouros. Emílio viajou por
diversos lugares, sempre conseguindo trabalho para sobreviver e se destacando não só
pela eficiência, mas também pelos modos. Tornou-se, assim, mais homem do que
cidadão, pois o mundo era sua pátria.
Iniciando a segunda carta, narra que, numa dessas aventuras, embarcou em um
navio, mas o capitão, traindo a tripulação, entregou-os como escravos. Emílio aceitou
o destino que se lhe impôs, e, na frente de seu captor, vingou-se do capitão
degolando-o. A partir daí sua vida percorreu entre resistir à dureza dos trabalhos que
lhe eram impostos e a firmeza de seu caráter; suportou o jugo da escravidão
considerando que, em relação à natureza e ao modo de vida das cidades, não havia
muita diferença.
Ganhou a confiança de um dos seus senhores e fez nome. Até que, um dia, foi
dado de presente ao “Dey de Argel”, isto é, o “rei”, tornando-se seu conselheiro.
Tudo por causa da educação que recebeu. As lições não ficaram apenas gravadas em
sua memória, mas em seu coração.
7 Chamo a atenção do leitor para um filme que aborda esse tema nessa mesma perspectiva. Trata-se de O
casamento grego (EUA/2002 – direção de Joel Zwick e roteiro escrito pela atriz principal, Nia Vardalos). Em
determinado momento a mãe da protagonista (Maria Portokalos) ensina à filha (Toula Portokalos) como a
mulher deve conduzir os assuntos do lar (cito de memória, mas a ideia é exatamente a que descrevo): “O
homem é a cabeça do lar; a mulher é o pescoço que vira a cabeça para onde quer que ela aponte”, assim,
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habilmente, faz com que o marido (Gus Portokalos) decida exatamente aquilo que ela tinha em mente, não
com gritos ou ordens, mas com doçura e um raciocínio bem rápido.
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Epílogo
Como encerramento deste livro não colocaria uma conclusão, pois não se tratou
aqui propriamente do desenvolvimento de uma tese, mas da apresentação do
pensamento de um filósofo, entremeando-lhe vida e obra. Há, pelo menos, duas
formas de lermos a obra de Rousseau. A primeira, academicamente, analisando seus
conceitos e procurando compreender como eles se articulam entre as obras; a
segunda, procurando em suas reflexões possíveis soluções, princípios ou, ao menos,
ideias para as questões de nosso tempo.
Acredito que Rousseau ainda tenha muito a contribuir com a sociedade
contemporânea, seja no âmbito da política, da educação, da tolerância religiosa e em
áreas como a psicologia, antropologia e, por que não, na música?
No entanto, é preciso observar que essas contribuições não são úteis se fizermos
uma leitura dogmática de suas obras, isto é, se for para aproveitarmos seus conceitos
para refletirmos sobre as questões da sociedade atual, é preciso, como ele mesmo
afirmou no Emílio, considerar as circunstâncias para aplicar, quando for o caso, os
princípios. Muitos conceitos de Rousseau estão ligados ao “oxigênio mental” de seu
tempo, outros dialogam diretamente com estruturas e ideias que permanecem
vivíssimas ainda em nossos dias. Esperando que a apreciação desse livro tenha sido
útil para despertar o gosto pela leitura das obras de Rousseau, em particular, e da
filosofia em geral, ou, ainda, que tenha simplesmente instigado o leitor um pouco
mais na busca pelo conhecimento, despeço-me, colocando-me à disposição para
continuar este diálogo sobre o filósofo genebrino.
José Benedito de Almeida Júnior
[email protected]
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Referências
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da Universidade Federal de Uberlândia (EDUFU), 2009.
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DOZOL, Marlene de Souza. Rousseau – educação: a máscara e o rosto. Petrópolis: Vozes, 2006.
FENELON (François Salignac de la Mothe). As aventuras de Telêmaco, filho de Ulisses. Trad. Maria Helena
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SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e história: o pensamento sobre a história no iluminismo francês.
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———————. Carta à Madame de Francueil. Trad. Françoise Galler Magalhães Gomes. Perspectiva,
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———————. Carta sobre a música francesa. Trad. José Oscar de Almeida Marques e Daniela de Fátima
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———————. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Coleção Os
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87
———————. Do Contrato Social. Coleção Os Pensadores. Tradução de Lourdes Santos Machado. São
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———————. Emile e Sophie ou os solitários. Trad. Françoise Galler. Florianópolis: Ed. Paraula, 1994.
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———————. Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 1971, 3 volumes.
———————.Oeuvres Complètes. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1959-1995, 5 volumes.
Houve um grande evento em Genebra, “Rpisseau pour tours”. No Brasil, foram realizados diversos eventos e
publicações. Há um grupo de estudos do pensamento de Rousseau, cujos sítios na internet são:
Rousseau studies: http://rousseaustudies.free.fr
Société Jean-Jacques Rousseau: http://www.jjrousseau.org
Grupo interdisciplinar de Pesquisa Jean-Jacques Rousseau:
http://www.unicamp.br/~jmarques/gip/index.html
Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), no qual há um grupo de trabalho intitulado:
Rousseau e o Iluminismo: http://anpof.org.br/anpof/grupos/index.php?id=279
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Coleção COMO LER FILOSOFIA
Coordenação editorial: Claudenir Módolo e Claudiano Avelino dos Santos
• Como ler a filosofia da mente, João de Fernandes Teixeira
• Como ler um texto de filosofia, Antônio Joaquim Severino
• Inteligência artificial, João de Fernandes Teixeira
• Como ler a filosofia clínica? Prática da autonomia do pensamento, Monica Aiub
• Um mestre no ofício: Tomás de Aquino, Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento
• Uma introdução à República de Platão, Giovanni Casertano
• Encontrar sentido na vida: Propostas filosóficas, Renold Blank
• Como ler os pré-socráticos, Cristina de Souza Agostini
• Filosofia do Cérebro, João de Fernandes Teixeira
• Mestre Eckhart: Um mestre que falava do ponto de vista da eternidade, Matteo Raschietti
• Como ler Jean-Jacques Rousseau, José Benedito de Almeida Júnior
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Direção editorial: Claudiano Avelino dos Santos
Coordenação de desenvolvimento digital: Erivaldo Dantas
Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes
Revisão: Cícera Gabriela Sousa Martins, Tiago José Risi Leme, Manoel Gomes da Silva Filho
Capa: Marcelo Campanhã
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Almeida Júnior, José Benedito de
Como ler Jean-Jacques Rousseau / José Benedito de Almeida Júnior. — São Paulo: Paulus, 2013. — (Coleção Como ler filosofia)
eISBN 978-85-349-3811-2
1. Filosofia francesa 2. Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778 - Crítica e interpretação 3. Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778 - Ponto de vista
político e social I. Título. II. Série.
13-05208 CDD-194
Índices para catálogo sistemático:
1. Rousseau: Filosofia francesa 194
© PAULUS – 2013
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5087-3700
www.paulus.com.br • [email protected]
eISBN 978-85-349-3811-2
90
91
Scivias
de Bingen, Hildegarda
9788534946025
776 páginas
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Scivias, a obra religiosa mais importante da santa e doutora da Igreja Hildegarda de
Bingen, compõe-se de vinte e seis visões, que são primeiramente escritas de maneira
literal, tal como ela as teve, sendo, a seguir, explicadas exegeticamente. Alguns dos
tópicos presentes nas visões são a caridade de Cristo, a natureza do universo, o reino
de Deus, a queda do ser humano, a santifi cação e o fi m do mundo. Ênfase especial é
dada aos sacramentos do matrimônio e da eucaristia, em resposta à heresia cátara.
Como grupo, as visões formam uma summa teológica da doutrina cristã. No fi nal de
Scivias, encontram-se hinos de louvor e uma peça curta, provavelmente um rascunho
primitivo de Ordo virtutum, a primeira obra de moral conhecida. Hildegarda é notável
por ser capaz de unir "visão com doutrina, religião com ciência, júbilo carismático
com indignação profética, e anseio por ordem social com a busca por justiça social".
Este livro é especialmente significativo para historiadores e teólogas feministas.
Elucida a vida das mulheres medievais, e é um exemplo impressionante de certa
forma especial de espiritualidade cristã.
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Santa Gemma Galgani - Diário
Galgani, Gemma
9788534945714
248 páginas
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Primeiro, ao vê-la, causou-me um pouco de medo; fiz de tudo para me assegurar de
que era verdadeiramente a Mãe de Jesus: deu-me sinal para me orientar. Depois de
um momento, fiquei toda contente; mas foi tamanha a comoção que me senti muito
pequena diante dela, e tamanho o contentamento que não pude pronunciar palavra,
senão dizer, repetidamente, o nome de 'Mãe'. [...] Enquanto juntas conversávamos, e
me tinha sempre pela mão, deixou-me; eu não queria que fosse, estava quase
chorando, e então me disse: 'Minha filha, agora basta; Jesus pede-lhe este sacrifício,
por ora convém que a deixe'. A sua palavra deixou-me em paz; repousei
tranquilamente: 'Pois bem, o sacrifício foi feito'. Deixou-me. Quem poderia descrever
em detalhes quão bela, quão querida é a Mãe celeste? Não, certamente não existe
comparação. Quando terei a felicidade de vê-la novamente?
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DOCAT
Youcat, Fundação
9788534945059
320 páginas
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Dando continuidade ao projeto do YOUCAT, o presente livro apresenta a Doutrina
Social da Igreja numa linguagem jovem. Esta obra conta ainda com prefácio do Papa
Francisco, que manifesta o sonho de ter um milhão de jovens leitores da Doutrina
Social da Igreja, convidando-os a ser Doutrina Social em movimento.
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Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição
Pastoral
Vv.Aa.
9788534945226
576 páginas
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A Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição Pastoral oferece um texto acessível,
principalmente às comunidades de base, círculos bíblicos, catequese e celebrações.
Esta edição contém o Novo Testamento, com introdução para cada livro e notas
explicativas, a proposta desta edição é renovar a vida cristã à luz da Palavra de Deus.
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A origem da Bíblia
McDonald, Lee Martin
9788534936583
264 páginas
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Este é um grandioso trabalho que oferece respostas e explica os caminhos percorridos
pela Bíblia até os dias atuais. Em estilo acessível, o autor descreve como a Bíblia
cristã teve seu início, desenvolveu-se e por fim, se fixou. Lee Martin McDonald
analisa textos desde a Bíblia hebraica até a literatura patrística.
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Índice
Introdução
Parte 1
4
8
Capítulo 1 - Condenado em Paris e Genebra
Capítulo 2 - Infância e juventude
Capítulo 3 - Enfim, a celebridade
Capítulo 4 - Os últimos anos
Parte 2
9
14
24
39
42
Capítulo 5 - O discurso sobre a desigualdade
Reações ao Discurso sobre a desigualdade
Conclusão
Capítulo 6 - O contrato social
O pacto social
Soberano
Vontade geral
Governos
Religião civil
Capítulo 7 - Julie ou a Nova Heloísa
Capítulo 8 - Emílio ou da Educação
Os cinco livros
Livro 1
Livro 2
Livro 3
Livro 4
Livro 5
A educação da natureza
A educação intelectual
Educação moral
Sofia, ou a mulher. A educação feminina
A profissão de fé do Vigário de Saboia. A educação religiosa.
Emílio e Sofia, ou os solitários
Epílogo
Referências
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51
51
54
55
56
58
58
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