Manual de Botânica Carlos Aguiar Manual de Botânica Volume I • Estrutura e reprodução (2ª edição) A Crescem as flores no seu dever biológico, e as cores que patenteiam, por sua natureza, só podem ser aquelas, e não outras. Vermelhas, amarelas, cor de fogo, lilazes, carmesins, azuis, violetas, assim, e só assim, tudo conforme a sua natureza. Ásperas são as folhas, macias, recortadas ou não, tudo conforme; e o aprumo como tal, ou rasteiras, ou leves, ou pesadas, tudo no seu dever, por sua natureza. […] «Poema da Minha Natureza» in «Novos Poemas Póstumos», António Gedeão ... A pobre flor dizia à borboleta celestial: - Não fujas! Vê como os nossos destinos são diferentes. Eu fico, Tu partes! Portanto, nós nos amamos, nós vivemos sem os homens e longe deles e nós nos parecemos e dizem que ambas somos flores! Mas, ai! o ar te transporta e a terra me prende. Sorte cruel! ... «La Fleur et le Papillon», Victor Hugo O amor pelos seres vivos é o mais nobre atributo do homem. Charles Darwin Manual de Botânica. I. Estrutura e Reprodução Outubro de 2019. Autor: Carlos Aguiar (CIMO-Centro de Investigação de Montanha) Publicação: IPB-Instituto Politécnico de Bragança e CIMO-Centro de Investigação de Montanha, Portugal ISBN (volume I): 978-972-745-238-5 Capa: Adansonia digitata (Malvaceae, Bombacoideae) «embondeiro». [Kwanza Sul, Angola; foto do autor] Licença Creative Commons Atribuição–Não Comercial 4.0 Internacional (CC BY-NC 4.0). Termos de uso em https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/deed.pt Periderme 41 Índice Prólogo 1 Objeto 1 Breve reflexão epistemológica 1 Fontes informação 5 Convenções 6 Abreviaturas, siglas e expressões latinas 7 Imagens 7 Anexos e índices 8 Agradecimentos 8 Tecido fundamental 42 Tecido vascular 42 O transporte de água e nutrientes 42 Xilema 42 Floema 45 Emergências 45 Tecidos e estruturas secretoras 48 Glândulas 48 Hidátodos, nectários extraflorais e corpos nutritivos 48 Produção de látex 49 Galhas 50 3. Raiz 51 Natureza e funções da raiz 51 Anatomia da raiz 52 I. A natureza e a estrutura das plantas 9 1. A natureza das plantas 11 Conceito de planta 11 Organização do corpo das plantas-com-semente 15 Desenvolvimento e senescência 15 Órgãos fundamentais 17 O corpo de plantas e animais: análise comparativa 18 Heterotrofia vs. fotoautotrofia 18 Transporte de fluídos aquosos e mobilidade celular 19 Volume e superfície nas plantas 19 Os animais como seres unitários 20 Estrutura modular das plantas. Totipotência celular 20 Simetria 22 Crescimento indeterminado nas plantas 23 Sexualidade e ciclo de vida das plantas 24 Interações ecológicas com plantas 25 Mimetismo e camuflagem 27 Alguns conceitos e termos essenciais de organografia vegetal e evolução 27 Homologia e analogia. Princípio da homologia 29 Carácter taxonómico 30 2. Introdução à histologia e anatomia vegetais 31 Célula vegetal 31 Parede celular 31 Outras características da célula vegetal 32 Orientação da divisão celular 32 Os tecidos vegetais 33 Conceito de tecido vegetal. Planos de corte 33 Classificação 33 Meristemas 34 Os meristemas como aglomerados de células estaminais 34 Tipos de meristemas. Crescimentos primário e secundário 36 Tecidos definitivos simples 38 Parênquima 38 Colênquima 39 Esclerênquima 39 Tecidos complexos 40 Tecido de proteção 40 Epiderme 40 Estrutura primária da raiz 52 Meristemas e tecidos 52 Epiderme e córtex 53 Cilindro central 54 Morfologia da extremidade radicular e ramificação 55 Estrutura secundária da raiz 56 Morfologia externa da raiz 57 Tipos de raízes 57 Situação, consistência e direção 58 Tipos de radicação 58 Metamorfoses da raiz 60 Tipos 60 Raízes estranguladoras 60 Raízes tuberosas 60 Raízes proteoides 61 Velâmen 61 Rizobainha 61 Modificações da raiz causadas por microrganismos 62 Micorrizas 62 Mutualismos com bactérias diazotróficas 63 4. Caule 65 Natureza e funções do caule 65 Anatomia do caule 66 Estrutura primária do caule 66 Meristemas e tecidos 66 Epiderme e córtex 66 Cilindro central 67 Estrutura secundária do caule 70 Primeiras etapas do crescimento secundário 70 Sistemas radial e axial 71 Floema secundário 73 Xilema secundário 74 Anatomia das madeiras (breve referência) 75 Periderme e ritidoma 76 Espessamento do caule nas monocotiledóneas 77 Reparação de feridas. Resposta ao corte 78 Morfologia externa do caule 79 Situação, consistência e superfície do caule 79 Espinhos 81 Tipos e metamorfoses do caule 81 Tipos 81 Função 83 5. Folha 87 Natureza e funções da folha 87 Filomas 87 Microfilos vs. megafilos 87 Tipos de filomas 88 Anatomia da folha (nomofilo) 89 Crescimento e desenvolvimento da folha 89 Epiderme 89 Mesofilo 90 Feixes vasculares 91 Anatomia de Kranz 92 Morfologia externa da folha (nomofilo) 93 Situação e diferenciação 93 Posição da folha 94 Nervação do limbo 95 Tamanho, forma, recorte e simetria do limbo 96 Divisão ou composição da folha 98 Forma e função da forma da folha 101 Apêndices folheares 103 Cor, superfície e epifilia 104 Consistência 104 Duração da folha 105 Filotaxia 106 Ptixia e vernação 108 Heterofilia 108 Metamorfoses da folha 109 Tipos 109 Bolbos e bolbilhos 109 Armadilhas de origem foliar e caulinar 111 6. Inflorescência 113 Definição e constituição da inflorescência 113 Definição e vantagens da inflorescência 113 Constituição da inflorescência 113 Eixo, pedúnculo e pedicelo 113 Brácteas e bractéolas 114 Tipos de inflorescência 114 Critérios de classificação das inflorescências 114 Inflorescências simples 115 Inflorescências compostas 115 Tipos especializados de inflorescências 119 Inflorescências das gramíneas 119 Sexualidade à escala da inflorescência 120 Pseudantos, proliferação tardia e metamorfoses 120 7. Flor 121 Ciclos floral e reprodutivo das angiospérmicas 121 Conceito, estrutura e sexualidade da flor 121 O que é uma flor? 121 Estrutura da flor 122 Expressão sexual 123 Filotaxia e simetria 123 Filotaxia floral 123 Simetria floral 123 Recetáculo 124 Perianto 125 Definição. Tipos 125 Concrescência 125 Merismo e orientação 126 Perigónio 127 Perianto duplo 127 Cálice 127 Corola 129 Ptixia, estivação e disposição das peças do perianto 130 Hipanto 131 Androceu 131 Estrutura e função dos estames 131 Número, forma, inserção e posição 132 Conivência, concrescência e adnação 133 Deiscência das anteras 134 Pólen 134 Gineceu 135 Estrutura e função dos carpelos. Conceito de pistilo 135 Número e concrescência dos carpelos 136 Ovário 138 Posição do ovário. Inserção das peças do perianto relativamente ao ovário 138 Placentação 139 Estilete 139 Estigma 140 Primórdio seminal 140 Nectários florais e osmóforos 141 A flor das gramíneas e das leguminosas 141 Gramíneas 141 Leguminosas faboideas 142 Fórmulas florais 143 8. Fruto e semente 145 Fruto 145 Definição e função do fruto 145 Estrutura do fruto 150 Critérios de classificação dos frutos s.l. 150 Tipos de frutos s.l. 150 Partes edíveis nos frutos s.l. 152 Semente 152 Estrutura da semente 152 Episperma 152 Reservas nutritivas da semente 154 Embrião 155 Apêndices nutritivos 156 Estrutura da semente de gramíneas e leguminosas 156 Gramíneas 156 Leguminosas 157 II. Arquitetura, fenologia e fisionomia 159 1. Arquitetura do sistema radicular 161 Genes ananicantes e revolução verde. Ideotipo 202 3. Fenologia 203 Importância do estudo do sistema radicular 161 Ciclo fenológico. Utilidade da fenologia 203 Sistema radicular aprumado vs. sistema fasciculado 162 Escalas fenológicas 206 Sistema radicular do arroz 163 Sistema radicular das árvores dicotiledóneas 164 Plasticidade fenotípica do sistema radicular 165 2. Arquitetura da canópia 167 Gemas 167 Estrutura e tipologia 167 Pré-formação e neoformação. Prefolheação e vernação 171 Quiescência e dormência dos gomos 171 Crescimento e repouso vegetativos 172 Crescimento e repouso vegetativos nos trópicos 173 Regiões equatoriais e tropicais húmidas 173 Regiões tropicais com estação seca 173 Crescimento e repouso vegetativos nas regiões extratropicais 174 Crescimento contínuo e crescimento rítmico 176 Alongamento rameal 177 Noção de vigor 177 O início do alongamento rameal 177 Alongamento monopodial e simpodial 178 Intensidade do alongamento 179 Ramificação do caule 180 Tipos de ramificação 180 A ramificação a nível anatómico 181 Grau de ramificação 183 Direção, orientação e ângulo de inserção 183 Prolepsia e silepsia 184 Ramos epicórmicos 185 Reiteração 186 Dominância e controlo apicais 187 Dominância apical 187 Controlo apical 188 Interações entre a dominância e o controlo apicais 188 Cladoptose 190 Posição das inflorescências nos caules 190 Posição das inflorescências nas plantas lenhosas 190 Plantas com pelo menos uma estação de repouso vegetativo anual 190 Plantas sem uma sincronização ambiental do crescimento e da floração 193 Posição das inflorescências nas plantas herbáceas 194 Órgãos de frutificação das plantas lenhosas 195 Desenvolvimento e arquitetura das gramíneas 196 Diferenciação e crescimento da folha e do pseudocaule 197 Afilhamento 197 Rizomas e estolhos 199 Fase reprodutiva 199 Modelos arquiteturais 200 4. Tipos fisionómicos 207 Tipos fisionómicos 207 Sistema de Raunkjær 208 III. Biologia da reprodução 211 1. Reprodução sexuada nas angiospérmicas 213 Noções introdutórias 213 A descoberta da sexualidade nas plantas 213 Meiose e fecundação 213 Etapas da reprodução sexual 213 O porquê da sexualidade 214 Juvenilidade. Indução e diferenciação florais 214 Transição da fase juvenil para a fase adulta 214 Indução, iniciação e diferenciação florais 215 Clarificação de conceitos 215 Estímulos exógenos da floração 215 Regra de Hofmeister 217 Esporogénese e gametogénese 218 Microsporogénese e microgametogénese 218 Megasporogénese e megagametogénese 218 Sistemas de reprodução 219 Definição de sistema de reprodução 219 Sistemas sexuais 219 Sistemas de cruzamento 219 Vantagens e desvantagens da polinização cruzada 221 Polinização 222 Conceitos de biologia floral e de polinização 222 Modos de autopolinização 223 Cleistogamia 223 Autogamia facilitada 223 Autogamia autónoma 224 Geitonogamia 224 Mecanismos de promoção da autopolinização 225 Polinização cruzada 225 Mecanismos espaciais e temporais de promoção da alogamia 226 Sistemas de autoincompatibilidade 227 Xenia e metaxenia 228 Vetores e sistemas de polinização 228 Polinização abiótica 230 Polinização biótica 230 Conflito polinizador-planta polinizada 232 Coevolução polinizador animal-planta polinizada 233 Mutualismo não obrigatório especializado 234 Mutualismo obrigatório 235 Polinização por engano 236 Síndromes de polinização 238 Condições ambientais e polinização 238 Importância económica da polinização entomófila 240 O homem como vetor de polinização 240 Viabilidade polínica. Período efetivo de polinização 241 A flor depois de polinizada 242 Fase progâmica 242 Da aderência do pólen ao tubo polínico 242 Competição do pólen. Seleção de gâmetas 243 Fecundação 244 Desenvolvimento da semente e do fruto 244 Etapas do desenvolvimento da semente 244 Embriogénese 245 Diferenciação do embrião 245 Diferenciação do endosperma 246 Diferenciação do tegumento 246 Tamanho da semente 246 Formação do fruto 247 Fases da formação do fruto 247 Dispersão 248 Vantagens e desvantagens da dispersão 248 Unidades e vetores de dispersão 249 Sistemas e síndromes de dispersão 251 Dormência e germinação da semente 253 Tipos e vantagens da dormência 253 Quebra de dormência 253 Germinação da semente 255 Semente e germinação do milho-graúdo 257 Semente e germinação do feijoeiro-comum 257 2. Reprodução assexuada 259 Vantagens e desvantagens da reprodução assexuada 259 Estímulos exógenos da reprodução assexuada 260 Tipos de reprodução assexuada 260 Apomixia 261 Multiplicação vegetativa 264 Afinidade e compatibilidade em enxertia 264 Multiplicação vegetativa a nível anatómico 265 Estacaria e mergulhia 265 Enxertia 265 Quimeras 265 IV. Ciclos de vida 267 1. Conceitos fundamentais 269 Tipos de ciclo de vida 269 Ciclos haplonte, diplonte e haplodiplonte 269 Terminologias alternativas 270 As células reprodutoras 270 Alternância de gerações nas plantas-terrestres 271 2. Ciclos de vida das plantas-de-esporulação-livre 273 3. Ciclos de vida das plantas-com-semente 277 Ciclo de vida dos espermatófitos atuais: estudo comparado 277 Ciclo de vida das gimnospérmicas 279 Órgãos de suporte, estruturas reprodutivas e estróbilos 279 Interpretação evolutiva do estróbilo feminino 282 Pólen e primórdios seminais 284 Polinização e fecundação 284 Frutificações e sementes 287 Ciclo de vida das angiospérmicas 289 Referências 291 Anexo I. Nomes de plantas cultivadas 311 Manual de Botânica PRÓLOGO Este documento não é um livro-texto de referência e muito menos um tratado. Resume-se a uma revisão bibliográfica mais ou menos atualizada – não existem livros científicos atualizados – em torno de temas chave de botânica, complementada pela minha experiência de trinta anos de ensino e investigação em agronomia e botânica. Tem por destinatários estudantes do ensino superior, em particular todos os interessados em ecologia, ciências do ambiente, ciências agrárias e outras formações de biologia aplicada, que necessitam de apreender, num curto período de tempo, elementos fundamentais sobre a forma, a biologia reprodutiva, a evolução e a organização sistemática das plantas. Cada volume corresponde, grosso modo, aos conteúdos de uma disciplina semestral de 6 ECTS. Objeto A organografia vegetal, morfologia vegetal (plant morphology) ou fitomorfologia, a componente maior do Vol. I, tem por objeto a forma das plantas e a sua alteração ao longo do ciclo de vida (mudanças ontogénicas) ou durante o processo evolutivo (mudanças filogenéticas). A descrição de tipos celulares e tecidos, e da estrutura[1] interna dos órgãos vegetais que acompanha a descrição da morfologia das plantas concentra-se no essencial. No meu entender, os destinatários deste livro não precisam de aprofundar muito mais os seus conhecimentos de histologia e anatomia vegetais. A arquitetura de plantas, discutida na II Parte do Vol. I, é uma área especializada da morfologia vegetal raramente abordada em publicações congéneres. O Vol. I estende-se ainda por temas de reprodução vegetal e de fenologia, e pelo estudo dos ciclos de vida das plantas-terrestres, com especial ênfase na reprodução das plantas-com-semente dada a sua importância em ecologia e ciências agrárias, e para compreender a biologia evolutiva das plantas. O Vol. II principia com uma introdução à biologia da evolução. A teoria da evolução, como refiro por mais de uma vez no texto, é a teoria fundamental que organiza toda a biologia. Julgo preocupante que profissionais, que usam a ecologia e a biologia no seu dia a dia, demonstrem um completo e persistente desconhecimento dos [1] Considerei sinónimos os conceitos de estrutura, morfologia e forma. Prólogo 1 mecanismos básicos da evolução da vida e da especiação. Aprendem-se, ao pormenor, a estrutura da célula e os mecanismos moleculares da hereditariedade sem interiorizar as bases do pensamento populacional e adaptativo (sensu Mayr). A agricultura como atividade humana não pode ser adequadamente compreendida sem as ferramentas conceptuais de biologia da evolução. Como escrevia o evolucionista norte-americano de origem ucraniana Theodosius Dobzhansky em 1973: “Nada em biologia faz sentido exceto à luz da evolução” (Futuyma 2005). O Vol. II contém ainda uma introdução à história evolutiva das plantas-terrestres. Pode parecer estranho que algo tão especializado e volátil seja desenvolvido num livro de botânica que se pretende aplicado. As plantas, ao longo da sua evolução, foram tanto agentes de mudança como sujeitos passivos das alterações climáticas, da composição química da atmosfera terrestre, ou dos ciclos biogeoquímicos. Sem noções sobre evolução das plantas é impossível aprofundar estes três temas chave das ciências do ambiente (cf. Berling 2007). O solo, tal como hoje o entendemos, é uma criação das plantas-terrestres. Por fim, a história evolutiva das plantas é indispensável para desenvolver uma visão integrada da planta e dos ecossistemas terrestres. Vol. III é um livro de taxonomia. O tema é preparado com uma apresentação dos sistemas de classificação mais importantes e uma introdução à nomenclatura taxonómica. A componente descritiva incide nos grandes grupos e nas famílias de plantas-com-semente, organizados de acordo com Christenhusz et al. (2011) e o APG IV (APG 2016). Desde a publicação do Genera Plantarum de Antoine de Jussieu, no final do séc. XVIII, que a família é a categoria taxonómica superior ao género mais utilizada na organização do mundo vegetal. O estudo de todas estas matérias pode ter diferentes pendores. Por exemplo, pode ter uma abordagem descritiva-formal, uma perspetiva histórico-evolutiva ou insistir em aspectos funcionais. Busquei uma abordagem híbrida, tendo em mente conferir competências, como referi, a futuros profissionais de biologia aplicada. Breve reflexão epistemológica A organização dos seres vivos desenvolve-se a diferentes níveis de complexidade (Figura 1). As células, as Figura 1. Níveis de complexidade do vivo. [Original]. 2 Breve reflexão epistemológica unidades elementares da vida, organizam-se em tecidos, os tecidos em órgãos e em sistemas, e estes, por sua vez, integram organismos. Os indivíduos ocupam nichos ecológicos e trocam informação genética entre si no âmbito de uma população. As espécies são constelações de populações reprodutivamente isoladas, ou quase. Por outras palavras, os indivíduos agrupam-se em populações, e populações similares (o significado desta similaridade é discutido no Vol II) estão organizadas em unidades biológicas mais ou menos discretas a que chamamos espécies. A componente viva dos ecossistemas, a biocenose, compreende indivíduos de diferentes espécies. Finalmente, os ecossistemas organizam-se em sistemas ecológicos de complexidade variável (e.g., comunidade vegetal e bioma). Os diferentes níveis de complexidade interatuam entre si de forma tanto mais intensa quanto mais próximos estiverem na escala de complexidade (Wilson 1998), e, às escalas que mais interessam para este livro – do tecido à espécie –, ajustam-se às flutuações e variações direcionais do ambiente abiótico e biótico (e.g., plasticidade fenotípica dos indivíduos ou rearranjos da estrutura genética e etária das populações). A biologia e a ecologia, à semelhança de outras ciências fundamentais, procuram explicar e prever a estrutura e a função de cada nível de complexidade, em função dos imediatamente anteriores. Constata-se, no entanto, que a cada “salto de complexidade” este esforço esbarra na emergência de novas propriedades (leis, funções e estruturas), não previstas nos níveis de complexidade inferiores. Por exemplo, a estrutura do genoma é insuficiente para uma compreensão total do funcionamento celular, ou a autoecologia das espécies não explica e prevê adequadamente o funcionamento de um ecossistema. Os epistemólogos – os especialistas em filosofia da ciência –, creio, repartem-se, grosso modo, em dois grupos para explicar a emergência de novas propriedades. Muitos são de opinião que a ignorância é a causa das insuficiências do reducionismo[2] – a seu tempo, muitas propriedades ditas emergentes serão desclassificadas pelo progresso da ciência, outras serão artefactos de limitações epistémicas insanáveis da mente humana. Os holistas, pelo contrário, admitem que a emergência de propriedades é uma característica constitutiva dos sistemas complexos, sem solução – as leis que regem o funcionamento das partes não explicam (determinam) o funcionamento dos sistemas complexos, portanto, uma parte (substancial?) do mundo que nos rodeia não é predizível. O chamado compatibilismo – uma espécie de caminho do meio, bem mais interessante do que os radicalismos holistas e reducionistas – reconhece a existência de causalidade entre níveis de complexidade sem defender um fundamentalismo causal (determinismo absoluto); [2] O reducionismo é uma doutrina filosófica que sustenta que a segmentação em partes da realidade é necessária, e suficiente, para explicar o todo. Para os reducionistas, sistemas tão complexos como os seres vivos ou os ecossistemas mais não são do que a soma das suas partes. Manual de Botânica há um elemento de estocacidade[3] na vida (acaso e probabilidade) que não impede antever, parcialmente, com mais ou menos certeza (probabilidade) e profundidade, os efeitos das conexões causais entre diferentes níveis de complexidade do vivo (vd. Wolfe 2012). Portanto, atividades humanas tão complexas como a agronomia, a silvicultura ou a restauração ecológica[4], todas elas partes de uma grande disciplina que poderíamos denominar por biologia aplicada, podem aproveitar-se das abordagens reducionistas-mecanicistas[5] próprias da ciência moderna, mas a vida (e, implicitamente, a biologia) é irredutível à genética. Uma botânica dirigida à sistematização e à explanação das formas e da diversidade do mundo vegetal, conforme se segue neste texto, oferece informação indispensável para a prática da biologia aplicada, inatingível noutros domínios da biologia. I.e., o acervo de informação e os métodos da organografia e anatomia vegetais, da botânica sistemática ou da biologia de reprodução de plantas, por exemplo, são insubstituíveis, embora insuficientes, para o agrónomo, o silvicultor, o biólogo, o ecólogo ou o engenheiro do ambiente exercerem a sua atividade de forma eficaz e eficiente. É impossível desenhar sistemas de produção agrícola ou florestal sustentáveis ou programas de conservação de espécies e ecossistemas – um propósito incontornável das sociedades contemporâneas – sem um conhecimento íntimo das plantas, entre outros saberes. Compreender para assim ganhar competências é uma das características dos modernos sistemas de ensino-aprendizagem. O conhecimento científico – entendido como um agregado de informação (e.g., factos e descrições) organizados sob a forma de explanações testáveis e predições sobre a realidade – resulta da observação meticulosa do real através da concorrência de instrumentos observacionais e concetuais. Os instrumentos observacionais (e.g., microscópio e sondas de DNA) permitem-nos ultrapassar as limitações físicas dos sentidos e da mente. Os instrumentos concetuais (e.g., conceitos, teorias, hipóteses e modelos), formalizados matematicamente ou não, categorizam e organizam a realidade, i.e., atribuem-lhe uma estrutura percecionável – tornam-na inteligível. Tanto [3] O porquê desta estocacidade – se ela é real ou um produto da nossa mente –, fica como mote de reflexão para os leitores mais propensos à inquirição filosófica. [4] Especialidade da ecologia que tem por objeto o retorno de ecossistemas danificados (e.g., pela perturbação antrópica), à estrutura, composição específica, função e processos próximos dos sistemas ecológicos menos perturbados originais. [5] A ciência é intrinsecamente reducionista-mecanicista. Do mesmo modo que o funcionamento de uma máquina é explorado pelo estudo das peças que a compõem e das forças que nelas atuam, na prática da ciência a realidade é decomposta em níveis de complexidade, e cada um destes níveis é explorado per se, com métodos e instrumentos próprios, procurando-se estabelecer conexões causais entre eles. O mecanicismo biológico parte do princípio que seres vivos são sistemas materiais –­ pacotes concentrados de matéria e energia – regulados pelas mesmas leis físicas da matéria inerte. Portanto, o funcionamento do vivo é (total ou em grande parte) redutível a regras causais como o deslocamento de um líquido num tubo sob pressão. Manual de Botânica uns como os outros são invenções humanas indispensáveis na explicação científica da realidade. Assim como um equipamento analítico mal calibrado falseia a composição química de uma amostra de água, os instrumentos conceptuais inadequados fantasiam a realidade. Em ciência é tão importante desenvolver novos instrumentos observacionais como trabalhar conceitos. A organografia vegetal, a biologia da evolução e a ecologia são três ciências particularmente sensíveis ao subdesenvolvimento e à inconsistência conceptuais. Os conceitos são representações mentais (abstrações) sobre as quais se constrói o pensamento. No caso da organografia e anatomia vegetais, resumem as propriedades de um objeto natural concreto: o corpo das plantas. No capítulo dedicado à botânica sistemática, os objetos naturais concetualizados serão os taxa. No âmbito da morfologia interna e externa das plantas, os conceitos resultam da deteção de padrões que podem ir de simples regularidades na disposição espacial de tipos celulares, à posição relativa dos órgãos vegetais, ou à forma de folhas, flores e frutos. A inventariação e posterior conceptualização dos padrões morfológicos internos e externos das plantas são uma das mais antigas e importantes tarefas da botânica. Uma correspondência inequívoca entre os conceitos, representados por vocábulos (e.g., nomes científicos de estruturas ou espécies) ou símbolos (e.g., fórmulas florais), e os objetos ou ideias concetualizados melhora a qualidade e acelera as trocas da informação entre professores e alunos, e entre os praticantes de uma ciência. Quanto maior a precisão e o detalhe de um corpo concetual, maior o seu valor heurístico, i.e., maior a sua utilidade para gerar hipóteses e mais longe se pode chegar na compreensão dos objetos de estudo. Logo, o estudo científico da forma das plantas, da biologia da reprodução ou a sistemática vegetal, a observação e a construção de hipóteses – sustentadas na grande teoria unificadora da biologia que é a teoria da evolução – devem caminhar lado a lado com a construção de um conjunto consistente de termos e conceitos. Todas as ciências, sem exceção, cultivam um corpo de termos e conceitos. A terminologia botânica tem um denso lastro histórico que recua aos tempos em que o latim era a língua franca das gentes cultas. Estou consciente de que a complexidade do jargão diminui a acessibilidade da botânica ao grande público e que tem o condão de transformar simples descrições em aparentes explanações. Mas não há outro caminho. No que à organografia vegetal diz respeito, pese embora uma história de quase três séculos de observação e descrição atenta da forma das plantas, falta ainda percorrer um longo caminho em busca da universalidade e consistência terminológico-conceptual. Como referem Voght et al. (2010), a descrição da morfologia dos entes viventes continua dificultada pela falta: (i) de uma terminologia estandardizada de uso comum; (ii) de um método comum estandardizado de descrição morfológica; (iii) e de um conjunto de princípios a aplicar na deli- Breve reflexão epistemológica 3 mitação de caracteres morfológicos. Estas limitações são, como discuto no ponto Sistemática filogenética (cladística) [Vol. II], um sério entrave à conjugação da informação molecular com a informação morfológica no estabelecimento de filogenias. Em ciência, os conceitos são mais ou menos consistentes, e as teorias e as hipóteses[6] corroboradas (confirmadas) ou refutadas (eliminadas) com base na evidência observacional e/ou experimental. O vai e vem “teoria/ hipótese-refutação” característico da ciência é uma elaboração da “tentativa e erro” intrínseca à aquisição de conhecimento, desde a incorporação da informação sobre o nicho ecológico no código genético por seleção natural, ao conhecimento científico, passando pelos saberes empíricos do caçador recoletor. Como refere Karl Popper (1972), “From the amoeba to Einstein, the growth of knowledge is always the same: we try to solve our problems, and to obtain, by a process of elimination, something approaching adequacy in our tentative solutions”[7]. Todo o conhecimento científico é então contingente e inacabado, e permanentemente escrutinado pela comunidade científica e pelos usuários da ciência. O facto de uma ciência absoluta, totalmente independente do observador e impermeável ao contexto social, que produz saberes definitivos ser inalcançável, não contradiz a ideia de progresso em ciência e de progresso no conhecimento humano do universo. A praxis é uma evidência suficiente desta tese. A acoplagem de instrumentos observacionais e concetuais sofisticados com mecanismos de divulgação, revisão, testagem e aperfeiçoamento do conhecimento atribuem à ciência uma enorme capacidade de explicar, de prever o funcionamento e de atuar na realidade. O conhecimento científico é, por isso, particularmente adequado para a solução de problemas. A investigação das correlações forma-função e forma-habitat nas plantas serve para ilustrar a natureza do conhecimento científico e a humildade que deve caracterizar a atitude científica. Toda a informação em ciência tem um propósito. A botânica não se fica pela descrição de padrões morfológicos das plantas, procura uma explanação para as descrições ou coleções de factos, respostas à pergunta “porquê”?[8] A função de muitas formas, internas e externas, das plantas é autoevidente: os tubos ocos do xilema transportam seiva e as gavinhas servem para ancorar as plantas aos seus suportes. A função das formas é progressivamente mais difícil de deslindar quanto [6] As teorias são coleções de factos e de hipóteses bem testadas que podem ser usadas para explicar um conjunto alargado de observações e fazer predições seguras. As hipóteses são declarações explanatórias que fazem predições suficientemente específicas que obrigam a sua rejeição caso as predições falhem (Denison 2012). [7] Propositadamente não traduzido para evitar perdas de significado. [8] Em biologia, o "porquê?" é uma pergunta ambígua porque comporta duas questões independentes: "para quê?" e "como?" (Dennett 2017). O "para quê?" refere-se à função, cuja descrição é independente da narrativa evolucionária exigida pela pergunta "como?". 4 Breve reflexão epistemológica maior o número de trade-offs evolutivos em jogo, i.e., o número de características cuja evolução compromete o desenvolvimento de outras (Quadro 6). Mostra a teoria que nestas situações é possível mais do que uma solução fenotípica bem sucedida as quais, por sua vez, podem dar origem a plantas com aspeto (hábito) totalmente distinto (Niklas 1988). Por essa razão, numa savana ou numa floresta tropical coexistem árvores com uma arquitetura da canópia ou com folhas tão diferentes. Por outro lado, algumas formas atuais foram evolutivamente adquiridas num passado remoto, e no presente não desempenham qualquer função ou têm uma função distinta da função primordial[9]. As formas podem até nunca ter desempenhado qualquer função e a sua retenção ser uma obra do acaso. A relacionar a forma com o desempenho de uma dada função , exige uma ampla base indutiva observacional e, se possível, corroboração experimental. Proposições teleológicas do género “as plantas desenvolveram espinhos para evitar a herbivoria” devem ser evitadas, a menos que explicitadas como hipóteses ou fortemente suportadas pela evidência. A especulação em torno das relações forma-função envolve, por conseguinte, incertezas. Peço, por isso, que o utilizador deste texto mantenha uma atitude de permanente reserva crítica em relação a muitos dos temas adiante discutidos. De qualquer modo, este tipo de raciocínio, o raciocínio adaptacionista (adaptationism ou adaptive thinking), "... não é opcional; é o coração e a alma da biologia evolutiva" – a "exclusão do adaptacionismo ... conduziria ao colapso de todas as ciências da vida" (Dennett cit. Godfrey-Smith 2001). Voltarei a esta importante frente de reflexão da filosofia da biologia no Vol II. Os caracteres moleculares são hoje tão ou mais valorizados do que os caracteres morfológicos na modelação das interações genótipo-ambiente, no estabelecimento de filogenias, na investigação de padrões filogeográficos e na delimitação de taxa. Mas se o fenótipo é um produto direto da expressão génica, então a aprendizagem da morfologia externa e interna ou da biologia da reprodução das plantas deve preceder a “descida” à fisiologia e ao gene, e os estudos de up-scaling do gene à estrutura. A aplicação de ferramentas de ponta de melhoramento de plantas como o desenho de ideotipos e a modelação funcional-estrutural (de Vos et al. 2010) dependem de um perfeito domínio da forma das plantas. A filogenia e a sistemática molecular ganharam, nas últimas décadas, uma importância acrescida em biologia, no entanto, é consensual entre os especialistas que a morfologia e os dados moleculares são complementares – um tipo de informação não dispensa o outro (Ronse De Craene e Wanntorp 2011). Esta tese será recuperada mais de uma vez ao longo do livro. [9] Exaptações sensu Gould & Vrba (1982). Manual de Botânica Basear a explicação do sucesso ecológico de uma linhagem – medido, por exemplo, pela proporção da biomassa ou de recursos capturados num dado ecossistema – em função das características ecofisiológicas (e.g., eficiência fotossintética ou de utilização da água) em detrimento da morfologia é outra idiossincrasia da ciência atual. De facto, exceptuando ambientes muito particulares ou extremos (e.g., solos salinos), a fisiologia vegetal é, por si só, incapaz de explicar o sucesso ecológico porque o crescimento e a competição foram correlacionados com características estruturais (Küppers 1994). A sistemática oferece um conjunto de conceitos, princípios, métodos e informação descritiva que possibilita a apreensão da diversidade vegetal de forma rápida e estruturada. A partilha de caracteres morfológicos nas plantas deve-se, frequentemente, à partilha de antepassados comuns, por conseguinte, a sistemática vegetal permite, ainda, aos seus utilizadores, o aperfeiçoamento de capacidades inatas de antecipação da organização do mundo vivo à escala da percepção visual (questão a retomar no início do Vol. II). A botânica sistemática é, simultaneamente, uma ciência secular e uma ciência moderna e de vanguarda, na confluência de um conjunto alargado de ciências fundamentais; e.g., evolução, histologia e ecologia. No passado reduzia-se à prática da classificação biológica das plantas. Hoje é indispensável em ecologia – em ecologia as biocenoses são geralmente segmentadas ao nível da espécie ou da família – em paleoclimatologia, no melhoramento de plantas, e na testagem de hipóteses de biogeografia e de biologia da evolução, por exemplo. A botânica conforme é abordada neste texto é uma disciplina de charneira entre a evolução, a biogeografia, a etnobiologia e a agronomia. Ronse De Craene & Wanntorp (2011) criticam duramente o efeito negativo que o fascínio pelo molecular está a ter na persistência e no progresso do conhecimento sobre a morfologia das plantas e a sua sistemática, i.e., na botânica dita geral ou clássica. Insidiosamente, a universidade (assim como o ensino não universitário) está a eliminar a botânica geral dos curricula quebrando, de forma irreparável, um cadeia secular de transmissão de saberes, trocando-os por conhecimentos hiperespecializados, sem uma imediata aplicação prática. Faz sentido saber de cor os ciclos dos TCA e de Calvin-Benson ou a mecânica do DNA sem perceber o corpo das plantas? De acordo com os mesmos autores, a falta de investimento em botânica clássica está em contraciclo com a crise da biodiversidade que ameaça as sociedades modernas. A sobrevalorização do molecular reduz a utilidade social do sistema de ensino. Manual de Botânica Fontes informação A pequena introdução à célula, histologia e anatomia vegetais que abre o Vol. I, e as descrições anatómicas que se seguem basearam-se nas publicações de Esau (1977), Beck (2010), Brandão Oliveira (2011), Moreira (1983), Moreira (2010) e Rudal (2007), complementadas com artigos e livros diversos. A bibliografia de origem indiana é particularmente rica nestes domínios da botânica. Recomendo a todos aqueles que pretendam aprofundar os seus conhecimentos sobre a célula, os tecidos e a anatomia dos vegetais as publicações de Carvalho (2012), Moreira (1983) e Brandão Oliveira (2011), respetivamente, e ainda as páginas Web: http://botweb.uwsp.edu/anatomy/ e http://www.cls.zju.edu.cn/sub/fulab/plant_Antomy/plant/index. html. As Noções de Morfologia Externa de Plantas Superiores do Prof. João de Carvalho e Vasconcellos (Vasconcellos 1969) fixaram a terminologia botânica de uso corrente em português europeu. No estudo da forma das plantas são também indispensáveis o Diccionario de Botánica de Pio Font Quer (Font Quer 1985) e o Glossário de Termos Botânicos da Prof. Rosette Battarda Fernandes (Fernandes 1972). Na preparação deste documento consultei ainda extensivamente os livros de Bell (2008), Beentje (2012), Hallé (2002), Ingrouille & Eddie (2006), Judd et al. (2007), Keller (2004), Pérez-Morales (1999), Ronse de Craene (2010), Vozzo (2002), e um grupo alargado de artigos citados nas referências bibliográficas. A natureza e o arranjo espacial das partes das plantas é o objeto da chamada arquitetura de plantas (Vol. I). De forma recorrente uso o conceito de metamorfose, importado da bibliografia de língua alemã; entende-se por metamorfose uma morfologia especializada, qualquer que ela seja. Por vezes uso o termo modificação com o mesmo sentido. A normalização terminológica e concetual com o vocabulário do Plant Ontology Consortium (http://www.plantontology.org/index.html) fica adiada para uma próxima versão deste livro. Com mais de 100 anos de edições sucessivas, o Strasburger: Tratado de Botánica (Sitte et al. 2003) continua a ser uma das fontes mais valiosas de informação sobre biologia da reprodução. Neste ponto optei por valorizar a biologia floral em detrimento dos aspectos celulares e fisiológicos da reprodução. Parece-me mais útil para os potenciais utilizadores deste livro explorar os aspectos ecológicos, funcionais e evolutivos da polinização do que analisar em detalhe a complexa tipologia do saco embrionário ou do desenvolvimento do endosperma, por exemplo. Uma opção arriscada porque, verdade seja dita, descrever tipologias é bem mais cómodo do que enveredar pelos caminhos ínvios onde se cruzam a ecologia e a biologia da evolução. A polinização é uma tema tão complexo como fascinante. Talvez me tenha alongado em demasia mas mesmo assim muito ficou por dizer. Para Fontes informação 5 saber mais há um excelente livro escrito em português disponível na internet editado por Rech et al. (2014). O estudo dos ciclos de vida retornou em força à botânica e à biologia evolutiva. O livro de texto de Díaz et al. (2004) contém uma descrição cuidadosa e precisa dos ciclos de vida das plantas e de grupos algais hoje em dia excluídos do conceito de plantas. As figuras desenhadas pelo Prof. T. Díaz González adaptadas com autorização para este livro são extraordinárias. A leitura dos vários trabalhos sobre o tema do botânico estadounidense K. Niklas foi fundamental. A introdução à biologia da evolução e o capítulo dedicado à evolução de plantas, contidas no Vol. II foram profusamente aditados com referências bibliográficas. Para aprofundar estes dois temas recomendo, respetivamente, o The Princeton Guide to Evolution de Losos (2014) e o tratado de Taylor et al. (2009). O livro de Briggs & Walters (2916) é muito útil para entender os aspetos microevolucionários da evolução das plantas. A síntese de Armstrong (2014) é uma alternativa bem pensada e escrita, de mais fácil leitura que o livro de Taylor et al. (2009). O livro texto de Willis & McElwain (2013) situa-se, em complexidade, entre a síntese de Armstrong (2014) e o tratado de Taylor et al. (2009). As microfotografias do livro Botânica. A Passagem à Vida Terrestre ilustram muito bem as grandes aquisições evolutivas dos grandes grupos de plantas-terrestres (Antunes e Sevinate Pinto 2006). A narrativa da história evolutiva das plantas vertida no Vol. II não inclui todas as referências e hipóteses mais recentes ou relevantes – não está atualizada, como é óbvio. Os livros sobre áreas científicas tão ativas como a biologia da evolução e a paleontologia são trabalhos inacabados (e intelectualmente arriscados). Os fundamentos de taxonomia estão muito bem explicados no livro clássico de Stace (1991). Para saber mais de nomenclatura botânica aconselho a leitura de Struwe (2018). A organização taxonómica das famílias e grandes grupos taxonómicos seguida no Vol. III deste livro funda-se no APG IV (Angiosperm Phylogeny Group 2016). As descrições das famílias botânicas foram adaptadas com adições e correções do Guia de Árvores e Arbustos de Portugal Continental de Bingre et al. (2007) as quais, por sua vez, se basearam nos textos de Heywood (1993), Stevens (2001+), Spichiger et al. (2009) e Judd et al. (2007). As descrições dos taxa supra-específicos, inclusive nas obras de referência, são frequentemente secundárias, não sendo clara a origem da informação. Li muita bibliografia durante a preparação das descrições das famílias botânicas parte da qual não está citada no texto. Entre esta destaco os livros de Christenhusz et al. (2017) e de Soltis et al. (2018). A descrição das famílias foi, em grande parte, reduzida aos caracteres necessários para uma identificação positiva. Em itálico indicaram-se os caracteres morfológicos exclusivos ou com maior valor diagnóstico na diferencia- 6 Convenções ção das famílias. Para facilitar a percepção da morfologia das famílias, de uma forma muito concisa, é oferecida informação sobre o número de espécies à escala global ou presentes em Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e Portugal continental, e um apontamento sobre as plantas de maior interesse económico. Os exemplos citados, salvo indicação em contrário, referem-se à flora ibérica ou a plantas cultivadas. Muitos dos desenhos a preto e branco do Vol. III foram retirados do livro clássico de Le Maout & Decaisne (1868), todos eles de domínio público. Para saber mais sobre as famílias das plantas-com-semente recomendo três livros de referência: Plant Systematics. A Phylogenetic Approach (Judd et al. 2007), Flowering Plants of the World (Heywood 1993) e Plants of the World. An Illustrated Encyclopedia of Vascular Plants (Christenhusz et al. 2017). O site http://www.mobot.org/MOBOT/research/ APweb/welcome.html (Stevens 2001+) é indispensável para quem se quiser manter a par com as descobertas mais recentes de filogenia das plantas-com-semente. Convenções À semelhança do Code of Nomenclature for Algae, Fungi, and Plants-ICN (Turland et al. 2018), os nomes dos taxa foram grafados em itálico – e.g., Celtis australis e Magnoliophyta – qualquer que seja a sua categoria. Refira-se que na literatura mais atual verifica-se a tendência de italicizar apenas os nomes genéricos, específicos e infraespecíficos. De qualquer modo, o ICN não impõe regras a este respeito: "typography is a matter of editorial style and tradition, not of nomenclature" (Turland et al. 2018). As categorias taxonómicas foram assim abreviadas (Recomendação 5A do ICN): • cl. (classe); • ord. (ordem); • fam. (família); • subfam. (subfamília); • tr. (tribo); • gen. (género); • subgen. (subgénero); • sect. (secção); • ser. (série); • sp. (espécie); • subsp. (subespécie); • var. (variedade); • f. (forma). Para evitar redundâncias fonéticas os nomes específicos, foram, por vezes, reduzidos à primeira ou à primeira e segundas letras (quando a segunda letra é um "h"); e.g., Q. robur (Quercus robur), Ch. fuscatum (Chamaemelum fuscatum). À exceção dos nomes genéricos, específicos e infraespecíficos, admite-se que todos os nomes latinos podem Manual de Botânica Quadro 1. Abreviaturas, siglas e expressões latinas. ca. – circa, aproximadamente, cerca de. Com o mesmo sentido utiliza-se o símbolo "~" CBE - Conceito Biológico de Espécie cf. – confer, conferir, ver cv. – cultivar e.g. – exempli gratia, por exemplo et al. - et alia, e outros excl. – excluso, excluído fam. – família gen. – género ID – identificação i.e. – isto é ICN – Código Internacional de Nomenclatura para Algas, Fungos e Plantas * ICNCP – Código Internacional de Nomenclatura das Plantas Cultivadas** inc. – incluso, incluído lat. – em latim M.a. – milhões de anos antes do presente MS – matéria seca n.b. – nota bene, preste atenção o.m.q. – o mesmo que pCO2 – concentração atmosférica de CO2 pO2 – concentração atmosférica de O2 p.p. – pro parte, uma parte s.d. - sem data s.l. – sensu lato, num sentido alargado do termo s.str. – sensu stricto, num sentido estrito do termo sin. – sinónimo sing. – singular sp. – espécie não determinada sp.pl. – várias espécies subsp. – subespécie vd. – vide, ver v.i. – vide infra, ver mais adiante v.s. – vide supra, ver antes vs. – versus, contra * Desde Junho de 2018 em vigor o código de Shenzhen (Turland et al. 2018) ** Em vigor a oitava edição publicada em 2009 (Brickell et al. 2009) ser vernaculizados. Os nomes latinos dos taxa supragenéricos foram traduzidos sob a forma de substantivos adjetivados comuns, femininos e plurais (Font Quer 1985). Os sufixos previstos pelo ICN foram aportuguesados do seguinte modo: • -phyta em “-fitas” (divisão ou filo); • -phytina em “-fitinas” (subdivisão ou subfilo); • -opsida em “-ópsidas” (classe); Manual de Botânica • -idae em “-idas” (subclasse); • -ales em “-ales” (ordem); • -ineae em “-íneas” (subordem); • -aceae em “-áceas” (família); • -oideae em “-oideas” (subfamília); • -eae em “-eas” (tribo); • -inae em “-inas” (subtribo). Alguns exemplos: angiospérmicas, magnoliófitas, liliópsidas, coníferas, fabales, asteráceas ou mimosoideas. Era tão importante normalizar esta terminologia nos países de língua oficial portuguesa ... O PhyloCode admite o uso de nomes informais e formais na designação dos clados (grupos monofiléticos), e estabelece regras de ortografia para o efeito. Uma vez que o PhyloCode não passou ainda a fase de rascunho, neste texto todos os clados foram designados de forma informal, escritos em cursivo e iniciados com minúsculas. Nas publicações de filogenética vegetal em língua inglesa, os nomes informais dos clados geralmente terminam em “ids”. Na sua tradução para português optei por substituir “ids” por “ídeas”; e.g., rosids em rosídeas e lamids em lamiídeas. De momento parece ser esta a prática mais comum em língua portuguesa. Os grados (grupos parafiléticos) estão em minúsculas cursivas e assinalados geralmente com aspas simples; e.g., ‘briófitos’ e 'coníferas'. As relações filogenéticas entre os grupos que constituem os clados foram pontualmente expressas em formato Newick; e.g., clado fixador de azoto das fabídeas = Fabales,(Rosales,(Cucurbitales,Fagales)). Os cladogramas foram desenhados no programa Phylodendron. Em acordo com Louro (1943) e Font Quer (1985), tomei como esdrúxulas e masculinas as palavras de etimologia grega derivadas de fito (transliteração de Φυτό) “planta” ou de filos (transliteração de φίλος) “amigo”; e.g., xerófito (planta adaptada a ambientes secos), heliófilo (que aprecia a luz), fitófilo (aquele que ama as plantas), espermatófito (planta-com-semente) e gametófito (indivíduo haploide parte integrante do ciclo de vida haplodiplonte característico das plantas-terrestres). Pela mesma razão, desde que não se refiram a um taxon com a categoria de divisão, são incorretos os termos espermatófita, briófita e pteridófita, tão comuns na bibliografia botânica em língua portuguesa. As palavras compostas com a raiz grega phyllo ou filo (transliteração do grego moderno φύλλο) “folha”, são graves, não têm acentuação; e.g., esporofilo (estrutura foliar que suporta esporângios) e mesofilo (interior parenquimatoso da folha). Segundo Louro (1943), gimnospermos, angiospermos, monocotilédones, e dicotilédones são melhores do que gimnospérmicas, angiospérmicas, monocotiledóneas e dicotiledóneas, respetivamente. Neste caso, usei as versões no feminino porque estão consagradas pelo uso. Na bibliografia portuguesa e internacional, as vernaculizações de Magnoliophyta e de muitos outros nomes Abreviaturas, siglas e expressões latinas 7 originalmente criados de acordo com as regras do CNB para apelidar taxa, estão a ser usados para designar clados sem categoria taxonómica definida. Então, o sufixo -phyta deveria ser vernaculizado no masculino quando designar um grupo de plantas sem categoria taxonómica definida, e no feminino se se referir a taxa com a categoria taxonómica "divisão". Consoante o contexto, os termos espermatófitos e espermatófitas poderão estar ambos corretos. Como defenderei por mais de uma vez ao longo do texto, à escala dos grandes grupos de seres vivos não é prioritário precisar a categoria taxonómica – importante é sim identificar as hipóteses filogenéticas implícitas no seu uso. Portanto será usado o vocábulo masculino "magnoliófitos" (vd. Quadro 2). Os nomes vulgares foram escritos em minúsculas, hifenizados e apresentados entre aspas; e.g., «lódão-bastardo». A grafia dos nomes de cultivares, em acordo com o ICNCP, obedeceram a três regras [Vol. II]: (i) primeira letra em maiúsculas; (ii) hifenização de todas as palavras; (iii) intercalação entre aspas simples ou, então, precedidos da abreviatura “cv.”. Dois exemplos: alface ‘Orelha-de-mula’ e macieira cv. Starking. Abreviaturas, siglas e expressões latinas No Quadro 1 expõem-se as abreviaturas e siglas adotadas no texto. Imagens Todas as autorias estão devidamente assinaladas. Algumas imagens foram publicadas sem autorização expressa dos seus autores por falta de resposta às solicitações enviadas por e-mail. As fotos cuja proveniência está omissa nas legendas foram obtidas em Portugal. Proponho ao leitor interessado na flora Portuguesa que acompanhe a leitura deste texto, em particular do Vol. II, com visitas regulares aos sítios: Para explorar a flora de Angola pode-se começar por aqui: 8 Anexos e índices Para Moçambique, e também para a Angola, são indispensáveis os seguintes sítios: Para a Guiné-Bissau recomendo a página: E, claro, para quem se dedica à flora de África, uma das maiores glória da botânica portuguesa – o herbário LISC: Anexos e índices No final de cada volume está disponível um anexo com os nomes científicos das plantas cultivadas mais citadas no texto. A busca de definições deve ser feita através do índice remissivo disponibilizado no final de cada volume. Um glossário seria redundante com o texto. Manual de Botânica Agradecimentos Estou grato aos colegas José Alberto Pereira, Paula Minhoto, Rubim Almeida da Silva, Helena Hespanhol, Henrique Pereira dos Santos, Luís Miguel Moreira e Jorge Capelo pela leitura crítica de alguns capítulos. O João Lourenço alertou-me para algumas ingenuidades nas partes mais filosóficas do texto. Endereço um agradecimento particular ao esforço dedicado ao melhoramento do texto pelos colegas Ana Maria Carvalho, João Paulo Fonseca, Luís Santos, Tiago Monteiro Henriques e, muito em especial, à minha professora no Instituto Superior de Agronomia no longínquo ano letivo de 1981/82, a profª Lisete Caixinhas. É-me impossível enumerar todos os comentários, referências bibliográficas e palavras de apoio recebidas nestes últimos anos. A todos muito obrigado. Obviamente, todos os erros são da minha inteira e exclusiva responsabilidade. Persistem inúmeros erros, omissões e gralhas. Só com a colaboração dos leitores poderão ser corrigidos. Agradeço todas as propostas de adição de novas matérias ou de referências bibliográficas. Novas fotos e esquemas são particularmente bem-vindos. Para todos estes fins está à vossa disposição o seguinte endereço de e-mail: [email protected]. Manual de Botânica I. A natureza e a estrutura das plantas I. A natureza e a estrutura das plantas 9 10 Agradecimentos Foto da página anterior. Anacardium excelsum (Anacardiaceae) «caracolí», uma grande árvore do Caribe. [Cartagena de Índias; Colombia; foto do autor]. Manual de Botânica Manual de Botânica 1. A NATUREZA DAS PLANTAS Conceito de planta No séc. IV a.C. Aristóteles dividiu os seres vivos em dois grandes grupos, que depois de Carlos Lineu [17071778] foram categorizados ao nível do reino: reinos Plantae e Animalia (=Metazoa). Em 1866, o zoólogo alemão Ernst H. Haeckel [1834-1919] reconheceu que nem todos os seres vivos são animais ou plantas e sugeriu, então sem grande sucesso no meio académico, a criação de um novo reino – o reino Protista – para absorver os atuais procariotas, os protozoários, as algas e os fungos. Durante boa parte do século XX, os livros-texto de botânica, além das plantas-terrestres, incluíram no reino das plantas todo o tipo de algas, os fungos e até alguns grupos de bactérias (Hagen 2012). Somente em 1961, quase cem anos depois da proposta de E. Haeckel, os microbiologistas R. Y. Stanier e C. B. van Neil clarificaram a dicotomia fundamental da vida entre procariotas e eucariotas, identificada na década de 1920 pelo biólogo francês Édouard Chatton [1883-1947], eliminando, em definitivo, a clássica oposição planta-animal. Robert Whittaker [1920-1980] propôs, com um enorme êxito, um sistema de classificação alternativo à aproximação lineana, com cinco reinos (Whittaker 1969): Monera, Protista, Animalia, Fungi e Plantae. Este conhecido sistema tem uma índole funcional e ecológica – R. Whittaker era um ecólogo de vegetação. Baseia-se em três critérios: • Nível de organização – procariotas vs. eucariotas; unicelularidade vs. multicelularidade; • Modo de nutrição – autotrofia, ingestão ou absorção; • Nível trófico – produtores, consumidores ou decompositores. As plantas são seres eucariotas, pluricelulares, autotróficos e produtores. Em contrapartida, o sistema de Whittaker não expressa qualquer tipo de relação evolutiva: uma alface-do-mar (Ulva lactuca) é uma planta; outra A natureza das plantas 11 alga-verde fotossintética unicelular evolutivamente próxima da alface-do-mar, um protista. Os conhecimentos de bioquímica, fisiologia, genética e biologia evolutiva acumulados nas últimas décadas, a par da progressiva aceitação do princípio da monofilia (principle of monophyly) – os taxa têm de incluir todos, e apenas, os descendentes de um ancestral comum [Vol. II] – implicaram uma redução significativa da circunscrição do conceito de planta e a progressiva substituição do sistema ecológico/funcional de R. Whittaker por sistemas de classificação filogenéticos. Afinal nem todas as plantas são pluricelulares, e nem todos os seres multicelulares autotróficos são plantas. As plantas são eucariotas (domínio Eukaryota), um dos três domínios (= super-reinos) da vida celular[10] definidos por Carl Woese et al. (1990). Embora a origem dos eucariotas permaneça um enigma, e seja um dos maiores desafios da biologia evolutiva atual (Lane 2015), as relações filogenéticas entre os grandes grupos de eucariotas estão a convergir num consenso, entretanto incorporado nos sistemas de classificação de grandes grupos mais atuais. O sistema de classificação de Adl et al. (2012) reconhece cinco supergrupos[11] de eucariotas: Opisthokonta, Amoebozoa, Excavata, SAR e Archaeplastida. Grosso modo, os Opisthokonta incluem, entre outros seres, os fungos (Fungi) e animais (Metazoa); as Amoebozoa e as Excavata reúnem essencialmente seres unicelulares; os oomicetas[12] (Peronosporomycetes, = Oomycetes), as algas-castanhas (Phaeophyceae) e as diatomáceas (Diatomea, = Bacillariophyta)[13] são os grupos de SAR[14] mais conhecidos; as plantas encontram-se nas Archaeplastida. Na bibliografia atual, o nome Plantae, nem sempre com a categoria de reino, é aplicado a um agregado constituído pelas plantas-terrestres e um conjunto variável de linhagens de algas. Outros autores tendem a restringir o conceito às plantas-terrestres. Neste texto adopto a taxonomia do Tree of Life (http://tolweb.org/tree/, Figura 2): • Plantae = glaucófitos (Glaucophyta) + algas-vermelhas (Rodophyta) + plantas-verdes. Infelizmente, o nome Plantae é equívoco porque desde a fundação da moderna nomenclatura biológica por Carlos Lineu, nos meados do séc. XVIII, foi usado com demasiados sentidos. A solução mais parcimoniosa para este inconveniente talvez fosse substituí-lo pelo [10] Por definição excluindo vírus e priões. [11] Categoria não formal, i.e., não reconhecida pelo Code of Nomenclature for algae, fungi, and plants (ICN) (Turland et al. 2018). [12] Os oomicetas, como os fungos, produzem micélio e esporos. Incluem os conhecidos míldios da videira (Plasmopara viticola) e da batateira (Phytophthora infestans). Foi demonstrado que não estão evolutivamente relacionados com os fungos, e que a partilha de uma morfologia comum é um caso de convergência evolutiva. [13] Grupos colocados nas Chromalveolata, na versão de 2005 (Adl et al. 2005). [14] Acrónimo de Stramenopiles, Alveolata e Rhizaria. 12 Conceito de planta Manual de Botânica nome Archaeplastida[15], sem concretizar a categoria taxonómica (Adl et al. 2005, Adl et al. 2012), traduzido para vernáculo por linhagem-verde (green lineage) ou simplesmente por plantas (Figura 2). Um dos três grandes grupos de plantas, as chamadas plantas-verdes, repartem-se por duas grandes linhagens (Leliaert et al. 2012): • Plantas-verdes (Viridiplantae[16]; green plants) = Chlorophyta + Streptophyta. As Streptophyta são constituídas por um grupo de ‘algas-verdes’, as Charophyta[17], mais as plantas-terrestres, seus descendentes diretos. Então: • Estreptófitos (streptophytes) = ‘carófitos’ + plantas-terrestres. As plantas-terrestres abrangem três grandes grupos (Figura 3): • Plantas-terrestres (embriófitos ou Embryopsida[18]; terrestrial plants ou embryophytes)= ‘briófitos’ + ‘pteridófitos’ + plantas-com-semente. Sendo (Figura 3): • ‘Briófitos’[19] (bryophytes) = hepáticas (hepatics ou liverworts) + antóceros (hornworts) + musgos (mosses); • ‘Pteridófitos’ (pteridophytes) = licófitos (lycophytes ou lycopods) + fetos (ferns); • Plantas-com-semente (seed plants) = angiospérmicas (= plantas-com-flor; flowering plants ou angiosperms) + gimnospérmicas (gymnosperms). Figura 2. Relações evolutivas entre os grupos basais de plantas. As aspas simples assinalam os grupos parafiléticos. N.b. que as algas-verdes são um grupo parafilético porque não incluem todos os descendentes de um ancestral comum (excluem as plantas-terrestres). [Original, a partir de vários autores]. Quadro 2. Enquadramento taxonómico da classe Embryopsida «plantas-terrestres». Baseado em Adl et al. (2005), Chase & Reveal (2009), Christenhusz et al. (2011) e Schuettpelz et al. (2016). Categoria taxonómica Taxa Nome vulgar Sem categoria formal Eukaryota Eucariotas Sem categoria formal Archaeplastida Linhagem-verde ou plantas Sem categoria formal Viridiplantae Plantas-verdes Sem categoria formal Streptophyta Estreptófitos Classe Embryopsida Plantas-terrestres, embriófitos Subclasse Marchantiidae Hepáticas Subclasse Bryidae Musgos Subclasse Anthocerotidae Antóceros Os ‘briófitos’ são um grupo parafilético (= grado, paraphyletic group, grade) porque não incluem todos os descendentes de um ancestral comum. As hepáticas são basais relativamente às restantes plantas-terrestres. Como veremos no Vol. II, as primeiras plantas que colonizaram a terra firme, algures no final do Câmbrico [541-485 M.a.] ou no início do Ordovícico [485-458 M.a.], eram provavelmente hepáticas ou pertencentes a um grupo que as precedeu, hoje extinto (Edwards et al. 2014). Os ‘pteridófitos’ são também parafiléticos; incluem os licófitos e os fetos propriamente ditos. Os ‘briófitos’, os licófitos Subclasse Lycopodiidae Licopodiidas, licopodiófitos, licófitos, licopódios Subclasse Equisetidae Equisetidas, equisetófitos, fetos-equisetidos, equisetas, cavalinhas Subclasse Ophioglossidae* Ophioglossidas, ophioglossófitos, psilotófitos** Subclasse Marattiidae Marattiidas, marattiófitos, fetos-marattiidos Subclasse Polypodiidae Polipodiidas, polipodiófitos, fetos-verdadeiros, fetos-leptoesporangiados Subclasse Ginkgoidae Ginkgoidas, ginkgófitos, ginkgos Subclasse Cycadidae Cicadidas, cicadófitos, cycas, cicas [15] Um terceiro nome disponível na bibliografia: Primoplantae. [16] O nome Viridiplantae é mais antigo pelo que não deve ser rejeitado em favor de Chloroplastida. Outros nomes citados na bibliografia: Chlorobionta, Chlorobiota ou Chloroplastida. [17] As Charophyta (‘carófitos’ ou ‘algas-carófitas’), e implicitamente as ‘algas-verdes’ (=Chlorophyta + Charophyta), são parafiléticas porque não incluem todos os descendentes de um ancestral comum; concretamente, excluem as plantas-terrestres. [18] Nome correto para a classe que expressa a retenção de um embrião diploide no arquegónio (Pirani & Prado 2012). Outros nomes: Equisetopsida, Embryobionta, Embryophyta e Archegoniatae. [19] Para evitar equívocos, neste texto o termo ‘briófito’ designa o grupo parafilético hepáticas+musgos+antóceros. Uma alternativa seria considerar briófitos s.str. = musgos, e ‘briófitos s.l.’ = hepáticas+musgos+antóceros. Subclasse Cupressidae*** Cupressidas, cupressófitos Subclasse Pinidae Pinidas, pinófitos Subclasse Gnetidae Gnetidas, gnetófitos Subclasse Magnoliidae Angiospérmicas, magnoliófitos, magnoliídas, plantas-com-flor * Psilotidae até há bem pouco tempo. ** Mantenho por enquanto a designação mais corrente na bibliografia. ** Pinidae s.l. (Pinales+Araucariales+Cupressales) é provavelmente parafilética (Li et al. 2017). A solução passa por recuperar a subclasse Cupressidae (Araucariales+Cupressales) não admitida por Christenhusz et al. (2011). Manual de Botânica Conceito de planta 13 A B C D E F G H I J K L M N O P Figura 3. Relações evolutivas entre os grandes grupos de plantas-terrestres. A) Filogenia baseada em Liu et al. (2014) para os ‘briófitos’, Testo & Sundue (2016) e Schuettpelz et al. (2016) para os fetos, Ran et al. (2018) para as gimnospérmicas e Ruhfel et al. (2014) para as angiospérmicas; nomenclatura resumida no Quadro 2. B) Conocephalum conicum (Conocephalaceae, Marchantiidae). C) Bryum dichotomum (Bryaceae, Bryidae). D) Phaeocerus sp. (Notothyladaceae, Anthocerotidae). E) Huperzia dentata (Huperziaceae, Lycopodiidae). F) Equisetum telmatea (Equisetaceae, Equisetidae). G) Botrychium lunaria (Ophioglossaceae, Ophioglossidae). H) Marattia laevis (Marattiaceae, Marattiidae). I) Culcita macrocarpa (Culcitaceae, Polypodiidae). J) Cycas revoluta (Cycadaceae, Cydadidae). K) Ginkgo biloba (Ginkgoaceae, Ginkgoidae). L) Metasequoia glyptostroboides (Cupressaceae, Cupressidae). M) Larix decidua (Pinaceae, Pinidae). N) Ephedra fragilis (Ephedraceae, Gnetidae). O) Agapanthus africanus (Amaryllidaceae, Magnoliidae). P) Lophira lanceolata (Ochnaceae, Magnoliidae). [A) original; B-F e H-P) fotos do autor; G) Wikimedia Commons].