Estado Spinoza de natureza e estado civil em Karine Vieira Miranda * Introdução B enedictus de Spinoza1 é um filósofo que exerceu tremendo impacto em seu tempo e sua ousadia no campo ético e político repercutem e ressoam até a contemporaneidade. Sua filosofia está longe de ser a mais simples, porém, é de um alcance tremendo, não podendo ser deixado em segundo plano, especialmente diante de toda a discussão política contemporânea sobre direito, liberdade, soberania, dentre outros temas. Pierre Macherey (1991) ressalta que a filosofia de Spinoza é “[...] uma filosofia da expressão pura, de uma expressão que não se requer para se efetuar a mediação de signos”. As obras principais de Spinoza a serem abordadas aqui são seus tratados: Tratado Político e Tratado Teológico-Político. É imprescindível o uso das demais obras do filósofo como suporte, bem como de seus comentadores. Sobre a importância do Tratado TeológicoPolítico para o seu tempo, Steven Nadler (2013, p. 11-12) afirma que * Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e professora efetiva da Secretaria de Educação do Estado do Ceará. 1 Para o nome do filósofo, será utilizado, no decorrer deste trabalho a grafia Spinoza, em virtude de o autor, após ter sido excomungado pela Comunidade Judaica de Amsterdã, passar a assinar seu nome em latim, Benedictus de Spinoza, supondo-se assim uma preferência, aliando-se isso ao fato de suas obras terem sido escritas em latim. As referências e citações das obras que foram publicadas com a grafia Espinosa manterão esta, conforme apresentada em sua publicação. Revista Conatus - Filosofia de [...] o livro preparou o terreno para o subsequente pensamento liberal, secular e democrático, o debate em torno dele expôs profundas tensões num mundo que aparentemente havia se recuperado de mais de um século de beligerâncias religiosas atrozes. Spinoza, antes de tornar-se grande filósofo, foi um assíduo leitor, sempre na busca pelo conhecimento. Leu desde os filósofos antigos até os seus contemporâneos. Não poderia construir sua filosofia do nada e é perfeitamente compreensível que ele, assim como todos os outros filósofos, tenha sofrido inúmeras influências a partir do que leu. O que o torna diferente é o fato de não se limitar a ser um mero leitor, ousando ir além das influências, tornando-se brilhantemente inovador. 1 História de vida e contexto histórico como influência A família Spinoza é de origem espanhola, mais precisamente da cidade de Espinosa de los Monteiros. No final do século XV, diante da pressão para converterem-se ao cristianismo, esta família muda-se para Portugal, onde seus membros se tornam cristãos novos, permanecendo lá durante o século XVI. O pai de Spinoza sai de Portugal, atraído pela prosperidade neerlandesa e por sua anunciada tolerância religiosa, estabelecendo-se em Amsterdã2, onde nasceu Benedictus, em 24 2 “Amsterdam [...] é o laboratório do dinheiro em sua modernidade e o das liberdades em sua diversidade” (MÉCHOULAN, 1992, p. 8). Spinoza - Volume 9 - Número 18 - Dezembro 2015 31 MIRANDA, Karine Vieira. Estado de novembro de 1632. Este é um ano deveras importante para a filosofia, pois nele também se dá o nascimento de John Locke e é o ano em que Galileu foi denunciado pela Inquisição. Spinoza falava espanhol e português em sua casa, mas também fazia uso oral frequente do holandês. Foi um homem culto, conhecedor de diversas línguas como: latim, grego, francês e italiano. Além de ser um célebre filósofo, também recebe de Chauí (2003, p. 17) os seguintes títulos: “historiador, etnólogo, filólogo e escritor político [...]”. Jan de Witt defendia a descentralização do poder nos Países Baixos. Essa descentralização foi seguida por uma tolerância generalizada, em diversos âmbitos, a saber, cultural, intelectual, social e religiosa. Embora generalizada, essa tolerância não foi absoluta. De Witt, assim como Spinoza, era defensor da liberdade de filosofar, porém, ambos se diferem porque o primeiro alegava uma liberdade de filosofar que se enquadrasse em certos limites, circunscrição esta que o segundo não admitia. A esfera social e política que circundava Spinoza se complicou bastante a partir da morte de seu protetor, Jan de Witt, e de seu irmão Cornelis (AURÉLIO, 2009, p. VIII), mortes arquitetadas pelos pastores calvinistas. Muitos acontecimentos marcaram a comunidade judaica de Amsterdã no século XVII. Dentre eles vale ressaltar: a excomunhão e o suicídio do pensador judeu Uriel da Costa3, a excomunhão de Juan de Prado e Daniel Ribera e a chegada de Montezinos. Depois de testemunhar a punição de outros por fazerem uso da liberdade de pensamento, chega a vez de Spinoza vivenciar isso, sendo excomungado da Comunidade Judaica de 3 Uriel da Costa negou a imortalidade da alma e afirmou que a lei mosaica não é criação divina, mas humana. 32 de natureza e estado civil em Spinoza. p. 31-37. Amsterdã e tendo sofrido atentado a faca na saída do teatro, situação que acaba por provocar a sua saída de Amsterdã. Ele sentiu o peso da opressão em seu tempo4. 2 Conceitos fundamentais da Política A política é criação dos gregos e romanos. Enquanto Platão era um idealista, Aristóteles era um pragmático. A filosofia política de Aristóteles dedica-se especialmente ao estudo das formas de Estado (Politéia), no intuito de encontrar a melhor delas. Define Estado como união de famílias (ARISTÓTELES, 2009, p. 17). A política aristotélica é visitada por todos os filósofos que a sucederam, seja para ser retomada, abandonada ou criticada. Maquiavel, Hobbes, Spinoza e Marx estão no grupo dos críticos, mas não de críticos meramente superficiais, bem como souberam reconhecer os “[...] aspectos da teoria aristotélica que se conservam intactos e verdadeiros” (CHAUÍ, 2002, p. 463). Bobbio (1994, p. 9) assevera que o jusnaturalismo e historicismo dialético de Hegel e Marx podem ser interpretados como filosofias políticas bem como filosofias da história, pois “[...] têm em comum a contraposição entre uma fase pré-estatal e a fase do Estado, e que concebem esses dois estágios ou momentos como categorias fundamentais para compreender a história da civilização”. Seguir os passos de muitos filósofos que dedicaram suas reflexões à política é de suma 4 Muitas obras, textos e dissertações foram escritos contra Spinoza. A excomunhão de Spinoza, publicada em 1656, apresenta os seguintes dizeres: “[...] Ordenamos que ninguém mantenha com ele nenhuma comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele”. (CHAUÍ, 2000). Revista Conatus - Filosofia de Spinoza - Volume 9 - Número 18 - Dezembro 2015 MIRANDA, Karine Vieira. Estado de natureza e estado civil em importância para fazer o presente, para a política contemporânea, pois impele a sociedade a aprender com o que fora vivido. Spinoza também dedica-se à política e suas obras políticas destacam um caráter revolucionário. Ele inicia o capítulo terceiro do Tratado Político, parágrafo primeiro, explicitando alguns conceitos fundamentais para a compreensão de sua política. Parte do conceito de civil [civilis], que é a situação do Estado. Define cidade [civitas] como o “[...] corpo inteiro do estado” e república como sendo as questões comuns do Estado. (TP3/1). Aurélio (2009, p. 20, nota 6) destaca a distinção de urbe e cidade no pensamento de Spinoza, sendo urbe referida ao conjunto de edificações e cidade ao conjunto de cidadãos. O direito natural, em Spinoza, não é algo inédito, mas seu conceito se diferencia do conceito tradicional, pois em Spinoza ele é potência. Ele define direito de natureza como “[...] as próprias leis ou regras da natureza segundo as quais todas as coisas são feitas, isto é, a própria potência da natureza [...]” (TP2/4). 3 Estado de natureza e estado civil Deleuze (2009, p. 92-94) diz que “a teoria do direito natural foi a compilação da maior parte das tradições da antiguidade e o ponto de confrontação do cristianismo com as tradições da antiguidade”. Como diz o próprio Deleuze, “grosso modo”, “[...] o que constitui o direito natural, é o que está conforme a essência”. A essência do homem, é assim, que ele é um animal racional. O cristianismo vai integrar a teoria clássica do direito natural à teologia natural, já que a primeira tem por base quatro proposições que tem conciliação imediata com o cristianismo. Revista Conatus - Filosofia de Spinoza. p. 31-37. Primeira proposição: as coisas se definem e definem seus direitos em função de sua essência. Segunda proposição: a lei de natureza não é présocial, ela está na melhor sociedade possível. É a vida conforme a essência na melhor sociedade possível. Terceira proposição: o que é primeiro são os deveres sobre os direitos [...]. Quarta proposição: desde então há a competência de alguém superior, quer seja a igreja, quer seja o príncipe ou quer seja o sábio [...] (DELEUZE, 2009, p. 95). O primeiro a romper completamente com a teoria clássica do direito natural é Hobbes, apesar de, antes dele, ter havido uma tentativa de ruptura, embora parcial, por parte de alguns sofistas e cínicos. Afirma sobre a primeira proposição, que as coisas se definem por sua potência, não por sua essência. Tratase aqui de definir a coisa [animal ou homem] pelo que ela pode, não pelo que ela é, sendo o seu direito natural tudo aquilo que à ela pode. Sobre a segunda proposição, Hobbes distingue o estado de natureza do estado social, apresentando o primeiro como o estado que, teórica ou conceitualmente, precede o segundo. Sendo assim, cai por terra a terceira proposição, já que o direito passa a vir primeiro. Sobre a quarta e última proposição, tanto Hobbes, quanto Spinoza, afirmam que, do ponto de vista do direito natural, todos os homens são equivalentes, porque cada um faz o que pode. (DELEUZE, 2009). Deleuze (2009, p. 111-113) completa em seguida que, segundo Spinoza, “do ponto de vista da potência”, não há motivo para estabelecer uma diferença entre o homem racional e o demente, tendo em vista que, embora não tenham a mesma potência, ambos efetuam sua própria potência, esforçando-se por perseverar em seu ser. Do ponto de vista dos afetos, por sua vez, Deleuze afirma que há diferença entre o homem racional Spinoza - Volume 9 - Número 18 - Dezembro 2015 33 MIRANDA, Karine Vieira. Estado e o louco, tendo em vista que são os afetos que efetuam a potência, não sendo os afetos do primeiro, iguais aos do segundo. Qual a importância política fundamental da nova teoria do direito natural? Substitui-se o princípio da competência pelo princípio do consentimento. Na teoria clássica do direito natural têm-se “o desenvolvimento jurídico de uma visão moral do mundo”, enquanto na nova teoria têm-se o desenvolvimento “de uma concepção jurídica da Ética; os seres se definem por sua potência”. (DELEUZE, 2009, p. 100). O homem, no pensamento político de Spinoza, tem direitos e deveres civis. Direitos, como cidadãos, de usufruírem das comodidades da cidade e, deveres, como súdito, de estar submisso “[...] às instituições ou leis da cidade” (TP3/1). Spinoza assevera que ninguém pode transferir seu poder [potência] para outro. Assim sendo, seu direito é intransferível. (TTP17, 201). “O direito de natureza de cada um não cessa no estado civil” (TP3/3). Não se pode permitir, diz Spinoza, que cada cidadão interprete os decretos da cidade, pois isso o faria juiz de si mesmo, instituindo a sua vida de acordo com o seu próprio engenho, “[...] o que é absurdo”. (TP3/4). Portanto, cada cidadão está sob o domínio da cidade, não de si próprio, não podendo decidir por si mesmo o que é justo, injusto, piedoso ou ímpio, já “[...] que o corpo do estado dever ser conduzido como que por uma só mente [...]”, sendo a vontade da cidade a vontade de todos. (TP3/5). Os meios para a execução dos direitos dos poderes soberanos dizem respeito ao corpo do Estado [república], dependendo este exclusivamente da orientação do detentor do estado soberano, a quem pertence o direito de julgar as ações, impor penas, resolver 34 de natureza e estado civil em Spinoza. p. 31-37. conflitos jurídicos ou nomear especialistas nas leis vigentes para que as administrem em seu lugar; também é direito dos poderes soberanos arrecadar e organizar os meios necessários tanto para a guerra quanto para a paz, fundando e fortificando cidades, conduzindo as tropas, distribuindo cargos militares, exigindo o que quer que seja realizado, enviando e ouvindo embaixadores com o intuito de estabelecer a paz e exigindo as verbas para realizar tudo isto. (TP4, 2). Usurpa o Estado o súdito que decide, sem o consentimento do supremo conselho, apoderar-se de qualquer assunto público, embora na intenção de fazer o melhor para a cidade (TP4, 3). Adentrando a discussão sobre a liberdade humana, é preciso deixar claro que, segundo Spinoza, liberdade não é fazer o que se quer, mas o que se pode [potência]. O homem conserva-se no estado de liberdade quando está sob a égide da razão, conduzido por seus ditames. Ao retomar essa discussão, no capítulo V, Spinoza volta ao capítulo II, no parágrafo 11, onde ele apresenta o homem como completamente sob a jurisdição de si mesmo, isto é, homem livre, quando conduzido pela razão. Consequentemente, conforme o capítulo III, parágrafo 7, está completamente sob a jurisdição de si mesma a cidade erigida e conduzida pela razão. Spinoza discorre sobre a melhor situação para cada Estado, que poderá ser facilmente reconhecida na finalidade do Estado civil, isto é, a paz e a segurança da vida. O melhor Estado é, pois, aquele onde os homens vivem em concórdia e onde os direitos são conservados sem violações. As revoltas, as guerras, o descaso e a desobediência das leis não podem ser consideradas como responsabilidade da malícia dos súditos e da má situação do Estado, pois os Revista Conatus - Filosofia de Spinoza - Volume 9 - Número 18 - Dezembro 2015 MIRANDA, Karine Vieira. Estado de natureza e estado civil em Spinoza. p. 31-37. homens fazem-se civis, não são civis por natureza. Os afetos naturais humanos são os mesmos em todo lugar, o que implica que se em uma cidade prevalece mais malícia do que em outra, isso só brota da ausência de providência suficiente por parte da cidade, para garantir a concórdia. Cidades onde as leis são frequentemente violadas se assemelham ao estado de natureza, “[...] onde cada um vive consoante o seu engenho, com grande perigo de vida”. (TP5/2). Os vícios, a exagerada licença e a teimosia dos súditos é responsabilidade da cidade, bem como suas virtudes e a observância das leis. Spinoza cita Aníbal como exemplo de líder virtuoso, não tendo o exército sob sua liderança jamais apresentado alguma revolta. (TP5/3). Diferentemente das demais sociedades que podem ser dissolvidas em virtude das discórdias, a cidade não é dissolvida por seus cidadãos, mas “[...] mudam-lhe, sim, a forma por outra [...]”. (TP6/2). A instituição do Estado deve se dar de tal maneira que governantes e governados façam o “[...] que interessa à salvação comum”, ou seja, devem todos serem conduzidos “[...] espontaneamente, ou à força, ou por necessidade, a viver segundo o que prescreve a razão”. Essa salvação comum é possível se as coisas do estado não estiverem absolutamente confiadas “[...] à lealdade de alguém”. (TP6/3). [moltitudine] e povo [populo]. Spinoza vê, assim como Maquiavel e, contrariamente a Hobbes, a multiplicidade [vontade de muitos] como agenciadora da estabilidade e da racionalidade, sendo esta mais vantajosa que a individualidade [vontade de um] (AURÉLIO, 2009, p. XLVI). A palavra multidão está ausente da Ética e pouco presente nas demais obras, com exceção do Tratado Político, onde ela se repete “[...] algumas dezenas de vezes” (AURÉLIO, 2009, p. XXIV), aparecendo “[...] como sujeito da potência pela qual se define o estado” (AURÉLIO, 2009, p. XXVIII). Na concepção tradicional, o soberano surge de fora, representando Deus ou com legítima hereditariedade. Em Spinoza, por sua vez, a soberania é determinada pela potência [potentia] da multidão, “[...] que é conduzida como que uma só mente” (TP3/2). Em Hobbes, o soberano é o povo, surge do interior. “E quem é o povo? O povo é o conjunto dos indivíduos enquanto soberano”. Hobbes funda a política em uma representação, uma ficção jurídica. Enquanto, para ele, “[...] o rei, ou seja, o estado, é o povo”, em Spinoza o direito do Estado, “[...] se define pela potência da multidão”. (AURÉLIO, 2009, p. XXX-XXXIII). É a multidão, portanto, o resultado de diversas potências individuais, que transferem sua força e poder a um homem ou assembleia de homens. Assim como Spinoza, em sua Ética, 4 Multidão e Soberania Hobbes analisa a natureza do homem em sua obra Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de uma Façamos uma digressão, embora que república eclesiástica e civil. Hobbes põe em breve, à Hobbes e Maquiavel. Este último fora questão o motivo pelo qual não se pode dizer que o primeiro a romper com o pensamento clássico os autômatos têm uma vida artificial. Assemelha que negativou o conceito de multidão, sendo, assim a vida humana e a vida artificial, a criação assim, sobre esta questão, influenciador de natural e a artificial, surgindo a segunda a partir Spinoza. Spinoza e Hobbes valoram e conceituam da imitação da primeira. O Estado, em Hobbes, multidão de maneira distinta. Diferentemente seria um homem artificial, cuja soberania é uma do segundo, Maquiavel não distingue multidão alma artificial. Revista Conatus - Filosofia de Spinoza - Volume 9 - Número 18 - Dezembro 2015 35 MIRANDA, Karine Vieira. Estado Spinoza destaca o medo e a esperança, que ele caracteriza na Ética como paixões estáveis, na principal diferença entre estado de natureza e estado civil. (TP3/3). A multidão livre, em Spinoza, conduz-se mais pela esperança, buscando cultivar a vida e vivendo para si, enquanto a multidão subjugada [serva], conduz-se mais pelo medo, evitando a morte e pertencendo ao vencedor (TP5/6). Quanto mais potente o homem é, mais livre será, sendo, na mesma medida, essa proporcionalidade direta aplicada quanto à potência e a liberdade do Estado. Conclusão Maquiavel defendia, diz Chauí (1995, p. 76), que o povo necessitava de um príncipe para “realizar o desejo popular de não ser oprimido nem comandado”, enquanto Spinoza afiança que o que caracteriza o direito natural de cada homem é o desejo de governar e não ser governado, sendo, garante Spinoza, o regime político mais capaz de realizar esse desejo, a democracia, o mais natural de todos os regimes. Na democracia todos participam do governo e são autores das leis. Portanto, ao obedecê-las, obedece a si mesmo. Enfim, em Spinoza, entre o estado natural e o Estado civil, há uma transferência de poder, não de direitos. Fazendo agora uma análise comparativa da obediência em Hobbes e Spinoza, para o primeiro a relação política é uma relação de obediência, sendo esta primordial, onde alguém manda e outro obedece. Já para o segundo a relação política é uma relação de efetuação da potência, sendo a obediência secundária (DELEUZE, 2009, p. 120). Na Ética, Spinoza apresenta os ditames da razão, totalmente de acordo com as leis da natureza: “[...] cada qual deve amar a si próprio”; 36 de natureza e estado civil em Spinoza. p. 31-37. deve buscar o que lhe seja “efetivamente útil”; deve desejar o que lhe conduza efetivamente “a uma maior perfeição” e, por fim, deve se esforçar para “conservar, tanto quanto está em si, o seu ser” (E4P18S). Ao transferir a outro o seu direito de pensar o homem está agindo contra a sua natureza, sendo passivo e sofrendo violência. O indivíduo que age guiado pela razão pode ser livre seguindo princípios que possuem validade universal, tendo em vista que, ao viver em sociedade, ele pode e deve buscar o conhecimento e a felicidade, desejando que os outros vivam de acordo com aquilo que desejam também, agindo com piedade. O homem pode ser livre seguindo princípios universais estabelecidos por indivíduos entregues à passividade? Certamente Spinoza responderia não. Guiados apenas por suas paixões, entregam-se à ambição e à soberba. Não temos, portanto, que nos surpreender com a violência da reação dos poderes teológicos e políticos à obra espinosana. [...] Espinosa faz desabar as construções imaginárias, nascidas do medo, da ignorância e da superstição, e as tiranias que sobre elas repousavam. (CHAUÍ, 1995, p. 52). Porque o homem rende-se ao âmbito político? O âmbito político é o privilegiado, diz Chauí (2003, p. 290), para a contenção da violência natural, para a diminuição do medo e para que a superstição seja evitada. Revista Conatus - Filosofia k k k de Spinoza - Volume 9 - Número 18 - Dezembro 2015 MIRANDA, Karine Vieira. Estado de natureza e estado civil em Spinoza. p. 31-37. Referências Bibliográficas Tradução Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge ARISTÓTELES. A Política. Tradução Nestor Zahar, 1992. Silveira Chaves. 2. ed. Bauru, SP: EDIPRO, 2009. NADLER, Steven. Um Livro Forjado no (Clássicos EDIPRO). Inferno: o tratado escandaloso de Espinosa e o AURÉLIO, Diogo Pires. Introdução e Notas. In: nascimento da era secular. Tradução de Alexandre Tratado Político. Tradução, introdução e Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2013. notas Diogo Pires Aurélio; revisão da tradução SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução e notas Homero Santiago. São Paulo: WMF Martins de Tomaz Tadeu. 3ed. Belo Horizonte: Autêntica Fontes, 2009. (Clássicos WMF) Editora, 2010. BOBBIO, Norberto; MICHELANGELO, Bovero. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. ______. Tratado Político. Tradução, introdução e notas Diogo Pires Aurélio; revisão da tradução Homero Santiago. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. (Clássicos WMF) CHAUÍ. Marilena de Souza. Espinosa: uma ______. Tratado Teológico-Político. Tradução, filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, introdução e notas Diogo Pires Aurélio. São 1995. Paulo: Martins Fontes, 2003. (Paidéia) ______. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, volume 1. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. ______. Política em Spinoza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. k k k DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso et el. 2 ed. Fortaleza: EDUECE, 2009. HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. Tradução João Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza da Silva, Claúdia Berliner; revisão da tradução Eunice Ostrensky; organizado por Richard Tuck. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. MACHEREY, Pierre. Pensar em Spinoza. Tradução Ana Sacchetti. Rio: Hólon Editorial, 1991. Disponível em: <http://pt.scribd.com/ doc/92607180/46536365-Macherey-Pensar-EmSpinoza>. Acesso em 13 abr. 2014. MÉCHOULAN, Henry. Dinheiro e Liberdade: Amsterdam no tempo de Spinoza. Revista Conatus - Filosofia de Spinoza - Volume 9 - Número 18 - Dezembro 2015 37