FORMAÇÃO CONTINUADA DO PROFESSOR DE FILOSOFIA E

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Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
FORMAÇÃO CONTINUADA DO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SUA
CARACTERIZAÇÃO NO CURRÍCULO DE SÃO PAULO
Samuel Mendonça
Licenciado em Filosofia. Doutor em Educação
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC Campinas
Resumo
A temática do ensino de filosofia é recorrente em revistas especializadas em educação
no Brasil. A partir da Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, muitos professores, de
diferentes regiões, começaram a pensar estratégias para o aprimoramento do ensino de
uma área do conhecimento ainda incipiente. Este texto discute a formação continuada
do professor de filosofia e sua caracterização no contexto do Currículo do Estado de São
Paulo, construído por meio da Proposta Curricular. Objetiva-se problematizar a
caracterização do professor de filosofia presente no Currículo do Estado de São Paulo
no sentido de apontar para os avanços necessários quanto ao aprimoramento do ensino
de filosofia. Se é possível assumir a filosofia como um campo do conhecimento passível
de ser ensinado, quais as condições de trabalho para o professor neste processo? Como é
caracterizado o professor? A formação continuada do professor de filosofia parece
fundamental para o aprimoramento do ensino filosófico. A hipótese do texto é a de que
o professor de filosofia deva construir sua própria caracterização por meio do exercício
docente e não esperar uma política pública que seja coerente e condizente com as
condições de trabalho oferecidas pelo poder público. Como resultado, assumimos que
quem deve, em última instância, caracterizar o professor de filosofia em se tratando da
formação continuada é o docente em sua atuação profissional e não o poder público. É o
professor de filosofia que deve determinar os rumos e as concepções filosóficas que
serão base do ensino de filosofia. Em última instância, é o professor de filosofia que
deve, junto a seus pares, construir uma biografia que justifique a vida filosófica por
excelência.
Palavras-chave: ensino de filosofia, caracterização, professor.
Introdução
Este texto discute a formação continuada do professor de filosofia e sua
caracterização no contexto do Currículo do Estado de São Paulo, construído por meio
da Proposta Curricular. O objetivo do texto é problematizar a caracterização do
professor de filosofia presente no referido Currículo no sentido de apontar para os
avanços necessários quanto ao aprimoramento do ensino de filosofia. A discussão do
ensino de filosofia na educação continuada evidencia a importância de tratar,
igualmente, a temática que envolve o professor de filosofia. Se é possível assumir a
filosofia como um campo do conhecimento passível de ser ensinado, quais as condições
de trabalho para o principal agente deste processo? O que se espera do professor de
filosofia no Currículo do Estado de São Paulo? Como é caracterizado este agente da
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educação no contexto da educação continuada? A hipótese do texto é a de que o
professor de filosofia deva construir sua própria caracterização por meio do exercício
docente e não esperar uma política pública que seja coerente e condizente com as
condições de trabalho oferecidas pelo poder público.
A temática do ensino de filosofia é recorrente em revistas especializadas em
educação no Brasil. A partir do dispositivo legal (Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008),
muitos professores, de diferentes regiões, começaram a pensar estratégias para o
aprimoramento do ensino de uma área do conhecimento ainda incipiente. A publicação
de diferentes dossiês sobre o ensino de filosofia (DANELON, 2008; SILVEIRA, 2010;
GALLO 2012), da mesma forma que a produção de livros, congressos e eventos
similares
para
a
discussão
e
aperfeiçoamento
desta
área
têm
aumentado
expressivamente (GALLO & KOHAN, 2000; KOHAN, 2009; RODRIGO, 2009;
PORTELA, 2012). A busca de aprimoramento do ensino de filosofia na educação
continuada tem sido marca estratégica de muitos estados brasileiros.
Marcos Nobre e Ricardo Terra (2007), na importante obra Ensinar filosofia:
uma conversa sobre aprender a aprender, dialogam sobre o ensino de filosofia.
Argumentam que houve muito “blábláblá” em se tratando da filosofia e os programas de
pós-graduação desempenharam importante papel para a construção dos espaços de
discussão filosófica. Não se pretende retomar a contribuição dos programas de pósgraduação em filosofia para o ensino, neste texto, no entanto, é fundamental reconhecer
que o espaço conquistado por meio da legislação, em 2008, é o resultado do esforço de
gerações de filósofos brasileiros.
Como consequência do presente texto, pretendemos avaliar o papel do poder
público quanto às definições de conteúdos para a disciplina de filosofia, não no sentido
de contradizer os conteúdos em si, dado que são importantes na medida em que uma
orientação geral pode auxiliar o desenvolvimento da filosofia em seu ensino, mas por ter
implicação direta no perfil do professor, de alguma forma, um direcionamento de
atividades que devem ser orientadas, mas não determinadas para o desenvolvimento
desta área do conhecimento. Quem deve, em última instância, caracterizar o professor
de filosofia é o docente em sua atuação profissional.
Passamos a uma breve análise da produção do conhecimento sobre o ensino de
filosofia para que tenhamos elementos para a análise da caracterização do professor
presente no Currículo do Estado de São Paulo. O que está em questão aqui é a formação
continuada do professor de filosofia.
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1) Ensino de Filosofia: questões propedêuticas
O ensino de filosofia está em evidência e os diversos trabalhos publicados em
revistas especializadas e em livros. O II Congresso Brasileiro de Professores de
Filosofia (2012), realizado nos dias 12, 13 e 14 de dezembro de 2012, na Universidade
Federal do Pernambuco, em Recife, colocou em discussão diversas temáticas que
envolvem o ensino de filosofia. As conferências, mesas redondas, mini-cursos e
comunicações de trabalhos trataram de seis eixos temáticos, quais sejam: (i) filosofia e
educação, (ii) fundamentos filosóficos do ensino e filosofia, (iii) práticas pedagógicas
em ensino de filosofia no ensino médio, (iv) filosofia para/com crianças, (v) formação
de professores de filosofia e (vi) pesquisa sobre ensino de filosofia. Este Congresso
evidenciou a importância da temática do ensino de filosofia e a necessidade de
interlocução de professores de filosofia de todo o Brasil.
Entre outras questões, o papel do professor para o ensino médio é tema
recorrente nas diferentes publicações. Dois exemplos fundamentam a afirmação de que
a produção que trata do ensino de filosofia tem aumentado. O dossiê lançado em abrilsetembro de 2012, pela Revista Filosofia e Educação, da Universidade Estadual de
Campinas, organizado por Gallo (2012) e o livro A filosofia em curso, organizado por
Luis Cesar Yanzer Portela (2012). É comum, nesses trabalhos, a noção de que a
filosofia é uma matéria tão importante a ser ensinada aos alunos como outras
disciplinas, como matemática ou geografia, e desta forma, deve ser ensinada por
professores com formação específica, com conhecimento filosófico, e que consigam
construir o saber de maneira coerente ao universo de seu estudante, na busca da efetiva
aprendizagem. É neste sentido que o ensino de filosofia não se limita ao ensino da
história da filosofia (que é de grande importância). É por isto que a educação continuada
deve ser continuamente repensada, dado que muitos professores de filosofia foram
formados a partir de uma concepção de filosofia anterior ao espírito da lei que
determina o ensino filosófico para o ensino médio.
A dimensão legal que trata do ensino de filosofia foi exaustivamente discutida
por Benvenho (2012). Pode-se constatar que desde a Lei de Diretrizes e Bases nº
9394/96, em seu artigo 36, parágrafo 1º e inciso III, o conceito de cidadania já estava
presente. Neste sentido, que concepção de filosofia está presente no espírito da LDB
que aponta para a cidadania? Considerando o contexto político em que viveu o Brasil, a
filosofia tinha a prerrogativa de servir de instrumentalização aos educandos quanto à
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formação de um perfil de cidadão apto a fortalecer a democracia. Entretanto, quais as
condições de trabalho que o professor de filosofia dispunha naquele momento ou nos
tempos atuais para o ensino? A nossa especulação é a de que houve um significativo
avanço quanto ao reconhecimento da importância e sentido da filosofia e mesmo da
sociologia no ensino médio, no entanto, as condições de trabalho para viabilizar a
caracterização do professor de filosofia não acompanhou a legislação. O resultado é que
hoje dispomos de uma lei federal (Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008), no entanto,
com diversos desafios que perpassam a sala de aula, a relação do professor com o setor
público e, principalmente, a ausência de explícita política pública que altere este quadro
para os próximos anos. A formação continuada do professor de filosofia deve ser
repensada.
Outro aspecto comum aos trabalhos presentes no referido dossiê é o de que o
professor deva ter autonomia e liberdade dentro de sala de aula para expressar seu
conhecimento da maneira que melhor lhe convenha, sem seguir dogmas impostos,
sabendo usar os materiais didáticos como apoio ao aprendizado do aluno, e não como
ponto central da aula.
Se os cursos de licenciatura em filosofia, no geral, são pensados e organizados
por meio de disciplinas clássicas como a história da filosofia, sem levar em conta a
realidade dos estudantes do nível médio, pode-se especular que a formação inicial de
professores não atende às demandas sociais. Igualmente, a formação continuada
também não atende. Mesmo com o dispositivo legal de 2008, a procura da filosofia para
o ofício de ensinar tem sido rara.
Outro ponto bastante discutido é de como levar a filosofia para a sala de aula,
sem descaracterizar a disciplina e ao mesmo tempo despertando o interesse dos
estudantes. A descaracterização mencionada é fruto de considerarem a filosofia uma
disciplina transversal, muitas vezes ministradas por professores de outras áreas, o que a
torna uma matéria secundária, resumindo-se a debates acerca de temas atuais com uma
ou outra referência filosófica. Quando se trata de especialista em ensino de filosofia, o
método:
(...) mais utilizado é o da aula expositiva, muitas vezes com o apoio do
debate ou de trabalhos em grupo. Com menor freqüência, utilizam-se
de seminários, nos quais os alunos preparam uma apresentação em
grupo; estudos de textos e pesquisa bibliográfica; uso de música,
poesia, literatura e filmes em vídeo para sensibilização quanto ao tema
a ser desenvolvido. A maioria dos professores adota o livro didático
(manuais), ou compõe apostilas com formato semelhante ao do livro
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didático. (...) Mais recentemente, muitos professores passaram a
adotar uma metodologia mais participativa na qual os alunos trocam
opiniões sobre os assuntos em debate. Os professores costumam
utilizar-se de músicas e de filmes em vídeo para suscitar a análise e o
debate em torno de determinados temas. Há, também, a discussão a
partir de crônicas, matérias de jornal ou revistas; organização de júri
simulado para discutir certo tema; trabalhos com músicas e vídeos;
trabalhos de grupo. Ainda, em muitos casos, existe a introdução de
técnicas de relaxamento, e outras práticas que aproximam a aula de
filosofia de uma “terapia coletiva”. É pouco freqüente a leitura de
textos de filósofos, de primeira mão. (FÁVERO et al, 2004, p. 272)
Se o ofício do professor de filosofia diz respeito a criar um ambiente de reflexão
rigorosa junto aos estudantes, seja por meio da leitura, da escrita ou da discussão
sistemática, os textos filosóficos são fundamentais. O texto filosófico tem o papel de
tirar os alunos de sua “zona de conforto” levando ao questionamento acerca de coisas
que jamais haviam pensado, gerando, com isso, uma necessidade de buscar respostas,
de debaterem opiniões e produzirem seus próprios argumentos para seus
questionamentos. A formação continuada, que se dá por meio de palestras ou de formas
de comunicação com professores de filosofia, é uma alternativa para o aprimoramento
do ensino filosófico.
No artigo intitulado O ensino de Filosofia no Brasil: um mapa das condições
atuais, de Fávero et al (2004), é analisada a questão do professor como agente central
da transmissão de conhecimentos em sala de aula para a atual situação brasileira. A
partir das reflexões apresentadas vê-se que é imprescindível que o professor de filosofia,
que dará aulas ao ensino médio e fundamental, tenha formação em filosofia. Esse
trabalho afirma que é recorrente no Brasil a ideia de que não há número suficiente de
professores formados em filosofia. A graduação em filosofia se subdivide, no Brasil, em
dois níveis: o bacharelado, que é a formação de pesquisadores, e a licenciatura, voltada
para a formação de professores. Os autores explicam que como até recentemente não
havia demanda de mercado de trabalho para professores de filosofia, os alunos que
escolhem a licenciatura, em grande parte das vezes, não receberam uma formação
adequada para ministrar aulas no ensino médio; porém, entendem que é de se esperar
que com a necessidade de mais profissionais capacitados para exercerem o magistério
na Educação Básica, aumentará também o número de cursos específicos para formar
professores para o ensino médio e também haverá incremento da procura dos
universitários por essa formação.
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
Torna-se necessário que o professor de filosofia do ensino médio, em sua
formação continuada, além de ter grande domínio sobre a matéria, deva aprender como
fazer ligações entre as matérias e o universo do aluno, levando-o a uma reflexão sobre o
mundo em que vive. Essa sensação de ruptura tem ainda como papel fundamental o
despertar do pensamento crítico do estudante; algo tão relevante para a educação que
deve ser feito no conjunto de todas as disciplinas escolares, e que, no geral, não é feito.
No artigo de Correia e Gallo (2012, p.104), os autores afirmam que:
(...) a aparente dicotomia entre “aprender filosofia” e “aprender a
filosofar” não nos parece tão plausível assim, uma vez que a atividade
de pensamento também se baseia no “já produzido” em termos de
saberes filosóficos, cujo acervo historicamente construído é fonte de
temas e problemas dos quais a filosofia escolar pode se valer como
fonte da atividade de pensamento. Sobre isso, parece forçoso querer
inventar a roda. […] O que nos parece inapropriado é o contentar-se
com o comentário, com a interpretação, com a busca de explicação do
pensamento de quem já atuou e produziu filosofia.
Desse modo, o professor de filosofia tem que ser um sujeito capaz de não apenas
introduzir no universo de seus alunos as obras filosóficas ou a história da filosofia, mas
também saber apresentar a esses alunos a maneira na qual esses filósofos utilizam a
argumentação para chegarem as suas conclusões. Também é dever desse professor criar
conceitos próprios, inclusive juntamente com seus aprendizes, e não de apenas
reproduzir o conhecimento já existente (o que leva o estudante, em grande parte dos
casos, a decorar o conteúdo e esquecê-lo após a prova); pautando-se em seus interesses
e problemas, assim como nos de seus alunos. Trabalhando desse modo, o aluno será
levado a refletir sobre seu mundo, fazendo ainda com que as informações filosóficas
tenham um sentido em sua vivência. Por fim, em sua entrevista à Anpof, Gallo
completa:
(...) a questão está na criatividade e na capacidade de adaptação do
professor, que precisa encontrar, em cada turma que leciona, o tom
correto, a forma de penetrar em seu universo. Para isso, é necessário
ter um repertório bastante amplo, do qual o professor disporá na
medida das necessidades de cada situação (GALLO, 2012a).
Esta característica singular, criativa e a capacidade de adaptação do professor diz
respeito ao perfil de alguém que busca se autocriticari continuamente. O professor de
filosofia, por assim dizer, não deve se contentar com aquilo que está estabelecido, deve
ousar para que os alunos tenham a vivência da ousadia.
O perfil do professor como alguém inquieto, incomodado, diz respeito ao que
desenvolvemos em outros textos sobre a educação aristocrática (MENDONÇA, 2011,
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
2012). Esta educação, que não tem qualquer relação com uma educação elitizada, diz
respeito a uma concepção que reivindica dos sujeitos a vontade de autossuperação. Se a
filosofia diz respeito à busca do conhecimento e desde os pré-socráticos temos
exemplos de autossuperação por parte dos filósofos, seja ao assumir uma vida singular,
seja pela opção de pensar novos valores e, portanto, não ser compreendido em seu
tempo - mas ser referência no tempo posterior - o professor de filosofia parece estar
condenado à tarefa da autossuperação.
O ensino de filosofia, portanto, não deve ser pensado apenas no sentido formal,
isto é, na dimensão da escola, mas, a formação filosófica ultrapassa a formação escolar
e gera subsídios para que os interlocutores, sejam alunos ou professores, construam
novos valores. Por educação continuada se tem a compreensão do contínuo
aprimoramento feito pelo professor em relação à sua formação. Em que medida os
documentos que orientam o ensino de filosofia, como por exemplo, o Currículo do
Estado de São Paulo, conseguem caracterizar o professor como protagonista da
construção de novos valores? Passamos à análise da caracterização do professor de
filosofia a partir do Currículo do Estado de São Paulo, construído por meio da Proposta
Proposta Curricular do Estado de São Paulo.
2) Análise da caracterização do professor de filosofia
Mendonça (2011) discutiu a Proposta Proposta Curricular do Estado de São
Pauloii para a disciplina filosofia, doravante Proposta Curricular, em outro texto.
Argumentou que:
O tema da cultura, nas suas diversas manifestações, é o pano de fundo
da Proposta Curricular. Isto não significa que exista no documento a
defesa de uma filosofia da cultura ou que uma articulação orgânica em
torno deste tema tenha sido apresentada no documento. O tema está
presente com ênfase em elementos da vida social, na construção da
cidadania consciente. É preciso registrar que o documento tem como
meta o professor, mas o educando, na busca de sua autonomia, pode
também esquadrinhar o documento para saber o que se espera dele.
(MENDONÇA, 2011a, p. 139).
Se o documento tem como meta o professor, resta evidenciar sua caracterização
e discutir os impactos dela. A caracterização do professor é anunciada já no primeiro
parágrafo e há indícios de um perfil determinado. Vejamos:
(...) considerando que o ensino de Filosofia no nível médio foi
restabelecido de forma legal, parece interessante perguntar como o
professor de Filosofia vê sua presença no universo escolar. Qual o
papel, ou papéis, que ele pode e deve desempenhar? Qual a função do
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ensino de Filosofia nos atuais formatos curriculares, assentados
especialmente no desenvolvimento de competências e habilidades?
(PROPOSTA CURRICULAR DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2008,
p. 41)
Se o professor de filosofia deve desempenhar um papel determinado, resta
questionar, que papel é este e que formação continuada tem sido oferecida pelo poder
público. Se a Proposta Curricular evidencia que o ensino hoje é assentado no
desenvolvimento de habilidades e competências, então, quais as habilidades e
competências que deve ter um professor de filosofia para este ensino? Os cursos de
licenciatura em filosofia do Estado de São Paulo preparam os professores para o
desenvolvimento de habilidades e competências? Podemos assumir esta perspectiva de
competências e habilidades como um direcionamento da Proposta Curricular? O
professor de filosofia deveria buscar sua própria caracterização?
Não é pouco o que a Proposta Curricular espera do professor de filosofia ao
dispor que a busca da elevação da educação deve ser “capaz de superar a mera
transmissão e aquisição de conteúdos, feitas de modo mecânico e inconsciente”
(PROPOSTA CURRICULAR DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2008, p. 41). Em
primeiro lugar, a Proposta Curricular define, mesmo de que forma tácita, a educação
hodierna como mecânica e inconsciente e, em segundo lugar, atribui à filosofia, isto é,
ao professor de filosofia, a tarefa de elevação da educação. No entanto, mantemos a
pergunta: os cursos de licenciatura em filosofia do Estado de São Paulo preparam os
professores para esta finalidade? A formação continuada, em forma de palestras e
minicursos, consegue oferecer condições para o êxito desta empreitada?
É certo que os professores de filosofia devam propor discussões em torno de
temas relevantes para a vida dos estudantes. A contínua meta de auxiliar a formação do
raciocínio crítico e cuidadoso, de servir de base para a possibilidade de autocrítica faz
com que o professor de filosofia mantenha-se focado nas questões da sociedade. A
conquista da cidadania diz respeito à demanda gerada no interior da sala de aula. Gallo e
Aspis (2010, p. 104) afirmam que:
Por fim, se uma cidadania de resistência aos tempos hipermodernos é,
como argumentamos atrás, o exercício de tomar a palavra por aqueles
que estão alijados do processo de administração social, instituindo um
acontecimento político, podemos dizer que o exercício de um ensino
de filosofia que seja o ensaio de criação - e, pela criação, a invenção
de saídas -, é um ato no sentido dessa cidadania como resistência.
Como afirmou Deleuze em relação às sociedades de controle, “não
cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”. Um ensino de
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filosofia articulado com uma prática de cidadania que seja tomar a
palavra por aqueles que não a têm pode ser uma dessas armas.
Por fim, não se pode ignorar a peculiaridade da filosofia, pois é inerente a esta
disciplina haver uma mudança do que sabemos. Não é seu interesse principal passar
conhecimento positivado ao estudante, mas sim possibilitar a construção de novos
conceitos e de novas concepções até que este adquira autonomia suficiente para
conduzir o seu próprio raciocínio.
Caracterizar o professor na Proposta Curricular sem oferecer condições para a
materialização das atividades previstas diz respeito à leviandade do Estado; afinal, não
se pode cobrar sem que existam condições efetivas para a realização do ofício. O
professor de filosofia deve se contentar com a caracterização determinada pelo Estado
de São Paulo?
O documento sugere que o professor de filosofia encontre tempo para o trabalho
interdisciplinar, a fim de que alguns conhecimentos sejam articulados com a área. A
respeito da produção do conhecimento sobre a disciplina, a Proposta Curricular sugere
que “Essa produção de conhecimento pode ser fortemente dinamizada, se o professor de
Filosofia promover o debate interdisciplinar” (PROPOSTA CURRICULAR DO
ESTADO DE SÃO PAULO, 2008, p. 42). A pergunta se mantém: quais as condições
oferecidas pelo Estado de São Paulo para que o professor consiga dialogar e construir,
de forma interdisciplinar, conteúdos para a sala de aula?
O documento, de forma objetiva, dispõe que o ensino de filosofia sem
articulação com a realidade é inútil. “(...) o uso de ou o recurso a um pensador, sem a
preocupação de fazer pensar o seu leitor contemporâneo, é um exercício inútil”
(PROPOSTA CURRICULAR DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2008, p. 42”. A este
respeito, recomendamos a leitura de um texto em que Mendonça (2012a) evidencia a
crítica de David Hume à filosofia abstrusa. O pensador empirista, crítico da metafísica,
argumenta que a filosofia deve tratar das questões do homem. A discussão de conceitos
abstratos sem conexão com a realidade é inútil.
O documento também destaca o problema dos cursos de filosofia quanto à
especialização filosófica e distanciamento da realidade do ensino: “(...) é preciso
considerar que a formação oferecida nos cursos superiores de Filosofia, públicos ou
privados, é orientada, em geral, para especializações rigorosas, pouco ou nada voltadas
para o ensino. (PROPOSTA CURRICULAR DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2008, p.
44).
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
O documento, portanto, apresenta aspectos relevantes em se tratando do ensino
de filosofia e não é a pretensão deste artigo desconsiderar esta iniciativa do Estado de
São Paulo. No entanto, em se tratando de formação continuada, a necessidade é maior
que a determinação de uma certa caracterização do professor. O empenho em oferecer
uma boa formação filosófica no nível médio perpassa a necessidade de se lançar um
novo olhar para a formação de professores. Mais do que aguardar uma política pública
que dê conta de uma formação mais cuidadosa, entendemos que o professor tem sua
responsabilidade e deve construir sua caracterização na prática docente, de forma
efetiva e não da forma romântica como o fez a Proposta Curricular, e, por assim dizer, o
atual Currículo. Da mesma forma que o Currículo de São Paulo reivindica muito do
professor e não oferece condições materiais para as ações dele, ele deve, independente
do direcionamento tácito da proposta, criar a sua forma genuína de ensinar a filosofia.
Considerações Finais
Ao longo dessas reflexões buscamos analisar questões relativas ao ensino de
filosofia e como tem aumentado o interesse por este segmento da educação. De forma
específica, o texto discutiu a formação continuada do professor de filosofia e sua
caracterização no contexto do Currículo de São Paulo, desenhado por meio da Proposta
Curricular do Estado de São Paulo. Ao discutir o ensino de filosofia tomando como
referência produções atuais sobre a temática, vimos que há diversos desafios para o
êxito deste labor no Brasil. Observamos que um ponto fundamental diz respeito às
condições materiais que tem o professor de filosofia para o desenvolvimento de seu
ofício. É preciso rever o número de horas destinadas ao ensino de filosofia, o número de
horas destinadas à preparação das aulas, a construção de projetos inter e
multidisciplinares e até a remuneração. Em última instância, é preciso construir uma
política de carreira do magistério e não apenas ao professor de filosofia.
Se a caracterização do professor no Currículo de São Paulo para a disciplina de
filosofia não coincide com as condições de trabalho, concluímos que o professor de
filosofia, em se tratando de formação continuada, não deve aguardar do Estado uma
nova política que lhe ofereça as condições ideais para o exercício da profissão.
O ensino de filosofia não deve estar circunscrito ao ensino de conteúdos
filosóficos, apenas, então, a atitude filosófica como aquela que pretende superar a
realidade atual diz respeito ao ensino efetivo que deve empreender o professor de
filosofia junto a seus estudantes. Com uma ação deste tipo, por certo, a caracterização
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
do professor de filosofia será outra, não romantizada, não criada a partir de um ideal que
não condiz com a realidade, mas, será coerente e viva a partir da dinâmica e das
contradições da educação brasileira.
O desafio está lançado aos professores de filosofia. Observamos que o Currículo
de São Paulo atribui grande papel ao professor de filosofia e à filosofia propriamente
dita, seja na construção de valores, seja na elevação da educação. Ocorre que a filosofia
não deve ser pensada como messiânica sobretudo na sociedade da pressa, na sociedade
do consumo, na sociedade de habilidades e competências. Argumentamos,
fundamentalmente, que a caracterização do professor de filosofia como um sujeito
capaz de realizar a interdisciplinaridade, de construir valores, de elevar a educação é no
mínimo leviana no Estado de São Paulo, dadas as condições materiais oferecidas ao
professor.
Por derradeiro, o professor de filosofia pode até cumprir o que prevê o Currículo
de São Paulo, no entanto, ele precisa construir sua própria caracterização. É o professor
de filosofia que deve determinar os rumos e as concepções filosóficas que serão base do
ensino de filosofia. Em última instância, é o professor de filosofia que deve, junto a seus
pares, construir uma biografia que justifique a vida filosófica por excelência...
Referências
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pp. 332 – 350, jan./junho de 2012.
_________. As críticas de Marx e Hume à filosofia como fundamentos para a educação.
In OLIVEIRA, Paulo Eduardo. Filosofia e Educação: aproximações e convergências.
Curitiba: Círculo Bandeirantes, 2012a, pp. 208 – 238.
NOBRE, Marcos. Ensinar filosofia: uma conversa sobre aprender a aprender. Marcos
Nobre, Ricardo Terra. Campinas: Papirus, 2007.
PORTELA, Luis Cesar Yanzer (org.). A filosofia em curso. Porto Alegre: Evangraf,
2012.
RODRIGO, Lídia Maria. Filosofia em sala de aula: teoria e prática para o ensino
médio. Campinas: Autores Associados, 2009.
EdUECE- Livro 2
03242
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
i
Autocrítica e autossuperação são temas nucleares da educação aristocrática em Nietzsche. Este
texto não tematiza a educação aristocrática, mesmo assim, recomendamos os textos que tratam dessas
questões (Mendonça, 2011, 2012).
ii
A Proposta Curricular do Estado de São Paulo para a disciplina Filosofia se tornou base do atual
Currículo do referido Estado.
EdUECE- Livro 2
03243
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