cas clíni - Acta Médica Portuguesa

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CAS CLÍNI
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MIGUEL XAVIER, MARIANA SANTOS BENTO, DAVID PAYNE PEREIRA, J.M. CALDAS DE ALMEIDA
Clínica Universitaria da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa. Lisboa.
RESUMO
A vigabatrina é um fármaco antiepiléptico. utilizado preferencialmente nas situaçoes refrac
tárias à terapêutica clássica, com um perfil de reacçoes adversas do qual se destaca, ainda que
raramente, o desenvolvimento de perturbações psicoticas agudas. Os autores apresentam o caso
clínico de um doente de 44 anos, com epilepsia do lobo temporal. sem antecedentes psiquiátri
cos significativos, que desencadeou um quadro psicóticO agudo três semanas após a introduçao
de vigabatrina, implicando o internamento hospitalar. O quadro teve uma evolução benigna,
remitindo rapidamente após a suspensao da vigabatrina e a terapêutica com antipsicóticos. Neste
artigo, são ainda discutidos alguns aspectos relativos à problemática do diagnóstico, enquadra
mento fisiopatológico/etiopatogénico e implicações terapêuticas deste tipo de perturbações, que
constituem um exemplo paradigmatico da interface entre a psiquiatria e a neurologia.
(tFalecido)
SUMMARY
Acute Psychotic Disorder Associated to Vigabatrin
Vigabatrin, a drug rnainly used in the treatment of therapy resistant epilepsy, has been asso
ciated to a large range of adverse eflects, including acute psychotic disorders. The authors report
the case of a 44-year-old patient with drug resistant temporal lobe epilepsy that developed an
acute psychotic episode about three weeks after initiating medication with vigabatrin. After the
withdrawal of vigabatrin and the addition of an antipsychotic drug, the clinical picture improved
promptly and the patient was discharged within a short period of time. The authors discuss the
patient’s diagnosis, the possible mechanisms of vigabatrin-associated psychosis and the thera
peutic approach, stressing the questions that concern vigabatrin prescription and withdrawal.
missor4~5.
O perfil de reacções adversas da vigabatrina é seme
INTRODUÇÃO
A vigabatrina é um fármaco utilizado no tratamento
medicamentoso da epilepsia com resposta insatisfatória a
outras drogas, estando a sua eficácia terapêutica ampla
mente demonstrada em diversos ensaios clínicos contro
ladost-3.
Do ponto de vista farmacológico, o seu mecanismo de
acção anti-epiléptico está provavelmente relacionado
com o aumento das concentrações centrais do ácido
gama aminobutírico (GABA), decorrente do bloqueio
irreversível do enzima GABA-transaminase (GABA-T),
principal agente de catabolização daquele neurotrans
lhante ao de outros fármacos anti-epilépticos, encontran
do se assinalada na literatura a ocorrência ocasional de
fadiga, irritabilidade, sonolência, cefaleias, aumento de
peso, e mais raramente, de perturbações mnésicas e
visuais (diplopia)6.
Adicionalmente, tem sido também referido o apareci
mento de perturbações psiquiátricas em doentes com
epilepsia medicados com a vigabatrina, num espectro
que se estende desde alterações inespecíficas do com
portamento7’8 (agitação, agressividade) até quadros
III
MICL [~L \ ~\ II K (1 ai
clínicos de características bem definidas, quer de tipo
depressivo9, quer psicótico’ ~
Embora pouco frequentes, estas perturbações podem
ser suficientemente graves para implicar a interrupção do
fármaco, com todos os inconvenientes que tal acarreta
para os doentes portadores de epilepsia refractária à tera
pêutica com outros medicamentos.
No caso clínico que se segue, os autores descrevem a
ocorrência de um quadro psicótico agudo num indivíduo
com história de epilepsia, medicado com vigabatrina,
sem antecedentes psiquiátricos significativos.
desconexo e insónia quase total, acabando por ser levado
à urgência pelos familiares.
Uma vez afastada a presença de patologia orgânica
significativa, nomeadamente lesões ocupando espaço, o
doente foi transferido para o Departamento de
Psiquiatria do HSFX em 24/2/99, ficando internado na
Unidade de Agudos, com indicação para suspensão da
vigabatrina e introdução de hidantina.
À entrada, estava consciente, pouco colaborante, com
semblante fechado, olhar fugidio, bem orientado,
atenção captável mas fatigável; o discurso era provoca
do, de frases curtas, sem alterações sintáticas, apresen
tando frequentes pararrespostas; pensamento com altera
ções formais (afrouxamento de associações) e de conteú
do (idéias delirantes de temática persecutória e de
capacidade grandiosa, mal estruturadas); perturbação
dos limites do Eu, com vivências de passividade; aluci
nações auditivo-verbais, na segunda pessoa, com pre
domínio de temática persecutória, vivenciadas com
angústia; perplexidade e ausência de crítica para o
patológico; exame neurológico sem alterações.
Foi instituída medicação composta por haloperidol (15
mg/dia) e diazepam (20 mg/dia), mantendo-se a hidanti
na (300 mg/dia), já previamente prescrita no serviço de
urgência.
A evolução clínica na enfermaria foi boa, com remis
são completa da sintomatologia psicótica ao fim de sete
dias, não tendo ocorrido qualquer episódio convulsivo
durante todo o período de duração do internamento.
Três meses após a alta mantém-se em regime ambu
latório, sem qualquer sintomatologia psiquiátrica signi
ficativa, tendo retomado a sua actividade profissional
sem restrições.
CASO CLÍNICO
JMS, sexo masculino, 44 anos de idade, raça cau
casiana, natural de Angola (Bié), casado, funcionário
público (cantoneiro municipal), observado inicialmente
no Serviço de Urgência do Hospital Condes Castro
Guimarães (Cascais), em 23/2/99, por alterações do
comportamento de início agudo, transferido no próprio
dia para o Serviço de Urgência do Hospital S.Francisco
Xavier (Lisboa) com o diagnóstico provisório de estado
alucinatório.
Na admissão, o doente encontrava-se consciente, agi
tado, pouco colaborante, hipoproséxico, desorientado no
espaço e no tempo (mantendo orientação autopsíquica),
com discurso incoerente e aparente actividade aluci
natória de tipo auditivo-verbal.
O exame neurológico não evidenciou défices focais,
tendo sido efectuados exames laboratoriais de rotina e
TAC crâneo-encefálica, que também não revelaram
quaisquer alterações.
Apurou-se junto da família a existência de
antecedentes de epilepsia desde os 13 anos de idade, com
crises caracterizadas por alteração da consciência prece
didas de mal estar epigástrico, por vezes com generaliza
ção secundária. Tinha electroencefalograma (EEG)
prévio que evidenciava actividade paroxistica temporal
esquerda.
A restante história médica não apresentava
antecedentes significativos, nomeadamente a nível
psiquiátrico.
Habitualmente medicado com carbamazepina (400
mg/dia), constatou-se que o doente interrompera este
fármaco por indicação médica e que começara a tomar
vigabatrina (1500 mg) três semanas antes do início do
quadro actual.
Quatro dias antes do internamento o doente teve três
episódios convulsivos, com crises tónico-clónicas, após
o que começou a ficar progressivamente mais agitado,
deambulando incessantemente pela casa, com discurso
DISCUSSÃO
A emergência de perturbações psicóticas agudas em
indivíduos com epilepsia, nomeadamente epilepsia do
lobo temporal, continua a ser matéria fértil de discussão
no âmbito das neurociências básicas e aplicadas1214,
tanto no que se relaciona com os modelos etiopatogéni
cos explicativos (e.g., afinidade, antagonismo, normali
zação forçada, papel dos fármacos anti-convulsivantes),
como no que se refere às estratégias de abordagem tera
pêutica, constituindo desse modo um dos exemplos mais
paradigmáticos da interface entre a neurologia e a
psiquiatria.
O caso descrito reporta a ocorrência de uma pertur
bação psicótica aguda num doente com epilepsia do lobo
temporal, sem antecedentes psiquiátricos, que iniciou
medicação com vigabatrina (1500 mg/dia) três semanas
112
I~I~WFURB \Ç ~O I~SICÓTIC~ AGUI)
antes do desenvolvimento do quadro clínico: na sequên
cia do internamento hospitalar, foi excluída uma lesão
estrutural através de TAC e interrompida a administração
de vigabatrina, verificando-se uma remissão psicopa
tológica completa uma semana após a introdução de
medicação antipsicótica.
Dadas as circunstâncias específicas de aparecimento,
evolução e resolução do episódio psicótico agudo,
assumem particular relevância na discussão clínica deste
caso os aspectos relativos ao seu diagnóstico, enquadra
mento fisiopatológico/etiopatogénico e implicações tera
pêuticas.
Relativamente ao primeiro tópico, estão descritas na
literatura perturbações psicóticas associadas à intro
dução1’10’11 (e também à retirada15) de medicação com
vigabatrina: são habitualmente complicações pouco fre
quentes (incidência situada entre 0,7% e 3,4%, consoante
o espectro e amplitude dos critérios de diagnóstico uti
lizados11), aparecendo em média cinco semanas após o
início da terapêutica, aparentando estar correlacionadas
com a magnitude da dose inicial e com a rapidez de
incremento de regime posológico.
Na ausência de antecedentes psiquiátricos significa
tivos, como é o caso, o aparecimento de um quadro
psicótico agudo nas três semanas seguintes à introdução
da vigabatrina deverá sempre levantar a hipótese de uma
relação de causalidade, ainda que indirecta.
A reserva metodológica é no entanto obrigatória, já
que a simples associação temporal, mesmo quando
reforçada por dados de natureza epidemiológica, não é
condição suficiente para garantir em absoluto a existên
cia daquela relação~”4J6.
Por outro lado, não é simples definir com segurança a
relação deste episódio psicótico com a epilepsia tempo
ral que afecta o doente.
Embora a heterogeneidade clínica que caracteriza
tanto os quadros epilépticos como os psicóticos dificulte
significativamente a categorização diagnóstica, o que
aliás se encontra bem reflectido pela não referência nas
classificações internacionais de doenças (DSM-IV e
ICD- 10), é habitual discriminar as perturbações psicóti
cas associadas à epilepsia de acordo com a sua relação
temporal com as crises convulsivas (críticas, pós-críti
cas, intercríticas breves e intercríticas crónicas) 14~
No caso clínico que descrevemos, o quadro psicótico
instalou-se pouco tempo após a ocorrência de uma
sucessão rápida de crises tónico-clónicas generalizadas,
aparentando assumir um padrão de tipo pós-crítico,
muito semelhante ao que encontrámos em grande parte
dos casos reportados na literatura, relativos à vigabatri
‘.
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No entanto, tal como referem vários autores 14,o
diagnóstico diferencial com um padrão de tipo intercríti
co breve é sempre muito difícil nestas condições,
nomeadamente se o intervalo livre for muito curto, pelo
que mais uma vez assinalamos as precauções que devem
ser colocadas na caracterização diagnóstica destas per
turbações em geral, e do caso apresentado em particular.
Relativamente ao segundo tópico, parece-nos evidente
que a clarificação clínica deste tipo de perturbações
estará em última análise dependente do aprofundamento
científico dos modelos etiopatogénicos formulados pelos
investigadores.
Neste sentido, têm sido colocadas várias hipóteses
para a associação entre o aparecimento de quadros
psicóticos e a ingestão de vigabatrina, sendo frequente
mente apontado como explicação mais provável o risco
acrescido de desenvolvimento destes quadros nos indiví
duos com epilepsia temporal, tanto por vulnerabilidades
de natureza neuropatológica/neuroquímica’ 7-21 (e.g,
esclerose temporal média, disfunção dos neuroreceptores
de dopamina e/ou glutamato), como pelo facto de neste
tipo de epilepsia existir um número significativo de
casos refractários, que podem implicar uma prescrição
mais comum de vigabatrina22.
Uma hipótese alternativa prende-se com a eficácia da
própria vigabatrina como fármaco anti-epiléptico: com
base na constatação de que a maioria dos casos de psi
cose associados à vigabatrina surge num contexto de
melhoria significativa das crises epilépticas, vários
autores postulam a existência de um mecanismo de
antagonismo induzido pelo fármaco, que se traduz pelo
aparecimento um fenómeno de normalização forçada do
EEG11’23
Apesar destes aportes, continua a não existir um mode
lo explicativo global, confirmado experimentalmente,
mantendo-se assim sem resposta um número importante
de questões relativas à fisiopatologia desta associação.
Por último, no que respeita às implicações terapêuti
cas, não encontrámos na literatura qualquer referência a
estudos controlados de terapêutica dos quadros psicóti
cos associados à vigabatrina, estando no entanto
descritas várias abordagens baseadas na interrupção do
fármaco, redução da dose e administração de antipsicóti
cos1’3’11’25, maioritariamente com bons resultados.
Como conclusão principal deste caso, destaca-se a
necessidade de a prescrição de vigabatrina ser sistemati
camente precedida de uma cuidadosa ponderação entre
os riscos e os benefícios para o doente, nomeadamente
nos casos de politerapia e/ou quando existam
113
~II(,t li. \ ~\ ll~l~
antecedentes psiqui~itricos significativos, que parecem
constituir factor de risco para o desenvolvimento de sin
tomatologia psicótica24.
A precaução na retirada do fármaco encontra-se igual
mente relevada na literatura, dada a possibilidade de
ocorrência de quadros psicóticos agudos caso a inter
rupção da vigabatrina seja efectuada de urna forma
abrupta 1, l5
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