Gustavo Leal Toledo Controvérsias Meméticas: a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore TESE DE DOUTORADO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Programa de Pós-Graduação em Filosofia Rio de Janeiro, Março de 2009 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. Gustavo Leal Toledo Controvérsias Meméticas: a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore Tese de Doutorado Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Orientador: Oswaldo Chateaubriand Filho Volume I Rio de Janeiro, março de 2009 Gustavo Leal Toledo Controvérsias Meméticas: a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovado pela Comissão Examinadora abaixo assinada: Prof. Oswaldo Chateaubriand Filho Orientador Departamento de Filosofia -PUC-Rio Prof. Luiz Carlos Pinheiro Dias Pereira Departamento de Filosofia - PUC-Rio Prof. João de Fernandes Teixeira Universidade Federal de São Carlos Profa. Karla de Almeida Chediak Universidade do Estado do Rio de Janeiro Prof. Ricardo Francisco Waizbort Fundação Oswaldo Cruz Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio Rio de Janeiro, 14 de março de 2009 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador. Gustavo Leal Toledo Graduou-se em Filosofia na UERJ (2002) com a monografia “As Críticas a Filosofia Dualista da Mente”. Cursou mestrado em Filosofia na PUC-Rio (2003-2005), obtendo título de mestre com a dissertação “O Argumento dos Zumbis na Filosofia da Mente: são zumbis físicos logicamente possíveis?”. Fez o doutorado na mesma instituição, onde obteve o título com a presente tese. Foi bolsista do CNPq nos primeiros dois anos da tese e recebeu a Bolsa Nota 10 da FAPERj nos últimos 2 anos. Participou e organizou diversos congressos, seminários e simpósios nas mais variadas áreas da Filosofia, tendo publicado no Brasil e no exterior. Atualmente é professor Adjunto da UFSJ. Ficha Catalográfica Toledo, Gustavo Leal Controvérsias meméticas: a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore / Gustavo Leal Toledo; orientador: Oswaldo Chateaubriand Filho. – 2009. 2 v. : il. ; 30 cm Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Memes. 3. Memética. 4. Darwinismo universal. 5. Filosofia da biologia. 6. Cultura. 7. Filosofia da ciência. I. Dawkins, Richard. II. Dennett, Daniel. III. Blackmore, Susan. IV. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. V. Título. CDD: 100 Para minha esposa Luana, meus pais, Elson e Regina, e meus memes. Agradecimentos Agradeço ao meu ex-orientador Sergio L. de C. Fernandes que me ensinou a ser o que sou. Ele provavelmente não concordaria com nada nesta tese, mas mesmo assim devo tudo o que está escrito aqui a ele. Agradeço ao meu orientador Oswaldo Chateaubriand, que me abrigou quando Sergio se aposentou e que tinha o direto de mudar todo o meu modo de trabalho, mas decidiu respeitar e confiar em alguém que ele praticamente nem conhecia. Aos professores da banca, pela leitura paciente de uma Tese que ficou com mais do que o dobro do tamanho que ela teria originalmente. A todos no Departamento de Filosofia da PUC-Rio, professores e funcionários, pela atenção, esforço e cordialidade que sempre demonstraram. À Luana Leal pela paciência, amor, carinho, pelas leituras e correções. Aos meus pais, Elson e Regina, pelo total apoio na minha vida e pelas correções. Aos meus amigos pelas dicas, pelo carinho e pelas conversas. Em especial à Raquel Anna Sapunaru pelas leituras, e a Roger Oleniski, pelas leituras e discussões. Aos meus memes por terem feito todo o trabalho sem me importunar com o processo Agradeço ao Cnpq pela bolsa concedida durante dois anos, que possibilitou a aquisição do material necessário para a pesquisa. Agradeço à Faperj, pela bolsa do programa Bolsa Nota 10, concedida nos dois últimos anos da Tese. Definitivamente não agradeço ao meme da utilização de crases. Resumo Gustavo Leal Toledo; Oswaldo Chateaubriand Filho. Controvérsias Meméticas: a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore. Rio de Janeiro, 2009. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O conceito de memes surgiu em 1976 com Richard Dawkins como um análogo cultural dos genes. Deveria ser possível estudar a cultura através do processo de evolução por seleção natural de memes, ou seja, de comportamentos, idéias e conceitos. O filósofo Daniel Dennett utilizou tal conceito como central em sua teoria da consciência e pela primeira vez divulgou para o grande público a possibilidade de uma ciência dos memes chamada "memética". A pesquisadora Susan Blackmore, 1999, foi quem mais se aproximou de uma defesa completa de tal teoria. No entanto, a memética sofreu pesadas críticas e ainda não se constituiu como uma ciência, com métodos e uma base empírica bem definida. A presente tese visa entrar nesta discussão, analisando todas as principais críticas que foram feitas com o objetivo de analisar se a memética poderia de fato ser uma ciência e também que tipo de ciência ela seria. Palavras-chave Memes, Memética, Darwinismo Universal, Filosofia da Biologia, Cultura, Filosofia da Ciência, Richard Dawkins, Daniel Dennett, Susan Blackmore Abstract Gustavo Leal Toledo; Oswaldo Chateaubriand. Memetic Controversies: the science of memes and the Universal Darwinism of Dawkins, Dennett and Blackmore. Rio de Janeiro, 2009. Phd Thesis – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. The concept of memes was created by Richard Dawkins in 1976 as an analogue of genes. It suggests the possibility of studying culture through a process of evolution through natural selection of memes, that is, of behaviors, ideas and concepts. The concept became central for the philosopher Daniel Dennett, who employed it in his theory of consciousness and made the possibility of a science of memes called “memetics” known to the general public. Researcher Susan Blackmore, 1999, came very close to a complete defense of such theory. However, memetics was the target of heavy criticism, and could still not establish itself as a science, with specific methods and a well-defined empirical base. The present work aims to engage in this discussion, examining the main critics and seeking to establish whether memetics could in fact be a science, and, if so, what kind of science it would be. Keywords Memes, Memetic, Universal Darwinism, Philosophy of Biology, Culture, Philosophy of Science, Richard Dawkins, Daniel Dennett, Susan Blackmore. Sumário Introdução..................................................................................................13 1- Excursões pela Biologia Evolutiva........................................................26 1.1 - Um Esboço de uma Teoria.....................................................32 1.2 - O Esqueleto da Evolução: o darwinismo universal................42 1.3 - A Carne da Evolução..............................................................50 1.3.1 - Seleção Artificial e Seleção Inconsciente.................51 1.3.2 - Espécies-Anel e Poliploidia.......................................53 1.3.3 - Uniformitarianismo e Registro Fóssil........................56 1.3.4 - Homologias e Analogias...........................................58 1.4 - Darwin contra Lamarck?.........................................................61 1.5 - Evolução Epigenética: um pouco mais além dos genes........65 1.6 - Mendel contra Darwin?...........................................................71 1.7 - “Uma vez tendo galgado a escada mendeliana, é preciso jogá-la fora”?...................................................................................75 1.8 - Evo-Devo................................................................................79 1.9 - Diversidade e Variação...........................................................82 1.10 - Cladismo: criando histórias...................................................90 1.11 - Juntos Somos Um................................................................96 1.12 - Quem Seleciona o Quê?....................................................102 1.12.1 - Seleção de Espécies............................................104 1.12.2 - Seleção de Grupo.................................................106 1.12.3 - Seleção de Parentesco.........................................107 1.12.4 - Seleção de Indivíduo............................................109 1.12.5 - Seleção de Genes................................................111 1.13 - O Fim do Passeio...............................................................115 2- Dawkins com Pitadas de Gould..........................................................116 3- Memes e Memética, um Início............................................................138 3.1 - Richard Dawkins e o Nascimento dos Memes.....................140 3.2 - Daniel Dennett e a Tentativa de Aborto da Memética..........157 3.3 - Susan Blackmore e a Descoberta do Óbvio.........................175 4 – Naturalizando o Comportamento e a Cultura....................................191 4.1 - Etologia.................................................................................193 4.2 - Fenótipo Estendido...............................................................195 4.3 - Sociobiologia........................................................................198 4.4 - Psicologia Evolutiva..............................................................203 4.5 - Ecologia Comportamental....................................................210 4.6 - Efeito Baldwin.......................................................................214 4.7 - Herança Epigenética............................................................218 4.8 - Darwinismo Social................................................................220 4.9 - Teorias da Co-evolução: Fedelman e Cavalli-Sforza, Richerson e Boyd..........................................................................223 4.10 - Final....................................................................................238 5- Antropologia: amor e ódio...................................................................240 5.1 - Você Tem Sede de Quê?.....................................................246 5.2 - Cultura..................................................................................249 5.3 - Antropologia e Memética: um breve diálogo........................253 5.4 - Paleontologia: o nascimento do homem e do meme...........262 6 - Todos Juntos Somos Fortes..............................................................269 6.1 - Lingüística Histórica..............................................................271 6.2 - Quanto Mais, Melhor: economia, história, publicidade e propaganda................................................................................288 7 - Tentando em Frente aos Neurônios-Espelho....................................292 8 - Imitação..............................................................................................302 8.1 - Quem Imita, Quando Imita, o Que Imita?.............................304 9 – Filosofia da Ciência, um Sobrevôo sobre o Labirinto: exceções, palaetiologia e comunidade ...................................................................320 9.1 - Demarcando o Território.......................................................326 9.2 - Fazendo Ciência com o Enfoque em Biologia: o papel da exceção .......................................................................................332 9.3 - O Pensamento Populacional................................................336 9.4 - Falsificando Popper..............................................................343 9.5 - Popper na Biologia...............................................................348 9.6 - Ciências Históricas...............................................................352 9.7 - Quanto Mais, Melhor!...........................................................358 9.8 - Uma Mão Corrige a outra: Willian Whewell e a Palaetiologia.................................................................................361 10 - Uma Análise Crítica das Críticas......................................................367 10.1 - Dan Sperber e a Comunicação..........................................370 10.2 - Até Onde Vai a Analogia?..................................................381 10.3 - Problema da Unidade........................................................ 387 10.4 - Problema Ontológico..........................................................393 10.5 - Problema da Mistura...........................................................396 10.6 - Problema da Homologia.....................................................402 10.7 - Problema da Velocidade e da Fidelidade...........................405 10.8 - Problema do Genótipo e Fenótipo do Meme......................413 10.9 - Lamarckismo: ser ou não ser, eis a questão......................417 10.10 - Problema do Sujeito do Meme e da Criatividade.............420 Conclusão................................................................................................428 Bibliografia...............................................................................................439 Anexo I ...................................................................................................449 Lista de Ilustrações Tabela 1: memes na internet...................................................................156 Tabela 2: genealogia de um poema........................................................227 Figura 1: história do algarismo romano para 50......................................280 Figura 2: história do algarismo romano para 500....................................280 Figura 3: história do algarismo romano para 1000..................................280 Figura 4: história dos algarismos árabes 5, 6, 7, 8 e 9............................281 Tabela 3: Lei de Grimm...........................................................................282 Tabela 4: palavras da glotocronologia.....................................................284 Quem pariu Mateus que o embale Introdução Saímos de casa para comprar uma calça porque precisamos estar bem vestidos para o trabalho, mas por que é aquela calça que nos faz ficar bem vestidos e não qualquer outra? Por que precisamos ficar bem vestidos no trabalho? Por que precisamos usar calças? Ou pior, cuecas! Como é possível que coisas tão fúteis como calças, brincos, caixas de som, grampeadores, piscinas, móbiles e dicionários, viraram necessidades? Por que eles parecem tão vantajosos para nós, mesmo quando ficamos deprimidos, angustiados, ansiosos se não conseguimos adquiri-los? Por que comportamentos tão desnecessários como rezar, comprar, jogar peteca, casar e defender teses de doutorado nos parecem ser a coisa mais importante que podemos fazer com nossas vidas? Compramos sem saber o verdadeiro motivo pelo qual compramos, estudamos sem saber o verdadeiro motivo pelo qual estudamos. Todos nossos costumes, nossas idéias, nossas crenças, todas as palavras que usamos até mesmo para pensar, tirando raríssimas exceções, nos são anteriores e nos foram passadas por outros. Mas mesmo assim elas nos parecem tão próximas, tão íntimas, que é através delas que nos definimos e é por elas que vivemos e até mesmo morremos. Passamos nossa vida inteira procurando um carro mais novo, uma casa melhor, um título acadêmico, um campeonato. Somos nossa cultura e tudo indica que é ela que está no controle. Mas simplesmente dizer que a cultura nos supera, que é anterior e mais forte do que nós, uma super-estrutura, não é o suficiente, pois ela muda, e muda constantemente. Novos comportamentos e novos produtos surgem e também desaparecem todos os dias. Este processo de mudança parece ser largamente devido ao ser humano. Quando tratada em seu desenvolvimento a cultura parece dever tudo ao ser humano e ser submissa a ele. É ele que inventa, divulga, vende, ensina, compra, aprende, ou então desiste de comprar ou esquece. É neste momento que surge a questão que nos leva ao meme: como se dá o processo de desenvolvimento e evolução da cultura? Tratar este processo como sendo de responsabilidade dos homens, como se eles é que decidissem o desenvolvimento da cultura, iria contra tudo o que acabamos de ver: a cultura é anterior até mesmo à capacidade de pensar do 14 homem. Afinal de contas, não houve um homem que decidiu qual calça é mais formal, que decidiu qual música nos soa melhor, qual deus devemos adorar. Os costumes mudam, mas não mudam por uma decisão consciente, um decreto de um sujeito livre. Mesmo naqueles poucos casos onde de fato houve um decreto, como uma lei que obriga um determinado costume, ainda assim restam as perguntas: por que aceitamos cumprir tal decreto? Poderíamos ignorá-lo, mesmo sofrendo as conseqüências. Mas, principalmente, por que este homem decidiu decretar este costume e não qualquer outro? Mesmo neste raro caso onde um traço cultural muda, literalmente, por um decreto de alguém, ainda assim entendemos que este traço lhe é anterior e, de certa maneira, superior. O que nos faz escolher um programa de televisão e não o outro, um livro e não o outro, uma calça e não a outra? A resposta imediata é “porque gostamos mais deste do que do outro”. Mas isso não responde coisa alguma, pois a nossa capacidade de gostar precisa, ela mesma, de uma explicação. O conceito de meme surge aqui para dizer algo bem simples: a programação da televisão muda tendo em vista uma melhor adequação ao nosso gosto. O que parece óbvio é, na verdade, um modo novo de explicar a mudança cultural. Não somos nós o motor das mudanças culturais, não decidimos de antemão o que vai mudar, o que será aceito e o que será esquecido. A cultura muda. Um comportamento, um conceito, uma idéia de uma pessoa nunca é idêntica ao de outra pessoa. A variação é a regra. No entanto, a cultura é passada de pessoa para pessoa, herdamos nossa cultura, incluindo suas variações. Dentre estas variações, eventualmente surgem novas idéias, novos comportamentos, que se adequam melhor à nossa estrutura cognitiva, que gostamos mais, achamos mais bonitos, mais interessantes, mais úteis, mais agradáveis, mais fáceis de entender e de lembrar. Estas variações serão mais facilmente passadas, enquanto variações ruins dificilmente se propagarão. Tais variações poderão sofrer novas variações e assim por diante, até que um dia elas estejam tão diferentes que será quase impossível saber de onde elas surgiram. Isso significa que se queremos perguntar qual o motivo de um determinado traço cultural, devemos responder dando a narrativa histórica de seu desenvolvimento, que não será nada mais do que a história de como as variações que surgiram durante seu desenvolvimento se mostraram mais adaptadas à mente de seus propagadores. Tais traços culturais foram chamados de memes. 15 O conceito de “meme” foi criado por Richard Dawkins no último capítulo de seu famoso livro O Gene Egoísta (1976). Um meme seria o análogo cultural do gene, ou seja, idéias, conceitos, comportamentos que passariam de pessoa para pessoa através da imitação e de outras formas de aprendizado social. Toda a cultura, todos os comportamentos sociais, todas as idéias e teorias, todo comportamento não geneticamente transmitido, tudo que uma pessoa pode imitar ou aprender com uma outra pessoa é um meme. Na definição de Susan Blackmore, considerada por Richard Dawkins e Daniel Dennett como a principal defensora dos memes, “memes são instruções para realizar comportamentos, armazenadas no cérebro (ou em outros objetos) e passadas adiante por imitação” (Blackmore, 1999, p.17. Minha tradução1). O principal “ambiente” dos memes seriam as mentes, em particular a mente dos seres humanos, pois poucos animais são capazes de aprendizado cultural. Ficaria em aberto a questão se os memes poderiam também estar em livros, cds, computadores etc. ou se estes casos seriam somente o efeito dos memes que habitam as mentes. Como há um número limitado de mentes e como em cada mente há um espaço limitado, não só no que diz respeito ao controle do comportamento, mas também no que diz respeito à memória, os memes competiriam para “infectar” as mentes. Competição aqui significa somente que alguns memes seriam mais eficazes em se instalar do que outros, ou seja, algumas idéias seriam mais comuns do que outras. Estes memes seriam mais eficazes porque estariam melhor adaptados ao seu ambiente, em outras palavras, dada a mente de uma pessoa, alguns comportamentos, idéias e conceitos são mais prováveis de se fixarem simplesmente porque eles se adaptam melhor àquela pessoa do que os outros memes competidores. O que define a adaptação de um meme a uma mente particular seriam as estruturas cognitivas desta pessoa, bem como sua relação com os outros memes que já estão lá. Uma vez fixado, esta pessoa se comportaria de modo a passar este meme para outros. Durante todo este processo alguns memes podem sofrer modificações, que podem torná-los ainda melhor adaptados à mente de outras pessoas e, portanto, 1 As citações em inglês foram traduzidas para o português com o intuito de permitir a leitura do presente trabalho para um público maior. No entanto, foi feita uma tradução livre. Para aqueles que lêem inglês, recomendamos que leiam as próprias citações em inglês que estão organizadas por capítulo no Anexo I. 16 mais eficazes em se replicar. Os memes mais eficazes em fazer cópias de si mesmos se tornarão mais comuns, os menos eficazes tenderão a desaparecer. Eventualmente estes memes mais eficazes poderão sofrer novas mutações que os tornem ainda mais eficazes. Este processo onde mutações tornam algo mais eficaz de se replicar é o que se convencionou chamar de “seleção natural”. Já este outro processo no qual as mutações vão se acumulando é o que se chama de “evolução”. Teríamos, então, uma evolução dos memes por seleção natural assim como acontece com os genes. Deste modo, a cultura seria tratada como se desenvolvendo e evoluindo por conta própria. A vontade, os desejos, as necessidades e as capacidades dos seres humanos ao invés de comandarem o desenvolvimento e a mudança cultural seriam o “pano de fundo”, o ambiente que cria a pressão seletiva para a cultura. Nas palavras de Dawkins “o que não levamos em conta anteriormente é que uma característica cultural poderá ter evoluído da maneira como o fez simplesmente porque é vantajoso para ela própria” (Dawkins, 2001, p. 221) 2. Ao contrário de ser uma proposta contra-intuitiva ela é, na verdade, bastante comum. Em todos os ramos da arte, por exemplo, os artistas costumam tratar suas criações como tendo vida própria e tratam a si mesmos como sendo o meio pelo qual elas surgem. É comum que eles digam que não sabem como sua arte surge, ela simplesmente surge e eles lhes dão vazão. Mas não precisamos ficar restritos às artes. Em um mundo globalizado diariamente entramos em contato, seja pessoalmente ou através de noticiários, com pessoas que seguem determinadas culturas que nos parecem comandá-las. Religiões extremistas parecem estar mais no comando do que a vontade pessoal, levando até ao suicídio, algumas vezes coletivo. Nacionalismos levam ao ódio e à guerra. Até mesmo pessoas que seguem religiões mais abertas parecem não saber o motivo pelo qual seguem determinadas regras. Mas de maneira nenhuma devemos ficar restritos às religiões. As propagandas que ocupam um imenso espaço em todos os meios de comunicação não têm o intuito de informar ou desinformar algo sobre um determinado produto, mas sim de determinar nosso comportamento. Elas não estão lá em nosso benefício, mas em uma forte ligação do benefício do produto e delas mesmas. 2 Os itálicos são do original e, no que se segue, os itálicos sempre serão do original. 17 A capacidade de explicar a mudança cultural através de histórias que mostrem a adaptabilidade seqüencial e gradativa de um de seus traços às estruturas cognitivas humanas é o que uma ciência dos memes deve fazer. Tal ciência foi chamada de memética e mesmo antes de surgir já se encontra sobre forte escrutínio. Escrutínio esse que, como veremos, é descabido por várias razões diferentes. Duas são as principais diferenças entre a memética e as outras abordagens da cultura. Em primeiro lugar, uma ciência do estudo dos memes poderia se basear nos métodos da genética, da biologia evolutiva e da epidemiologia para desenvolver um verdadeiro programa rigoroso de pesquisa da cultura humana. Em segundo lugar, a memética nos permite estudar o desenvolvimento da cultura sem um questionável “sujeito da escolha” capaz de “decidir” que comportamento seguir ou que idéia adotar. Tal sujeito seria, na melhor das hipóteses, só mais uma parte do ambiente dos memes. A memética seria uma ciência capaz de aplicar a perspectiva do meme. Tal perspectiva é semelhante às narrativas históricas adaptacionistas comuns na biologia evolutiva. Ao estudar um meme deve-se mostrar o que o torna um bom replicador, ou seja, o que o faz adaptado a uma determinada mente. É nisto que a memética se diferencia de outras teorias que normalmente são confundidas com ela, a saber, o Darwinismo Social, a Sociobiologia, a Psicologia Evolutiva e o chamado efeito Baldwin. No entanto, a única relação que a memética tem com estas teorias é o fato de que todas elas estão incluídas dentro do panorama geral do Darwinismo Universal, que visa aplicar a estrutura da seleção natural a outros campos fora da biologia ou à biologia de outros planetas. Mas em muitos casos a memética é até mesmo oposta a estas teorias! O fato é que o estudo dos memes não pode ser considerado mais uma versão do determinismo genético, muito pelo contrário, a memética é oposta ao determinismo genético justamente por mostrar que muitos comportamentos são passados por transmissão cultural e não pelos genes. A perspectiva do meme significa que são os memes, assim como os genes, que querem3 ser passados e não as pessoas que os querem passar. 3 É claro que está sendo usado aqui o que Dennett chamaria de Postura Intencional: os memes e os genes não querem realmente nada, apenas se reproduzem com maior ou menor eficácia, mas podemos tratá-los como se quisessem. Durante todo este trabalho esta “postura” será utilizada, pois 18 Como era de se esperar, a memética sofreu várias críticas que a impediram de se desenvolver, pois um estudioso desta área tem sempre que responder a uma infinidade de questões para justificar o seu trabalho, ao invés de fazer como um pesquisador comum e simplesmente trabalhar. Quase não há trabalho empírico que se auto-intitule como memética e assim será enquanto os defensores desta área acreditarem que há muito trabalho conceitual a fazer. Dentre as principais críticas à memética podemos citar as seguintes. Entre as críticas específicas, uma das mais comuns é que não sabemos a ontologia dos memes, significando que não sabemos ainda do que eles são feitos, qual é o seu substrato físico. Outra também bastante comum é que não sabemos qual é o critério de unidade dos memes. Seria, por exemplo, uma música só um meme ou um conjunto de memes? Outra crítica diretamente relacionada a esta é a que diz que os memes se misturam de modo que os torna relevantemente diferente dos genes. Também temos o problema de se a memética é realmente darwinista ou é, na verdade, lamarckista. Uma das críticas mais importantes, e que causa boa parte da repulsa ao conceito de meme, é sobre o papel do sujeito livre na evolução cultural. Além destas críticas, existem problemas levantados pelos próprios defensores da memética ainda em busca de respostas. Há a discussão de se memes podem ser passados só por imitação ou também por outras formas de aprendizado social. Há o problema da velocidade da mudança cultural ser exageradamente rápida de modo a comprometer a fidelidade da transmissão e, assim, impedir a evolução. Há o problema de como distinguir se traços culturais semelhantes são cópias um do outro ou desenvolvimentos independentes. Há ainda críticas mais gerais, como a da cientificidade de uma disciplina histórica da cultura. Pode a memética ser realmente uma ciência? Que tipo de ciência ela seria? A memética teria uma base empírica ou é só uma análise conceitual? Além disso, há o problema da relação da memética com as ciências humanas que sentiram sua área invadida. Qual seria a relação da memética com estas diversas áreas? Sem contar com o forte preconceito que tais áreas, mais especificamente a antropologia, têm com qualquer tentativa darwinista de trabalhar a cultura. ela é mais simples e mais intuitiva, mas a linguagem mentalista para tratar de genes e memes não deve ser tomada literalmente. 19 Focar em só uma crítica destas, mesmo em só um conjunto, seria permitir que a memética permanecesse estagnada. Se bem entendidas, todas estas críticas estão intimamente ligadas dentro da questão “como é possível uma ciência dos memes?”. Não é possível nem mesmo chegar nesta questão mais geral sem abordar algumas destas questões particulares que estão em seu caminho. Por este motivo, o principal trabalho que deve ser feito é uma limpeza geral no terreno conceitual para permitir que a memética respire e só então possa mostrar se tem potencial ou não. A questão aqui não é que devemos resolver todos estes problemas, mas apenas afastá-los o suficiente para que a pesquisa empírica seja iniciada, e só aí poderemos analisar se a memética tem futuro como uma ciência da cultura. Só será possível discutir se a memética é uma ciência ou não quando ela tiver abandonado as questões conceituais, que serão analisadas aqui, e começado a tratar de questões empíricas. A presente tese visa apresentar a memética, levantando todas as suas principais questões e, principalmente, inserindo-a dentro de um panorama mais amplo ao qual ela pertence. Por este motivo grande parte do trabalho será dedicado a apresentar temas que são importantes para a memética, seja porque fazem parte de seu fundamento, seja porque deram motivações às críticas. Como a memética pretende ser uma ciência darwinista da cultura, inseri-la dentro de suas discussões exige uma abordagem multidisciplinar que vai desde a biologia até a antropologia cultural, utilizando a capacidade crítica da filosofia como única disciplina capaz de ligar pontos tão diversos em um todo coeso. Para possibilitar uma boa compreensão da memética é preciso compreender bem diversas outras teorias que serão, na medida do possível, explicadas aqui. Para permitir toda esta longa caminhada, iniciaremos com um capítulo dedicado exclusivamente à biologia. Infelizmente hoje, 150 anos após a publicação da Origem das Espécies por Charles Darwin, ainda é preciso explicar a teoria da evolução e pior, mostrar que ela está correta! Veremos que talvez o motivo que faz tal teoria ser tão mal ensinada é a sua própria simplicidade estrutural. Já o motivo que faz com que seja tão atacada é porque ela mostrou um modo onde podemos ter projeto sem a necessidade de um projetista. Assim sendo, tal capítulo se iniciará por uma breve análise abstrata e conceitual da teoria da evolução por seleção natural, que pretende deixar mais clara não só a sua simplicidade, mas também a própria base do que se convencionou chamar de 20 Darwinismo Universal. No entanto, dada a abragência deste tema só será possível fazer uma análise mais geral. Feito isso, será necessário mostrar, contra os críticos, que o darwinismo não se resume a uma análise abstrata, mas que tem forte conteúdo empírico e que já foi provado das mais diversas maneiras. Já de posse de conceitos da teoria da evolução, poderemos analisar vários assuntos da biologia que nunca seriam entendidos sem ela. Será apresentado um pouco da história da biologia, assim como alguns desenvolvimentos recentes. Incluem-se aí análises de áreas como a biologia evolutiva do desenvolvimento, conhecida como evo-devo, as teorias da herança epigenética, alguns avanços da biologia molecular etc. Dado este arcabouço teórico, poderemos tratar de questões mais gerais, como qual é a unidade de seleção (genes, indivíduos, parentesco, grupo ou espécies)? Todas estas questões são bastante complexas e exigem um aprofundamento que não será dado aqui. Apenas nos interessará conhecer o suficiente para que possamos fazer uma análise da memética e de suas críticas. Uma vez de posse de alguns conceitos da biologia, será possível entrar em questões que se fizeram bastante presentes no debate atual por causa da popularidade de dois grande biólogos: Richard Dawkins e Stephen Jay Gould. Este será o tópico do segundo capítulo. O fato é que eles travaram publicamente um grande debate sobre determinadas questões internas da biologia. Acontece que Gould gostava de retratar a si mesmo como crítico do darwinismo adaptacionista e como oposto a Dawkins, então tal debate tomou proporções descabidas. Mas foi Dawkins quem criou o conceito de meme e Gould era um crítico dos “exageros do darwinismo” dentre os quais inclui o darwinismo universal que ele chamou, pejorativamente, de ultradarwinismo. Mostraremos que, ao invés de tentar escolher um lado, a melhor resposta à Gould é perceber que não há uma verdadeira oposição aqui. O que Gould propõe é perfeitamente compreensível dentro da ortodoxia darwinista. Deve ficar claro de antemão que Gould nunca foi um crítico da teoria da evolução por seleção natural, ele apenas defendia que alguns processos ainda não tinham tido a sua devida importância reconhecida, e muitas vezes ele estava correto em relação a isso. Cabe ressaltar que muitos dos problemas filosóficos levantados pela biologia serão apresentados, mas não serão propriamente resolvidos, no máximo algumas indicações serão dadas. O motivo é que a biologia serve aqui apenas como base 21 teórica para entendermos a memética e, principalmente, para responder algumas críticas que foram direcionadas a esta. Por este motivo, embora boa parte do presente trabalho se ocupe da biologia, ela não é o alvo do que está sendo buscado aqui. Só depois de uma melhor compreensão da teoria da evolução, e de algumas questões mais específicas da biologia, será possível entender, no terceiro capítulo, o conceito de meme, bem como entender como deveria proceder a memética. Desde o surgimento do conceito de meme muito material foi publicado sobre este assunto. Infelizmente, com a grande quantidade veio também a baixa qualidade. Grande parte dos autores não parecem muito preocupados em entender a memética e ficam somente maravilhados com a idéia dos seres humanos como robôs comandados por memes perigosos. Há algo de fascinante na capacidade de comandar a mente alheia. Para fugir desta gama de compreensões equivocadas, o capítulo sobre memética focará somente nos seus três principais autores, que servirão de referência para todos os outros: Richard Dawkins, que foi o criador do conceito de meme; Daniel Dennett, que desenvolveu melhor este conceito, dandolhe toda sua fundamentação filosófica e discutindo pela primeira vez a memética; e por último, Susan Blackmore, que em seu livro The Meme Machine (1999) fez a análise mais desenvolvida que temos da memética até agora. Será feita uma análise crítica de tais autores, mostrando que nem mesmo em Blackmore temos uma memética bem desenvolvida. Outros autores que trataram sobre os memes aparecerão em outros capítulos, mas só na medida em que forem necessários. Nenhum deles faz, junto destes três, a base para o que está sendo trabalhado aqui, com a possível exceção do filósofo da biologia David Hull, que também fez um bom desenvolvimento sobre este tema. Uma vez explicada a memética é comum que muita confusão surja, principalmente entre críticos de outras abordagens darwinistas da cultura que insistem, erroneamente, em assimilar a memética a algumas outras teorias que lhe antecederam. Para deixar clara a completa novidade que é a memética em relação a estas novas áreas, o quarto capítulo terá como tema distingui-las todas entre si. As teorias que serão apresentadas são as seguintes: etologia, fenótipo estendido, sociobiologia, psicologia evolutiva, ecologia comportamental, efeito Baldwin, herança epigenética, darwinismo social e teorias da co-evolução entre genes e cultura. Dada esta enorme lista fica claro que não será possível uma visão 22 aprofundada de seus problemas. Tais teorias serão apresentadas, mas visando somente distingui-las da memética e nada mais. Ficará claro que a grande maioria delas não é memética por tratar a cultura como geneticamente direcionada. No entanto, como uma espécie de efeito colateral de distinguir estas teorias da memética, ficará claro também que muitas delas podem contribuir de diversas formas para o desenvolvimento desta. A psicologia evolutiva, por exemplo, nos auxilia na compreensão do ambiente do meme. Já a ecologia comportamental está fazendo testes rigorosos que mostram como a imitação pode subjugar o instinto no comando de determinados comportamentos. Talvez o mais interessante será ver que as teorias da co-evolução como propostas por Cavalli-Sforza e Feldman, e por Richerson e Boyd, podem ser entendidas como sendo memética. Tendo deixado claro o que a memética é e o que ela não é, será necessário tratar de alguns conceitos e começar a levantar algumas críticas que ela tem que responder. Dois dos conceitos mais importantes para a memética são imitação e cultura, este último será tratado no quinto capítulo. Além de levantar a origem de tal conceito, será necessário entrar na complicada tarefa de defini-lo. Como ele já é tratado pela antropologia, e como a memética pretende estudar praticamente o mesmo objeto que esta área estuda, este capítulo será dedicado a ela. Analisaremos alguns poucos conceitos de cultura na busca por algum que possa ser usado pela memética, também entraremos no embate que normalmente se dá entre a antropologia e o darwinismo, procurando a sua origem e seus malentendidos. Feito isso, tentaremos amenizar tal debate procurando conceitos da própria antropologia que tenham seus correlatos na memética ou que possam ser usados nesta, com o intuito de iniciar um diálogo entre estas duas áreas. Finalmente sairemos da antropologia cultural para tratar da antropologia física, especificamente da paleontologia, pois o estudo da evolução do ser humano pode nos mostrar como a cultura foi decisiva na história evolutiva que nos levou ao Homo sapiens. Uma vez apresentado o fato de que a memética se beneficia dos conceitos e descobertas da antropologia, veremos que ela pode se beneficiar também de muitas outras áreas do conhecimento, algumas mais antigas do que o próprio darwinismo. Neste sentido, o sexto capítulo focará em uma área específica que é a lingüística, mais propriamente a lingüística histórica, ou diacrônica. Veremos que muitos dos trabalhos desta área, incluindo suas famosas leis da mudança 23 lingüística, e a sua datação pela glotocronologia, podem ser considerados como muito similares ao que a memética pretende fazer. Neste sentido ela não só tem a aprender com esta área, mas pode, no futuro, tratar a lingüística como sendo uma parte de si mesma. Na verdade, não só a lingüística e a antropologia têm fortes ligações com a memética, mas também a economia, a história, a sociologia, o design e a publicidade e propaganda etc. A memética pode jogar um novo olhar sobre todas estas áreas, mostrando que na verdade elas não são distintas e que uma tem muito a se beneficiar da outra. Assim, a memética poderia encontrar aqui não só estudos já desenvolvidos que poderiam ser entendidos à sua luz, mas também a sua base empírica. No entanto, quando se fala em base empírica da memética os críticos logo lembram que não sabemos qual é o substrato físico dos memes. Veremos várias respostas a este problema no último capítulo, mas antes mesmo disso será apresentado, no sétimo capítulo, um dos mais recentes e revolucionários estudos das neurociências: o sistema espelho. Tal sistema é formado pelos neurôniosespelho que, ao que tudo indica, são a base da nossa capacidade de imitar e de compreender os outros. Deste modo, seriam de extrema relevância para o estudo da memética. Os neurônios-espelho poderiam ser a mais nova base empírica da memética e poderiam explicar porque alguns comportamentos são mais fáceis de imitar do que outros. De posse da estrutura neurológica da imitação será possível estudar, no oitavo capítulo, este outro conceito tão fundamental para a memética. Além de suas definições, entraremos nas questões mais propriamente meméticas. Discutiremos principalmente quais são as diferentes formas de aprendizado e quais animais são capazes de transmitir cultura. Além disso, uma das discussões mais importantes para esta área é se os memes só podem ser passados por imitação ou também por outras formas de aprendizado social. Já de posse de determinado conhecimento nas mais diversas questões que envolvem a memética, e a biologia, será finalmente possível tratar das questões epistemológicas aqui envolvidas. Este será o alvo do nono capítulo, o qual dependerá de uma boa compreensão de tudo o que foi passado nos capítulos anteriores. O foco principal deste capítulo será perceber que as chamadas ciências históricas não foram devidamente tratadas pela filosofia da ciência, que só tratou detalhadamente das chamadas ciências físicas ou ciências da natureza. Para isso, 24 será questionado o conceito de normatividade na epistemologia, bem como o pouquíssimo espaço que foi dado à biologia em suas análises da ciência em geral. Tendo como óbvio que a biologia está hoje entre o que há de melhor nas ciências, serão apresentadas várias de suas idiossincrasias em relação às ciências naturais, principalmente o chamado Pensamento Populacional, que nos traz um modo completamente novo de ver o papel do acaso, da probabilidade e estatística nas ciências. Veremos que a biologia traz uma nova visão sobre o papel da exceção, o que implica na dificuldade em utilizar a teoria de Karl Popper nesta área. Dado como certo que as ciências históricas precisam de uma nova epistemologia para ser compreendidas, veremos que elas trazem um novo modo de fazer ciência baseado em narrativas históricas empiricamente fundamentadas e na união entre diversas disciplinas diferentes. Tal novo modo é melhor compreendido pelo o que o filósofo da ciência do séc. XIX, William Whewell, chamou de Palaetiologia. No décimo e último capítulo, já tendo analisado os problemas mais gerais que são levantados pela memética, e também já tendo uma visão melhor de como a memética deveria funcionar e qual o seu lugar dentre as ciências, será finalmente possível tratar de algumas críticas mais particulares que surgiram ao longo dos anos. Todas as principais críticas que foram feitas contra a memética serão levantadas aqui e serão analisadas, normalmente de várias maneiras. Serão analisadas as boas críticas do antropólogo Dan Sperber, bem como várias outras críticas que foram categorizadas como: críticas a unidade do meme, o problema da analogia, o problema da ontologia do meme, o problema da mistura, a questão do genótipo e fenótipo do meme, o problema da homologia na memética, a questão do lamarckismo e, por último, a questão do sujeito do meme e da criatividade. Algumas das análises apresentadas aqui foram indicadas em outros lugares, mas não foram desenvolvidas, já outras são mais específicas do presente trabalho. Deverá ficar claro que o problema aqui não é responder todas estas críticas, mas questionar se elas realmente precisam ser respondidas. No que se segue a maioria dos capítulos foram divididos em seções temáticas para permitir uma leitura mais objetiva do texto. A ordem dos capítulos escolhida foi pensada com o intuito de introduzir um leitor interessado, mas que não conhece nada sobre o assunto. No entanto, os capítulos também foram pensados para serem largamente independentes entre si, de modo que possam ser lidos em qualquer ordem, ou mesmo pulando algum capítulo que não interesse. 25 Por este motivo, os conceitos ou idéias presentes em um capítulo, mas que foram explicados em outro, normalmente contam com uma rápida explicação e com a indicação de em que seção ele foi explicado melhor. Permite-se, assim, que o leitor siga o seu caminho pessoal dentro do tema, levando em considerações que há capítulos mais pesado e difíceis, como o primeiro, o quarto e o último, e capítulos mais leves a fáceis, como o quinto, o sexto e o oitavo. Muitos temas diferentes foram tratados, e o leitor pode, a partir de qualquer um deles, iniciar o caminho que o levará aos outros. Toda esta longa caminhada em dez passos permitirá ao leitor se inserir nas principais discussões envolvendo a memética, não só no sentido restrito de quais são os problemas da memética, mas também no sentido amplo de como ela se enquadra dentro das ciências, qual a sua relação com a biologia e também com as diversas ciências humanas e como ela deve proceder para iniciar o seu trabalho empírico. Tratando tanto dos seus problemas internos quanto das suas relações externas, o presente trabalho tem a pretensão de analisar filosoficamente uma parte relevante das críticas que foram apresentadas contra a memética, além de analisar algumas questões mais gerais que ela levanta. No entanto, ele não se restringe a uma apresentação do tema, pois é antes de tudo uma defesa da memética contra seus críticos e até mesmo contra seus defensores pessimistas. 1 Excursões pela Biologia Evolutiva A filosofia é importante para a biologia porque suas excitantes conclusões não se seguem apenas dos fatos. Ao mesmo tempo, a biologia é importante para a filosofia porque essas excitantes conclusões dependem, na verdade, dos fatos biológicos. Sterelny & Griffths, 1999, p. 5. Minha tradução. A ligação da memética com a biologia é controversa, mas inquestionável. Até que ponto as questões e as propostas levantadas a favor e contra a memética dependem de uma dada interpretação da biologia é um tema que será abordado no último capítulo do presente trabalho (seção 10.2). Por hora, faz-se necessário a apresentação e a discussão de uma série de questões relacionadas com a biologia e a filosofia da biologia que serão imprescindíveis para a compreensão dos temas tratados. No que se segue não será feita uma separação rigorosa entre os fatos da biologia como ciência e as interpretações da filosofia da biologia. Tentar fazer tal separação não nos traria nenhum benefício significativo. Na biologia provavelmente até mais do que nas outras ciências ditas “duras” - esta separação é ainda mais difícil de fazer por motivos que serão apresentados no nono capítulo (seção 9.6). A biologia é hoje uma área extremamente vasta. Até mesmo o estudo mais restrito sobre a evolução é amplo o suficiente para que uma só pessoa não seja capaz de compreender as suas inúmeras questões com a profundidade desejável. O presente capítulo tratará exclusivamente dos temas da biologia evolutiva que auxiliarão na compreensão da memética e, principalmente, na compreensão das críticas feitas contra a memética. Por este motivo os temas tratados se encontrarão irremediavelmente fragmentados. Fizemos um esforço para que, sempre que possível, os assuntos abordados fossem ligados entre si, evitando a aparência de um apanhado desconexo de teorias e fatos. No entanto, em alguns casos a ligação entre duas teorias exigiria uma digressão desnecessária e improdutiva. Nestes casos, um salto entre uma teoria e outra foi inevitável, mas com o desenvolver dos 27 temas nos próximos capítulos todos os assuntos apresentados aqui se mostrarão úteis e serão indispensáveis para a compreensão dos argumentos que se seguirão. Várias questões atuais da filosofia da biologia serão levantadas e apresentadas, outras tantas serão ignoradas. O fato de algumas questões serem ignoradas de maneira nenhuma implica que sua importância não é reconhecida. Somente significa que elas não foram aqui consideradas relevantes para esclarecer questões relacionadas à memética. Entre as questões ignoradas estão algumas das mais importantes dentro da biologia como, por exemplo, da existência real ou nominal das espécies, do surgimento do sexo, dos diferentes conceitos de espécie, etc. Especificamente sobre esta última questão, o conceito de espécie utilizado aqui será em grande parte o conceito mais comum entre os evolucionistas que é o Conceito Biológico de Espécie (CBE). Nas palavras de seu criador, que não se proclama como tal, este conceito pode ser resumido da seguinte maneira: “Espécies são grupos de populações naturais intercruzantes permanecendo reprodutivamente isoladas de outros grupos” (Mayr, 2006, p.29). No entanto este conceito está longe de ser uma unanimidade e junto com ele existem pelo menos cerca de 20 outros (cf. Wilson, 1999, p.78), sendo que ao menos um deles será tratado mais longamente aqui, a saber, o conceito filogenético de espécies proveniente do cladismo (seção 1.10). Outra questão muito importante que será ignorada diz respeito as críticas feitas ao evolucionismo como um todo que foram propostas, principalmente, por movimentos religiosos e pelo Design Inteligente. Tais críticas normalmente se baseiam em uma péssima compreensão da biologia e sobre tudo em um deplorável conhecimento das questões levantadas pela filosofia da ciência. Por mais que se tente dizer o contrário, não há hoje em dia nenhum questionamento sério sobre a veracidade da evolução e da seleção natural. No que se segue será apresentado algo que Sterelny e Griffiths chamaram convenientemente de “visão recebida da biologia” (1999, p.22. Minha tradução), ou seja, a visão mais comum e mais estudada do evolucionismo. Não é exatamente uma visão que esteja linha por linha em algum manual canônico e sim uma visão espalhada por inúmeros manuais e artigos tanto de biologia quanto de filosofia da biologia. A própria importância do evolucionismo para a biologia como um todo faz parte desta dita “visão recebida” e está muito bem representada na famosa frase de Dobzhansky “nada em biologia faz sentido se não for à luz da 28 evolução”. É a perspectiva mais geral da evolução que une áreas como a fisiologia, a taxonomia, a embriologia, a citologia, a genética, a sistemática, a zoologia, a etologia, a ecologia e muitas outras. A grande influência que Darwin teve foi, em grande parte, justamente devido ao fato de que pela primeira fez foi possível ver como áreas separadas do estudo da vida estavam ligadas entre si. Deste modo, a evolução pode ser considerada como o fio que costura todas as demais áreas da biologia em um todo coeso. Dizer que a biologia só faz sentido através da evolução não é o mesmo que dizer que só é possível estudar biologia se você for primeiro um perito em evolução. Para deixar isso mais claro Ernst Mayr faz a seguinte separação: A biologia na realidade consiste em dois campos bem diferentes, a biologia mecanicista (funcional) e a biologia histórica (Mayr, 2005, p.39). A biologia funcional trata principalmente com a parte física e química dos seres vivos e é neste sentido que ela é chamada de mecanicista. Embora tais seres tenham, é claro, uma origem evolutiva, ela pode ser ignorada em certos estudos. A biologia funcional se preocupa só com o momento presente da história da vida sem questionar como tal ser chegou neste momento presente. Já a biologia histórica é eminentemente evolucionista e se preocupa com o acontecimento histórico de como algo chegou a ser o que é hoje. Uma vez separada a biologia funcional da biologia histórica, podemos, ainda seguindo Mayr, subdividir esta em cinco grandes teorias que formam um todo coeso, são elas “evolução propriamente dita, descendência comum, gradualismo, multiplicação das espécies e seleção natural” (Mayr, 2005, p.115)4. A evolução propriamente dita é a constatação de que as espécies mudam, se transformam. Ela está em oposição à antiga visão das espécies como tendo sido criadas por Deus do modo como se encontram hoje. Uma vez constatada a veracidade da evolução, ainda falta descobrir o processo pelo qual esta se dá, a grande descoberta de Darwin e Wallace foi justamente este processo nomeado de seleção natural. Em oposição a ela está a famosa herança de características adquiridas de Lamarck e outros. 4 Gordon Graham (2005, p.42) faz uma separação em 3, são elas, a evolução, a seleção natural e o gradualismo. Como veremos, esta separação é de fato incompleta. 29 O gradualismo já é um detalhe do processo da seleção natural. Ele nos diz, como Darwin gostava de afirmar, que a natureza não dá saltos. Em oposição, encontramos o saltacionismo. A versão mais famosa do saltacionismo é muito posterior à época de Darwin, são os “monstros promissores” de Goldshimdt: este acreditava que a evolução se dava aos saltos quando grandes anomalias genéticas subitamente apareciam. Que grandes saltos acontecem é hoje inegável, não há também muito questionamento sobre o fato de que a seleção natural poderia atuar através de grandes saltos. O saltacionismo só não tem um papel relevante na evolução por causa da improbabilidade gigantesca que uma grande transformação dê origem a um ser viável vivendo justamente no ambiente que lhe é propício. Seria esperar que a evolução operasse através de milagres e mais milagres! Para deixar isso mais claro o grande biólogo R. A. Fisher usou a imagem de um microscópio que estamos tentando focalizar melhor (cf. Dawkins, 2005, p.156): um ajuste bem pequeno tem 50% de chance de melhorar o foco, já um movimento grande muito provavelmente vai piorar o foco, mesmo que esteja na direção correta, pois tenderá a passar do foco! Com os seres vivos, dizia Fisher, é exatamente a mesma coisa: estes já estão bem adaptados a um determinado ambiente, esperar que uma grande mudança crie um outro ser também bem adaptado seria esperar por um milagre. A multiplicação das espécies também foi apontada por Darwin com a idéia de “árvore da vida” para mostrar que as espécies dão origem a outras espécies diferentes de uma maneira ramificada, espécies dando origem a espécies filhas. Esta idéia se opõe a uma visão transformacionista linear onde as espécies evoluem, mas sem ramificação. Já a descendência comum é uma continuação natural da multiplicação das espécies se voltarmos no tempo. Ela indica que esta ramificação toda das espécies começou em um único ponto de origem. Podemos acreditar na multiplicação das espécies sem acreditarmos na origem comum, as espécies poderiam ter tido múltiplas origens. Mas é difícil acreditar na origem comum sem acreditar na multiplicação das espécies, embora seja possível, pois se o gradualismo for negado podemos imaginar que a separação entre as espécies se deu por saltos, quase como criações independentes, um tipo de geração espontânea das espécies. Parece ter sido esta a opinião de Hugo de Vries e outros, que veremos ainda neste capítulo (seção 1.6). No entanto, há algo de inconsistente em acreditar que todas as espécies tiveram uma origem comum, mas que as 30 espécies não se originaram umas das outras por ramificação. Seria mais razoável concluir que se a multiplicidade de espécies que encontramos hoje teve a mesma origem comum, então é porque umas espécies deram origem a outras. Uma outra importante teoria darwinista, não colocada por Mayr dentro das cinco já apresentadas, é a da variação intraespecífica. Antes de Darwin era comum acreditar que a única diferença relevante era aquela entre uma espécie e outra, as diferenças dentro de uma mesma espécie eram consideradas como erros insignificantes na cópia de um original comum a todos. Mas Darwin deixou claro que isto estava errado ao dizer inúmeras vezes dentro da Origem das Espécies que “as espécies são apenas variedades bem trabalhadas e definidas” (2004, p.70). Para ele não havia nenhuma diferença essencial entre a variação dentro de uma determinada espécie e a variação entre espécies, dando origem, assim, ao que é chamado hoje de Pensamento Populacional. Nas palavras de Douglas Futuyma: A substituição do essencialismo pela ênfase sobre a variação, feita por Darwin – que Mayr chamou de pensamento populacional – foi a base de sua teoria e sua mais revolucionária contribuição à biologia (Futuyma, 2002, p.7). Hoje em dia é difícil ver a separação entre estas seis teorias, sendo que o próprio Darwin chamou a sua teoria de “um longo argumento” (Darwin, 2004, p.481). Mas tais teorias só se uniram definitivamente na chamada “Nova Síntese”, que se deu entre 1930 e 1940, ou seja, praticamente 80 anos depois de Darwin ter publicado a Origem das Espécies. Na época de Darwin, e logo após a sua morte, estas teorias se encontravam separadas e acreditar em algumas delas não implicava em acreditar nas outras. O caso paradigmático é o de Lamarck, que acreditava na evolução e no gradualismo, mas não na seleção natural e nem na multiplicação das espécies. Muitos, inclusive, se consideravam contrários a Darwin. Na maioria das vezes a sua oposição era contra o princípio de seleção natural, este sim tipicamente darwinista. Mas mesmo alguns auto declarados darwinistas, como Thomas Huxley e Charles Lyell, encontravam problemas com a seleção natural e com o gradualismo (cf. Mayr, 2005, p.128). O que então unia a visão dos que se autop roclamavam darwinistas era “a rejeição à idéia de criação especial” (Mayr, 2006, p.99), ou seja, era a convicção de que todos os processos envolvidos eram processos naturais, sem intervenções divinas. Em outras palavras, o que os unia era o seu professado naturalismo 31 materialista. Pode parecer estranho, mas foi principalmente Darwin quem naturalizou a natureza. Para usar os termos de Daniel Dennett, podemos dizer que o que unia os darwinistas era o seu repúdio aos skyhooks (ganchos imaginários) e a colocação de gruas (guindastes) no local. Um skyhook seria uma espécie de gancho proveniente diretamente do céu para auxiliar em algum trabalho de suspensão qualquer. Já uma grua é um guindaste comum que faz o mesmo trabalho que o skyhook, mas tem a sua base firmemente colocada no chão. Nas palavras de Dennett: Skyhooks são elevadores milagrosos, não-sustentados e insustentáveis. Gruas não são menos eficientes como elevadores, e possuem a óbvia vantagem de serem reais (Dennett, 1998, p.78). Um skyhook é uma solução milagrosa e ad hoc para um problema qualquer como, por exemplo, dizer que as espécies são distintas “porque Deus quis assim”. Já uma grua é uma solução fundamentada em princípios naturais e tão justificados quanto eles podem ser. É uma explicação através de argumentos razoáveis e empiricamente defensáveis. A rejeição dos skyhooks nas explicações naturais era justamente o ponto de toque dos primeiros darwinistas, e ainda é o laço que reúne todos os darwinistas de hoje. Estes fatos históricos nos ajudam a compreender melhor o cerne do darwinismo, mas os detalhes da história não são relevantes para o presente trabalho. O darwinismo que será tratado aqui é o darwinismo proveniente do que foi chamado de “visão recebida”, que por sua vez tem a origem na chamada “Nova Síntese”, unindo a evolução gradualista por seleção natural de Darwin com a genética mendeliana. No que se segue, será primeiro apresentado um esboço abstrato da teoria da evolução por seleção natural com o intuito de deixar claro os principais pontos e a simplicidade de tal teoria. Após tal esboço, se seguirá uma atenção maior aos fatos da biologia de nosso mundo, que corresponderão a maior parte do presente capítulo. 32 1.1 Um Esboço de uma Teoria O “ingrediente” fundamental da evolução é, segundo Richard Dawkins, o que ele chamou de replicador (cf. Dawkins, 2001, p.36): o replicador é um ente capaz de fazer cópias de si mesmo. Ele é o ser que tem descendentes e é nele que podemos dizer que a seleção natural age. Os primeiros replicadores provavelmente foram algo parecido com o RNA, mas não necessariamente. Eles eram capazes de copiar a si mesmos. Sendo assim seus descendentes herdavam suas características e, portanto, também eram capazes de copiar a si mesmos. A hereditariedade é uma característica fundamental dos replicadores. Entretanto, mesmo os replicadores que são capazes de fazer boas cópias de si mesmos eventualmente erram no processo e criam seres diferentes de si. Tais erros, que foram chamados de mutações, acontecem por acaso, ou seja, eles não são direcionados para nada. É preciso deixar claro aqui que acaso não quer dizer que elas não são causadas por nada. Existem inúmeros fatores que causam a mutação, os mutágenos e as substâncias radioativas são as mais conhecidas. Mas o importante é que nenhuma destas influências é capaz de discriminar qual é a mutação necessária para um determinado indivíduo em determinado ambiente. Deste modo, tais mutações são cegas “no sentido de que surgem sem levar em conta as necessidades dos organismos no momento” (Ruse, 1995, p.35). Eventualmente, um erro na replicação pode criar um replicador mais potente. Dawkins enumera três características que tornam um replicador mais potente, a saber: a fecundidade, que é a capacidade de fazer um maior número de cópias de si mesmo; a longevidade, que é a capacidade de durar mais no tempo e, por isso, fazer mais cópias de si mesmo; e a fidelidade, que é a capacidade de evitar erros durante o processo de cópia, o que garante um maior número de cópias iguais a si (cf. Dawkins, 2001, p.38). De imediato podemos perceber que o que realmente importa é a capacidade de fazer boas cópias de si mesmo. Falta ainda um fator muito importante, para um replicador fazer cópias de si mesmo ele precisa de “nutrientes” que são adquiridos no meio ambiente. Sem tais “nutrientes” ele não poderia se replicar. É neste ponto que entra a chamada seleção natural, uma vez que o número de “nutrientes” é finito. Se este não fosse o caso até mesmo um péssimo replicador conseguiria o que precisa para criar seus 33 descendentes. É por isso que Michel Ruse nos diz que “se não estiverem nascendo mais indivíduos do que podem sobreviver e reproduzir não poderá haver seleção” (Ruse, 1995, p.41). É a possibilidade de escassez de “nutrientes” que cria a “luta pela sobrevivência”. Tal concepção, que Darwin recebeu de Malthus, é central no darwinismo: significa que um replicador que tenha uma mutação que lhe dá uma vantagem sobre os outros vai tender a ter mais descendentes. Um replicador tem mais descendentes do que os outros porque é mais apto a viver em um determinado ambiente. Esta é a chamada “sobrevivência dos mais aptos”, expressão que teve origem com Herbert Spencer e foi posteriormente adotada por Darwin. No entanto, nem sempre “sobrevivência dos mais aptos” é uma boa imagem da evolução. Quando não há muita pressão evolutiva como, por exemplo, mudanças climáticas ou a chegada de um novo predador, uma melhor imagem poderia ser a “eliminação dos menos aptos”. A diferença aqui está no fato de que no primeiro caso só um grupo seleto de mais aptos sobrevive, já no segundo caso só os piores adaptados morrem, mas a grande maioria ainda sobrevive. No caso da “eliminação dos menos aptos” uma gama considerável de variedades dentro de uma população ainda permanece existindo. O que torna os seres mais ou menos aptos são as suas mutações, mas é claro que uma mutação só pode ser considerada uma vantagem em um determinado ambiente. Portanto, de nada adianta ser um predador se não há nada para ser caçado, de nada adianta uma proteção contra o frio em um lugar quente etc. O importante é saber que tais vantagens são vantagens porque ao possuir uma delas o replicador será capaz de ter mais descendentes que, por sua vez, também as herdarão. Tais descendentes inclusive poderão ter novas mutações que lhes auxiliem ainda mais a ter mais descendentes. Assim, as mutações vão se acumulando. Isto é o que Dennett chamou de “acumulação de projeto” (Dennett, 1998, p.71). É justamente este processo de acumulação de mutações que se deu o nome de evolução. Mas é preciso deixar claro que não são os organismos que evoluem e sim as populações. A evolução é um processo eminentemente populacional que se dá através da seleção das variações entre indivíduos de uma população. É neste sentido que ela pode ser vista como a “mudança em freqüências gênicas em uma população” (Dawkins, 2005, p.126). Alguns genes se tornam mais comuns no acervo genético (gene pool) de uma determinada 34 população e outros se tornam mais raros. Esta mudança é o que chamamos de evolução. A evolução se dá pela seleção natural que nada mais é do que uma diferença no sucesso replicativo. Nas palavras de Trivers “seleção natural se refere ao diferente sucesso reprodutivo na natureza, onde sucesso reprodutivo é o número de descendentes produzidos que sobrevivem” (Trivers, 1985, p.15). Aquele que tem uma vantagem, que lhe possibilita se replicar mais, torna-se mais comum na população, ou seja, deixa mais descendentes. Aqueles que se replicam menos tornam-se mais raros e talvez venham a se extinguir. O último fator que falta para completar este processo é o tempo para que todo ele se realize. No caso do nosso mundo os replicadores são feitos de DNA. São eles que sofrem as mutações e são eles que transmitem as informações da hereditariedade. Mas hoje em dia não mais nos encontramos naquele “caldo primordial” onde os primeiros replicadores surgiram. Embora ainda existam DNA que se repliquem livremente, como o caso dos vírus, a maioria do DNA de nosso mundo se encontra dentro dos organismos vivos. Na maior parte estes organismos são unicelulares, porém muitos são pluricelulares. Em tais organismos o replicador, que é o DNA, é chamado de genótipo e o efeito que este genótipo, e também o ambiente, têm no organismo é chamado de fenótipo. É através do fenótipo que os organismos se relacionam entre si e com o meio ambiente. No começo da vida na Terra alguns replicadores criaram uma membrana para se proteger, depois outros criaram a habilidade de romper esta membrana, outros criaram a capacidade de se mover para poder fugir ou para poder atacar e assim por diante. Em um determinado momento dois replicadores trabalharam em conjunto e, fazendo isso, cada um aumentou o número de cópias de si mesmo. “A seleção favoreceu genes que cooperam entre si” (Dawkins, 2001, p.70). Tudo isso, segundo Dawkins, são “veículos” que os primeiros replicadores criaram para sobreviver e é exatamente isso que todos os organismos de hoje em dia são, máquinas de sobrevivência dos genes.5 Embora a mutação se dê ao acaso, podemos observar que a seleção natural não é um processo aleatório, muito pelo contrário, é um processo selecionador 5 David Hull criou o termo “Interactor” (interagente) para substituir o termo veículo de Dawkins, no entanto, seguiremos aqui a interpretação de Sterelny e Griffiths e estes dois termos serão considerados como intercambiáveis (Sterelny & Griffiths, 1999, p.40) 35 bastante rigoroso onde não ser selecionado normalmente significa morte ou, pelo menos, significa que o indivíduo não será capaz de contribuir com seus descendentes para uma determinada população. A confusão da evolução com um processo aleatório é umas das confusões mais comuns, mas a aleatoriedade só está presente no surgimento das mutações, o que se segue daí é um rigoroso processo diferencial. É neste sentido que a evolução “conserva o acaso” como dizia Jaques Monod em seu livro com um título que fazia menção justamente ao problema aqui tratado, a saber, O Acaso e a Necessidade. Mais recentemente tornou-se comum falar deste processo como uma “catraca”: “as mutações são adicionadas, mas nunca são retiradas, daí a analogia com a catraca” (Sterelny & Griffiths, 1999, p.207. Minha tradução). O “efeito catraca” nos mostra que a evolução se dá através de retenção de pequenos passos graduais. É justamente esta a impressionante força da seleção natural: ela pode acumular todas estas pequenas “sortes” de modo que, com o tempo, o produto final parecerá incrivelmente improvável. Grande parte das críticas dirigidas à evolução se dá justamente pela falta de compreensão deste “acúmulo de pequenas sortes”. A idéia de que a mutação é um processo aleatório talvez tenha a sua origem em outra idéia errônea, a saber, de que a seleção natural fica esperando as mutações ocorrerem para que possa atuar. Esta é uma imagem comum da evolução, mas está em grande parte errada. É claro que a seleção natural pode atuar em mutações que acabaram de surgir dentro de uma população, mas o mais comum é que aquela população já conte com uma grande variabilidade e inúmeras mutações onde a seleção natural atue, se for o caso. Como já vimos ao falar da divisão realizada por Mayr da idéia de Darwin em cinco teorias, a sexta, que foi acrescentada aqui, é justamente a da variabilidade intraespecífica. Esta sexta idéia é essencial para a compreensão da seleção natural. Ainda é fácil encontrar nos dias atuais pessoas que acreditam que todas as zebras ou todas as lulas são praticamente iguais. Mas isso não é verdade, elas são tão distintas entre si como nós somos distintos uns dos outros. Cada uma é um indivíduo. O motivo de elas serem tão parecidas é duplo: há o fato delas sofrerem uma pressão seletiva maior, causando uma maior mortalidade nos seres que se diferenciam muito dos demais. Mas há também o fato de que julgamos baseados em nosso uso comum dos cinco sentidos. Um ser que seja visualmente muito semelhante ao outro será considerado como idêntico, mesmo que o cheiro deles 36 seja completamente diferente. Mas se tal ser se distingue pelo cheiro, então eles mesmos se julgarão completamente diferentes. Morcegos de uma mesma espécie, por exemplo, costumam ser, para nós, idênticos entre si, pois são visualmente muito semelhantes, mas, para eles, são completamente diferentes, pois se identificam pelo som e pelo cheiro. Tão diferentes que certas espécies de morcego (Desmodus rotundos) são capazes de montar colônias baseadas na capacidade de um indivíduo reconhecer o outro e retribuir favores. Isto significa que em praticamente qualquer momento já existe sempre um grande número de variações para a seleção atuar. Ela não fica simplesmente esperando uma mutação benéfica ocorrer. Nas palavras de Dawkins: Existe um enorme poço de variações, originalmente alimentado por um gotejamento de mutações, mas significativamente revolvido e agitado pela reprodução sexuada, de modo a originar variações ainda maiores. As variações surgem a partir das mutações; no entanto, as mutações já podem ser razoavelmente antigas no momento em que a seleção natural começa a trabalhar nelas (Dawkins, 1998, p.102). O papel do sexo, citado por ele, é justamente o de separar e unir diferentes variações achando, assim, os genes que trabalham melhor em conjunto e descartando variações que não são benéficas, mas que se “aproveitam” de outras mutações benéficas. Neste sentido o sexo tem um efeito de limpeza do genoma, pois ao permitir múltiplas combinações de variação ele permite que as melhores variações se encontrem em um mesmo indivíduo que será fortemente selecionado justamente por este motivo (cf. Dawkins, 1998, p.99). Uma vez explicado o que é a seleção natural é preciso deixar claro que ela não é o único evento capaz de mudar a freqüência gênica de uma população. A chamada Deriva Genética também pode fazer o mesmo, mas de um outro modo. Deriva genética é o papel do acaso na sobrevivência dos genes. Um indivíduo pode ter um gene muito bem adaptado a um determinado ambiente e que facilmente seria selecionado pelo seu valor adaptativo, mas é perfeitamente possível que este indivíduo não sobreviva ou não consiga se reproduzir simplesmente por acaso. Ter um bom gene não é garantia de sobrevivência e reprodução, por isso “ser melhor adaptado” não quer dizer “produziu mais descendentes do que a média da população” e sim “capaz de produzir mais 37 descendentes do que a média da população”, mesmo que esta capacidade não tenha se realizado de fato. Um gene também pode se tornar mais comum dentro de uma população simplesmente por acaso: “a deriva genética resulta na perda de variação genética dentro das populações e na divergência genética entre elas, inteiramente por acaso” (Futuyma, 2002, p.139). O modo mais conhecido em que isso pode acontecer é o chamado “efeito do fundador”. Este efeito acontece principalmente quando um pequeno grupo de uma determinada população é responsável por fundar uma outra população. Pode ser um pequeno grupo que migrou e acabou indo para uma área antes desconhecida, pode ser um pequeno grupo sobrevivente de uma catástrofe que dizimou o resto da espécie, pode ser um grupo que se separou da população original por causa de alguma mudança climática ou geológica, ou pode ser simplesmente um grupo que estava agarrado em um tronco quando este caiu no mar e foi parar em outra ilha. Em todos estes casos o importante é que, quanto menor o grupo, menor a chance de que ele seja uma amostra estatística correta da população de onde ele se originou. Isto quer dizer que quanto menor o grupo maior a chance de que ele tenha mais, ou tenha menos, um determinado gene se comparado ao grupo original. Deste modo, a população que será fundada por este grupo se inicia a partir de um acervo genético diferente. Em um caso extremo, uma única mãe grávida de seu filhote (macho) pode fundar uma nova população e esta nova população seria geneticamente muito mais uniforme do que a original pelo simples fato de que toda ela descenderia de um único indivíduo. Teríamos, então, alguns genes se tornando mais comuns e outros mais raros por simples acaso e não pela seleção natural. O efeito do fundador e a deriva genética podem ser mais importantes do que parecem à primeira vista. Se considerarmos a evolução como uma mudança nas freqüências dos genes em uma população, então eles são extremamente importantes. Algumas medidas hoje em dia indicam que cerca de 95% do DNA humano, por exemplo, não codifica gene nenhum. Da parte do DNA que não codifica proteínas, algumas codificam RNA e outros são trechos reguladores que “decidirão” que genes serão transcritos e quando (seção 1.8). Algumas estimativas sobre a quantidade de genes que codificam proteínas são ainda mais extremas: 38 Estimou-se que, no genoma humano, no máximo 1,5% dos DNA codificam proteínas. Poucos codificam tRNA, e outros RNA não-traduzidos, mas a maioria nunca, ou dificilmente, é transcrita, muito menos traduzida (Jablonka & Lamb, 2005, p.52. Minha tradução). Grande parte do DNA restante é o chamado DNA lixo que está, de certa maneira, só “pegando uma carona” com o DNA codificador (cf. Ridley, 2006, p.208). Se tal DNA não produz efeitos sustentáveis, então ele não pode ser selecionado nem contra, eliminando tal seqüência, nem a favor, fixando uma determinada seqüência. Ele é invisível para a seleção. Além disso, como veremos ainda neste capítulo, o código genético é redundante: a mudança em algumas posições do DNA não significam mudanças nos aminoácidos por ele produzidos. São as chamadas substituições silenciosas. Isto significa que todas as mutações sofridas nas tais posições silenciosas serão mantidas, não serão nem selecionadas nem eliminadas. Tal constatação deu origem a chamada “Teoria Neutra da Evolução Molecular” de Mooto Kimura. Nas palavras de Dawkins: Os neutralistas pensam – corretamente, a meu ver – que essas adaptações são a ponta do iceberg – provavelmente a maior parte da mudança evolutiva, considerada no nível molecular, é não funcional (Dawkins, 2001, p.397). Por ser não funcional significa que tais mudanças são explicadas pela deriva aleatória, elas se dão ao acaso e não por seleção. Como não estão sujeitas a seleção, devem variar em uma taxa constante. Baseado nisso elas funcionam como relógios moleculares que podem nos dar o tempo transcorrido desde um ancestral comum (cf. Futuyma, 2002, p.153). “A evolução molecular parece ter uma taxa aproximadamente constante por unidade de tempo; considera-se, portanto, que ela mostra um relógio molecular” (Ridley, 2006, p.194). Recentemente surgiu também a “Teoria Aproximadamente Neutra” para tentar resolver alguns problemas da Teoria Neutra. Aquela coloca o tamanho da população como uma característica relevante. Uma mutação neutra não pode ser selecionada contra ou a favor, por isso o tamanho populacional não é importante. Já uma mutação levemente vantajosa, ou levemente desfavorável, depende do tamanho populacional para continuar existindo ou não. Se a população for pequena, o seu destino vai ser idêntico ao destino da mutação neutra, pois ela poderá se fixar, mesmo sendo desvantajosa, simplesmente por deriva aleatória, ou seja, simplesmente porque um pequeno grupo fundador tinha uma quantidade 39 grande desta mutação por acaso. Já em uma grande população se dará o inverso, ela não será capaz de se fixar por acaso e, por isso, se comportará como uma mutação não neutra e será selecionada contra ou a favor (cf. Ridley, 2006, p.201). É preciso deixar claro que nenhuma das duas teorias nega o papel da seleção natural, nas palavras de Ridley: A outra coisa que a teoria neutra da evolução molecular não proclama é que toda evolução molecular é dirigida pela deriva neutra. Ela diz que a maior parte da evolução molecular é por deriva neutra. Uma fração importante da evolução molecular é quase que certamente dirigida pela seleção: a fração da evolução molecular que ocorre durante a evolução de adaptações (Ridley, 2006, p.187). Exatamente qual papel a seleção teria é um pouco controverso. Ela poderia tanto ser uma seleção positiva escolhendo as mutações adaptativas, quanto negativa simplesmente atuando contra as mutações desvantajosas. Neste segundo caso ainda seria a deriva que seria responsável pela fixação da mutação positiva. Ainda a respeito deste segundo caso temos uma visão da seleção natural como algo que freia a evolução. Se não houvesse seleção natural, a mudança na freqüência genética de uma população seria tão rápida quanto o ritmo do surgimento de novas mutações, todas as novas mutações permaneceriam. A seleção negativa, deste modo, atuaria para frear este ritmo impedindo certas mudanças. É claro que não podemos negar também a possibilidade da seleção atuar nos dois papéis. Esta terceira hipótese parece ser a mais provável (cf. Ridley, 2006, p.218). O exato papel da seleção não é importante no presente trabalho. O importante é que ela tem um papel não aleatório na fixação ou no descarte de uma mutação em uma determinada população. O papel da seleção natural só se torna realmente importante, como vimos, nas mutações adaptativas. A seleção de adaptações é o que importa para a teoria darwiniana, mas é perfeitamente possível pensar em um processo de seleção sem adaptação. Um exemplo muito simples de seleção sem adaptação é escolher algo no cara ou coroa. É um processo de seleção como qualquer outro, mas o que é selecionado não o é porque está melhor adaptado a vencer no cara ou coroa, foi selecionado simplesmente por sorte! Assim como há seleção sem adaptação, há também reprodução sem hereditariedade. Dawkins usa o exemplo das nuvens: uma nuvem pode produzir outra. Mas o exemplo mais comum e instrutivo é o do fogo, pois este claramente 40 se reproduz: uma pequena chama pode dar origem a um verdadeiro incêndio de ordem crescente. Mas o fogo não tem herdabilidade, isto quer dizer que um determinado fogo iniciado por uma certa chama não tem uma chance maior de se parecer com esta chama do que ele tem chance de parecer com qualquer outra chama. O mesmo se dá com as nuvens. Aqui é preciso deixar claro o que é herdabilidade e, principalmente, como ela é constatada. Dizemos que certo caractere é herdável quando é passado dos pais para os filhos, mas ele tem herdabilidade quando a prole se parece mais com seus pais do que com os contemporâneos de seus pais em relação a este caractere. Para medi-la é preciso uma população onde certos indivíduos têm uma determinada característica e outros não. Se só os filhos dos indivíduos que têm esta característica apresentam a mesma característica, então a herdabilidade é máxima. Caso contrário, caso ela possa aparecer em qualquer indivíduo com a mesma probabilidade, então ela não tem nenhuma herdabilidade. Entre estes dois extremos temos os diferentes graus de herdabilidade. (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.35). “A herdabilidade, portanto, é a extensão quantitativa na qual a descendência se assemelha aos seus progenitores, em relação à média da população” (Ridley, 2006, p.364). Deste modo, se um determinado caractere herdável já estiver presente em toda a população dizemos que sua herdabilidade é zero, pois, no que diz respeito a este caractere, os filhos de um determinado pai serão idênticos aos filhos do resto da população. Ele é hereditário, mas não influencia a medida da herdabilidade. A herdabilidade não mede exatamente a hereditariedade, mas sim até que ponto diferenças genéticas ocasionam diferenças fenotípicas em uma determinada população. Se todos indivíduos de uma população tiverem a mesma dieta e forem medir a herdabilidade da obesidade, por exemplo, a diferença entre indivíduos será exclusivamente genética, ou seja, a herdabilidade será alta, mas se a dieta variar muito a diferença será mais ambiental do que genética, a herdabilidade será baixa (cf. Laland & Brown, 2002, p.267). Deste modo, se a herdabilidade de um caractere for zero, não quer dizer que ele não seja hereditário, mas somente que sua variação não depende da hereditariedade. No entanto, se houver algum valor de herdabilidade, isso significa que tal caractere é sim herdável. Podemos, assim, usá-la como uma boa medida da importância dos genes em um ambiente estável, 41 mas também pode funcionar como prova de que um determinado caractere é herdado (cf. Ridley, 2006, p.614). É deste modo que a herdabilidade é constatada de fato, e não através da observação microscópica da reprodução, onde o biólogo deveria ver os cromossomos dos pais de fato criando os filhos. O mesmo se dá com a genética quantitativa ou genética populacional. Estuda-se o genoma, mas sem necessariamente olhá-lo diretamente. Seria possível estudar as mudanças genéticas de uma população estudando os genomas de todos os indivíduos em vários lapsos de tempo, mas isso é completamente impraticável dado o tamanho do trabalho. Teríamos que fazer um mapeamento genético do gene estudado em todos os indivíduos de uma população e em vários momentos distintos para saber se tal gene está sendo selecionado contra, a favor, ou nenhum dos dois. Mas na prática o que se estuda são os fenótipos e, através deles, os genes. Nas palavras de Maynard-Smith: Uma das grandes dificuldades da genética das populações é que nossa teoria tem a ver com a freqüência dos genes e dos genótipos nas populações, enquanto que nossas observações dizem respeito a fenótipos. Só muito raramente é que conhecemos as bases genéticas das diferenças fenotípicas que observamos (Maynard-Smith 1993, p.184. Minha tradução). Estuda-se os genótipos, mas indiretamente. É este estudo que nos dá o diferencial ou coeficiente de seleção chamado de s. Resumidamente o procedimento é assim: escolhe-se um traço fenotípico qualquer, por exemplo, o tamanho do bico de certo pássaro. Mede-se o tamanho do bico de vários indivíduos dentro de uma determinada população e depois repete-se várias vezes esta mesma medição prestando atenção para a diferença no tamanhos dos bicos e para a sobrevivência dos indivíduos marcados. Se, por exemplo, em uma próxima medição forem encontrados mais indivíduos com bicos longos e for notado que um número proporcionalmente maior de indivíduos com bicos curtos marcados morreu, então podemos constatar que há uma pressão seletiva para bicos longos. Quanto maior for o diferencial entre as duas medições, maior a intensidade da seleção. Assim podemos ver como a seleção natural está afetando o tamanho dos bicos e com que intensidade ela está afetando. Nas palavras de Ridley: Se os indivíduos bem-sucedidos forem muito diferentes dos indivíduos médios na população, a seleção será forte e o diferencial de seleção (S) será grande. Se a 42 seleção for fraca, os indivíduos bem-sucedidos serão mais como uma amostra aleatória da população como um todo e S será pequeno (Ridley, 2006, p.268) Um exemplo simples de como isso se dá, e que nos mostra o poder da seleção natural, foi dado por Sean Carroll. Ele nos diz que um indivíduo que é apenas 1% melhor adaptado do que a média de sua população, sendo que esta sua adaptação é perfeitamente herdável e sendo a população é de 10.000 indivíduos, serão necessárias cerca de 1.980 gerações para que esta mutação se dissemine por toda a sua população, ou seja, para que este gene seja fixado. Se tais indivíduos forem camundongos, ou qualquer outro ser que possua uma geração de cerca de 1 ano, então esta mutação estará fixada em 2.000 anos! Um tempo geologicamente ínfimo para uma mutação que só era levemente benéfica (cf. Carroll, 2006, p.220). 1.2 O Esqueleto da Evolução: o darwinismo universal Se não for possível que os filhos pareçam mais com os pais do que com a média da população, então nem a seleção natural e nem a evolução adaptativa é possível. A característica que permite todo este processo é justamente a reprodução com herdabilidade. É por este motivo que Dawkins coloca no início de todo o processo de evolução o chamado replicador. Embora seja importante saber qual foi este primeiro replicador e como ele surgiu, o mais importante é perceber que uma vez que ele surja, teremos um processo de evolução por seleção natural. Aqui surge o foco do chamado Darwinismo Universal, o importante do gene não é que ele é uma cadeia de DNA é sim que ele é um replicador. Deste modo, se ele fosse feito de outra substância, que também pudesse se replicar, ele também seria alvo da seleção natural e, por conseguinte, da evolução. É neste sentido que o ultradarwinismo quer ultrapassar as barreiras do darwinismo. Para o darwinismo universal o darwinismo não se restringe a um estudo da biologia do nosso planeta. Nas palavras de Pinker, o darwinismo universal defende que: A seleção natural não é só a melhor teoria da evolução da vida na terra, mas quase com certeza é a melhor teoria da evolução da vida em qualquer lugar do universo. (Pinker, 2006, p.132) 43 Onde houver um replicador capaz de passar suas características para seus descendentes e houver um suprimento finito de “nutrientes” necessários para a replicação, ocorrerá a seleção natural e, por conseguinte, a evolução. Isto quer dizer que a evolução não depende do substrato biológico aqui da Terra, ela pode se dar em outros planetas, com outros substratos. Como nos diz Dennett “As idéias de Darwin sobre os poderes da seleção natural também podem ser retiradas de sua base biológica” (Dennett, 1998, p.60). Com isso ele não está querendo dizer que tais idéias podem ser aplicadas só a outros planetas e sim aplicadas a qualquer ambiente onde existirem outros replicadores. Nas palavras de Dawkins “o darwinismo é uma teoria grande demais para ser confinada ao contexto limitado do gene” (Dawkins, 2001, p.213). Concordando com Dawkins, Dennett diz que a evolução é algorítmica. Segundo Dennett, “algoritmo é um tipo de processo formal no qual se pode confiar – logicamente – que produza uma determinada espécie de resultado sempre que for ‘posto para funcionar’” (Dennett, 1998, p.52). Ele é um procedimento que pode ser dividido em pequenas etapas, simples o suficiente para um mecanismo completamente mecânico o seguir e chegar sempre ao mesmo resultado. No entanto, com isso ele não quer de maneira nenhuma afirmar que a evolução é sempre direcionada a um mesmo resultado, o importante aqui é que ela é neutra em relação ao substrato, ou seja, pode ser implementada em qualquer substrato que a suporte. Do mesmo modo, um torneio de tênis ou de cara e coroa terá sempre um ganhador, mas isso não quer dizer que será sempre o mesmo ganhador, e no caso do torneio de cara e coroa sequer quer dizer que ele ganhará por alguma característica que lhe é própria. Ele ganhará simplesmente porque tem que haver um ganhador! Dawkins e Dennett continuam com a proposta ultradarwinista de levar as idéias de Darwin para além da biologia. Mas esta idéia está longe de ser nova. Não muito tempo depois do surgimento do darwinismo, Thomas H. Huxley, um de seus principais defensores, já dizia que (...) a luta pela existência prevalece tanto no mundo físico quanto no mundo intelectual. Uma teoria é uma forma de pensamento, e seu direito de existir está diretamente relacionado ao seu poder de resistir à extinção pelos seus opositores (Huxley 1893, 229 in: Ruse, 1995, p.68). 44 Para ele as idéias lutavam pela existência, assim como os indivíduos, e as idéias mais aptas sobreviviam. Assim, o algoritmo da evolução darwinista estava sendo aplicado ao “mundo intelectual”. Mais recentemente Karl Popper defendeu uma proposta semelhante ao propor sua epistemologia evolucionária. Nas palavras de Popper: (...) o crescimento de nosso conhecimento é o resultado de um processo estreitamente semelhante ao que Darwin chamou de ‘seleção natural’; isto é, a seleção natural de hipóteses: nosso conhecimento consiste, a cada momento, daquelas hipóteses que mostraram sua aptidão (comparativa) para sobreviver até agora em sua luta pela existência, uma luta de competição que elimina aquelas hipóteses que são incapazes. Esta interpretação pode ser aplicada ao conhecimento animal, ao conhecimento précientífico e ao conhecimento científico (Popper, 1975, p.238). A epistemologia evolucionária de Popper foi só uma das tentativas de aplicar os princípios de Darwin ao conhecimento humano, outras tentativas surgiram6. Mas o importante aqui é perceber que em todos estes casos o darwinismo foi retirado de suas bases biológicas e tratado como um processo que será realizado sempre que certas condições estejam presentes. Mesmo dentre aqueles que não defendem claramente que a evolução é um processo algorítmico é comum encontrar o que eles chamam de um “resumo abstrato” da evolução onde ela é “abstratamente compreendida como um argumento lógico, que leva das premissas a uma conclusão” (Ridley, 2006, p.104). Ridley nos apresenta quatro condições fundamentais para a existência da seleção natural: reprodução, hereditariedade, variação, variação da aptidão (algumas variações serão melhores do que outras). Até Darwin fez o seu pequeno resumo abstrato da seleção natural: Como nascem muito mais indivíduos de cada espécie e que não conseguem subsistir; como, por conseqüência, a luta pela sobrevivência se renova a cada instante, segue-se que todo o ser que varia, ainda que pouco, de maneira a tornarse-lhe aproveitável tal variação, tem maior probabilidade de sobreviver, este ser torna-se também objeto de seleção natural. Em virtude do princípio poderoso da hereditariedade, toda variedade, agente da seleção, tenderá a propagar sua nova forma modificada (Darwin, 2004, p.19-20). Embora seja fácil ler este trecho pensando especificamente em seres vivos evoluindo, e provavelmente era nisso que Darwin pensava, é possível notar que 6 Para mais informações sobre outros que seguiram caminhos semelhantes ver: Ruse, 1983, p.71. Para mais informações sobre a epistemologia evolucionária de Popper ver: Popper, 1999, p.54. 45 ele não faz referências específicas e que poderia estar falando de qualquer outra coisa capaz de se reproduzir e com aptidão variável. Isto fica claro na forma de argumento lógico que Darwin escolheu para este trecho ao usar as palavras “como... como... segue-se...”. Esta separação da evolução da sua base biológica é muito comum e inúmeros outros exemplos poderiam ser dados (cf. MaynardSmith, 1993, p.43 - 44 & Dawkins, 2001 p.193 - 194). Todos eles são muito parecidos e em última instância se resumem a isso: Se uma população variada de entidades produz descendentes semelhantes a si, e se essas entidades diferem em adaptatividade, a seleção deverá gerar alterações evolutivas nessa população independentemente do tipo de entidade em questão (Sterelny & Griffiths, 1999, p.41. Minha tradução). Curiosamente, é comum que estes resumos abstratos esqueçam de dois tópicos importantes: é preciso que exista uma falta de recursos para a reprodução. Se a quantidade de recursos for infinita até um indivíduo que não esteja bem adaptado poderá sobreviver. Também é preciso tempo para que todo este processo se realize. Este último parece ser óbvio: ninguém defende que a evolução se dê instantaneamente. No entanto o tempo transcorrido pode ser menor do que o exigido pela evolução e, neste caso, não poderá ter sido ela a causadora das mudanças. Vemos então que existem algumas condições necessárias em todo processo de evolução por seleção natural, são elas: reprodução com herdabilidade7, variação intraespecífica, possibilidade do surgimento de novas mutações, aptidão diferencial, falta de recurso para a reprodução, tempo para o processo ocorrer. Na presença destas condições a seleção natural acontece e, consequentemente, a evolução. Como os recursos são escassos, aqueles indivíduos de uma população variável que forem mais aptos tenderão a ter mais descendentes e, como suas aptidões são herdáveis, sua prole também será mais apta. Tal prole poderá ter novas mutações que lhes torne ainda mais apta criando, assim, um processo de acumulação de mutações que se convencionou chamar de evolução. No entanto, nem todos concordam com esta algoritmização da biologia. Para Gould é um erro hediondo tentar levar o darwinismo para além da biologia. O problema é que ele não nos diz o que o substrato biológico tem de especial para 7 Não basta o caractere ser herdável, ele precisa ter alguma herdabilidade, ou seja, precisa criar algum diferencial fenotípico na população para que possa ser selecionado ou não. 46 garantir que ele é o único substrato em que o darwinismo possa ser aplicado. Parece difícil, mas não impossível, defender que a evolução e a seleção natural são restritas ao substrato biológico sem defender um certo tipo de vitalismo, uma certa propriedade mágica da biologia que não poderia ser caracterizada pelo que faz, pelo seu funcionamento. Pois tudo que pode ser caracterizado pelo seu funcionamento pode ser retirado do seu substrato e implementado em outro que o suporte. Gould acaba se encontrando em um lugar parecido com o de John Searle na filosofia da mente: este se diz um materialista não funcionalista, mas dá ao cérebro uma capacidade especial de ter uma consciência intencional subjetiva que não pode ser realizada por nenhum outro substrato e nem estudada cientificamente utilizando uma linguagem objetiva. Searle considera que cabe aos funcionalistas provar que seres sem cérebros, computadores, por exemplo, seriam capazes de ter mente. No entanto defender que só os cérebros podem ter mentes é também uma posição muito forte, ainda mais se tais mentes tiverem estranhas propriedades desconhecidas pela ciência que seriam propriedades intrínsecas subjetivas inescrutáveis por um ponto de vista de terceira pessoa! Tal afirmação sobre uma possível característica peculiar do cérebro é muito forte para ser considerada a “posição padrão” enquanto somente a sua opositora que deveria ser capaz de prová-la errada. Não é sem razão que Searle é considerado por muitos como um dualista de propriedades. Assim como Gould não se diz vitalista, Searle também não se diz dualista, mas ambos não são capazes de dizer o que há de especial no substrato que consideram como sendo o único capaz de implementar tal característica tão peculiar. Podemos então dizer que a resposta de Gould não é satisfatória. Simplesmente negar a universalização do darwinismo sem dizer o que o substrato biológico teria de especial para ser único não é o suficiente. A despeito das críticas contra este tipo de abstração do processo evolutivo, a força de tal processo compreendido de maneira abstrata é utilizada hoje para explicar inúmeros outros processos, dentre eles a memética. Mas mesmo ainda dentro da área da biologia ele é utilizado para explicar outros processos como, por exemplo, o sistema imune. Este parece funcionar de uma maneira análoga à evolução por seleção natural. Sabemos que o que mais importa na relação de um anticorpo e seu antígeno é a sua forma tridimensional, seguindo o termo técnico 47 devemos dizer que o que importa são suas propriedades estereoespecíficas, “isto é, sua capacidade de ‘reconhecer’ outras moléculas (...) segundo a sua forma, a qual é determinada por sua estrutura molecular” (Monod, 2006, p.58). A relação entre o antígeno e o anticorpo é semelhante à relação entre uma chave e uma fechadura. No entanto, a forma original do anticorpo não se deve a forma do antígeno, os anticorpos são produzidos aleatoriamente em variadas formas, o antígeno serve, então, como seletor destas formas. As formas que encontram seu antígeno se multiplicam e tornam-se mais comuns, e as que não encontram tornam-se mais raras (cf. Monod, 2006, p.125 - 126). Baseado nisso é que surgem as vacinas, elas têm a forma do antígeno na parte em que o anticorpo se liga a ela, mas não são capazes de adoecer um indivíduo. Ao aplicar uma vacina você está selecionando certos tipos de anticorpos em um processo muito parecido com a seleção artificial (seção 1.3.1). Um outro intrigante caso de auto-replicação que provém da biologia, mas sem ligação com os nossos replicadores mais conhecidos que são o DNA e o RNA, são os príons. Os príons são proteínas que fazem parte do funcionamento celular normal em mamíferos, por exemplo. Entretanto existe uma forma aberrante desta proteína que é capaz de fazer cópias de si mesmo transformando por contato os príons normais em príons aberrantes, modificando sua forma tridimensional (cf. Aunger, 2002). Como os príons estão presentes nas células cerebrais, as doenças que a forma aberrante gera normalmente são neurodegenerativas, dentre as quais a mais conhecida é a doença da vaca-louca (encefalite espongiforme bovina). O principal estudioso dos príons, Stanley B. Prusiner, inclusive ganhou o prêmio Nobel de medicina em 1997 por suas pesquisas. Temos, então, um replicador inusitado, e há até pouco tempo desconhecido dentro da própria biologia. Há, como é comum nas ciências, controvérsias sobre os príons, no entanto, nos últimos anos muitas evidências a favor desta hipótese foram reunidas a este respeito (cf. Soto & Castilla, 2004) . Um outro processo onde a estrutura abstrata da seleção natural desempenha um papel diz respeito a origem da vida como apresentada por Cairns-Smith. Segundo o autor, os cristais, como os encontrados na argila e no barro, são um conjunto ordenado de átomos que tendem a se aglomerar nesta forma ordenada. Por mais ordenado que eles sejam, podem existir pequenas falhas na sua 48 ordenação. O que é interessante é que eles podem crescer. Fazem isso agregando novas camadas da mesma substância seguindo sempre a mesma ordenação. Se tivermos, por exemplo, uma solução supersaturada de hipossulfito de sódio dissolvida em água e colocarmos um pequeno cristal em sua superfície podemos ver a olho nu a formação de vários cristais semelhantes em sua ordenação (cf. Dawkins, 2001, p.224). De certa maneira o cristal se reproduziu e até apresenta herdabilidade, pois se o cristal original com que a solução foi semeada tiver algum falha, os novos cristais que surgirão tendem a ter esta mesma falha. É possível que algumas falhas tornem os cristais mais capazes de se reproduzir, podendo torná-los mais leves ou mais rápidos em sua reprodução etc. Teríamos, então, uma espécie de seleção natural dos cristais. Cairns-Smith une esta interessante perspectiva com uma relação química conhecida entre os cristais e certas moléculas orgânicas para propor uma explicação plausível para o surgimento da vida orgânica. No entanto, os detalhes da teoria de Cairns-Smith não nos interessam aqui, o que é importante é que neste caso os cristais é que são os primeiros replicadores, o DNA e o RNA é que teriam se originado depois e por intermédio deles. Sendo replicadores, os cristais poderiam sofrer um processo de seleção natural, é claro que extremamente simples, pois a estrutura dos cristais é muito organizada e infinitamente repetitiva. Além disso, a sua quantidade de informação é muito inferior a do mais simples ser vivo, no entanto, esta seria só uma separação quantitativa (cf. Monod, 2006, p.31). A teoria de Cairns-Smith é só uma tentativa de explicar a origem da vida. Existem várias outras e a maioria começa com o surgimento de um replicador8. O fato de que um replicador não precisa ser necessariamente algo que consideramos como um ser vivo é demonstrado também pelos vírus e bacteriófagos. Estas são entidades que estão no limiar do que chamamos de vida. Alguns autores as consideram como vivas e outros não, mas independentemente disso elas são capazes de se replicar. Como são extremamente simples elas não têm nelas mesmas todos os instrumentos necessários para a replicação, então dependem dos 8 Isto não é verdade para a teoria de Stuart Kauffman. A idéia fundamental dele é que sistemas complexos podem emergir automaticamente através da interação de unidades simples. Seria uma espécie de auto-organização que não dependeria de pré-existência de um replicador (cf. Sterelny & Griffiths, 2006 p.370 - 371). Mas por mais matematicamente interessante que seja a sua teoria, ela não conta com muitas evidências empíricas e também não refuta a idéia da evolução como um algoritmo. Ela somente dá outra explicação para o surgimento da vida onde a auto-organização desempenha um papel relevante, mas a replicação, uma vez que tenha surgido, tem o seu papel redimensionado, mas não perdido (Dennett, 1998, p.235). 49 mecanismos metabólicos de outros seres que elas invadem e “seqüestram”. Os bacteriófagos, por exemplos, são pedaços de DNA revestidos por uma camada de proteína. Para se copiar eles precisam infectar uma bactéria e utilizar os seus processos metabólicos. Um exemplo dado por Behe é o do fago: O ADN do fago é bem pequeno, contendo a codificação de apenas uns cinqüenta genes. Esse número não é suficiente para criar sua própria maquinaria de replicação, de modo que, inteligentemente (sic.), o fago seqüestra a maquinaria hospedeira. O fago, portanto, é incapaz de sustentar-se por si mesmo (Behe, 1997, p.271). Vemos, então, que eles não possuem a capacidade de se replicar por conta própria, mas possuem herdabilidade e possuem também variação que implica em uma aptidão diferencial. Deste modo, temos os principais componentes para que o fago entre em um processo evolutivo por seleção natural mesmo não sendo necessariamente vivo e mesmo não sendo capaz de copiar a si mesmo. Fazem parte do ambiente do fago outros indivíduos, estes sim capazes de copiar a si mesmos e de replicar o fago, e os fagos competem por este recurso imprescindível para a sua replicação. Um último exemplo de um possível processo de seleção natural que será dado aqui é justamente o mais distante da biologia. Lee Smolin aplicou a seleção natural ao surgimento de universos, defendendo a idéia de que universos podem se reproduzir em universos filhos dentro de buracos negros. Nestes universos filhos as constantes da física poderiam variar levemente. Deste modo, qualquer variação que implicasse em um aumento de probabilidade de surgirem novos buracos negros seria selecionada (cf. Dennett, 1998, p.185). Tal idéia é empiricamente muito difícil de provar, mas o que nos interessa aqui é só observar como a mesma estrutura geral da seleção natural biológica está sendo aplicada em diferentes níveis não biológicos. Nas palavras de Futuyma: Pelo menos teoricamente, a seleção pode atuar sempre que diferentes tipos de entidades auto-reprodutoras, que geram descendentes semelhantes a elas próprias, difiram em suas taxas de sobrevivência ou reprodução (Futuyma, 2002, p.160). Para isso só precisamos de um ente qualquer, biológico ou não, capaz de fazer cópias de si mesmo inserido em um ambiente propício para este processo. Suas cópias serão, por definição, também capazes de fazer cópias de si. Durante este processo erros podem ocorrer, sendo que eventualmente alguns erros podem 50 criar um indivíduo mais capaz de fazer cópias de si em comparação com os outros. Se o número de “nutrientes” necessários para realizar este processo for finito, então os indivíduos mais capazes tenderão a se tornar mais comuns e os menos capazes tenderão a desaparecer. Com o tempo novos erros de cópia surgirão e se tornarão comuns se forem benéficos, isto é, se criarem indivíduos mais capazes de fazer cópias de si do que a média da população. Temos, então, construído o esqueleto de como se dá a evolução por seleção natural. Sempre que todas as propriedades exigidas pela seleção estejam presentes ela se dará, não importa se o ser capaz de se reproduzir seja um ser vivo ou não, ou seja, a seleção natural não se encontra, por princípio, restrita ao domínio da biologia, embora seja possível dizer que em nosso mundo ela de fato só atue neste domínio. Na verdade, os críticos da seleção natural podem até dizer que nem mesmo no domínio da biologia ela atua. 1.3 A Carne da Evolução Uma vez tendo delineado as principais juntas do esqueleto da evolução por seleção natural, podemos voltar e ver se este resumo abstrato realmente tem alguma instanciação em nosso mundo. O lugar para se procurar esta “materialização” é o mais óbvio: o mundo vivo. Pretendemos aqui mostrar que a evolução por seleção natural, além de ser um argumento bastante plausível por conta própria, realmente acontece em nosso mundo natural. Mas com isso não será feita uma longa defesa da evolução darwiniana, uma espécie de respostas aos seus críticos. Como já foi dito, tais críticas, propostas principalmente pelo Design Inteligente, não são relevantes. O propósito desta seção é apenas uma rápida constatação de que a evolução é um fato do nosso mundo, e com isso pretendemos apresentar que tipo de provas são necessárias para constatar a veracidade da seleção natural. Muitas são as evidências da seleção natural, o próprio Darwin nos apresentou as principais e foi principalmente por esta apresentação detalhada que seu livro teve tamanho sucesso e que seu nome ficou em destaque, obscurecendo 51 o nome de Wallace, que também tinha chegado a uma espécie de resumo abstrato da seleção. Não faremos uma análise da visão histórica de Darwin. As evidências da evolução ficaram muito mais claras desde sua época e o que está sendo tratado aqui é a chamada “visão recebida” da evolução. 1.3.1 Seleção Artificial e Seleção Inconsciente Uma das evidências mais marcantes, por nos ser tão próxima, é a que provém da seleção artificial. Qualquer um que tenha um animal doméstico encontra diariamente uma prova do poder da seleção artificial. Um caso conhecido é o dos cães que em poucos milhares, e em alguns casos centenas de anos, passaram dos lobos para as mais variadas formas de cães de todos os tipos e de todos os tamanhos. Este foi um processo presenciado e realizado pelo homem. Em alguns casos, não foi realizado por seleção artificial e sim por seleção inconsciente. A diferença é pequena, mas relevante: na seleção artificial existe o desejo consciente do homem de buscar por alguma nova variedade, ele, então, reproduz somente os animais mais parecidos com esta variedade. É o tipo de seleção mais comum em animais que são usados como meio de subsistência como cavalos, gado, peixes, etc. Nestes casos o criador escolhe só os seus melhores indivíduos para procriar, onde o que se considera “melhor” depende completamente dos critérios do criador. Já na seleção inconsciente há a mesma reprodução diferencial, mas quem causa esta reprodução não está visando criar uma nova variedade, simplesmente a cria como uma espécie de subproduto de gostar mais de um tipo de indivíduo do que de outro (cf. Darwin, 2004, p.47). Um indivíduo pode, por exemplo, tratar melhor os cães que ele mais gosta, aumentando assim a saúde e a expectativa de vida deles e, consequentemente, aumentando o seu sucesso reprodutivo. Se isso for feito por muitas gerações é bastante provável que ocorra um processo de seleção, mesmo que o indivíduo nunca tivesse este processo em mente. Ele somente tratou bem os cães que ele gostava e não se importou muito com os que ele não gostava. A seleção artificial também pode ser reproduzida em laboratório: em um grupo de ratos, por exemplo, permite-se a reprodução somente de uma minoria 52 com um determinado caractere, se ele for herdável as novas populações produzidas por seleção artificial rapidamente apresentarão este caractere em sua média. Já a seleção inconsciente também é muito comum. Um caso paradigmático é o do HIV. Quando ele é tratado com 3TC sua população decresce bastante em número, porém alguns dias depois já é possível detectar HIV resistente ao 3TC e, em 80% dos pacientes, a população de HIV logo se torna completamente resistente ao 3TC (cf. Ridley, 2006, p.68). O mesmo exemplo também acontece de maneira cotidiana nas pragas agrícolas resistentes a inseticidas. Neste caso ainda há uma piora, pois cada vez que um novo inseticida é desenvolvido e aplicado, mais rapidamente as pragas se adaptam a ele. A explicação comum desta aceleração na adaptação é que as pragas acabam desenvolvendo adaptações que lhes permitem sobreviver no meio de vários tipos de inseticidas diferentes como, por exemplo, técnicas de autolimpeza. A seleção inconsciente também é responsável pela diminuição do tamanho dos peixes em certos rios do Brasil. Como há um tamanho mínimo que certas espécies podem ser pescadas, há uma forte pressão seletiva para não ter o tamanho autorizado para a pesca. A seleção artificial é considerada diferente da seleção natural porque nela o desejo de um ser humano desempenha o papel de selecionador. Já a seleção inconsciente é mais parecida com a seleção natural, só com a diferença de que nela o homem é o selecionador, mesmo sem saber disso. No entanto não é só o homem que é capaz de ser o agente da seleção inconsciente. As frutas das árvores servem para espalhar suas sementes, fazem isso através de animais que as comem. Quanto mais saborosa e nutritiva for a fruta, maior é a probabilidade de um animal espalhar as suas sementes. Cria-se, assim, uma espécie de seleção inconsciente pelo sabor da fruta onde o paladar do animal pode ser considerado como seletor. Podemos, então, considerar que o paladar do animal faz parte do ambiente ao qual a fruta deve se adaptar, uma fruta com gosto ruim não está bem adaptada a este ambiente e vai ser descartada, não produzindo muitos descendentes. Evidentemente existem casos em que frutas com o gosto ruim podem, também, ser uma adaptação, mas de qualquer modo, seriam uma adaptação ao paladar de animais, então não muda nada no que está sendo dito aqui. Se podemos tratar o paladar de um animal como o ambiente das frutas, não há motivos, baseados em princípios, para não tratar o desejo do homem de ter um 53 gado com mais leite, ou com uma carne mais macia, também como parte do ambiente do gado. Aquele que produzir mais leite, por exemplo, será selecionado e deixará mais descendentes. Dito isso podemos perceber que não há nenhuma real diferença entre a seleção natural e a seleção inconsciente ou a artificial. Em todas elas o organismo que estiver melhor adaptado ao seu ambiente terá mais chances de se reproduzir. Podemos considerar, então, a seleção artificial e a seleção inconsciente só como casos especiais da seleção natural onde um outro indivíduo representa um papel fundamental como ambiente. Visto deste modo, a seleção natural está muito mais presente em nossas vidas do que podemos esperar. Está nas formigas, baratas, ratos e pombos que se adaptaram para viver às nossas custas. Está nas árvores nas nossas calçadas que são escolhidas tendo o critério de raízes que não prejudicam o calçamento. Está também nos nossos animais de estimação e nas plantas da nossa casa. 1.3.2 Espécies-Anel e Poliploidia Fazem parte das evidências da evolução os fatos que mostram que duas espécies distintas podem ser intimamente relacionadas. Um exemplo clássico é de dois tipos de gaivotas (Larus argentatus e Larus fuscus) que no Reino Unido claramente se diferenciam fenotipicamente e não se reproduzem entre si, são duas espécies distintas (cf. Ridley, 2006, p.75). No entanto, uma destas gaivotas se reproduz com outra que é parecida com ela, mas vive nos países nórdicos, já esta se reproduz com outra que vive no oeste da Rússia, que se reproduz com outra que vive na Sibéria, que se reproduz com outra que vive no Canadá, que se reproduz com outra que vive na Groenlândia e que se reproduz com a segunda espécie de gaivota que vive no Reino Unido. Temos assim, duas espécies de gaivotas claramente distintas que estão ligadas por uma cadeia de gaivotas que literalmente dá a volta ao mundo, sendo que uma sempre se reproduz com a sua vizinha, ou seja, podem ser consideradas da mesma espécie. A situação se complica ainda 54 mais pelo fato de existir uma terceira espécie (Larus glaucoides) que se une a esta cadeia9. Estas espécies anel não são um tipo peculiar, uma exceção, na verdade, todos os seres vivos no planeta Terra estão ligados entre si da mesma maneira que estas duas gaivotas. O que acontece é que na maioria dos casos os indivíduos que seriam intermediários entre uma espécie e outra não sobreviveram ao processo de seleção natural ou se extinguiram por simples acaso. A seleção natural normalmente não permite que estes anéis continuem existindo porque se os genes pudessem passar por todos os indivíduos sem barreira alguma não haveria como combinar vários genes bons para um determinado ambiente em um só organismo que vive neste ambiente, a não ser por mero acaso. Os genes simplesmente transitariam livremente por tudo quanto é lugar e nos mais diferentes animais, isto atrapalharia a adaptação de praticamente todos eles (cf. Mayr, 1996). Teríamos camelos nascendo no Pólo Norte! Muitos genes só são adaptados a um tipo específico de nicho, por isso o melhor é que eles se mantenham juntos naquele nicho. Além disso, os genes funcionam de maneira unida, de nada adianta genes para digerir carne no estômago de herbívoros. Deste modo, a seleção vai valorizar a capacidade de criar barreiras para a passagem dos genes. No entanto, isto nos mostra que a transmissão livre de genes entre espécies distintas não é uma impossibilidade lógica, ela é meramente uma improbabilidade biológica. Veremos melhor a relevância biológica e filosófica deste tema quando falarmos mais detalhadamente sobre o Pensamento Populacional (seção 9.3). No momento é importante perceber que espécies diferentes podem estar bem intimamente ligadas entre si. Tais fatos trazem problemas para o conceito biológico de espécies, que define espécies como grupos capazes de reproduzir entre si: espécies são “grupos de populações naturais capazes de entrecruzamentos que são reprodutivamente isolados de outros grupos similares” (Mayr, 2005, p.192.). É preciso ressaltar que este conceito deve ser adimensional e atemporal, ou seja, deve independer do tempo e do espaço: indivíduos que poderiam reproduzir entre si, mas não conseguem ou porque estão muito distantes no espaço ou porque viveram em épocas diferentes são considerados da mesma espécie. 9 Algumas salamandras californianas do gênero Ensatina são também um exemplo. Outros exemplos são algumas espécies de caracóis do Gênero Partula, na ilha de Moorea, no Pacífico, e a toutinegra Phylloscopus trochiloides, na Ásia Central. Cf. Ridley, 2006, p.414. 55 Mesmo assim este conceito tem problemas: em primeiro lugar, ele não diz muita coisa sobre o número gigantesco de espécies com reprodução assexuada. Além disso, mesmo nas espécies sexuadas, muitas espécies diferentes se reproduzem entre si, como no caso de árvores que se reproduzem por dispersão de seus gametas no ar ou através de insetos não plenamente especializados10. Tal reprodução entre espécies não está restrita às plantas. Podemos encontrá-las até nos mamíferos: leões e tigres, por exemplo, podem se reproduzir. Há documentação sobre a reprodução de lobos cinza e coiotes na natureza, mas são raras (cf. Mayr, 1998). Muitos outros animais podem fazer o mesmo e, em alguns casos, a cria é perfeitamente fértil. Normalmente isso não acontece na natureza e, quando acontece, a cria é logo morta por ser mal adaptada. Um outro caso característico do tipo de relação que as diferentes espécies tem uma com a outra é a especiação por poliploidia. Em pouquíssimas palavras o que acontece é um erro na formação do gameta que o deixa com um número maior de cromossomos. O número de cromossomos do gameta é duplicado, triplicado etc. O indivíduo que nasce com este número maior fica impedido de entrecruzar com os que têm o número “normal” de cromossomos. Caso ele consiga entrecruzar, a cria será híbrida e será estéril. Isto causa uma barreira de entrecruzamentos entre os indivíduos “normais” e os indivíduos com mais cromossomos. Mas ele poderá se reproduzir normalmente com outros indivíduos poliplóides. Criada esta barreira reprodutiva, estes dois grupos, o “normal” e o poliplóide, podem, segundo o conceito biológico de espécies, ser considerados como duas espécies distintas. O mais interessante ainda é que a especiação por poliploidia não só é bem documentada como também é muito comum. Nas palavras de E. O. Wilson: A poliploidia é responsável pela origem de quase metade das espécies vivas de plantas floríferas e de um número menor de espécies de animais (Wilson, 1994, p.79). Temos, então, um evento que pode ser entendido como “mais do mesmo”, ou seja, um maior número dos mesmos cromossomos, causando a especiação. A poliploidia é inclusive utilizada para “fabricar” espécies artificialmente. O procedimento é simples: cruzam-se duas espécies distintas, mas relacionadas, 10 Um bom exemplo são os carvalhos (gênero Quercus). Cf. E. Wilson, 1994, p.56. 56 normalmente de plantas, criando um híbrido infértil. Um composto químico chamado colchicina restaura a fertilidade do híbrido justamente causando nele a poliploidia e, a partir deste momento, este híbrido pode cruzar exclusivamente com outros híbridos criados como ele. Temos, assim, uma nova espécie. A primeira espécie criada artificialmente por poliploidia foi a planta Prímula kewensis criada através do cruzamento da P. verticillata com a P. floribunda (cf. Ridley, 2006, p.76). 1.3.3 Uniformitarianismo e Registro Fóssil Até o presente momento todas estas evidências trataram de variações na mesma espécie, como no caso dos cães, ou de espécies intimamente relacionadas, como no caso da prímula. Embora estas relações próximas já devessem ser o suficiente para mostrar a relação íntima entre as espécies e a força da seleção quando aplicada dentro de uma população variada, sempre resta ao crítico da evolução dizer que estamos só mostrando a criação de variações e nunca de verdadeiras espécies. O erro do crítico é achar que existe alguma diferença essencial entre variedades e espécies. Como já foi dito, o próprio Darwin deixou claro que tal diferença não existe, criando assim as bases do chamado pensamento populacional. A idéia básica é que estas pequenas diferenças observáveis durante o período de vida de um homem podem aumentar muito se lhe for dado o tempo. Tal idéia convencionou-se chamar de Uniformitarianismo. Este diz que os mesmos processos que o homem observa estão atuantes quando este não observa, até mesmo quando o homem sequer existia. Nas palavras de Ridley: Esse princípio não é peculiar à evolução. Ele é utilizado em toda geologia histórica. Quando a ação persistente da erosão de um rio é utilizada para explicar a escavação de desfiladeiros profundos, o princípio racional é, de novo, o uniformitarianismo (Ridley, 2006, p.77). Um modo de demonstrar que a relação entre as mais diferentes espécies é, em linhas gerais, a mesma relação que se dá entre as duas espécies de gaivotas anel é através do estudo de fósseis. Os fósseis nos dão muitas evidências da 57 evolução. A principal delas é a gradualidade crescente da evolução11. Por crescente gradualidade queremos dizer que os seres mais simples costumam vir antes dos mais complexos e, nos raros casos onde é o oposto que acontece, é perfeitamente possível compreender este processo como uma simplificação de um ser que não necessitava mais da sua complexidade. De maneira mais intuitiva temos a famosa frase de Haldane de que deixaria de acreditar na evolução se alguém lhe mostrasse um coelho fóssil pré-cambriano (cf. Ridley, 2006, p.88). O motivo disso é que coelhos são mamíferos e não poderiam ter sido formados antes dos anfíbios e répteis. Outra evidência fóssil da evolução são os estágios intermediários entre peixes e anfíbios e entre répteis e mamíferos. Nos dois casos as evidências fósseis são muito detalhadas e mostram claramente um número grande de formas transicionais entre elas. O surgimentos dos mamíferos é, inclusive, “a mais bemdocumentada de todas as principais transições na evolução” (Ridley, 2006, p.563). Esta é também uma das mais interessantes, pois era usada como argumento contrário a evolução. Acontece que uma diferença crucial entre mamíferos e répteis é que ossos que faziam parte da mandíbula dos répteis foram reduzidos de tamanho e passaram a fazer parte do ouvido dos mamíferos (passando a ser a bigorna e o martelo). A crítica óbvia a ser feita aqui é que um ser entre os répteis e os mamíferos não teria uma mandíbula funcional, já que as mandíbulas dos dois funcionam de maneira muito diferente. No entanto, foram encontrados fósseis dos chamados “répteis tipo mamíferos” que tinham as duas formas de articulação mandibular! Isso mostra como é possível passar de uma forma à outra sem que o intermediário seja não-funcional. Um caso semelhante mais recente de uma crítica à evolução que acabou virando um sucesso da mesma foi o da evolução dos cetáceos (mamíferos marinhos) relatada por Gould (cf. Gould, 1997, p.431 em diante). 11 O Equilíbrio Pontuado de Gould será tratado no próximo capítulo, onde pretendemos mostrar que ele não é anti-gradualista. 58 1.3.4 Homologias e Analogias Dentre as evidências mais comuns e mais conhecidas da evolução estão as homologias e as analogias. As homologias são estruturas semelhantes com funções algumas vezes bem diferentes em diversos animais. As analogias são também estruturas semelhantes, mas com a mesma função em animais bem diferentes. A homologia mais comum, e que também foi citada por Darwin, é a dos membros de todos os tetrápodes que são basicamente construídas através dos mesmos ossos (cf. Darwin, 2004, p.498). Nisto se incluem as patas das rãs, dos lagartos, dos mamíferos, incluindo braços e pernas dos homens, as asas dos morcegos, os membros dos cetáceos e até as asas das aves. Todas elas têm estruturas extremamente parecidas sendo construídas basicamente pelo mesmo modelo fundamental. O que isto indica é que todas têm um mesmo ancestral comum, a saber, o primeiro tetrápode que ainda vivia na água e usava seus quatros membros para nadar, como o Acanthostega, e só depois o utilizou para andar, como o Ichthyostega. Há ainda homologias mais ubíquas como o código genético que é basicamente o mesmo em todos os seres vivos indicando que todos têm uma origem comum. E há também homologias mais restritas como as encontradas entre os homens e os chimpanzés. As homologias nos indicam que tais seres têm o mesmo ancestral comum, do contrário não há motivos para compreender porque suas estruturas são tão semelhantes. Isto fica ainda mais claro no caso de órgãos vestigiais, que são estruturas sem nenhuma utilidade conhecida e que só estão presentes por causa da ancestralidade comum. Este é o caso da pelve das baleias e dos pequenos membros traseiros de algumas cobras que não são utilizados para locomoção. No caso do homem temos o apêndice que parece ter como única “utilidade” fazer com que soframos quando temos crises de apendicite e o cóccix que parece ter como única “utilidade” quebrar quando caímos sentados. Talvez o exemplo mais claro de uma homologia desnecessária seja o nervo laríngeo recorrente (cf. Ridley, 2006, p.310). Ele surgiu primeiro nos peixes e nele segue em uma rota direta do cérebro até a laringe passando pelo coração. Mas como todos os tetrápodes são descendentes deste mesmo peixe, eles têm o mesmo nervo seguindo a mesma rota. No caso da girafa isto chega ao absurdo: este nervo 59 sai do cérebro, desce por todo o seu pescoço, dá uma volta no coração e depois sobe o pescoço de novo até a laringe! Ela chega a ter 3 a 4,5 metros a mais de nervo do que de fato precisaria em uma rota direta (cf. Ridley, 2006, p.83). O nervo laríngeo recorrente é o que pode ser chamado de um caso clássico de um acidente histórico congelado. Não há nenhum motivo adaptativo relevante para ele ser assim, simplesmente aconteceu de sermos descendentes de um animal com uma certa configuração anatômica difícil de ser modificada. Algo muito semelhante acontece com o cordão espermático dos mamíferos. Este, que saí dos testículos dos homens e se liga a uretra, poderia percorrer um caminho bem simples e direto, ao invés disso ele faz uma espécie de laço dando a volta no osso púbico. O motivo é que tanto os testículos quanto os ovários são descendentes diretos das gônadas dos peixes que ficavam localizadas perto do fígado. Por este motivo, durante o desenvolvimento embrionário do homem, os testículos têm que descer para o saco escrotal criando, assim, uma fraqueza na parede abdominal que é a causadora de hérnias. Em outras palavras, a resposta de por que os homens podem ter hérnia escrotal é porque somos parentes dos peixes! Há ainda um caso em especial onde as homologias são constatadas de maneira mais marcante e também muito conhecido que é no estudo da embriologia. Este estudo nos mostra que as fases iniciais do desenvolvimento embriológico de seres superiores é muito semelhante ao desenvolvimento embriológico de seres dos quais ele descende. Algumas vezes tão semelhante que chega a ser difícil distinguir um embrião do outro. Além disso, algumas estruturas chegam a aparecer e depois desaparecer nos embriões, como, por exemplo, a cauda e as brânquias nos homens. São fases no desenvolvimento embrionário que parecem desnecessárias se não forem compreendidas à luz da evolução. Estas fases se mantêm lá simplesmente porque não existem grandes pressões evolutivas para que elas deixem de existir e, principalmente, porque há restrições no desenvolvimento embrionário dos seres que não permitem qualquer modificação. Tais restrições foram chamadas de canalizações e o seu próprio surgimento pode ser visto como uma adaptação evolutiva. O motivo é que o sistema embrionário é muito delicado dependendo de diversos fatores que atuam ao mesmo tempo, sendo que uma pequena mudança pode gerar uma grande “aberração” fenotípica. Por este motivo o ritmo de mudanças no desenvolvimento embrionário tende a ser 60 lento e normalmente se realiza nas fases finais, onde as mudanças têm uma possibilidade menor de serem catastróficas. Além das homologias temos também as analogias. Nestes casos as semelhanças entre as diferentes espécies não é devida ao parentesco comum e sim a ocupação de um nicho semelhante. Espécies que têm um mesmo papel dentro de um eco-sistema tenderão a ter formas anatômicas semelhantes, mesmo tendo sido originadas de espécies completamente diferentes. A analogia se torna uma evidência da evolução ao mostrar um tipo de “repetibilidade” da evolução. É a evolução levando a um ponto semelhante dois seres com histórias iniciais diferentes. O exemplo mais simples que podemos pensar é o de dentes e/ou garras afiadas nos predadores. Existem diversos tipos de predadores, mas quase todos têm esta característica comum, mesmo os que estão longamente separados como tubarões, tiranossauros e tigres. O motivo para que seres tão diferentes desenvolvam estas mesmas características é bastante óbvio. Muitos são os exemplos de analogia, Dawkins nos dá uma lista deles explicando um por um, são eles: peixes-elétricos e enguias elétricas, o lobo-datasmânia e o lobo, a toupeira e a “toupeira-marsupial”, formigas e cupins, o tamanduá e o Myrmecobius, etc (cf. Dawkins, 2001, p.149 em diante). Todos são exemplos de animais com origens diferentes, mas com adaptações semelhantes por ocuparem nichos semelhantes. Eles indicam justamente o poder da seleção natural para moldar a forma dos seres vivos em sua evolução. Todas as evidências da evolução têm se multiplicado e muitas vitórias foram conquistadas, as principais ocorreram justamente quando algo que é agora uma evidência da evolução era antes uma “prova” de que ela não era possível. Mas a evolução biológica já está muito bem fundamentada para não mais se abalar quando surge uma “nova prova” dizendo que descobriu algum sistema irredutivelmente complexo que não poderia ser explicado pela seleção natural12. No entanto, o que nos interessa aqui são os tipos de provas necessárias para mostrar a existência de um verdadeiro processo evolutivo. 12 Muitos já foram tais “sistemas irredutíveis” que se mostraram, com o tempo, plenamente redutíveis. O mais clássico é, sem dúvida, o olho, mas vários já foram propostos. Tal crítica existia antes mesmo do surgimento do darwinismo e vem sendo superada desde então. No entanto, os críticos levam sempre uma vantagem desonesta, pois é muito mais fácil apresentar um problema do que resolvê-lo. A resolução normalmente exige décadas de pesquisa e novas descobertas, enquanto este processo se desenrola os críticos têm seus “15 minutos de fama”. Michael Behe é o exemplo mais recente de tais tentativas fracassadas, que remontam ao reverendo Paley (1743 – 1805). 61 As analogias e homologias nos explicam os padrões do mundo orgânico através de explicações evolutivas, seja na permanência de um traço antigo, provando a ancestralidade comum, como no caso das homologias, seja no surgimento repetido do mesmo traço, mostrando a força da seleção, como no caso das analogias. Espécies-anel e a poliploidia nos mostram que não há uma real separação entre variações e “espécies verdadeiras”, mostrando a continuidade do mundo natural. A seleção artificial e inconsciente nos mostra o quão a seleção natural nos é próxima, exibindo como pequenas variações podem ser acumuladas. O uniformitarismo é o princípio que nos permite ir além das pequenas variações que observamos de fato e, junto com o registro fóssil, permite mostrar o longo caminho através de espécies intermediárias, e muitas vezes extintas, que tivemos que percorrer para chegar às espécies atuais. 1.4 Darwin contra Lamarck? No ensino do Darwinismo, convencionou-se contrapor a teoria de Darwin à de Lamarck. Lamarck seria o principal defensor da teoria da herança dos caracteres adquiridos. O exemplo clássico seria o da girafa: para Lamarck as girafas tinham os pescoços curtos e os esticavam para alcançar os galhos mais altos, neste processo ficaram com o pescoço mais longo e passaram esta sua característica adquirida aos seus descendentes. Já no darwinismo, características adquiridas não seriam passadas: as girafas já seriam variadas, umas com o pescoço mais longo e outras com o pescoço mais curto, as com pescoço mais longo foram selecionadas porque eram mais capazes de sobreviver e, deste modo, deixaram mais descendentes também de pescoço longo. Este quadro, embora muito instrutivo, não é plenamente correto. Há o motivo histórico de que Darwin de fato acreditava na regra do “uso e desuso” de Lamarck, embora não considerasse este princípio como muito relevante na história da evolução (cf. Gould, 2003, p.373 & cf. Darwin, 2004, p.67). FreireMaia chega até a dizer que “Darwin era Lamarckista” (1995, p.36). Esta é, com certeza, uma afirmação exagerada, mas pode ser compreendida como mais um 62 sintoma de Darwin por não ter desenvolvido uma boa teoria da hereditariedade, como veremos a seguir. Mas não é a visão histórica que nos interessa, e sim a “visão recebida”. Nesta, a oposição entre Darwin e Lamarck se deve principalmente à obra de August Weismann. Foi ele que demarcou uma forte separação entre a linhagem germinativa e a linhagem somática. A linhagem germinativa são as células sexuais, a linhagem somática são todas as outras células do corpo. Na reprodução, só a linhagem germinativa passa para os descendentes, por isso só as mudanças nestas linhagens são hereditárias. Esta separação criada por Weismann acabou sendo considerada como o “dogma central” do darwinismo. Até onde sabemos, as considerações de Weismann continuam corretas, mas é preciso ressaltar alguns pontos importantes para saber até onde ela é correta e porque ela é correta. Uma primeira observação é que a separação entre linhagem germinativa e linhagem somática só faz verdadeiro sentido para a reprodução sexuada. Organismos unicelulares, por exemplo, que se reproduzem por divisão celular não podem ter suas duas linhagens separadas. Além disso, muitos organismos pluricelulares podem se multiplicar assexuadamente através da embriogênese somática. Este tipo de reprodução é até bastante comum nas plantas e nós o presenciamos todas as vezes em que quebramos um galho de uma planta para plantá-la em nosso quintal. Neste caso temos uma parte da linhagem somática de uma planta dando origem a uma nova planta. Mas é claro que neste caso as células germinativas desta nova planta seriam idênticas às células germinativas da planta original. Não teríamos, então, uma verdadeira herança de caracteres adquiridos. No entanto, tal hipótese não foi completamente descartada, Ridley nos apresenta o trabalho de Whitham e Slobodchikoff dizendo que: [eles] argumentam que, em plantas, a seleção entre linhagens celulares permite que o indivíduo se adapte às condições locais mais rapidamente do que seria possível com a herança estritamente weismannista (Ridley, 2006, p.324). Há, então, a possibilidade de uma herança não-weismannista não só em organismos unicelulares como também em pluricelulares. O que causaria isso seria uma melhor adaptabilidade ao meio, principalmente a um meio em estado de mudança13. No entanto, existem grandes dificuldades com a herança de caracteres 13 Maynard-Smith também comenta sobre um estudo com implicações semelhantes (cf. 1993, p.3) 63 adquiridos e a principal delas é apontada claramente por Dawkins: a relação entre o genótipo e o fenótipo não é uma relação bi-condicional um-a-um. Para deixar mais claro, Dawkins nos fala sobre a diferença entre uma receita e uma planta baixa. A planta, como aquela feita por arquitetos, representa o original de maneira simples: cada parte da planta se refere a uma parte do original. Se quisermos, por exemplo, retirar uma janela do original, podemos simplesmente apagá-la da planta. Já a receita não tem esta relação com o seu produto final. É claro que, se mudarmos a receita, mudamos o produto, mas a relação aqui não é simples, não é possível modificar a receita de modo que o produto final seja um bolo com uma fatia a menos, por exemplo. A relação entre o genótipo e o fenótipo é semelhante a relação entre uma receita e seu produto final. “Não existe um mapeamento ponto a ponto entre as partes do corpo e as partes do DNA” (Dennett, 1998, p.336). Por isso, uma mudança no fenótipo não pode ser facilmente transcrita no genótipo. Em outras palavras, a relação entre genótipo e fenótipo é uma relação de mão única que vai do genótipo para o fenótipo e não vice-versa. O mecanismo necessário para fazer esta viagem “na contramão” teria que ser muito complexo: o organismo teria que ser capaz de reconhecer em si mesmo quais são as boas modificações adquiridas, pois de outro modo seus filhos acabariam herdando cicatrizes, doenças, problemas de velhice etc. e teria também que saber exatamente em que parte do DNA ele deveria realizar suas modificações, e como deveria modificá-la para que seus descendentes já nasçam melhor adaptados. Nem é preciso dizer que tal mecanismo seria muito complexo e é completamente desconhecido pela ciência. Mas dizer que ele seja desconhecido não é o mesmo que dizer que ele não exista e, mais ainda, não é o mesmo que dizer que ele não poderia existir. Nas palavras de Dawkins: Isso não quer dizer que em parte nenhuma do universo poderia existir algum sistema de vida estranho no qual a embriologia fosse pré-formacionista, uma forma de vida que realmente se desenvolvesse segundo uma ‘planta genética’ e que de fato pudesse, portanto, herdar características adquiridas (Dawkins, 2001, p.434). Podemos ir além de Dawkins e dizer que se tal ser vivo surgisse em nosso mundo ele muito provavelmente seria selecionado, pois seria capaz de se adaptar com muito mais rapidez do que os seres que dependem de variação já existentes e de mutações ao acaso. Ou seja, o lamarckismo poderia se tornar verdadeiro 64 através de um processo darwinista de seleção natural! Tal espécie lamarckista não refutaria o darwinismo. Cabe lembrar, inclusive, que o fenômeno da transcrição reversa aponta para esta possibilidade. Dentro do “dogma central da biologia” teríamos que o DNA é transcrito em RNA, mas não vice-versa. No entanto, os chamados retrovírus são capazes de “burlar” esta lei, pois transcrevem o seu RNA no DNA do seu hospedeiro que, a partir daí, passam a produzir novos vírus de DNA (cf. Futuyma, 2002, p.480). Seria um erro chamar este fenômeno de lamarckista, mas ele aponta para esta possibilidade dentro do nosso próprio mundo. Dito isso, fica claro que a seleção natural trabalha, em nosso mundo, com mutações de DNA surgidas ao acaso, mas isso não tem que ser obrigatoriamente assim. Ela poderia trabalhar perfeitamente bem com mutações direcionadas transcritas reversamente (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.33). Se este fosse o caso, poderíamos dizer que tal mundo funcionaria de uma maneira lamarckista-darwinista. Mas compreender isso só é possível se compreendermos que esta dicotomia entre Darwin e Lamarck não é uma verdadeira oposição e sim um modo didático de explicar que a seleção natural poderia funcionar de duas maneiras, mas só uma delas de fato acontece em nosso mundo. Uma vez diluída esta oposição radical entre Darwin e Lamarck é comum ficar uma certa confusão do “que é, então, ser um darwinista?”, pois a teoria de Darwin parece ter sido construída em oposição a de Lamarck. No entanto, como já vimos ao separar, junto com Mayr, a teoria de Darwin em cinco teorias distintas, a crença que unia os primeiros darwinistas não era mesmo a evolução por seleção natural e sim a crença mais fundamental que os fenômenos do mundo orgânico deveriam ser explicados de maneira naturalista e sem skyhooks. É esta a crença que deve ser mantida como o elo fundamental entre todos os darwinistas. Vemos então que as explicações de Darwin e Lamarck são duas explicações que podem existir, inclusive juntas, em um mesmo mundo, desde que não se refiram a um mesmo organismo. Um organismo lamarckista poderia até surgir e ser selecionado pela evolução darwinista. Por isso acusar um processo de lamarckista não é o mesmo que acusá-lo de anti-darwinista. Os processos são diferentes, as estruturas que cada um exige também são diferentes, mas um pode dar a origem ao outro e vice-versa. Existe uma separação entre os dois, mas não uma dicotomia. 65 1.5 Evolução Epigenética: um pouco mais além dos genes Um dos desenvolvimentos mais interessantes na biologia contemporânea é o estudo das heranças não-genéticas. A herança memética claramente cabe neste grupo, mas só será tratada no terceiro capítulo. Uma das pesquisadoras mais importantes deste campo, Eva Jablonka, nos fala de quatro tipos de hereditariedade: genética, epigenética, comportamental e simbólica. Ao frisar estes novos tipos de hereditariedade ela pretende criticar a visão “centrada nos genes” como a apresentada por Dawkins. Ela chega até a propor um retomada do Lamarckismo! Esta questão interna da biologia será tratada apenas tangencialmente aqui. No entanto, como já vimos na seção anterior e veremos rapidamente nesta seção, a oposição entre o Lamarckismo e o Darwinismo não é tão grave quanto a que se apresenta na “visão recebida” da biologia. A própria Jablonka afirma que a teoria de Darwin “não está ligada a nenhum mecanismo particular de hereditariedade ou de causa da variação” (Jablonka & Lamb, 2005, p.16. Minha tradução). Além disso, vários são os significados do termo “lamarckismo”. Pode se falar do uso e desuso, da herança de caracteres adquiridos, do progressimo e do instrucionismo. Em um sentido que acabamos de comentar, mas que voltaremos a ver aqui, não é absurdo ser darwinista e lamarckista! Há que se ressaltar também que um estudo mais detalhado da visão “centrada nos genes”, principalmente de Dawkins e Dennett, é, na verdade, uma visão “centrada nos replicadores”. De modo que, se algo é um replicador, seja ele genético, epigenético, comportamental ou simbólico, faz parte desta visão mais ampla. A grande inovação de Jablonka, então, não é questionar a importância do replicador, e sim qual é este replicador. Ela nos dá bons motivos para pensar na célula como replicadora, pois o DNA só pode se replicar através de estruturas celulares que também são herdadas dos pais. “O processo de desenvolvimento como um todo reconstrói-se a si mesmo geração após geração através de numerosos caminhos causais independentes” (Sterelny & Griffiths, 1999, p.95. Minha tradução) Deste modo, veremos que muitas críticas propostas por Jablonka não são direcionadas a ninguém em específico, mas sim a uma visão confusa e de senso 66 comum, principalmente provinda da mídia, de qual seria o papel dos genes na evolução e no comando do comportamento. Sua argumentação contra esta visão dos genes como a única forma de hereditariedade se mostra correta. Uma brilhante defesa do darwinismo universal e algo que a memética muito lhe agradece! Podemos ver isso claramente quando Jablonka diz que será crucial para os argumentos que se seguirão algo que só poderia ser chamado de darwinismo universal, embora ela não o nomeie assim: Embora não estejamos defendendo isso, queremos deixar claro que é possível ser um excelente Darwinista sem acreditar na lei de Mendel, nos genes mutantes, nos códigos de DNA, ou em quaisquer dos demais dispositivos da biologia evolutiva moderna. É por isso que a teoria de Darwin pode ser, e é, tão amplamente aplicada, seja em aspectos da economia, da cultura, e daí por diante, bem como a evoluções biológicas (Jablonka & Lamb, 2005, p.12. Minha tradução). Tal afirmação é o centro da teoria de Dawkins. Cabe, então, perguntar quais são as diferenças. Elas de fato existem, e muitas vezes são irreconciliáveis, mas elas, como veremos, não dizem respeito a abordagem mais ampla do darwinismo universal e que é justamente o que nos interessa aqui. Na verdade, são questões mais específicas de duas visões diferentes sobre a biologia. Dawkins não perde uma oportunidade de deixar claro que são os genes é que podem ser chamados de replicadores, mas Jablonka nos lembra que a informação genética só existe no meio celular, deste modo, “a habilidade de replicar-se não é uma propriedade do DNA, mas do sistema celular” (Jablonka & Lamb, 2005, 49. Minha tradução). Uma análise mais específica nos mostra que há sim uma clara discordância, mas de uma perspectiva geral, que nos interessa aqui, esta é só mais uma prova de que a evolução pode se dar seja lá com que replicador for. Jablonka de fato nos traz evidências de processos que normalmente não seriam esperados dentro da “visão recebida” da evolução, pois mostram que “a geração de mutações e outros tipos de variação genética não é um processo totalmente desregulado” (Jablonka & Lamb, 2005, p.78. Minha tradução). Vários exemplos de mutações genéticas que não parecem obedecer a regra de que estas se dá completamente ao acaso são apresentadas. Em primeiro lugar temos o que foi chamado de Induced global mutation. Sabe-se que populações diferentes da mesma espécie podem ter taxas de recombinação diferentes. Mas algumas espécies parecem ser capazes de aumentar a sua taxa de recombinação quando estão sob estresse, o que aumenta a chance do 67 surgimento de uma variação fenotípica útil. Experimentos de Barbara McClintock mostraram que eles fazem isso alterando o sistema que repara o DNA (cf.Jablonka & Lamb, 2005, p.88). Mas neste caso qualquer tipo de mutação pode surgir em qualquer lugar do genoma. É um caso de “tente de tudo, na esperança de que alguma coisa vai funcionar” (Jablonka & Lamb, 2005, p.93. Minha tradução). No entanto, este processo pode muito bem não ser uma adaptação, mas somente um mal funcionamento nas células justamente por estarem em um período de estresse. Um outro processo é a local hypermutation, onde as mudanças são produzidas justamente no lugar onde são úteis. Por exemplo, a bactéria Haemophilus influenzae, que causa meningite, tem áreas dos seus genes que mudam muito frequentemente, conhecidas no jargão como mutational hot spot. A parte do genoma sujeita a muitas mudanças é a área que codifica as estruturas da superfície de tal bactéria. Como a superfície está sempre mudando ela, a linhagem, é claro, e não uma bactéria individual, se torna capaz de se proteger de defesas imunológicas e mudanças no ambiente (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.95). Um outro exemplo são genes que codificam o veneno de algumas lesmas e cobras. Com estas constantes mudanças elas evitam que presas e predadores criem imunidade ao seu veneno. No entanto estas mudanças estão sempre acontecendo, ou seja, não estão diretamente ligadas a fatores ambientais. São uma adaptação ao meio ambiente, mas mudanças neste meio não ocasionam mudanças no genoma. Um processo mais intrigante é o chamado Induced local mutations. Neste caso há um aumento de 5 ou até 10 vezes na taxa de mutação de um local específico no genoma, sem afetar todo o genoma como no caso da Induced global mutation. Um exemplo é a E. coli. Muitas bactérias já têm normalmente um sistema para suportar a longa falta de suprimentos. Alguns genes normalmente ativos são desativados nestas situações e vice-versa. É um sistema de defesa que surgiu através da evolução por seleção natural darwinista. Dentre os genes que estavam desativados, e que se ativaram com a escassez, estão alguns que produzem certos aminoácidos importantes mas que as bactérias não conseguem mais encontrar no ambiente. No caso deste gene não funcionar direito, sua taxa de mutação, e só a sua, se torna elevada (cf.Jablonka & Lamb, 2005, p.98). Assim temos um aumento da taxa de mutação justamente onde ela é mais importante. O último caso é o que ela chamou de Induced regional mutations. Não se sabe muito sobre este tipo e nem se este pode ser realmente diferenciado dos 68 precedentes, mas foi encontrado em organismos multicelulares. Neste caso, quando, por exemplo, a planta de mostarda Brassica nigra leva um choque térmico, ela perde algumas das muitas copias de DNA que codificam o RNA dos ribossomos. Sabe-se que esta mudança é passada por gerações, mas não se sabe sequer se isto é uma adaptação. Estes são os únicos processos “novos” sobre mutações genéticas que Jablonka comenta. Surge aqui o problema se estas mudanças podem ser consideradas Lamarckistas, e a resposta parece ser claramente que não. O problema fundamental aqui é exatamente o que devemos chamar de lamarckista. Dawkins, justamente quem ela deveria estar atacando, e que chegou a falar que “comeria seu chapéu” se o lamarckismo fosse provado verdade, nos diz: Chamamos de Lamarckismo a teoria de que a linhagem de genes não é isolada, e que os aperfeiçoamentos ambientais impressos nela podem moldá-la diretamente (Dawkins, 1999, p.167. Minha tradução). Os exemplos mostrados por Jablonka parecem de fato indicar que o genoma não está de todo insulado do seu meio ambiente, mas a verdadeira questão que torna um processo lamarckista é se estes melhoramentos genéticos foram dirigidos por este ambiente. Ou seja, não basta que o ambiente influencie a probabilidade de mutação, ele deve, de algum modo desconhecido, instruir esta mutação. Um gene deveria mudar diretamente para a maneira específica e necessária para um determinado ambiente para falarmos de lamarckismo. A própria Jablonka mostra que este não é o caso quando ao invés de dizer que tais mutações são dirigidas ela prefere dizer que são induzidas por fatores ambientais (cf. Jablonka& Lamb, 2005, p.7). Para que possamos chamar algo de lamarckista a relação entre os genes e as proteínas deve funcionar na direção inversa, ou seja, o surgimento de uma determinada proteína adaptativa deve dirigir os genes de modo que um novo gene para aquela proteína passe a fazer parte do genoma. Isto sim quebraria o que foi chamado de Dogma Central da Biologia. Todos estes processos apresentados por ela são perfeitamente naturais e não indicam uma mutação dirigida específica de modo que se faça o caminho inverso. Jablonka concorda que tal inversão não acontece, mas permanece trazendo à tona o termo “lamarckismo” somente porque mudou seu significado para: pessoas que acreditam que mudanças adaptativas podem ser geradas por “palpites 69 inteligentes em resposta às condições de vida” (Jablonka & Lamb, 2005, p.361. Minha tradução). Mas é claro que aí todo o problema está em quão inteligentes estes palpites são! Palpites muito inteligentes são mudanças direcionadas e, deste modo, plenamente lamarckistas no sentido que usamos aqui. Já palpites muito pouco inteligentes são palpites aleatórios e fazem parte da “ortodoxia darwinista”. Entre estes dois extremos encontramos Jablonka. Mas além da questão do lamarckismo, há também o problema da refutação do “centrismo do gene” que Jablonka começa a apresentar ao falar das formas de herança celulares, mas não genéticas, ou seja, da interessante herança epigenética. Sabe-se que muitas das diferenças fenotípicas não são genéticas. As células do nosso corpo, por exemplo, têm em sua maioria os mesmos cromossomos, mas mesmo assim contamos com diferentes grupos celulares especializados. São as mudanças epigenéticas que dão conta desta capacidade. A mula e o jumento, por exemplo, são geneticamente idênticos, mas fenotipicamente muito diferentes (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.139). O que vem sendo descoberto recentemente é que existe também uma herança epigenética que pode servir para evolução e seleção natural. Aqui também são quatro os tipos de herança epigenética que Jablonka distingue. Existe o chamado Self-sustaining feedback loops que existe em todas as formas de vida já estudadas e é bem simples: se uma certa proteína ativa um determinado gene, o produto deste gene pode funcionar como regulador deste mesmo gene, ou seja, pode continuar garantindo que tal gene permaneça ativo. Na divisão celular, se as células filhas mantiverem um alto nível de proteína provindo da célula mãe, elas também terão, por este motivo, o seu mesmo gene ativado. “As células filhas podem herdar padrões de atividade dos genes presentes na célula mãe” (Jablonka & Lamb, 2005, p.119. Minha tradução). É um processo que se sustenta e é passado de geração em geração porque quando a célula se divide as células filhas recebem não só o DNA, mas outras estruturas e proteínas que faziam parte da célula mãe. É um processo simples, com só duas variações: ativo ou não, mas que já mostra algo que uma célula recebe da outra e que não depende só dos genes. Deste modo, por exemplo, uma célula do fígado que se reproduza origina duas outras células do fígado, pois mantém ativa as regiões do genoma que codificam as estruturas necessárias. 70 Um outro caso mais interessante é a Architetural memories. Neste caso uma versão alternativa de uma estrutura celular é herdada porque estruturas guiam o processo de construção de estruturas semelhantes nas células filhas (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.121). Um dos casos mais conhecidos é dos cílios do Paramecium. Cílios são apêndices parecidos com cabelos que, no caso do Paramecium, envolvem a célula e funcionam, dentre outras coisas, para a locomoção. Tais cílios têm um padrão de movimento que pode variar entre diferentes Paramecium, e tal padrão de comportamento é herdado. Se uma mudança neste padrão for induzida, ela será herdada pelos seus descendentes. Há também a memória cromossômica, sendo que seu principal exemplo é a chamada metilação. O DNA é enrolado em cromossomos e, como era de se esperar, o modo como ele é compactado, o quão denso e acessível cada parte dele é, influencia em quais genes serão ativados. Mais interessante ainda, a metilação pode influenciar a probabilidade de um gene sofrer mutação (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.247). Entender o funcionamento deste processo é uma das grandes chaves para entender o desenvolvimento embrionário e celular. No caso da metilação, pequenos grupos de metil (CH3) ficam diretamente ligados às bases de nucleotídeos. Normalmente, quanto mais metilada for um gene, menor a probabilidade dele ser transcrito em uma proteína. De alguma maneira ainda não muito bem conhecida, a metilação parece impedir a transcrição. Mas o mais interessante é que “os padrões de metilação podem ser reproduzidos (ao menos nos vertebrados e nas plantas) porque eles pegam carona na replicação semiconservativa do DNA” (Jablonka & Lamb, 2005, p.129. Minha tradução). E assim como a replicação genética pode sofrer mutações, a cópia da metilação também pode variar, mas como no caso do DNA, há também um sistema para corrigir tais erros. O último processo apresentado por Jablonka foi chamado de RNA Interference. Um processo ainda bastante desconhecido onde tais RNAs silenciam determinados genes e são capazes até de mudar a metilação de certos genes, tornando-os ainda mais difíceis de serem transcritos. Mas talvez a sua principal característica é que ele não é só passado para as células filhas, ele pode migrar dentro do corpo, sendo capaz até de passar por diferentes tipos de células. Capacidades como estas levantaram a hipótese de que eles poderiam trabalhar como um sistema imune celular (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.135). Mas o mais 71 importante para o que está sendo tratado aqui é que ele é uma forma de herança celular não genética, ou seja, uma herança epigenética. Dawkins aceita a existência de informação epigenética, mas diz que, a rigor, as estruturas celulares são codificadas também no DNA. Ou seja, o DNA estaria na origem destas estruturas. Jablonka chega a concordar abertamente com isso (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.110), mas ressalta que sistemas adicionais de herança, mesmo que tenham como base fundamental o sistema genético, permitem que um tipo diferente de informação, não-genético, seja transmitido. É importante notar que as variações epigenéticas também causam efeitos fenotípicos que podem ser ou não adaptativos, ou seja, pode existir um processo evolutivo de seleção de variações sem nunca ter ocorrido nenhuma mudança genética. Além disso, as variações epigenéticas surgem em uma taxa maior do que as genéticas, podendo várias mudanças ocorrer ao mesmo tempo. E, talvez mais relevante, por estarem em contato direto com o ambiente e às vezes dependerem diretamente de fatores ambientais, como a presença ou não de uma determinada substância, tais mudanças “provavelmente ocorrem preferencialmente em genes induzidos a se tornarem ativos por condições novas” (Jablonka & Lamb, 2005, p.144. Minha tradução), aumentando, assim, a chance de uma variação benéfica. O que, por sua vez aumenta a velocidade da evolução não só aumentando a taxa de mutação como também diminuindo a probabilidade de mutações deletérias. 1.6 Mendel contra Darwin? Uma outra questão importante, não só para a história da biologia, mas para uma melhor compreensão do darwinismo, é a conturbada relação entre a seleção natural e as teorias da hereditariedade que durou praticamente desde o lançamento da Origem das Espécies até aproximadamente 1920, 1930. Ao lançar seu grande livro, Darwin sabia que uma das faltas mais graves que cometera era a falta de uma hipótese adequada da hereditariedade. Ele chegou até a comentar que “as leis que regulam a hereditariedade são geralmente desconhecidas” (Darwin, 2004, p.29). Logo antes deste comentário fez uma espécie de análise probabilística da 72 hereditariedade dizendo que, dado os fatos, a probabilidade nos força a aceitar a existência da hereditariedade mesmo que ainda não conheçamos as suas leis, ou seja, utiliza o argumento já apresentado da herdabilidade que diz que se os filhos se parecem mais com os pais do que com a média da população, então algo é herdável. Curiosamente por volta desta mesma época Mendel publica o seu famoso artigo sobre as ervilhas que, alguns anos mais tarde, fundaria o que hoje chamamos de genética. Não sabemos ao certo se Darwin chegou a conhecer o trabalho de Mendel, mas Mendel conhecia o trabalho de Darwin, tendo lido a Origem, e aceitado a teoria da evolução por seleção natural (cf. Freire-Maia, 1995, p.33). Sabe-se que o trabalho de Mendel, apresentado em 1865, não teve muito destaque. É comum ouvir que ele só foi citado doze vezes até o ano de 1900! Sabe-se também que Mendel mandou seu trabalho para várias pessoas, mas aparentemente não incluiu Darwin na sua lista. Sem uma boa teoria da hereditariedade Darwin recorreu ao que ele mesmo chamava de “teoria provisória da pangênese”, em suas próprias palavras: Segundo esta hipótese, toda unidade ou célula do corpo emite gêmulas ou átomos subdesenvolvidos que se transmitem à prole de ambos os sexos e se multiplicam por autodivisão. Esses átomos podem permanecer subdesenvolvidos durante os primeiros anos de vida ou durante sucessivas gerações e o seu desenvolvimento em unidades ou células, semelhantes àquelas das quais derivam, depende da sua afinidade e união com outras unidades ou células anteriormente desenvolvidas na devida ordem do crescimento (Darwin, 2002, p.271) As gêmulas, então, seriam criadas em todas as células do corpo e, através do sangue se dirigiriam para as células sexuais e se fixariam ali. Na fecundação haveria uma espécie de mistura entre as gêmulas dos progenitores e, no desenvolvimento do indivíduo elas se manifestariam nas células semelhantes às células das quais se originaram. Esta explicação de Darwin para a hereditariedade é tipicamente uma explicação para a herança de caracteres adquiridos. As gêmulas poderiam mudar na medida em que suas células somáticas mudassem. Como acabamos de ver, esta separação entre a hipótese de Darwin e de Lamarck não pode ser feita com muito rigor e a teoria da pangênese mostra isso com clareza. No entanto, o que nos interessa aqui é que a teoria da pangênese é uma teoria da mistura, uma teoria que é, inclusive, bastante aceitável na falta de um conhecimento das leis mendelianas da hereditariedade. 73 A razão para que as teorias da mistura sejam aceitáveis é que “de fato, os fenótipos de mães e pais reais freqüentemente se misturam na prole” (Ridley, 2006, p.62). No entanto, o que Mendel descobriu é que a mistura dos fenótipos não implica na mistura dos genes. Os genes podem agir como unidades discretas, mas ter o seu efeito de maneira contínua. Existem, é claro, genes discretos para efeitos discretos, como genes para a presença ou ausência de uma estrutura qualquer. No entanto, quando muitos genes influenciam um único traço fenotípico, conhecido pelo nome de poligenia, o caráter influenciado vai variar de maneira contínua. Isto fica ainda mais evidente se tal caráter tiver ainda um forte fator ambiental, como por exemplo, a nutrição do indivíduo ou a exposição ao sol. O exemplo mais comum de um caráter que é influenciado geneticamente e tem uma variação contínua é a altura e também a cor da pele (cf. Maynard-Smith, 1993, p.67). No entanto, por mais razoável que seja acreditar em uma teoria da mistura dada as evidências fenotípicas, tal teoria é extremamente nociva ao Darwinismo. Já na época de Darwin, o engenheiro escocês Fleeming Jenkin apresentou uma crítica importante contra a teoria da hereditariedade por mistura que praticamente mostrava que a evolução por seleção natural não poderia ocorrer deste modo. O motivo é simples: se a hereditariedade se dá deste modo, qualquer caractere tende a se diluir em uma população. Jenkin realmente mostrou que se a hereditariedade se desse por mistura, então o darwinismo poderia ser considerado como refutado. Para deixar este argumento mais claro, podemos imaginar uma população feita de frascos de tinta preta. Surge, então, uma variação que consiste em um indivíduo de tinta branca. No primeiro cruzamento entre este indivíduo branco e algum outro preto a prole teria um tom de cinza. Mas já no primeiro cruzamento deste novo indivíduo cinza com outro preto, o cinza se tornaria escuro e assim por diante até que a população toda chegasse em um cinza tão escuro que seria quase indistinguível do preto. Ou seja, a mistura tende para a homogeneidade da população (cf. Dawkins, 2005, p.125). A seleção natural não teria como selecionar um traço que se misturasse com outro qualquer. Em oposição a isso, a teoria mendeliana seria como se existissem cápsulas de tinta preta e branca: as cápsulas se misturariam, mas cada uma delas permaneceria da mesma cor. Só neste segundo caso a seleção natural poderia escolher qual cápsula estaria melhor adaptada. 74 Embora esta seja uma crítica importante à teoria de Darwin, a própria observação da natureza deveria mostrar que esta homogeneização não acontece de fato. Os fenótipos se misturam, mas não a ponto de criar esta uniformidade da qual falava Jenkin. Tal uniformidade deveria acabar com todo o tipo de variação, e a variação dentro e fora das espécies é justamente uma das constatações fundamentais de Darwin! A teoria “provisória” da pangênese acabou se mostrando bastante durável, pois um outro fato muito curioso da história das idéias evolucionistas é que mesmo com a redescoberta de Mendel ainda tivemos que esperar cerca de 20 anos até que a genética mendeliana fosse unida à evolução darwinista. O trabalho de Mendel foi redescoberto, aproximadamente no mesmo ano, a saber, 1900, por um pequeno grupo de biólogos, dentre os quais se destacava Hugo de Vries. Seria de se esperar, para quem se acostumou com a “visão recebida” do darwinismo, que tal redescoberta viesse com um fôlego de ar fresco, mas este não foi o caso. A interpretação comum do darwinismo feita na época é que ele estava comprometido com traços que variavam continuamente. Tal fato provavelmente se devia ao expresso gradualismo de Darwin. Mas a genética mendeliana mostrava uma típica variação discreta dos caracteres. Para os primeiros mendelianos como de Vries e William Bateson, este fato mostrava que a evolução operava através de saltos, o que significava que o lento gradualismo de Darwin estava errado. Os primeiros mendelianos se declaravam anti-darwinistas e diziam ter refutado o darwinismo (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.31)! Nas palavras de Futuyma: No começo do século vinte, a teoria da mudança evolutiva de Darwin estava em seu ocaso; ela era rejeitada não somente pelos geneticistas mendelianos, mas também por muitos paleontólogos que esposavam teorias ‘ortogenéticas’, ou direcionais (...) (Futuyma, 2002, p.10). No início do séc. XX, por causa do saltacionismo de De Vries e outros, a teoria da evolução era frequentemente declarada morta. Tal discussão só foi resolvida entre as décadas de 20 e 30 por J.B.S. Haldane, S. Wright e R.A. Fisher. Foi Fisher que, unindo as duas teorias, mostrou como a evolução pode ser compreendida através de pequenas mudanças genéticas. Já tivemos a oportunidade aqui de mostrar a idéia fundamental de Fisher através da analogia com um microscópio que se está querendo corrigir o foco (capítulo 1). Não muito 75 tempo depois, na década de 40, uma nova síntese ocorreu. Esta uniu a síntese chamada por Mayr de fisheriana, que uniu Mendel e Darwin, mas utilizando ainda exemplos simples e restritos e sem ser capaz de lidar com a macroevolução e com a origem da biodiversidade, com uma teoria mais geral da evolução em grande escala proposta, principalmente, por T. Dobzhansky, J. Huxley e pelo próprio Mayr, entre outros (cf. Mayr, 2005, p.140). Esta segunda síntese foi chamada de Síntese Moderna, nome dado pelo próprio Julian Huxley. Hoje é comum chamá-la também de neodarwinismo ou síntese evolutiva. Embora Mayr faça questão de separar esta síntese da síntese anterior, a visão recebida costuma tratar as duas como sendo uma síntese só que uniu a microevolução entendida sobre a ótica de genética com a macroevolução capaz de explicar a biodiversidade e a especiação. Esta grande união de micro com macro formando um conjunto só é a principal responsável pelo que chamamos aqui de “visão recebida” do darwinismo. 1.7 “Uma vez tendo galgado a escada mendeliana, é preciso jogá-la fora”? (Dennett, 1998, p.61) A união da genética mendeliana com a evolução por seleção natural foi uma grande conquista para o darwinismo, mas mais recentemente as perspectivas trazidas por Mendel têm sido consideradas como muito simplistas ou até mesmo erradas. Os problemas na genética mendeliana começaram logo no seu conceito mais fundamental, a saber, o conceito de gene, e é principalmente dele que trataremos aqui. Como vimos, a união final entre a genética e a macroevolução se deu na década de 40. Não muito tempo depois, em 1953, Watson e Crick desvendaram a estrutura molecular do DNA e logo o DNA passou a ser identificado com o gene mendeliano. Antes que esta identificação fosse feita, os quatro nucleotídeos, adenina (A), citosina (C), timina (T) e guanina (G), eram considerados não como o próprio gene e sim como uma seqüência repetitiva que servia somente de esqueleto para os genes, estes seriam, no caso, constituídos por proteínas (cf. Maynard-Smith, 1993, p.70). 76 Uma vez que o DNA foi codificado e identificado com gene, a genética pôde se desenvolver plenamente. Descobriu-se que os nucleotídeos se unem em trincas, chamadas de códon, sendo que cada trinca codifica um aminoácido, com exceção de três trincas que funcionam como uma espécie de pontuação do DNA, marcando um sinal de parada (UAA, UAG, UGA14). Como esta codificação é realizada através do RNA e dos ribossomos não é importante aqui. O importante é que estes quatro nucleotídeos podem se unir em 64 trincas diferentes. Como existem 20 aminoácidos distintos que eles codificam, então o código genético permite com que trincas diferentes codifiquem o mesmo aminoácido. Normalmente é o terceiro nucleotídeo da trinca que pode ser mudado sem que se mude o aminoácido. A Valina, por exemplo, pode ser codificada por GUU, GUC, GUA ou GUG. Estes vários aminoácidos codificados pelas várias trincas de um gene se unem e formam uma proteína com uma estrutura tridimensional específica. É esta particular característica estereoespecífica que é importante para determinar a função de uma dada proteína. No entanto, a relação entre os aminoácidos e o DNA não é tão simples como parece. Como já foi dito, cerca de 95% do material genético humano, por exemplo, não codifica nenhuma proteína e este DNA não codificador muitas vezes está “embaralhado” no meio do próprio DNA codificador. A parte não codificadora que é descartada na leitura do DNA é chamada de intron, já as partes que são separadas para serem lidas e traduzidas em RNA são chamadas de exons. Os introns são muitas vezes longas seqüências de DNA repetitivo e “sem sentido”. Só este pequeno detalhe já seria suficiente para mostrar que a relação entre um pedaço do cromossomo e uma proteína que é decodificada por ele é muito mais complexa do que parece ser a primeira vista. Mas esta relação ainda se torna mais complicada. Se quisermos identificar um gene com uma parte física de um cromossomo, como uma seqüência de nucleotídeos entre o sinal de início e um sinal de parada que codifica uma proteína, teremos que identificar o gene com o que é chamado de cistron. Esta identificação é muito comum, mas não é tão imediata e óbvia quanto parece, pois “genes são muito complexos e extremamente difíceis de serem definidos” (Futuyma, 2002, p.50). Dawkins segue a definição de Williams 14 A letra U se refere ao Uracil, pois quando o DNA é transcrito para o RNA, o nucleotídeo Timina é trocado pelo Uracil. 77 para quem o gene é melhor compreendido como um pacote de informação, nas palavras de Williams: O DNA é o meio, e não a mensagem. Um gene não é uma molécula de DNA; é a informação passível de ser transcrita, codificada pela molécula ... o gene é um pacote de informação, não um objeto (Williams, 1992, 11. in: Sterelny & Griffiths, 1999, p.100. Minha tradução). Esta definição de gene como um pacote de informação e não como um pedaço específico de DNA, um cistron, visa deixar o conceito de gene mais adequado ao estudo da evolução. Tratar o gene como um cistron pode ser muito útil quando estamos falando da relação entre um indivíduo específico e o seu genótipo. Neste caso podemos considerar um certo cistron fisicamente reconhecido nele como um gene específico. Mas ao tratar da evolução esta relação fica mais confusa. Falamos de um gene que se espalha por uma população através de inúmeras gerações por um período de milhares ou até milhões de anos. Considerar que neste caso um gene pode ser identificado com um cistron seria errado. Aqui não é uma cadeia física de DNA que interessa e sim as suas múltiplas cópias que se espalham pela população. Nas palavras de Dawkins: A vida de uma molécula física qualquer de DNA é bastante curta – talvez uma questão de meses, certamente não mais que a duração de uma vida. Mas, teoricamente, uma molécula de DNA poderia viver sob a forma de cópias de si mesmas por cem milhões de anos. (Dawkins, 2001, p.57) Podemos deixar a separação entre gene e cistron mais clara com um simples experimento de pensamento: se algum indivíduo qualquer conseguisse traduzir seus genes para um outro tipo de portador que não fosse o DNA, ele ainda poderia ser considerado como tendo os mesmos genes, pois carregaria a mesma informação. O cistron pode ser quem carrega a informação, mas o gene não é o cistron físico e sim a informação que ele carrega (cf. Dawkins, 1996, p.29)15. “O que importa é a informação do gene, não sua continuidade física” (Ridley, 2006, p.335). Como já foi dito, em outras áreas da biologia não há grandes problemas em identificar o gene com o cistron. Este tipo de problema conceitual é comum na biologia: vários conceitos são usados de maneiras diferentes dependendo da área da biologia como, por exemplo, o conceito de espécie. 15 Deve-se ressaltar que Maynard-Smith está correto ao dizer que o conceito de informação usado na biologia não está claramente definido (1993, p.79) 78 Mas mesmo se o gene fosse identificado com um pedaço físico de um cromossomo ainda teríamos muitos problemas, pois a relação entre uma seqüência de DNA e o seu efeito fenotípico não é um-para-um e sim muitos-para-muitos. A relação “um gene uma proteína” está errada de duas formas: algumas proteínas são codificadas por mais de um gene. Um caso típico é a hemoglobina que é montada por quatro genes. Neste caso, temos uma relação muitos-um. Mas há também o caso mais contraintuitivo de um gene só capaz de montar proteínas diferentes. Isto é possível através do processo de junção (splicing) alternativa. Neste caso, o mesmo gene, agora considerado como um pedaço físico do cromossomo, pode ser lido de mais de uma maneira criando, assim, a relação ummuitos. O que acontece é algo que pode ser chamado de “mistura de exons”. “Muitas vezes um transcrito de RNA é emendado de formas variadas, produzindo diferentes mensageiros, e em última análise, proteínas diferentes” (Futuyma, 2002, p.51). Um caso conhecido é o do gene slo, que é muito importante para a montagem dos pêlos do nosso sistema sensório acústico. Pêlos com graus de sensibilidade diferentes são codificados pelo mesmo gene lido de várias maneiras diferentes (cf. Ridley, 2006, p.48). Um caso ainda mais intrigante nos é relatado por Dawkins quando ele nos fala de um vírus de RNA: Há um ‘quadro’ que se move ao longo da seqüência do RNA, lendo três letras de cada vez. É óbvio que, sob condições normais, se o quadro começa a ser lido no lugar errado (como na chamada mutação frameshift), a leitura fica totalmente sem sentido: os grupos de três que são lidos se mostram em desacordo com aqueles que são significativos. Mas esses vírus brilhantes efetivamente exploram a leitura com deslocamento de quadro. Eles obtêm duas mensagens pelo preço de uma, embutindo uma mensagem inteiramente diferente na mesma série de letras quando esta é lida com deslocamento de quadro. Em princípio poderiam ser obtidas até três mensagens pelo custo de uma, embora eu não conheça nenhum exemplo disso (Dawkins, 2005, p.180) Vemos então o exemplo mais claro de relação um-gene-muitas-leituras. Estes vírus seriam capazes de algo tão espantoso quanto escrever duas frases distintas não só utilizando as mesmas letras, mas as utilizando também na mesma seqüência espacial mudando só o ponto onde a frase começa a ser lida. Todas estas considerações, somadas a outras que não serão tratadas aqui, nos levam a questionar se seria possível reduzir a antiga genética mendeliana que trata principalmente de diferenças fenotípicas explicadas através de experimentos de procriação, à genética molecular, capaz de compreender em detalhes a estrutura 79 molecular do DNA e o seu funcionamento. A questão está em aberto e suas respostas variam desde que será possível realizar esta redução no futuro até a resposta de que genes, no sentido mendeliano, não existem e por isso devem ser abandonados (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.36). Alguns biólogos consideraram que precisaríamos de mais uma síntese entre a teoria da evolução e as novas descobertas da biologia molecular, mas outros foram mais longe, considerando que a biologia molecular, com tudo de novo que aprendemos sobre o funcionamento dos genes, teriam refutado o darwinismo, pois este se baseava em uma genética mendeliana (cf.Mayr, 2006, p.149). Mas cabe lembrar que o surgimento da genética mendeliana também foi considerado como refutador do darwinismo (seção 1.6). Os detalhes desta discussão são muito específicos e não nos interessam aqui. O importante é ter em mente que ao contrário do que nos é indicado pela “visão recebida” da biologia, o próprio conceito de gene e, principalmente, de gene como sendo identificado com um pedaço de DNA que codifica uma proteína é, para dizer o mínimo, inútil para uma boa parte da biologia. A própria genética, que leva o seu nome, pode, no futuro, descartá-lo, embora isso seja improvável. Mas a clássica relação “um gene para uma proteína” esta sim já foi descartada por uma relação muito mais complexa “muitos para muitos”. 1.8 Evo-Devo Há ainda um último complicador que não diz respeito exatamente à relação entre um gene e uma proteína e sim sobre a relação entre os genes e seus traços fenotípicos. Acontece que os avanços da chamada biologia evolutiva do desenvolvimento, ou evo-devo, nos mostraram que diferenças fenotípicas podem não ter sua origem em diferenças nos genes e sim em diferenças no momento e no local do desenvolvimento embriológico onde os genes foram ativados. Historicamente a evo-devo foi muito desacreditada por causa da chamada lei da recapitulação de Haeckel: que a ontogenia recapitularia a filogenia. O erro desta teoria estava em achar que a embriologia seria uma recapitulação dos estágios 80 adultos dos ancestrais do indivíduo em questão (cf. Maynard-Smith, 1993, p.311). Até Darwin parece ter caído neste erro, como vemos na seguinte passagem: Agassiz e muitos outros eminentes juízes insistem no fato de que os animais antigos se parecem, até certo ponto, com os embriões dos animais atuais de mesma classe; insistem também sobre o paralelismo existente entre a sucessão geológica das formas extintas e o desenvolvimento embrionário das formas atuais. Esta forma de analisar está muito bem de acordo com a minha teoria (Darwin, 2004, p.375). No entanto esta lei está errada, não há recapitulação das formas adultas ancestrais, o que acontece é que as formas embrionárias atuais conservaram traços das formas embrionárias de seus ancestrais, e não traços dos ancestrais adultos. O que a nova versão da evo-devo descobriu é que o processo embrionário não depende só dos genes existentes mas também da “ativação e desativação de determinados genes em diferentes momentos e posições ao longo da embriogênese” (Carroll, 2006, p.19). Como estes “interruptores” não são considerados como genes, então podemos dizer que o processo embrionário, e consequentemente o fenótipo que resultará dele, depende muito menos dos genes do que normalmente se considera (cf. Carroll, 2006, p.108), como vimos no caso da evolução epigenética (seção 1.5). Em pouquíssimas palavras, a evo-devo nos mostra como estruturas muito diferentes podem ser literalmente criadas com os mesmos genes. A idéia que se encontra por detrás desta teoria é que muitas das mudanças evolutivas podem ser compreendidas em termos de modularidade, repetições e variações quantitativas das mesmas estruturas. Compare, por exemplo, um cão e uma cobra. São duas espécies muito diferentes, mas se pensarmos em termos da evo-devo, elas se mostram muito mais parecidas do que intuitivamente imaginamos. Se fizermos algumas mudanças quantitativas as semelhanças entre estas espécies começam a aparecer. Imaginemos o seguinte: diminuamos mentalmente o tamanho do cachorro ao mesmo tempo em que alongamos o seu corpo. Multipliquemos, então, o número de vértebras do cachorro. Agora tiremos as patas e os pêlos, no lugar dos pêlos coloquemos as escamas que são basicamente construídas com a mesma substância das unhas do cachorro. O animal que assim criamos mentalmente certamente não é uma cobra, mas agora já está muito semelhante a uma e fizemos tudo isso com variações quantitativas das estruturas do cachorro. Prosseguindo com este experimento poderíamos torná-los ainda mais parecidos. Usando as 81 mesmas estruturas básicas de um cão chegamos a um ser que se assemelha a uma cobra. Esta é a idéia de modularidade, repetição e variação quantitativa que se encontra na evo-devo. Vendo os animais pelo ponto de vista da evo-devo, começamos a perceber que muitas espécies distintas podem ser compreendidas como modificações diferentes da mesma coisa. Podemos começar a pensar em determinados grupos – insetos, aranhas e lacraias, ou aves, mamíferos e répteis, assim como seus parentes fósseis há muito extintos – não tanto como singularidades, mas como variações de um tema comum (Carroll, 2006, p.150). Isto acontece porque muitas vezes estruturas completamente diferentes são construídas literalmente com os mesmos genes. A única coisa que os diferencia é o momento em que estes genes entrarão em ação no processo embrionário e a localização onde este efeito surgirá. Animais completamente diferentes não somente eram construídos com os mesmos tipos de ferramentas, mas eram construídos com os mesmos genes! (Carroll, 2006, p.67). Curiosamente Darwin estava mais certo do que ele mesmo imaginava quando repetia que “a natureza é pródiga em variedades, mas avara em inovações” (Darwin, 2004, p.201). Para deixar esta idéia ainda mais clara podemos utilizar a metáfora criada por Dawkins que nos fala da diferença entre macromutações “Boeing 747” e “Stretched dc8” (Dawkins, 2001, p.344). Macromutações do tipo “Boeing 747” são macromutações que se dão ao acaso. Aqui ele faz menção à crítica de Fred Hoyle que afirmava que a criação de estruturas complexas, como o olho, através da evolução por seleção natural é tão improvável quanto um furacão passar por um ferro-velho e montar um Boeing 747 por acaso. Ou seja, é tão improvável que pode ser considerado impossível. Contra esta visão errônea da evolução, Dawkins propõe outra mais cabível e mais adequada: é a da macromutação “Stretched dc8” que, como o nome nos indica, é só um avião dc8 comum que foi alongado. A diferença entre estes dois tipos de mutações é que a do dc8 é muito mais razoável. O Stretched dc8 segue basicamente a mesma estrutura do dc8, só que alongada. Seria necessária só uma mutação que diga “alongue tudo”, ao contrário da imensa quantidade de mutações necessárias para criar um Boeing 747 do nada. O tipo de mutação “Stretched dc8” 82 é o que explica o já comentado efeito catraca (seção 1.1): a evolução não tem que construir o Stretched dc8 do nada, ela o constrói a partir do dc8. Ao fazer um novo avião a “catraca” evita que o que já tinha sido feito seja perdido, ela retém os passos que já tomou. Acreditar que a evolução se dá por mutações tipo “Boeing 747” é justamente o erro que se origina por não compreender o papel “catraca” da evolução. A evolução não se dá ao acaso como sugerido por Hoyle, ela não tem que desenvolver tudo do zero, apenas “melhora” o já existente. Neste caso específico, Dawkins está falando sobre macromutações, mas isso não é relevante aqui, o ponto é que as mudanças evolutivas não são invenções novas que deram certo do tipo “Boeing 747” e sim a reutilização da mesma invenção antiga com alguma mudança na regra de sua construção do tipo “Stretched dc8”. É este tipo de fenômeno que a evo-devo nos mostra com clareza e, ao fazer isso, nos mostra que o papel dos genes na construção dos fenótipos pode ter sido superdimensionado. Deste modo, a definição comum do que é um gene e de qual é o seu papel tem sido abalada pelas novas descobertas tanto da evo-devo quanto da genética molecular. Os genes mendelianos “construtores de fenótipos” passam a ser considerados mais como uma simplificação abstrata de nível superior do que propriamente uma estrutura física da célula. 1.9 Diversidade e Variação Como já foi dito, uma visão comum da natureza é a de que há pouca variação entre as espécies (seção 1.1). Aceita-se que grande parte desta variação está entre uma espécie e outra. É claro que existe uma grande variação e uma grande diversidade de espécies. Já foram catalogadas cerca de 1,75 milhões de espécies vivas e cerca de 0,25 milhões de espécies extintas. Estima-se que o número total de espécies esteja entre 10 e 100 milhões (cf. Ridley, 2006, p.497). Estes números impressionantes mostram a diversidade e pluralidade da natureza, havendo ainda muito mais diversidade dentro das próprias espécies. A constatação da variação intraespecífica é uma das grandes diferenças entre Darwin e seus contemporâneos, razão pela qual foi considerada aqui como a sexta 83 grande teoria de Darwin. Mayr não a classificou assim, no entanto nos diz que “a natureza e a extensão da variabilidade era a diferença crucial entre Darwin, que pensava em termos de população, e seus oponentes essencialistas” (Mayr, 2006, p.98). Por isso Darwin é considerado como um dos pais do pensamento populacional, que será melhor explicado na seção 9.3. Em pouquíssimas palavras, o pensamento populacional é fim do essencialismo na biologia. O que existe não são essências e sim indivíduos. As essências que deveriam definir uma espécie são só uma abstração probabilística da freqüência genética. A visão antiga que tínhamos era de espécies qualitativamente diferentes entre si. Na visão antiga as diferenças encontradas dentro das espécies eram irrelevantes. Na nova visão trazida pelo pensamento populacional elas são de extrema importância, pois são elas que nos permitem quantificar a evolução. Na visão antiga a diferença entre as espécies era a única diferença que importava, pois era a única diferença essencial. Na visão nova a diferença entre as espécies é também uma diferença quantitativa, pois o que define as espécies são as freqüências gênicas de uma população. Nas palavras de Mayr: É essa variação entre os indivíduos peculiarmente diferentes que tem realidade, ao passo que o valor estatístico mediano calculado dessa variação é uma abstração (Mayr, 2005, p.104.) Isto quer dizer que a seleção natural não precisa ficar esperando que novas mutações surjam, pois em qualquer momento ela já conta com um estoque de variações dentro da espécie onde ela pode atuar (cf. Ruse, 1995, p.37). É claro que existem casos de espécies com pouca variação genética, como acontece principalmente em pequenas populações que estão sofrendo uma forte pressão da seleção natural. Na verdade, desde Darwin já se sabia que existia muita variação intraespecífica, mas a quantidade de variação acabou se mostrando maior do que o esperado, como vemos na seguinte passagem: A revelação da existência de toda essa variação foi um certo choque nos anos 20 e 30, quando a uniformidade genética era tida como certa. Ela resultou numa onda de novas opiniões entre muitos geneticistas, liderados por Theodosius Dobzhansky: uma população é um conjunto imensamente diverso de genótipos e não existe algo como o genótipo do tipo selvagem ou normal; ao invés disso, a norma é a diversidade. As palavras ‘normal’ e ‘anormal’ começaram a perder seu significado (Futuyma, 2002, p.100 - 101). 84 A surpresa da quantidade de variação se deu porque a seleção natural não é um processo que causa variação, muito pelo contrário, ela normalmente freia a variação impedindo que mutações deletérias permaneçam. A seleção natural normalmente contribui para fixar um gene dentro de uma população, isto quer dizer que ela normalmente privilegia um gene em oposição aos seus alelos, outros genes que competem pelo mesmo lócus, mesma posição nos cromossomos. Em outras palavras, ela normalmente diminui a variação. Os motivos para que muita variação ainda permaneça existindo são numerosos. O mais óbvio é que nem todo o genoma está sujeito à evolução. Como já foi dito, cerca de 95% do genoma humano não codifica proteínas. Dos genes que codificam proteínas, como o código genético permite que diferentes trincas de nucleotídeos codifiquem o mesmo aminoácido, então algumas mudanças são sinônimas, isto é, não mudam a forma da proteína. São as mutações que normalmente ocorrem na terceira posição do códon. Todas estas mutações que não implicam em mudanças nas proteínas são consideradas como mutações neutras ou silenciosas e dificilmente a seleção natural é capaz de eliminá-la. Existem ainda outras razões para a manutenção da variação (cf. MaynardSmith, 1993, p.171). Em uma mesma espécie podemos ter tipos ligeiramente diferentes adaptados a ambientes também ligeiramente diferentes. Devemos lembrar dos cães, por exemplo, que embora sejam muito diferentes entre si, são todos da mesma espécie. Há ainda a chamada vantagem do heterozigoto, quando o indivíduo mais adequado é justamente aquele que tem dois alelos diferentes em seu genoma, ao contrário do homozigoto que tem duas cópias do mesmo alelo. O caso clássico da vantagem do heterozigoto é o da anemia falciforme: em partes da África há uma quantidade incomum desta doença genética. Este fato acontece porque os portadores heterozigotos do gene que causa esta doença não desenvolvem a doença e ainda por cima são mais resistentes à malária. É justamente o fato deles serem heterozigotos, ou seja, terem um alelo “sadio” e outro portador da doença, que causa esta maior resistência à malária. Por isso, em ambientes onde há muitos casos de malária, o heterozigoto é selecionado, mesmo que isto aumente a probabilidade de cruzamento entre dois heterozigotos que podem ter como filho um homozigoto, este sim desenvolverá a anemia falciforme. Há também a chamada seleção dependente da freqüência (cf. Ridley, 2006, p.156). Esta acontece quando o valor adaptativo de um gene depende da 85 freqüência em que ele é encontrado: quanto mais raro, maior seu valor adaptativo. O exemplo clássico é o da relação entre os sexos (cf. Dawkins, 1996, p.99). Em uma população onde há mais machos do que fêmeas, é melhor ter filhos que sejam fêmeas, pois nesta população alguns machos não conseguirão procriar, serão “becos sem saída” para os genes. Já em uma população onde há mais fêmeas do que machos, a melhor “estratégia” é ter filhos machos, pois um mesmo macho pode ter vários filhos com várias fêmeas. Esta espécie de “gangorra” da seleção natural é justamente o que garante que a relação entre machos e fêmeas na maioria das espécies seja meio a meio. A heterozigosidade causada pela vantagem do heterozigoto ou pela seleção dependente da freqüência podem também causar variabilidade genética. Esta variabilidade é constatada nas espécies existentes, nas palavras de Ridley: duas moléculas de DNA humanas, selecionadas aleatoriamente (incluindo duas dentro de qualquer corpo humano), diferem em cerca de 1.000 sítios. O DNA humano pode ser menos diverso do que o de muitas outras espécies (...). O DNA de Drosophila possui uma diversidade nucleotídica quase 10 vezes maior do que o do DNA humano (Ridley, 2006, p.191) No caso da Drosophila melanogaster é estimado que exista pelo menos uma mutação por mosca, por geração, afetando sua viabilidade (cf. Futuyma, 2002, p. 78). Estas explicações de porque há variação dentro das espécies são interessantes, mas não são importantes para o presente trabalho. O que se deve levar em consideração é que há muita variação e também muitos tipos de variação. São vários os tipos de mutação: temos desde as trocas sinônimas que já vimos, até a multiplicação de genomas inteiros como no caso já mencionado da poliploidia. Entre estes dois extremos temos diferentes trocas simples de um só nucleotídeo. Temos também a troca de fase, onde a leitura das trincas de nucleotídeos são lidas na seqüência errada, como no caso do vírus que é capaz de passar “duas mensagens pelo preço de uma”. Há o deslizamento, “quando a fita de DNA que está sendo copiada desliza em relação à nova fita que está sendo criada” (Ridley, 2006, p.52-53), o que pode causar ou a perda ou a repetição de um grupo de nucleotídeos. Pode haver uma leitura invertida do cromossomo, repetições de cromossomos inteiros, etc. Há também a transposição, conhecida como “genes saltadores” ou transposons onde um gene é capaz de copiar a si mesmo em outra parte do genoma (cf. Waizbort, 2000, p.172). A mutação que faz as ervilhas de 86 Mendel serem mais altas ou mais baixa é um simples substituição de G por A em um gene que produz uma enzima, isto faz com que uma variedade produza 95% a menos de hormônio do crescimento. Já a diferença entre as ervilhas lisas e as rugosas se dá por causa da inserção de uma seqüência de 800 pares de base em um gene de uma enzima, que acaba reduzindo a síntese de amido e gerando sementes rugosas. Toda estas variações criadas podem ainda ser misturadas através do processo de recombinação (crossing-over). Muitos seres são diplóides, ou seja, tem metade de seus cromossomos dos pais e metade da mãe. Na formação do gameta, espermatozóides e óvulos no nosso caso, só um de cada cromossomo é passado para o filho por cada parente. Na fecundação eles se unem e formam um novo ser diplóide. Se não houvesse a recombinação, o filho receberia cromossomos idênticos aos do pai e aos da mãe que, por sua vez, seriam idênticos ao de seus avôs e/ou avós, e assim por diante. Mas isso não acontece desta maneira, os cromossomos que estão tanto no pai quanto na mãe, e que foram recebidos dos pais deles, seus avós, se misturam durante o processo de recombinação, durante a formação dos gametas. Assim, na criação do gameta, os cromossomos que vieram do avô e da avó se unem em pares de cromossomos semelhantes, se misturam e voltam a se dividir, ficando um de cada cromossomo, agora misturado, em cada gameta. A recombinação é algo semelhante a um embaralhar de cartas antes que sejam divididas. Imagine que os cromossomos do avô em questão sejam só cartas pretas e da avó sejam só cartas vermelhas. O filho deles terá metade do seu cromossomo preto e a outra metade vermelho. Mas quando ele for produzir seus espermatozóides, as cartas pretas e vermelhas se embaralham e depois voltam a se dividir. Deste modo, seus espermatozóides terão uma gama de diferentes combinações de cartas vermelhas e pretas. O mesmo acontecerá na formação do óvulo da mãe. Deste modo, a recombinação não cria diversidade genética, mas amplia a possibilidade de variação fenotípica usando os mesmos genes. Possibilita inúmeras combinações de genes nos variados gametas e a reprodução sexual ainda permite que gametas diferentes se encontrem. Isto cria uma grande possibilidade de diversidade fenotípica. No entanto, a recombinação não respeita a fronteira dos 87 genes, ele pode separar um gene no meio e juntar com outro. Nas palavras de Futuyma: Novas seqüências de pares de base, surgindo por recombinação intragênica, poderiam codificar aminoácidos diferentes daqueles codificados pelas seqüências dos progenitores (Futuyma, 2002, p.71). Deste modo podemos ter uma mistura de dois alelos diferentes que acabam por criar um terceiro alelo. Seria como se duas das cartas já citadas fossem cortadas ao meio e depois combinadas. É um verdadeiro processo de variação criando variação sem a necessidade do surgimento de uma nova mutação. No entanto, mesmo se esta recombinação não existisse, a diversidade genética ainda seria muito grande. Podemos ver isso pela taxa de mutação. “Uma estimativa clássica memorável da taxa de mutação por gene por genoma [nos humanos] é de uma em um milhão (10-6)” (Ridley, 2006, p.56). Como todo o genoma é copiado cada vez que uma célula se reproduz e como as células têm que se reproduzir várias vezes até que o óvulo e, principalmente, o espermatozóide sejam produzidos, então a quantidade de mutações que ocorre cada vez que um ser humano se reproduz é de aproximadamente 200 mutações (cf. Ridley, 2006, p.207). Estes dados dizem respeito às novas mutações surgidas a cada reprodução. O surgimento de novas mutações é um acréscimo na variabilidade genética de uma população. Mas se não houvesse estruturas nas células capazes de corrigir as mutações que ocorrem, teríamos uma taxa de mutação que poderia ser de até 1 para cada 100 (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.86). Ou seja, altíssima! É a capacidade da célula de reparar seu próprio DNA que diminui drasticamente a taxa de mutação. Mantendo a taxa de mutação existente nos seres humanos, Cavalli-Sforza, um dos maiores geneticistas vivos, nos diz que se tomarmos o DNA de um espermatozóide (ou óvulo) e o compararmos ao DNA de outro espermatozóide escolhido a esmo, verificaremos que, em média, haverá um par diferente de nucleotídeos a cada mil pares. Portanto, existem pelo menos 3 milhões de diferenças entre o DNA de um espermatozóide (ou óvulo) e o DNA de outro. Todas elas originaram-se em algum momento por mutação, erros espontâneos cometidos na cópia do DNA, que em geral envolve a substituição de um nucleotídeo por um outro dos quatro (cf. Cavalli-Sforza, 2003, p.97). 88 Alguns vírus podem ter taxas de mutações ainda mais altas. O vírus da AIDS tem cerca de 104 nucleotídeos e tem uma taxa de mutação de cerca de 10-4. Como cerca de 1012 vírus novos são gerados diariamente em cada indivíduo médio com AIDS, então: podemos estar certos de que cada posição ao longo da extensão de 104 nucleotídeos do vírus sofrerá mutação a cada dia em um paciente com AIDS. Na realidade, cada mutação nucleotídica individual possível ocorrerá muitas vezes, juntamente com a maioria das combinações possíveis de mutação em dois nucleotídeos (Ridley, 2006, p.118) Teremos, então, uma população de vírus todos diferentes entre si em relação a pelo menos um nucleotídeo. Todos estes dados nos mostram a ubiqüidade da variação no mundo natural. A seleção natural tem sempre muito espaço para atuar e, como acabamos de ver, a sua atuação ainda retém muita variação. No entanto, alguns fatos parecem estar em discordância. O primeiro deles é que o processo de duplicação do DNA é quase perfeito com um número mínimo de erros. O segundo é que a seleção natural precisa de uma baixa taxa de mutação para poder atuar. Dawkins nos dá o exemplo do gene da Histona H4, um gene de 306 nucleotídeos que é possuído em uma sequência quase idêntica em seres tão diferentes quanto vacas e ervilhas. O ancestral comum entre elas viveu há cerca de 1,5 bilhão de anos e deve ter possuído este gene, mesmo assim, em todo este tempo, os genes da vaca e da ervilha se modificaram em só 2 dos seus 306 caracteres. O número de cópias perfeitas que foram feitas é inimaginável. Dawkins diz que é como se uma datilógrafa conseguisse copiar a bíblia 250.000 vezes errando apenas uma letra em todo este processo (cf. Dawkins, 2001, p.187)! É claro que esta imagem é um tanto simplista, e Dawkins admite isso, pois os organismos possuem inúmeros instrumentos de revisão e correção de erro que são os principais responsáveis pela alta fidelidade da replicação. Sem eles teríamos cerca de 5.000 letras de DNA degeneradas por dia em cada célula humana (cf. Dawkins, 2001, p.190). Além disso, há o papel da seleção natural. Esta pode estar impedindo quase qualquer mudança no gene da Histona H4, selecionando negativamente as novas mutações. Tudo isso garante que certos genes sofrerão muito pouca mudança. Há ainda o problema de que a taxa de mutação tem que ser relativamente baixa para que a seleção ocorra, nas palavras de Sterelny & Griffiths: 89 Outra exigência da seleção acumulativa é uma taxa de mutação relativamente baixa. Se a taxa de mutação for muito alta relativamente à força da seleção, então o mecanismo que gera a variação soterrará os efeitos da seleção (Sterelny & Griffiths, 1999, p.36. Minha tradução). Muitas mutações ocorrendo ao mesmo tempo tornam a seleção inútil. A seleção precisa de tempo para atuar, este tempo é contado em gerações. Quanto mais baixa for a força da seleção, maior o tempo de que ela precisa até fixar um gene, ou seja, até fazer com que um gene mutante passe a ser possuído por toda a população. Se a taxa de mutação for muita alta, ela atrapalhará o processo de seleção, pois ocorrerão mutações não só no gene em questão como também nos outros genes já fixados na população com os quais este novo gene deve trabalhar junto. Para a seleção fixar um gene, este deve ser “visível” para ela, isto quer dizer que seus efeitos têm que apresentar uma certa consistência na melhora reprodutiva dos indivíduos que o possuem. Isto só é possível se este gene puder se destacar em relação a seus alelos, mas ele só conseguirá fazer isso se ambos estiverem em um mesmo fundo, trabalhando com os mesmo genes. Se cada alelo de um mesmo gene trabalhar com um conjunto de genes diferentes, não há como a seleção descobrir qual é o melhor dos referidos alelos. Como veremos ainda neste capítulo, uma parte importante do ambiente de um gene são os outros genes com os quais ele tem que trabalhar (seção 1.12.5). É em relação a estes outros genes que as novas mutações são selecionadas. Se uma espécie tiver uma taxa de mutação muito alta, estas interações entre genes não serão consistentes o suficiente para que tal mutação seja selecionada. Se tal taxa alta de mutação disser respeito só a este gene e não a todo o genoma, então ela tenderá a desfazer justamente o que a seleção está tentando fixar. Mas também se a taxa de mutação for muito baixa, a seleção não terá com o que trabalhar. No entanto, uma pressão seletiva baixa não encontrará problemas com uma baixa taxa de mutação. Do mesmo modo uma forte pressão seletiva, pode trabalhar com taxas mais altas de mutação, pois tenderá a eliminar todo o excesso de mutação que atrapalharia a seleção. Vemos, então, que existe um equilíbrio entre a seleção, que normalmente elimina a variabilidade, e a mutação que a cria. Mas dentro deste equilíbrio não é só possível, como é necessário para a seleção natural que exista muita variação e diversidade. Considerar o mundo natural como tendo só variação entre as 90 espécies, mas pouca variação dentro das espécies é um dos erros mais comuns e que mais atrapalham a compreensão de como a seleção natural de fato age. A seleção natural não é uma longa espera de seres uniformes para que uma mutação benéfica ocorra. Se fosse assim, os críticos que dizem que a seleção se dá ao acaso estariam corretos, pois a chance de uma mutação ser benéfica é muito pequena. Ao contrário disso, muita variação já existe quando a seleção passa atuar por causa de alguma mudança no ambiente. Não é a seleção que fica esperando a mutação, é a variação que fica esperando a seleção! 1.10 Cladismo: criando histórias Desde os primórdios da biologia, uma das preocupações básicas tem sido a classificação das espécies. A classificação mais conhecida, e ainda usada até hoje, é a de Lineu que em seu Systema Naturae (1735) classificou as espécies em uma ordem hierárquica crescente, usando o famoso método binômico com o nome do gênero primeiro, e em maiúsculo, e o nome da espécie depois, em minúsculo, ambos em Latim. Lineu também fez questão que a sua classificação não fosse antropocêntrica e sim uma classificação que buscasse a ordem natural do mundo. Mas em sua época Lineu não tinha nem os objetos físicos e nem as técnicas matemáticas para fazer uma classificação mais rigorosa. As técnicas de classificação se desenvolveram muito desde Lineu e hoje encontramos várias escolas distintas de classificação. Uma das mais conhecidas é a chamada taxonomia evolutiva, que classifica os animais levando em consideração a sua história evolutiva. Há também os taxonomistas que ignoram a evolução em seus estudos classificatórios e utilizam os padrões de semelhança fenotípica entre as espécies, junto com poderosas ferramentas matemáticas, para fazer suas classificações. A distinção e a discussão, às vezes exagerada, entre as diferentes escolas de classificação não serão tratadas aqui (cf. Dawkins, 2001, p.403 em diante). O importante é que pode haver várias formas de classificar as espécies, mas só há uma história evolutiva verdadeira. Hoje em dia só uma escola 91 classificatória se preocupa em montar a real história evolutiva, é o chamado cladismo. Em primeiro lugar é preciso deixar claro que há uma distinção entre ser uma boa teoria classificatória e ser uma boa teoria para montar a história evolutiva. Uma classificação pode ter vários propósitos e nem em todos os propósitos a história real precisa ser considerada. Em uma família humana, por exemplo, só há uma história de descendência verdadeira, mas há várias formas de classificá-la: podemos separar quem gostamos de quem não gostamos, quem mora em cada estado, separar por idade, por sexo, por renda etc. O mesmo se dá na biologia. É inegável que as ferramentas cladísticas, que serão brevemente apresentadas aqui, são as mais capazes de descobrir a história evolutiva, mas isso não quer dizer que ela seja a melhor teoria classificatória. No entanto, é preciso deixar claro que, se buscamos, como Lineu buscava, uma classificação independente do ser humano, então a cladística tem uma vantagem, pois não se importa exclusivamente com semelhanças observáveis. Há, é claro, fervorosos defensores da cladística. Podemos ver a sua origem até mesmo em Darwin quando ele disse que “toda classificação real é, pois, genealógica” (Darwin, 2004, p.442). Uma classificação genealógica é, de fato, algo que distingue a classificação encontrada na biologia de outros tipos de classificação. Afinal de contas, só indivíduos capazes de se reproduzir podem ter linhagens genealógicas e só eles podem ser classificados deste modo. O procedimento básico do cladismo é procurar por grupos taxonômicos monofiléticos, em oposição a grupos parafiléticos e polifiléticos. Grupos monofiléticos são grupos que contém todos os descendentes de um ancestral comum e só estes descendentes. Grupos parafiléticos contêm alguns, mas não todos os descendentes de um ancestral comum. Já os grupos polifiléticos podem ser divididos internamente em outros grupos que contém ancestrais mais próximos com grupos externos ao grupo polifilético do que dentro do próprio grupo. Para deixar mais claro, imagine uma família que consiste em um avô (A), como dois filhos (B e C) e quatro netos, sendo dois de cada filho (b e b’; c e c’). Considere que só os netos estão vivos. O grupo b e b’ ou o grupo c e c’ são ambos monofiléticos, pois ambos contêm os descendentes e só os descendentes de B ou C. São o que chamaríamos de espécies irmãs. Já o grupo b, b’ e c é parafilético, pois contém só os descendentes de A, mas não contém todos. Já o grupo b e c, e 92 também b’ e c, c’ e b, c’ e b’, são todos polifiléticos, pois os indivíduos dos seus grupos são mais próximos de indivíduos externos do que entre si. Grupos monofiléticos são os únicos que indicam uma descendência próxima e os únicos que o cladismo aceita. Os problemas começam quando temos que descobrir qual grupo é monofilético. Para isso os cladistas procuram as chamadas homologias derivadas. As homologias e as homoplasias são caracteres compartilhados pelas espécies. Os caracteres podem ser macroscópicos, como a presença de algum órgão, ou molecular, como uma seqüência cromossômica. A homoplasia é semelhante ao que era chamado de analogia (seção 1.3.4), ou seja, algo compartilhado por duas espécies, mas que não estava presente em seu ancestral comum. Neste caso as duas espécies desenvolveram tal caractere semelhante independentemente por evolução convergente e, por isso, ele não serve para nos dar a genealogia. Um bom exemplo que nos é dado por Dawkins é o da ecolocalização nos morcegos e em alguns pássaros: Observamos todos os milhares de espécies de aves e constatamos que a vasta maioria delas não usa a ecolocalização. Só dois gêneros isolados o fazem, e nada tem em comum um com o outro, exceto o fato de ambos viverem em cavernas. Embora acreditemos que todas as aves e morcegos devem ter tido um ancestral comum, se reconstituirmos suas linhagens até um passado suficientemente remoto, esse ancestral comum também foi o de todos os mamíferos (incluindo nós mesmos) e de todas as aves. A grande maioria dos mamíferos e a grande maioria das aves não usam a ecolocalização, e é muito provável que seu ancestral comum também não a tenha usado (tampouco ele voava – essa é outra tecnologia que evoluiu independentemente várias vezes). Portanto, a tecnologia da ecolocalização foi desenvolvida de modo independente por morcegos e aves. (Dawkins, 2001, p.146147) Podemos perceber que este raciocínio é probabilístico. Seria possível que todos os mamíferos e todas as aves tivessem ecolocalização, mas tivessem perdido, sendo que só estas aves e morcegos tivessem retido. No entanto, isto seria bastante improvável e com certeza muito menos provável do que acreditar que estes dois grupos conseguiram desenvolver a ecolocalização separadamente. Fazer a escolha mais provável, que é sempre a escolha que depende do menor número de mudanças evolutivas, é algo comum e faz parte das técnicas cladísticas, onde é conhecida como “princípio de parcimônia”. Nas palavras de Dawkins: 93 Não é provável, especialmente se grande parte da evolução molecular é neutra, que a mesma seqüência, palavra por palavra, letra por letra, viesse a aparecer em dois animais não aparentados. (Dawkins, 2001, p.399) Uma vez rejeitadas as homoplasias, ficamos com as homologias. Estes são caracteres compartilhados e que estavam presentes no ancestral comum. Mas as homologias também podem ser divididas em “ancestrais” e “derivadas”. Para fazer esta diferenciação temos que ter um determinado grupo de espécies em estudo. Se a homologia estava presente no ancestral de todos deste grupo, então ela é uma homologia ancestral. Como está presente no ancestral de todo o grupo, então não nos serve para dividir este grupo em várias espécies irmãs. Já se a homologia surgiu depois deste ancestral comum entre as espécies estudadas, então ela é uma homologia derivada e pode ser usada para dizer que este subgrupo de espécies, que tem esta homologia derivada, estão mais próximos entre si do que estão das outras espécies do grupo. Gould nos dá um ótimo exemplo encontrado em um panfleto de museu: Tubarões, salamandras, lagartos, cangurus e cavalos possuem, todos, uma espinha dorsal composta de vértebras, e pertencem a um grande grupo chamado vertebrados. Dos animais mencionados, apenas as salamandras, lagartos, cangurus e cavalos possuem quatro membros. De modo que são mais aparentados e pertencem a um grupo chamado tetrápodes, que significa ‘quatro pés’. Entre os tetrápodes, os lagartos, os cangurus e os cavalos desenvolvem-se em ovos impermeáveis, postos pela mãe ou mantidos dentro da mãe até o nascimento do embrião. A membrana impermeável dentro do ovo é chamada âmnio, de modo que os lagartos, cangurus e cavalos pertencem a um grupo chamado amniotas. Somente os cangurus e os cavalos produzem leite para suas crias e têm três ossos nos ouvidos para conduzir vibrações sonoras. De modo que eles são mais aparentados, e pertencem a um subgrupo dos amniotas chamado mamíferos (Gould, 1997, p.314) Podemos ver claramente como este folheto vai identificando as homologias derivadas e separando os grupos através delas. Neste caso específico a classificação cladística chegou ao mesmo resultado do que e classificação de Lineu. Isto é muito comum, já que as diferenças fenotípicas com que ele trabalhou normalmente são homologias derivadas. No entanto, o caso dos peixes e o dos répteis apresenta divergências: alguns répteis, no caso os crocodilos, têm parentes mais próximos com as aves do que com outros répteis; alguns peixes, no caso os peixes pulmonados, têm parentes mais próximos com alguns mamíferos do que com outros peixes. Por isso, para os cladistas, o grupo “peixes” e o grupo 94 “répteis” simplesmente não existem. Para não ficar só corrigindo a hierarquia de Lineu, eles propõem uma nova forma de classificação chamada de filocódigo. Há vários problemas que podem ser apresentados contra a classificação cladística, dentre eles um dos mais importantes é que eles ignoram a transformação filética, quando uma espécie se transforma em outra sem que haja uma bifurcação, e também ignoram a blastação, onde uma espécie dá origem a uma outra espécie, mas a espécie “pai” continua existindo (cf. Wilson, 1999, p.57). Para os cladistas nada disso acontece, eles só levam em consideração as bifurcações onde uma espécie dá origem a duas novas espécies irmãs. A transformação filética não existe e a blastação é tratada como uma bifurcação comum. No entanto, mesmo os críticos dizem que o cladismo é nossa melhor teoria para conhecer a genealogia das espécies, mas criticam seu purismo. Nas palavras de Gould: O cladograma da truta, do ceratodonitídeo e do elefante é indubitavelmente verdadeiro, como uma expressão da ordem de ramificação no tempo. Mas será que a classificação deve basear-se somente na informação cladística? O celacantino parece peixe, tem gosto de peixe, age como peixe e, portanto – num sentido legítimo e além de uma obstinadamente tacanha tradição - , é um peixe (Gould, 1992, p.362). No entanto, as disputas pela classificação não nos interessam aqui, desde que fique claro que o cladismo é inquestionavelmente a nossa melhor forma de descobrir a verdadeira genealogia das espécies. Na teoria, o cladismo é muito simples e elegante, procura descobrir quais espécies são irmãs, descobrindo quais grupos são monofiléticos através da identificação de homologias derivadas ou, sem o jargão, descobrir quais espécies são irmãs descobrindo quais caracteres são compartilhados por elas e só por elas. Mas colocar esta identificação na prática pode ser bastante complicado. Ainda nas palavras de Gould: Infelizmente a elegância conceitual não assegura uma fácil aplicação. A dificuldade, nesse caso, está em determinar o que precisamente é ou não é um caráter derivado compartilhado (Gould, 1992, p.357). É claro que os cladistas contam com inúmeras técnicas, mas nenhuma delas é reputada como infalível e quase todas dependem de análises probabilísticas como o já citado princípio da parcimônia. Já as técnicas que não dependem deste 95 princípio podem entrar em franca oposição com ele, criando árvores filogenéticas diferentes (cf. Futuyma, 2002, p.318). A separação entre homologias e homoplasias pode ser feita porque no caso das homoplasias o caractere em questão normalmente se diferencia em algumas estruturas, mostrando que eles tiveram uma origem ancestral diferente. Um exemplo é o das asas das aves e dos morcegos: ambos são asas e servem para voar, mas a estrutura bem diferente entre as duas indica que elas tiveram uma origem ancestral diferente. Mas homologias geralmente têm estruturas muito parecidas entre si, mesmo quando há uma certa variação. Já a separação entre homologias derivadas e ancestrais algumas vezes pode ser fácil de se fazer, como no caso em que há um bom estudo fóssil justamente do ancestral comum entre as espécies em questão. Neste caso, se o fóssil tinha o caractere, então a homologia é ancestral, se não tinha é derivada. Quando não temos o estudo fóssil, podemos utilizar a técnica da “comparação com o grupo externo”. Escolhe-se uma outra espécie que já se sabe ser estreitamente relacionada ao grupo que se está estudando, mas que não pertence filogeneticamente ao grupo. O caractere naquele grupo provavelmente será o caractere ancestral, pois, se seguirmos o princípio da parcimônia, esta é a hipótese que depende de um menor número de trocas evolutivas. Mas, “como todas as técnicas de inferência filogenética, a comparação com o grupo externo é falível” (Ridley, 2006, p.458). Para piorar, a maioria das técnicas filogenéticas nos dão o que é chamado de “árvore sem raiz”, ou seja, nos dão a relação entre diversas espécies dizendo quais são mais próximas entre si, mas não nos dizem quais, dentro de uma linha de tempo, são mais antigas e quais são as mais recentes (cf. Ridley, 2006, p.463). É como se no caso da família A, B, C, b, b’, c, c’, já citada, soubéssemos quais parentes estão mais próximos de quais parentes, mas sem sabermos que A é o avô e, por isso, o ancestral comum de todo o resto, a raiz desta árvore. Existem, é claro, técnicas para descobrir onde fica a raiz. Uma técnica muito utilizada é justamente o princípio de parcimônia: a raiz ficará localizada no ponto onde a árvore proveniente dela será a árvore com o menor número de trocas evolutivas em relação as outras árvores possíveis. Mas além desta suposição ser probabilística e ser perfeitamente possível que uma árvore com mais trocas seja a verdadeira, ainda há o fato de que quando se estuda um grupo grande de espécies 96 o número de árvores possíveis pode ser muito grande para ser humanamente computável. Há ainda um problema que talvez seja insolúvel, pois é dado como fato que diferentes espécies, e até mesmo diferentes reinos, são capazes de trocar genes entre si. Neste caso de transferência horizontal a classificação ramificada em forma de árvore não faz sentido, pois ramos separados poderiam voltar a se cruzar. Esta questão será melhor trabalhada na próxima seção. No momento o que é preciso deixar claro é que a nossa melhor teoria para definir uma genealogia tem problemas, mesmo quando utiliza evidências moleculares. A história da taxonomia nos mostra uma grande quantidade de erros ao construir árvores filogenéticas e a biologia molecular, embora seja um instrumento poderoso que vai diminuir muito os enganos, ainda é capaz de falhar (cf. Ridley, 2006, p.475). Mas mesmo quando não falha, em alguns casos simplesmente não há evidência fóssil suficiente para se trabalhar com a genealogia de seres a muito extintos e, em outros casos, os problemas são matematicamente muito extensos. Felizmente na maioria dos casos as árvores filogenéticas podem ser construídas sem muita contestação, mesmo dependendo de inferências probabilísticas. Mas esta técnica, como qualquer outra técnica em ciência, é falível. 1.11 Juntos Somos Um Por costume, ao pensar nos seres vivos, normalmente pensamos em seres pluricelulares. Nossas imagens costumam dizer respeito a organismos muito bem definidos onde se pode fazer uma separação clara entre o que é ele e o que não é. Isto acontece mesmo quando consideramos diferentes organismos que cooperam entre si, como peixes que limpam outros peixes, anêmonas onde vivem peixespalhaço, fungos que são criados por formigas etc. Mas não é raro que as relações na natureza possam ser muito mais íntimas, tão íntimas que outrora diferentes indivíduos deixem de ser considerados como indivíduos separados. No caso de seres que co-evoluem, encontramos duas espécies que causam uma pressão seletiva uma na outra de modo que elas evoluam juntas. Neste caso, 97 se for feito uma análise genealógica destas duas espécies encontraremos duas filogenias espelhadas, ou seja, duas filogenias mantendo a mesma ordem de ramificação. A simples co-adaptação entre duas espécies, o simples fato de que uma está adaptada a outra e vice-versa, não pode ser considerado evidência suficiente de co-evolução, pois é possível que, por acaso, duas espécies tenham convergido de forma que eventualmente se adaptem uma a outra (cf. Ridley, 2006, p.635). Também é preciso separar co-evolução de evolução seqüencial. Esta se dá quando uma espécie se adapta a outra, mas não vice-versa, ou seja, quando uma espécie depende da outra e por isso se adapta a ela, mas esta outra não depende dela e por isso evolui por outros motivos. Talvez o caso mais comum de co-evolução seja o caso parasita-hospedeiro. Neste caso já foram descobertas co-filogenias (cf. Ridley, 2006, p.649). O hospedeiro está sempre evoluindo para se livrar do parasita e o parasita para permanecer no hospedeiro. Há também o caso, que pode ser considerado semelhante, entre predador e presa. Mas há o caso menos intuitivo de que os diferentes genes de um mesmo indivíduo podem ser considerados como diferentes unidades que estão co-evoluindo. Nas palavras de Dawkins: “Cada gene é selecionado por sua capacidade de cooperar eficazmente com a população de outros genes que ele tende a encontrar nos corpos” (Dawkins, 1998, p.251). O ambiente de um gene não é só o meio exterior, mas são também os outros genes com os quais ele deve cooperar para continuar existindo. Como um organismo deve funcionar como um todo, uma mudança em um gene pode gerar uma pressão evolutiva nos outros e vice-versa. Esta imagem de que “somos colônias gigantescas de genes simbiontes” (Dawkins, 2001, p.204) pode ser estranha, pois normalmente tratamos os organismos como uma unidade e os genes são partes desta unidade. Mas na história evolutiva, como foi apresentado no início deste capítulo, é provável que os primeiros organismos tenham sido justamente indivíduos diferentes que passaram a cooperar. Temos ainda hoje um ser vivo conhecido como volvox, que é aproximadamente o tipo de colônia de umas poucas centenas de células eucarióticas que se imagina que teriam dado origem aos primeiros seres pluricelulares (cf. Dawkins, 1998, p.311). Bonner nos dá vários outros exemplos deste tipo onde um organismo aparentemente pluricelular na verdade deve ser 98 melhor entendido como uma colônia de organismos unicelulares trabalhando em conjunto para um fim comum (Bonner, 1980, p.72). Esponjas também podem ser consideradas como uma colônia, mas mantém a impressionante habilidade de se recompor quando são desfeitas. Margulis nos conta de um procedimento onde duas esponjas diferentes, uma amarela e uma laranja, são espremidas em uma gaze, desfeitas e tem os pedaços misturados. Algumas horas depois elas se reorganizam perfeitamente (cf. Margulis, 2002, p.166). É compreensível que não se trate genes como indivíduos, embora não necessariamente correto, como veremos na seção sobre os níveis de seleção (seção 1.12). No entanto, até entre indivíduos bem delimitados há cooperações estreitas. Um caso bastante comum é a união entre um fungo com uma alga que é tão íntima que passou a ser conhecida como líquen, ou seja, é conhecida como um indivíduo só. Mas há também verdadeiras uniões entre diferentes indivíduos. “No Paramecium duas células podem conjugar-se. As duas células permutam cópias de seus DNAs e então se separam” (Ridley 2006, p.343). Neste caso ocorre uma espécie de sexo não-reprodutivo onde há trocas de DNA entre dois Paramecium. Mas uma troca de DNA entre indivíduos da mesma espécie parece algo comum, já que não é muito diferente do sexo propriamente dito. Algo aparentemente mais incomum também ocorre. Vimos na seção anterior que o cladismo constrói a árvore evolutiva das espécies através de um processo que visa descobrir os ramos (clado) destas árvores. Um pressuposto de toda esta técnica é que os ramos, uma vez separados, não se unem mais. Isto também é um pressuposto comum do próprio conceito biológico de espécies, pois este define espécies através do intercruzamento, ou seja, ele nos diz que espécies diferentes estão separadas por uma barreira de intercruzamento que não permite que elas se unam de novo. Mas embora estes pressupostos estejam na maioria das vezes corretos, eles não estão sempre corretos. “Os ramos da árvore da vida nem sempre divergem; às vezes se juntam e produzem estranhos frutos novos” (Margulis, 2002, p.144). Se tratarmos genes como indivíduos, então já sabemos que é possível que eles “pulem” entre espécies e às vezes até distâncias maiores. Mas mesmo se não os tratarmos assim, ainda somos deixados com a idéia de que genes de indivíduos 99 de espécies diferentes podem, de certa maneira, se misturar. Isto acontece através da chamada “transferência horizontal, ou lateral, de genes”, também conhecida como reticulação (cf. Wilson, 1999, p.309). Neste caso temos a transferência de genes, principalmente entre bactérias, mas não da mesma espécie, que poderia ser considerado semelhante ao caso do Paramecium, e sim entre bactérias de espécies diferentes. Maynard-Smith chega a dizer que “as transferências de genes foram cruciais na evolução da resistência a drogas” (1993, p.5. Minha tradução). A transferência horizontal de genes entre bactérias poderia tornar até mesmo a classificação destas espécies algo bastante arbitrário (cf. Mayr, 2005, p.207). Temos, então, uma comprovação de que a evolução pode não ser sempre weismannista como já havíamos falado na seção sobre o lamarckismo (seção 1.4). Mais intrigante ainda do que a transferência de genes entre bactérias é a transferência horizontal entre níveis hierárquicos ainda mais distantes. Nas palavras de Ridley: Os genomas também evoluem por transferência gênica horizontal. Esta (também chamada de transferência gênica lateral) ocorre quando um gene do genoma de uma espécie é copiado no genoma de outra espécie. É um evento raro, mas os projetos de seqüenciamento demonstraram que ele ocorre com uma freqüência inusitada ao longo do tempo evolutivo. Provavelmente é mais freqüente em bactérias. Até se conhecem genes que se transferiram entre arques e bactérias. É provável que, algumas vezes, genes se transfiram de bactérias para eucariotos pluricelulares, mas atualmente é difícil garantir que algum gene, aparentemente bacteriano, encontrado no genoma de uma planta ou animal seja um exemplo de transferência gênica horizontal (Ridley, 2006, p.585) Vemos, então, que a transferência gênica não se dá só entre bactérias, mas pode se dar até entre reinos diferentes como entre arques e bactérias e, talvez, até entre bactérias e eucariotos como nós! Dawkins vai ainda mais longe e diz que “parece quase certo” que os genes responsáveis pela construção de um tipo de hemoglobina nas raízes de plantas da família das ervilhas pode ter sido trazido de animais com algum vírus atuando como intermediário (Dawkins, 2001, p.259). Teríamos, então, um gene de um animal, passando para uma planta através de um vírus! Nas palavras de Waizbort: Vírus e plasmídeos de bactérias também podem se incorporar ao material genético de células somáticas eucariotas (animais, vegetais, fungos, protozoários) e até mesmo em células sexuais. Incorporando seus genes de microrganismos no genoma de espécies ‘superiores’, saqueando o patrimônio genético desses seres e levandoos para além do limite do núcleo e da própria célula, essas minúsculas estruturas estão misturando genes de espécies as mais distintas (Waizbort, 2000, p.172) . 100 Recentemente várias pesquisas surgiram mostrando que a transmissão lateral de genes de bactérias para eucariotos é mais comum do que se pensava, principalmente no que diz respeito ao gênero Wolbachia que vive em grande parte dos artrópodes existentes e até mesmo em vermes. Em muitos casos há evidências da transmissão dos genes deste gênero de bactérias para o genoma do hospedeiro, mas no caso da mosca-de-fruta Drosophila ananassae praticamente todo o genoma da Wolbachia foi transmitido para o da mosca16. Tal tipo de transmissão entre reinos diferentes pode parecer surpreendente quando acontece naturalmente, mas é cotidiano nos laboratórios de engenharia genética de todo o mundo. Para as análises cladísticas, principalmente as que usam evidências moleculares, isso beira o desespero, pois neste caso a semelhança entre os genótipos não será devida à convergência: há de fato o mesmo gene em dois genótipos que deveriam ser muito distantes. “É possível até que Archea, Bacteria e Eukarya nem tenham uma filogenia normal, em forma de árvore” (Ridley, 2006, p.479) No entanto, há uma relação ainda mais estreita do que a da transferência gênica horizontal, são casos extremos de simbiose. “Entende-se por simbiose a união em uma unidade funcional única de dois ou mais organismos evoluídos separadamente” (Maynard-Smith, 1993, p.119. Minha tradução). Casos mais simples, mas ainda assim surpreendentes, são encontrados como o de uma espécie de platelminto que não tem boca porque algas fotossintéticas fornecem toda a energia que necessita (cf. Behe, 1997, p.191-192). Mas o caso mais conhecido de uma verdadeira simbiogênese, que é a fusão de dois organismos distintos, é o das mitocôndrias. As mitocôndrias são organelas presentes em todos os eucariotos, inclusive nós. São o que no ensino secundarista de biologia era chamado de a “fabrica de energia das células”. Mas as mitocôndrias, que no caso do ser humano só são passadas de mãe para os filhos, tem o seu próprio material genético. Uma bióloga, chamada Lynn Margulis, afirma que elas eram antigas bactérias que se uniram por simbiose a outra bactéria para formar o que hoje conhecemos como eucariotos. Em suas próprias palavras: “No interior das células de todos nós existem, neste 16 Cf. http://www.wolbachia.sols.uq.edu.au/ Neste endereço é possível encontrar vários artigos e livros sobre a Wolbachia 101 momento, antigas bactérias que usam oxigênio para gerar energia. Trata-se das mitocôndrias” (Margulis, 2002, p.103). Recentemente está idéia foi reforçada com estudos moleculares que mostraram que os genes das mitocôndrias são mais semelhantes aos genes de bactérias de vida livre do que aos genes dos núcleos das células onde elas vivem (cf. Ridley, 2006, p.555). Exatamente o mesmo se dá com os cloroplastos, que estão presentes nas plantas. Mas no caso do homem, a relação pode ser ainda mais estreita: alguns genes mitocondriais foram transferidos para o núcleo. O DNA nuclear dos seres humanos atuais contém genes que descendem dos dois incorporadores eucarióticos originais. É difícil estudar o processo de transferência de genes da mitocôndria para o núcleo em animais, porque o genoma mitocondrial é relativamente constante. Em plantas, entretanto, os genes parecem ser transferidos mais frequentemente (Ridley, 2006, p.584) Temos, então, um desafio, para dizer o mínimo, a idéia de que duas linhagens, quando separadas, nunca voltam a se unir. Por mais improvável que isto seja, não é impossível e em escala evolutiva podem ser encontrados alguns exemplos. Isto sem levar em consideração que estes exemplos só foram possíveis porque, no caso das mitocôndrias e dos cloroplastos, existiam bactérias livres para nos indicar a possibilidade da simbiogênese. Se elas não existissem as mitocôndrias e os cloroplastos nunca teriam sido identificados como antigas bactérias. Isto levanta a hipótese de que uniões ainda mais íntimas do que estas poderiam ter acontecido, mas nunca serão descobertas. “De fato, pode ser que nunca saibamos quantos de nossos genes, sejam eles ‘úteis’ ou ‘lixo’, tiveram sua origem em plasmídeos inseridos” (Dawkins, 1999, p.226. Minha tradução). Normalmente não pensamos nas nossas mitocôndrias como organismos externos invasores. Seria errado pensar assim, elas fazem parte da própria formação das células eucarióticas. Há a possibilidade de que outros seres que hoje se unem por uma relação simbiótica passem a ser considerados, no futuro distante, através de um processo de co-evolução, como um indivíduo só. Isto poderia se dar não só com organismos unicelulares, mas também com os pluricelulares. Um caso muito conhecido é o das vespas que servem como polinizadoras dos figos: Cada uma de centenas de espécies de figo é polinizada somente por uma espécie de vespa hospedeira-específica. É provável que a divergência em uma população local do figo ou da vespa, por deriva genética ou seleção, induza uma variação coevolucionária na outra. (Futuyma, 2002, p.524) 102 Tais vespas são tão especializadas e tais figos tão dependentes delas que é possível que, em um futuro, as vespas sejam consideradas só como “a forma como o figo se reproduz”. Futuros biólogos podem só descobrir que esta reprodução se dá através de descendentes de uma vespa da mesma maneira que descobriram que as mitocôndrias são antigas bactérias, ou seja, quando compararem o genoma delas com o genoma de descendentes de outras vespas, que não se uniram por simbiose ao figo, e perceberem que elas são mais próximas das vespas do que do próprio figo. Mas se nesta época não existirem mais descendentes livres de vespas pode ser que eles nunca descubram. Deste modo temos que um indivíduo pode sim ser formado pela simbiose de dois outros indivíduos e este tipo de união é mais do que uma simples possibilidade teórica, é um fato da biologia. 1.12 Quem Seleciona o Quê? Uma discussão ainda muito presente na filosofia da biologia é a discussão sobre os níveis de seleção. Várias são as propostas que muitas vezes são defendidas de forma ardorosa. Temos a clássica seleção dos indivíduos, que é a que normalmente é ensinada nas escolas e que é talvez a maneira mais intuitiva de se pensar na seleção. Temos também a seleção de espécies, que também é intuitiva quando se fala que algo é “para o bem da espécie”, mas que foi muito criticada. Há a seleção de grupo, onde a união do grupo pode ser um traço característico. Dificilmente separável desta há a seleção de parentesco, onde o grupo é formado por parentes. E há, é claro, a controvertida seleção de genes. Embora exista muita discussão sobre qual o nível da seleção, deve-se deixar claro que praticamente ninguém defende que a seleção só atue em um único nível destes. A discussão não é sobre “qual é o único nível onde a seleção pode atuar” e sim sobre “qual é o nível mais importante e que nos apresenta as melhores interpretações do trabalho da seleção natural”. Apresentamos aqui um breve esboço de toda esta discussão. Um aprofundamento maior seria impossível, pois este tema ocupa prateleiras inteiras, mas seria, sobretudo, desnecessário. Mas antes de qualquer coisa é preciso deixar 103 claro qual é a importância deste debate. Ridley acredita que definir qual é o nível da seleção importa muito, pois assim podemos eliminar as explicações que estão no nível errado (cf. Ridley, 2006, p.338). Não há dúvidas que uma resposta para esta pergunta apresenta este papel didático. A prova disso está no fim quase total da seleção de espécies que continha explicações erradas ao defender que certas características eram para o bem da espécie. No entanto temos que ter cuidado em não levar a metáfora muito longe e achar que existe realmente uma seleção como existe na seleção artificial. Não é a seleção natural que tem que ser entendida como um tipo de seleção artificial, com uma espécie de agente selecionador e algo selecionado. Ao contrário, é a seleção artificial que tem que ser compreendida como um tipo de seleção natural, onde os desejos e intenções do ser humano são tratados como parte do ambiente ao qual os organismos devem estar adaptados (seção 1.3.1). Não podemos esquecer que ‘ser selecionado’ quer dizer simplesmente ‘deixar mais descendentes do que a média da sua população’. “A seleção não é causada pela sobrevivência e reprodução diferenciais; ela é sobrevivência e reprodução diferenciais e nada mais” (Futuyma, 2002, p.159). Neste sentido, o melhor seria adotar, como Darwin adotou, a expressão de Herbert Spencer de “sobrevivência dos mais aptos”. Nas palavras de Darwin: Dei a este preceito, em virtude do qual uma variação, por mínima que seja, se conserva e se perpetua, se for útil, a denominação de seleção natural, para indicar as relações desta seleção com que o homem pode operar. Contudo, a expressão que o sr. Herbert Spencer emprega, ‘a persistência do mais apto’, é mais exata e algumas vezes mais cômoda (Darwin, 2004, p.76) Vemos que o termo “seleção natural” foi mais uma escolha didática necessária para mostrar que o que a natureza faz não é nada estranho, pois é muito similar ao que os homens fazem há séculos. “Seleção Natural” era uma expressão válida quando se queria provar a existência deste processo, mas trazia consigo uma imagem enganosa de que havia de fato um agente e um objeto da seleção. Muito mais exato é imaginar que os mais aptos sobrevivem, ou deixam mais prole, e os menos aptos perecem, ou deixam pouca prole em comparação com os mais aptos. Neste caso ainda vale a pergunta “o que é ‘mais apto’: os genes, os indivíduos, a espécies etc.?” Mas a questão se torna mais branda já que fica 104 evidente que, quando um nível sobrevive, ele leva naturalmente outros níveis juntos. A pergunta não é mais sobre qual objeto um certo agente seleciona e sim sobre qual objeto podemos dizer que sua aptidão faz diferença no sucesso reprodutivo. É claro que isso não implica em afirmar que não há conflito entre níveis. Eles existem e é este problema que apresentaremos aqui. 1.12.1 Seleção de Espécies Uma imagem comum da evolução é que ela se dá em benefício das espécies. Em certo sentido isto está correto, já que a evolução é um evento que ocorre com populações e não com indivíduos. No entanto, isto não quer dizer que são as próprias espécies que são selecionadas. Existem alguns problemas com este tipo de seleção. O primeiro deles diz respeito à própria existência de “espécies”. Este problema não será tratado aqui. Partindo do princípio de que as espécies têm pelo menos algum tipo de existência, encontramos o problema de que de um modo ou de outro elas são constituídas por indivíduos e indivíduos normalmente competem entre si. A chamada “luta pela sobrevivência” raramente implica em uma luta real, ela normalmente implica em uma disputa por recursos como comida, água, local para dormir, parceiros sexuais, sol, etc. Neste sentido, esta “luta” é muito mais rigorosa entre os indivíduos da mesma espécie do que entre indivíduos de espécies diferentes. Cada grama que uma zebra come, por exemplo, é uma grama que as outras zebras não vão mais poder comer. Cada raio de sol que um planta pega é um raio que sua vizinha não pegará. Até as verdadeiras lutas entre predador e presa podem ser melhor compreendidas como uma disputa dentro da mesma espécie: zebras, por exemplo, não têm que correr mais rápido do que os leões, elas só precisam correr mais rápido do que outras zebras. A disputa de quem corre mais rápido se dá dentro da própria espécie de presas e não entre predador e presa. É neste sentido que Dawkins diz que as árvores são elevadores de plantas. Se elas pudessem cooperar entre si ficariam perto do solo e não gastariam uma imensa quantidade de energia com seus majestosos troncos. No solo poderiam pegar a mesma quantidade de luz do sol que pegam no alto sem este gasto extra de 105 energia. Mas isso não acontece, pois uma planta qualquer poderia furar o “acordo” e crescer mais do que as outras, se fizesse isso pegaria mais sol e tiraria o sol das outras, seus descendentes, então, seriam mais numerosos e herdariam esta característica. Logo teríamos uma floresta de árvores altas descendentes daquela primeira. Este argumento contra a seleção de espécies é conhecido como argumento do traidor. Um grupo formado por altruístas pode ser subvertido por um egoísta que vai se beneficiar do altruísmo dos outros, mas sem ter que pagar os custos. Gould nos apresenta outros indícios de que não são as espécies as beneficiadas pela seleção (cf. Gould, 2003, p.399): há os órgãos para o combate sexual, muitos deles são inúteis para qualquer outra coisa que não seja na busca de parceiros. Na verdade, muitos deles, como a cauda do pavão, chegam a atrapalhar a sobrevivência do seu portador. Um órgão deste tipo em nada ajuda a espécie, embora os beneficiem na competição com outros pavões pela escolha das fêmeas, ou seja, beneficia o indivíduo. O mesmo pode-se dizer das lutas entre machos pelas fêmeas. Há ainda outra questão: se estamos tratando de seleção em níveis superiores, o que há de tão especial nas espécies? Porque leões, zebras, golfinhos etc. não se unem em prol de toda a classe Mammalia? No entanto, embora largamente desacreditada, a seleção de espécies não foi abandonada. Ela ainda é considerada possível em certas situações peculiares. Existem algumas características que podem ser melhor compreendidas como características de espécies e não de indivíduos, alguns exemplos são: distribuição geográfica, heterogeneidade do acervo genético, tamanho populacional, estrutura populacional e, talvez o mais controverso, reprodução sexual. Como foi dito no começo deste capítulo, não trataremos aqui da origem do sexo. Por hora a única questão que é importante é saber que no sexo cada indivíduo envolvido contribui com apenas 50% de seu material genético. Este é um custo muito alto se pensarmos que na reprodução assexuada podemos passar todo nosso material genético. Uma das explicações para que o sexo exista é que as espécies sexuadas, por permitirem uma adaptação ao ambiente mais rápida, são selecionadas em detrimento das espécies assexuadas, pois mutações surgidas em diferentes indivíduos podem se unir em um só. Para que a seleção de espécies exista, a espécie tem que ter uma característica que não possa ser reduzida às características de seus indivíduos. 106 Tais características têm que ser relevantes para a sobrevivência e para a extinção de espécies. Mas tudo isso é inútil se tais características não forem herdáveis pelas suas espécies-filhas. O tamanho de uma população, por exemplo, pode ser relevante para a sobrevivência de uma espécie, mas provavelmente não é uma característica herdável (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.205). Ainda há discussão sobre se este tipo de seleção de fato existe. No entanto, parece haver um consenso de que “a seleção de espécies pode ocorrer, mas ela não parece fazer grande coisa!” (Dawkins 2001, p.393). Ou seja, a discussão gira mais em torno de quão relevante ela é do que em torno de sua existência. 1.12.2 Seleção de Grupo Como espécie é um nível taxonômico muito alto, parece ser mais plausível diminuir o nível para um mais observável. Assim surge a seleção de grupo. Muitos animais na natureza de fato vivem em comunidades. Estes grupos têm uma existência inquestionável e muitas vezes são dentro dos próprios grupos pequenos que surgem novas espécies. No caso de grupos, seria mais razoável pensar que alguns destes teriam estruturas capazes de protegê-los dos chamados traidores. Se um grupo puder fazer isso então ele terá uma vantagem em relação aos grupos egoístas e consequentemente, terá uma maior chance de sobreviver e de produzir novos grupos que podem herdar esta sua característica. Mas os grupos não têm necessariamente que ser altruístas. Um grupo onde exista uma estrutura social para troca de favores pode ser chamado de um grupo egoísta, pois um favor só é feito mediante uma recompensa, mas mesmo assim o fato destes indivíduos se ajudarem mutuamente pode aumentar o valor de aptidão do grupo como um todo. Em tais grupos podemos dizer que sua aptidão é maior que a soma da média da aptidão dos indivíduos do grupo. Nas palavras de Mayr: Se a aptidão de um grupo for maior ou menor que a média aritmética dos valores de aptidão dos indivíduos que o compõem, devido à interação entre indivíduos ou à divisão do trabalho e outras ações sociais, então o grupo como um todo pode servir como objeto de seleção (Mayr, 2005, p.163) Isto quer dizer que para a seleção de grupo ocorrer, características do grupo como um todo tem que contribuir diretamente para aptidão do indivíduo. Só neste 107 sentido é que podemos dizer que um dado indivíduo se beneficia, ou não, de estar naquele grupo. Sabemos que a seleção de grupo é possível e experimentos onde ela acontece já foram realizados em laboratório (cf. Ridley, 2006, p.331). Recentemente Elliot Sober e David Sloan Wilson tem defendido a seleção de grupo tratando até a seleção de parentesco, que veremos a seguir, como um caso especial da seleção de grupo. A importância deste tipo de seleção ainda está em discussão. A seleção de grupo sofre dos mesmos problemas que a seleção de espécie: a característica do grupo tem que ser herdável e tem que ser do próprio grupo e não do conjunto de indivíduos. E isto tudo só é possível, é claro, em indivíduos que formam grupos sociais, o que diminui a relevância deste tipo de seleção para a evolução como um todo. 1.12.3 Seleção de Parentesco Na seleção de parentesco temos um tipo especial de grupo que é formado por parentes próximos. Há, como notou Mayr, uma certa dificuldade em discriminar a seleção de parentesco e a seleção de grupo (cf. Mayr, 2005, p.162), mas veremos que elas podem ser tratadas de maneiras diferentes. A seleção de parentesco nos diz que se um gene dá origem a um indivíduo que vai se comportar de maneira a ajudar seus parentes próximos, então este gene vai ajudar cópias de si mesmo nestes outros indivíduos. O gene não está de maneira altruísta ajudando suas cópias às custas de si mesmo, o que acontece é que um gene que ajuda outros genes como ele, se tornará, com o tempo, mais comum no acervo dos genes (gene pool) daquele grupo. Por exemplo, um gene para comer seus próprios filhos provavelmente logo se extinguirá. Um pai que tem este gene comeria seus descendentes e este seria o fim do gene. Entretanto um gene para alimentar os seus filhos provavelmente sobreviveria, um pai com este gene alimentaria seus filhos e aumentaria a possibilidade deles sobreviverem e se reproduzirem passando, deste modo, este mesmo gene adiante. Com o tempo, é possível que este gene se torne comum em toda a espécie, mesmo levando em conta que o ato de alimentar seus filhos faz com que o pai gaste energia, se coloque em risco e perca um tempo que ele poderia estar usando fazendo mais filhotes. Isto quer 108 dizer que este ato não beneficia ao pai enquanto tal e sim aos seus filhos, que carregam seus genes. A seleção de parentesco segue o que ficou conhecido como regra de Hamilton (cf. Ridley, 2006, p.327). Esta diz que há um custo C por praticar o ato que beneficia o outro, há o benefício B e há a chance R de que o gene responsável por praticar o benefício esteja no beneficiado. Neste caso, se RB > C, então o gene para beneficiar seus parentes se espalhará, ou seja, se no resultado final o gene acabar beneficiando cópias de si mesmo, então ele se tornará comum. Como R é a chance deste mesmo gene estar em outros indivíduos, então a tendência é que se beneficie só parentes próximos, pois no caso de parentes distantes, R será muito pequeno. No caso da ave que beneficia seus filhotes, a chance deste gene estar em cada um de seus filhotes é de 0,5, então o benefício final tem que ser pelo menos o dobro do custo. Por esta relação se dar entre parentes ela foi chamada de seleção de parentesco, mas a seleção de parentesco não é uma seleção de grupo e sim um caso de seleção de gene, que veremos em breve, pois são eles os principais beneficiados. Por este motivo Trivers fala que “a melhor maneira de compreender a importância do parentesco é tomar a visão do gene em relação às interações sociais” (Trivers, 1985, p.45). Para deixar claro que a seleção de parentesco é no fundo uma seleção de genes podemos pensar que se um indivíduo tiver um gene para beneficiar outros indivíduos e estes outros indivíduos não tiverem este mesmo gene, então este indivíduo terá todo o custo, diminuindo, assim, as suas chances de procriação que, obviamente, também diminuiriam as chances deste gene se propagar. Tal comportamento altruísta geneticamente determinado acabaria desaparecendo. Algo ainda mais grave se daria se este comportamento não fosse geneticamente determinado e sim um comportamento aprendido ou inventado. Neste caso, tal altruísta solitário simplesmente morreria junto com o seu altruísmo. A seleção de parentesco parece só funcionar quando o gene causador da ação altruísta pode ser encontrado no beneficiário de tal ação. Tal consideração levanta problemas com a chamada seleção de grupo e com sua tentativa de ser uma seleção por conta própria. Tais grupos sociais têm que ter comportamentos que aumentem a aptidão de todos os indivíduos de seu grupo. Se estes comportamentos forem geneticamente determinados, então a seleção de grupo pode ser compreendida como uma seleção de genes: alguns genes se tornam 109 mais comuns por ajudarem genes iguais a si. Se tais comportamentos forem aprendidos, ou poderíamos dizer culturalmente determinados, então a seleção de grupo ficaria restrita a um seleto grupo de espécies existentes capazes de aprender e transmitir aprendizagem, composto em sua maioria por mamíferos. Mas mesmo nestes grupos capazes de aprender, a seleção de grupo ficaria restrita aos comportamentos sociais que de fato são aprendidos, pois em tais grupos pode haver também comportamentos sociais geneticamente determinados. Ou seja, a seleção de grupo teria sua importância muito reduzida. Sem contar que ainda assim a própria capacidade de apreender seria geneticamente determinada, o que poderia fazer tudo ser reconsiderado como mais um caso da seleção de genes17. 1.12.4 Seleção de Indivíduo O nível mais comum e intuitivo de seleção é a seleção de indivíduos. São os indivíduos que se adaptam ao meio, são eles que se reproduzem, são eles que morrem. Ernst Mayr é um fervoroso defensor deste tipo de seleção como nos mostra o seguinte fragmento: Desde Darwin até os dias de hoje, a maioria dos evolucionistas (...) tem considerado o organismo individual como principal objeto de seleção. Na realidade, o fenótipo é a parte do organismo que está ‘visível’ para a seleção (Mayr, 2005, p.159). Ele está certo ao dizer que não está sozinho. Gould, por exemplo, concorda com ele, mas faz uma ressalva importante, a saber, é preciso antes de mais nada definir o que pode ser considerado um indivíduo no mundo natural. Este problema já foi visto aqui ao tratar de seres que se unem por simbiose (seção 1.11). Liquens são considerados indivíduos, mesmo sendo a união de um fungo e uma alga; o volvox, que é aquela união de algumas centenas de células, já tem um status mais questionável; algumas esponjas podem passar por estágios onde suas células vivem separadas por algum tempo e, como vimos, têm a capacidade de se recompor quando desfeitas; alguns rizocéfalos passam por cinco metamorfoses, 17 Há ainda a possibilidade de considerar este tipo de seleção de grupo, onde o comportamento é aprendido, como uma seleção de memes co-evoluindo com genes (seção 4.9), mas tal caso não será tratado nesta seção. 110 sendo que em uma delas eles não são mais do que uma única célula; algumas plantas permanecem perfeitamente vivas, mesmo tendo perdido grande parte de seu corpo (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.71). A visão comum que temos dos indivíduos como um organismo integrado e coeso, com um fora e um dentro bem definido etc. não vale para a maioria destes casos. Para tentar dar conta desta questão, Gould propõe uma definição de indivíduo biologicamente aceitável: um indivíduo deve ter um ponto de partida (ou de nascença) claro, um ponto de encerramento (ou de morte) claro e estabilidade suficiente no intervalo entre um e outro para ser reconhecido como uma entidade. Essas três primeiras propriedades bastam para definir um ‘indivíduo’ no sentido mais abstrato. Mas uma entidade precisa de duas outras propriedades para fazer parte do processo darwiniano de competição reprodutiva: um indivíduo darwiniano deve ser capaz de gerar filhos, e esses descendentes devem ser produzidos por um princípio de hereditariedade que os faça assemelhar-se aos pais, com a possibilidade de haver alguma diferença (Gould, 1997, p.412). No entanto, esta definição de nada serve ao defensor da seleção de indivíduos, pois como vimos, e como veremos em seguida, tanto as espécies quanto os genes podem cumprir estas regras e, deste modo, serem considerados como indivíduos. O próprio Gould admite que “genes e espécies também são indivíduos darwinianos, e a seleção também pode atuar sobre essas entidades maiores e menores” (Gould, 1997, p.413). Ele acaba dizendo que não há uma definição inequívoca de indivíduo (cf. Gould, 1997, p.413). Mas a seleção de indivíduo ainda nos parece válida, pois como afirma Mayr, são os fenótipos que são visíveis para a seleção. Talvez fosse mais correto chamála de seleção fenotípica. Eles podem fazer parte de espécies e podem ter sido criados pelos genes, mas são eles que de fato lutam, sobrevivem e se reproduzem. Esta visão pode ser a mais intuitiva, mas se olhada de perto perde aos poucos sua plausibilidade. Todos concordam que a seleção natural só pode agir naquilo que tem hereditariedade, os indivíduos têm hereditariedade, mas ela é derivada de seus genes. Um leão, por exemplo, que tenha um caractere muito útil, mas que não seja hereditário, pode até, em um primeiro momento, deixar um bom número de crias, ou seja, teria sido selecionado diretamente, mas suas crias não teriam este caractere. Não haveria um processo de evolução e sim uma seleção natural de um só passo. Seria uma seleção natural sem a já mencionada característica de “catraca”, ou seja, sem reter o caractere para possibilitar a acumulação de 111 mutações. O próximo passo começaria de novo do zero. Tal tipo de seleção não tem importância nenhuma para a biologia. 1.12.5 Seleção de Genes Não existe seleção natural sem hereditariedade e o principal portador de hereditariedade é o gene. Organismos se reproduzem, mas não são copiados. O mesmo acontece com genomas em seres sexuados, eles são fragmentados. Só o que é de fato copiado pode se tornar mais comum ou mais raro em uma população. O gene, entendido de maneira informacional, ou seja, como sendo o mesmo gene em suas múltiplas cópias, pode ter sua freqüência ajustada em relação aos outros genes e, neste sentido claro, pode ser selecionado contra ou a favor. Existem casos claros de seleção genética. Eles acontecem quando o beneficiário da reprodução é o gene e não o indivíduo ou a espécie. O chamado efeito carona é um deles. Sabemos que no genoma humano temos cerca de 95% de DNA não codificador. Mesmo que se encontre uma função para alguma parte deste DNA, ainda teremos uma grande parte que é replicado sem que ocasione algum benefício para o indivíduo. Estes genes existem por benefício próprio e em nada auxiliam o indivíduo. Temos também a chamada distorção de segregação, quando acontece um verdadeiro conflito intragenômico, isto é, quando um dos dois alelos que temos em cada um de nossos genes é capaz de aumentar a sua chance de passar para os gametas (cf. Sterelny, 2001, p.37). Um gene também pode aumentar a chance do espermatozóide onde ele está fecundar um óvulo aumentando a velocidade deste espermatozóide, mas tal gene não traz necessariamente algum benefício para o indivíduo (mas poderia trazer em espécies onde vários indivíduos fecundam a mesma fêmea). Casos como estes onde um gene se beneficia às custas do indivíduo são exemplos conhecidos e não controversos do selecionismo dos genes. Como Dennett nos mostra, a pergunta Cui Bono? “Quem se beneficia?” É a que dá a resposta de quem está sendo selecionado. Mas os casos onde aparentemente é o 112 indivíduo o selecionado levantam mais problemas. Mayr, um grande crítico da seleção de genes, nos diz: Vários genes têm valores adaptativos diferentes conforme o genótipo em que se encontram. O selecionismo gênico também é invalidado pela pleitropia de muitos genes e a interação de genes que controlam componentes poligênicos do fenótipo. (Mayr, 2004, p.158) A pleitropia e a poligenia já foram vistas aqui (seção 1.7). A pleitropia é a capacidade de um gene afetar diversas características fenotípicas e a poligenia é o seu oposto, ou seja, a capacidade de uma só característica fenotípica ser afetada por vários genes. É a pleitropia e a poligenia que nos mostram que a relação entre genoma e fenótipo é do tipo “muitos para muitos”. Para Mayr, então, a seleção de genes só seria possível se a relação entre genótipo e fenótipo fosse como uma planta baixa e não como uma receita, ou seja, fosse uma relação “um para um”. Só neste caso poderíamos dizer que a seleção natural pode “ver” os genes. Para Mayr as mudanças nas freqüências dos genes em uma população não seriam a causa da seleção e sim o resultado dela. Uma crítica semelhante é feita por Sober ao diferenciar seleção de e seleção para. A seleção pode ser para indivíduos, mas pode também acarretar uma seleção de genes (cf.Sterelny & Griffiths, 1999, p.77). Mas poderíamos defender que a recíproca é que é verdadeira e dizer que a seleção é para genes e acarreta uma seleção de indivíduos portadores daqueles genes. No entanto, esta é uma crítica por demais simplista. A defesa de que a relação entre genótipo e fenótipo é como uma receita foi feita justamente, como vimos, pelo principal defensor do selecionismo gênico: Richard Dawkins. Não podemos dizer que ele ignora esta relação! Os defensores da seleção de genes de maneira nenhuma ignoram os organismos e defendem que a seleção busca só os genes. Dawkins deixa isso claro em inúmeras passagens. Em suas próprias palavras: Uma vez que tenhamos entendido o fato de que os genes trabalham juntos em equipes, é obviamente tentador chegar à conclusão de que hoje em dia a seleção darwiniana faz sua escolha entre equipes rivais de genes – concluir que a seleção passou para os níveis mais altos de organização. Tentador, mas do meu ponto de vista errado no nível profundo. É muito mais esclarecedor dizer que a seleção darwiniana ainda faz sua escolha entre genes rivais, mas que os genes favorecidos são aqueles que prosperam na presença de outros genes que estão sendo simultaneamente favorecidos na presença um do outro (Dawkins, 1996, p.134). 113 Podemos até discordar do que ele diz, mas não é possível dizer que ele ignora que genes trabalhem juntos de inúmeras formas. No próprio Gene Egoísta ele diz que escolher o gene como unidade de seleção é uma questão de rigor (cf. Dawkins, 2001, p.31). Dizer que a seleção é a rigor de genes quer dizer que nós podemos tratar a seleção como se fosse de indivíduos, mas a rigor é mais instrutivo e preciso reconhecer que é de genes. Isto nos mostra que ele não nega a naturalidade de se escolher o indivíduo como unidade de seleção, não nega o papel do organismo. “A idéia de que o gene é a unidade de seleção não nega a realidade ou a importância dos organismos” (Sterelny & Griffiths, 1999, p.61. Minha tradução). A questão é que agora estes genes funcionam como times e é a capacidade de cooperar dentro destes times para construir fenótipos bem adaptados que será selecionada. A falha em perceber isso está diretamente relacionada com a falha em perceber que o ambiente de um gene pode ser constituído também de outros genes. Neste sentido, um gene que trabalha em conjunto com outros genes está se adaptando ao seu ambiente. Uma outra crítica comum, e errada, que se faz ao selecionismo genético é dizer que ele está comprometido com o determinismo genético. Alguém é um determinista genético se defende que os genes terão seu determinado efeito fenotípico independente do ambiente onde ele se desenvolva. Entretanto é largamente aceito que são raros os genes que terão sempre o mesmo efeito independente de qualquer influência ambiental. Esta é uma confusão comum, principalmente quando falamos em comportamentos, no entanto, dizer que algum comportamento é geneticamente determinado normalmente quer dizer que dado certo ambiente ele entrará em vigor. Não quer dizer que ele entrará em vigor seja de que modo for! Um gene que determina uma certa característica normalmente a determina em um determinado ambiente, em muitos casos este ambiente é o desenvolvimento embrionário. Como este gene só costuma ser achado dentro de certas circunstâncias normais, então podemos dizer, para simplificar, que ele determina algo, mas de maneira nenhuma queremos dizer que ele terá o mesmo efeito independente do ambiente em que ele se encontre. Tal simplificação causa confusão quando não se faz uma leitura mais atenta e, principalmente, quando já se lê procurando algo para criticar. O determinismo genético no sentido de que o 114 produto final de um gene independe de seu ambiente simplesmente não existe (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.13). É claro que o selecionismo genético requer algum tipo de coerência nos efeitos de um gene. Se um mesmo gene tivesse efeitos muito diferentes em organismos semelhantes, não haveria como selecioná-lo. Os genes, normalmente, só são selecionados indiretamente através dos fenótipos que ajudam a criar. É preciso que seus efeitos sejam consistentes para que ele seja “visível” pela seleção. Esta condição não é muito difícil de obter, é, na verdade, a regra e não a exceção. O mesmo gene normalmente terá o mesmo efeito em um mesmo ambiente ou em um ambiente muito semelhante. Isto é o suficiente para seleção de genes atuar. “O selecionismo de genes pode defrontar-se com diversos problemas, mas o determinismo genético não é um deles” (Sterelny & Griffiths, 1999, p.59. Minha tradução). No entanto, há uma crítica um pouco mais séria contra o selecionismo de genes. Como mostramos, uma das principais defesas desta visão é que são os genes os responsáveis pela hereditariedade. No entanto, isto não é plenamente verdade. O gene não é a única coisa que é passada adiante e sim toda uma célula fecundada, no caso dos seres sexuados. Isto quer dizer que há também a herança chamada epigenética (seção 1.5). Um indivíduo não herda só os genes, ele herda também outras estruturas celulares sem as quais os genes não funcionam. Como os genes dependem de um ambiente celular para passar as suas informações e dependem tanto que, como já foi mostrado aqui, mudanças no ambiente celular podem causar mudanças na expressão do mesmo gene (pleitropia), então há um sentido bem claro onde esta herança epigenética também transmite informação. Neste caso, os genes não seriam os replicadores, o replicador seria todo o sistema genético e epigenético unido. A diferença entre o replicador e seu portador, seu veículo, perderia em parte o sentido. Entretanto parece haver uma assimetria entre a informação genética e a informação epigenética. Esta parece atuar mais como uma espécie de “ruído” capaz de interferir na transmissão daquela (Sterelny & Griffiths, 1999, p.106). Sem contar que todas as estruturas epigenéticas tiveram que ser, em algum momento, criadas a partir de informações genéticas. Um óvulo antes de ser fecundado teve sua estrutura epigenética construída a partir de informações genéticas da mãe. O 115 mesmo vale para o óvulo que deu origem a mãe dele e assim por diante até o aparecimento da primeira estrutura epigenética. Vemos então que há uma longa discussão sobre qual é a unidade da seleção. Mas há algo que todas estas diferentes visões da seleção natural concordam: não há seleção sem hereditariedade. Mesmo as espécies têm que ter características hereditárias para que possam ser selecionadas. A questão da unidade de seleção pode ser compreendida de certa forma como a questão de qual é o replicador, ou seja, qual ser é capaz de criar cópias de si mesmo e que sua aptidão influencia na sua replicabilidade. Por isso a questão mais abstrata que encontramos no início deste capítulo (seção 1.2), onde falamos em replicador sem deixar claro qual replicador é este, ainda permanece válida mesmo para alguém que discorde do selecionismo gênico. 1.13 O Fim do Passeio Um longo caminho dentro de múltiplas questões da biologia foi percorrido até aqui, algumas questões foram mais históricas, mas muitas questões tratadas estão entre as descobertas e avanços mais recentes de biologia evolucionista. Infelizmente, dado o tamanho de empreitada, não foi possível perder o caráter fragmentário do texto que se mostrou subdivido em partes nem sempre intimamente relacionadas. Tal descuido será compensado com uma efetiva utilização de todos os temas tratados aqui na explicação do que a memética é, do que ela não é, de quais são suas principais críticas e possíveis respostas. Os assuntos já tratados foram colocados aqui em seqüência por um simples motivo didático para facilitar a compreensão, já que alguns explicavam conceitos utilizados nos outros. No entanto, todos serão revisitados e novamente explicados quando suas informações forem necessárias para o desenvolvimento do texto. Mas antes de tratarmos da memética ainda é preciso mais um pouco de biologia para esclarecer algumas questões que deram origem a muitas confusões. 2 Dawkins com Pitadas de Gould A visão recebida da biologia para o público geral normalmente se deve ao estudo de biologia no colégio e à televisão. Quando há um interesse um pouco maior é fácil encontrar alguns livros e coletâneas de artigos sobre biologia. Dentre eles, os que normalmente fazem mais sucesso, porque têm uma linguagem acessível para o público geral, estão os sempre ótimos livros de Richard Dawkins e Stephen Jay Gould. Dawkins e Gould são os principais divulgadores do evolucionismo. O próprio Gould, citado por Dawkins, chega a dizer que “Richard e eu somos as duas pessoas que melhor escrevem sobre a evolução” (Dawkins, 2005, p.330). Embora os dois sejam fervorosos evolucionistas e também ferrenhos críticos do Design Inteligente, teoria que tenta refutar a seleção natural propondo a necessidade de um projetista para a natureza, eles têm suas discordâncias internas. Como o debate entre Gould e Dawkins se deu em público e como foi justamente entre “as duas pessoas que melhor escrevem sobre a evolução”, se criou muito estardalhaço sobre a questão. Tudo isso aumentado pelo fato de que Gould tem uma maneira panfletária de debater, exagerando propositalmente as suas asserções para criar impacto ao dizer coisas do tipo “o darwinismo foi refutado” ou “a seleção natural não é capaz de explicar a evolução” etc. Este debate tem sido produtivo para o estudo e desenvolvimento da biologia, mas prejudicial para a sua divulgação. Frequentemente é possível encontrar pessoas que, por uma má interpretação de Gould, acham que os próprios biólogos descobriram falhas na evolução e que ela é uma teoria em risco. No entanto, isso não é verdade, o próprio Gould afirma que o debate entre os dois em nada abala o evolucionismo e nem mesmo a existência da seleção natural e do gradualismo. Ele, no máximo, redimensiona o papel de certos processos. Mas, na maioria das vezes, Gould sequer está querendo criticar estes processos do modo como são descritos na biologia. Ele normalmente está mais interessado em derrubar uma certa “imagem comum” deste processo, um certo tipo de “visão recebida do senso comum sobre o evolucionismo”. 117 Neste sentido, não é necessário tomar parte neste longo embate, embora algumas vezes isto seja impossível de evitar. O importante é mostrar como este embate não altera a visão e as questões da biologia evolucionista do modo como foi apresentado aqui. Mas não tomar parte já é escolher um lado, pois nega que as supostas revoluções propostas por Gould aconteceram. Este embate entre Gould e Dawkins é, na verdade, proveniente de uma interessante divergência na própria biologia, a saber, as diferentes visões de Fisher e Wright (cf. Dawkins, 1999, p.238). Estes dois grandes biólogos em muito contribuíram para o estudo da evolução, mas tinham algumas discordâncias sobre o modo como ela se dava. Nas palavras de Ridley: Os biólogos distinguem entre uma escola de pensamento evolutivo de ‘Fisher’ e uma de ‘Wright’. Fisher mantém que populações naturais são geralmente muito grandes para que a deriva seja importante, que interações de valores adaptativos epistáticos não interferem com a atuação da seleção, que adaptações evoluem por seleção dentro de uma população e que a evolução adaptativa pode prosseguir tranquilamente em direção ao pico de valor adaptativo mais elevado. O pensamento de Wright é que as populações são pequenas, que deriva e valores adaptativos epistáticos são importantes e que a evolução é a responsável por torná-las presas em picos locais ótimos. Os biólogos atuais raras vezes se colocam simplesmente, como membros de uma escola ou de outra, mas a controvérsia entre essas duas visões inspirou, e continua a inspirar, importantes pesquisas evolutivas (Ridley, 2006, p.248). Para deixar esta distinção mais clara temos que pensar a adaptação de uma maneira geográfica, a chamada topografia adaptativa, inventada por Wright. Uma paisagem adaptativa é semelhante a uma superfície com vales e montanhas de diferentes alturas e profundidades. Quanto mais alto o pico da montanha maior é o valor adaptativo do caractere em questão. A seleção natural seria o processo pelo qual se dá a escalada de um determinado pico. Como descer do pico significa diminuir a aptidão, uma vez em um pico local, a seleção vai atuar para que você permaneça nele, mesmo se próximo dele houver um pico ainda maior, ou seja, uma adaptação ainda melhor, mas separado por um vale, por um intermediário mal-adaptado. A idéia de que é difícil atravessar um vale fica ainda mais evidente se colocarmos de cabeça para baixo esta paisagem adaptativa. Assim, os picos se transformarão nos vales e vice-versa. A seleção atuaria como a água, escorrendo para os vales, mas ela não conseguiria subir os picos. É neste sentido que se diz que a seleção busca só a perfeição local e não a perfeição global. Darwin mesmo já havia dito isso quando disse que 118 a seleção natural tende apenas a tornar cada ser organizado tão perfeito, ou um pouco mais perfeito, que os outros indivíduos da mesma região com os quais se encontra em concorrência. É isto, sem contestação, o cúmulo da perfeição que se pode produzir no estado selvagem (Darwin, 2004, p.209). Além de defender que a seleção normalmente confina as adaptações em picos locais, Wright também defendia que as espécies normalmente eram divididas em pequenas populações. Como vimos no capítulo anterior, pequenas populações são mais propensas a sofrerem a deriva genética, ou seja, são mais propensas a se modificarem porque, por acaso, certo gene se tornou mais comum do que outro (seção 1.1). O caso mais extremo é o efeito do fundador quando um pequeno grupo funda uma nova população. Neste caso, as chances são grandes de que este pequeno grupo não seja uma amostra estatística do grupo maior, podendo mudar, assim, a freqüência de certos genes. Segundo Wright seria justamente a deriva em pequenos grupos que possibilitaria a exploração de certos vales adaptativos. A seleção nunca iria atuar diminuindo a aptidão, descendo o vale, mas a deriva poderia ter este papel e esta descida poderia acabar encontrando uma nova subida. Já Fisher tinha uma visão diferente de Wright. Para ele as populações eram grandes, o que impediria em larga escala o papel da deriva genética. Além disso, ele pensava na paisagem adaptativa não de só um caractere, mas de múltiplos caracteres. Neste caso a diminuição da aptidão de um caractere pode ser compensada pelo aumento da aptidão em outro, o que implica em uma maior mobilidade na paisagem adaptativa e uma chance muito maior de se encontrar o pico com maior valor adaptativo em toda a paisagem. Para que estes múltiplos caracteres possam evoluir separadamente, a relação epistática entre os dois não pode ser forte, ou seja, seus efeitos têm que ser de certa maneira separados, o que acontece em um não pode influenciar muito o que acontece em outro. Caso contrário, voltamos a Wright e ficaríamos presos em um pico local. Temos, então, a visão de Wright de populações pequenas mudando por deriva e presas em picos locais e a visão fisheriana de grandes populações escalando gradualmente picos ótimos através da seleção natural. Como a deriva genética não é muito difundida para o público leigo e como normalmente se fala em espécies e não em populações, a visão fisheriana acabou se tornando a mais comum. Além disso, é só esta visão que está mais de acordo com a antiga, mas 119 ainda permanente, idéia de “perfeição da natureza”. Por isso Gould, que poderíamos considerar um defensor das idéias de Wright, atacou a imagem comum da evolução utilizando como alvo principalmente o adaptacionismo e o gradualismo fisheriano. Mas nunca é demais repetir que isto em nada altera as linhas gerais da evolução por seleção natural e que Gould, Dawkins, Fisher e Wright são todos grandes evolucionistas e naturalistas. É muito importante também deixar claro que a divergência entre Gould e Dawkins não pode ser perfeitamente espelhada na divergência entre Fisher e Wright, no entanto esta ajuda a compreender aquela (cf. Futuyma, 2002, p.425 & Plotkin, 2004, p.52). Uma das críticas mais famosas de Gould é a que ele fez ao que chamou de gradualismo. Esta crítica ficou famosa porque em oposição a ela Gould, junto com Lewontin e outros, propôs o Equilíbrio Pontuado. Já foi apresentado aqui o “microscópio de Fisher”, que foi uma resposta aos mendelianos que se achavam anti-darwinistas e que diziam que a evolução se dá aos saltos (capítulo 1). Contra eles Fisher mostrou que a evolução se dava, na verdade, através de pequenos ajustes que melhoravam as adaptações gradualmente. A evolução se daria, então, através de pequenos passos adaptativos que iriam gradualmente melhorando o valor total de aptidão de um indivíduo, sempre mantendo, como uma catraca, os bons passos já dados. Tal visão não era nova, Darwin já havia dito que “toda vantagem, por mínima que seja, basta para assegurar a vitória” (Darwin, 2004, p.490). Entre duas espécies diferentes teríamos, então, um grande grupo de intermediários levemente diferenciados e todos em um crescente aumento de valor adaptativo. Gould, um paleontólogo, afirmava que o gradualismo trazia uma imagem errada da evolução, a saber: a de uma ladeira levemente inclinada que é subida pelas espécies. Esta visão da evolução em larga escala de fato se transformava em uma imagem no papel quando as árvores genealógicas eram desenhadas com todos os seus galhos igualmente inclinados. Contra a imagem da ladeira Gould propôs a imagem da escada com o seu equilíbrio pontuado. Para este as espécies passariam por longos períodos de estase, ou seja, sem nenhuma mudança adaptativa significativa, que seriam quebrados por curtos períodos de rápida especiação. “Uma tendência, propúnhamos, é mais como subir os degraus de uma escada (interrupções e estase) do que deslizar por um plano inclinado” (Gould, 1992, p.260). 120 O equilíbrio pontuado nos ajudaria a compreender a incompletude do registro fóssil. Embora encontremos intermediários entre as hierarquias superiores como, por exemplo, entre répteis e mamíferos, répteis e aves, peixes e anfíbios, etc. dificilmente encontramos intermediários entre duas espécies. Normalmente já encontramos as espécies bem formadas sem encontrar os intermediários entre elas. Isto seria perfeitamente explicado pelo equilíbrio pontuado, pois este prevê que os eventos de especiação além de rápidos, se dariam em pequenas populações isoladas e não na espécie como um todo. Assim, a falta dos intermediários não seria um erro do registro fóssil, muito pelo contrário, seria esperado pelo modo como a especiação ocorre. Além disso, Gould mostrou que os períodos de estase não deviam ser compreendidos como uma espécie de ausência, de falta de evolução. Mais do que uma nova compreensão da evolução, as idéias de Gould inspiraram uma série de trabalhos que nos ajudaram a compreender a estase. Isto pode parecer estranho nos dias de hoje, nos quais observa-se uma forte pressão anti-evolucionista, proveniente dos adeptos do Design Inteligente financiado pela extrema direita americana, que colocam a própria idéia de evolução em jogo. Mas antes disso a evolução não estava sofrendo muita pressão pública e o que era de fato difícil de explicar era a estase, nas palavras de Monod: Não é a evolução mas a estabilidade das ‘formas’ que poderia parecer dificilmente explicável, senão quase paradoxal (...) quanto à ostra de 150 milhões de anos atrás, tinha a mesma aparência, e, sem dúvida, o mesmo sabor da que se serve hoje nos restaurantes (Monod, 2006, p.123). O equilíbrio pontuado nos ajuda a deixar os períodos de estase mais compreensíveis. Eles acontecem principalmente porque “espécies grandes, vitoriosas, bem adaptadas, móveis e geograficamente disseminadas são particularmente propensas à estabilidade” (Gould, 1997, p.402). Estas espécies, se forem sexuadas e tiverem um alto índice de migração entre suas populações, serão ainda mais propensas à estabilidade, pois o sexo pode agir como um homogeneizador, impedindo que cada população se adapte a sua condição local. Mas o sexo também pode acelerar a especiação em momentos de forte pressão seletiva, pois como um maior número de indivíduos mal-adaptados vai morrer, aumentará a chance de que dois indivíduos diferentes, como duas boas mutações diferentes, se reproduzam. A evolução poderá, assim, se mover mais rapidamente. 121 Teremos, então, o equilíbrio pontuado auxiliado pelo sexo nos seus dois processos. Mas como não podia deixar de ser, Gould propôs esta teoria como se fosse uma grande revolução e acabou criando duas caricaturas, uma de seus “inimigos” e outra dele mesmo. A caricatura criada contra os chamados gradualistas é a de que eles acreditam que a evolução se dá em uma taxa constante de mutação, como se fosse uma verdadeira ladeira sem momentos de maior ou menor inclinação. Mas ao fazer isso, como nos mostra Dawkins e Ridley, confundem-se dois sentidos da palavra “gradual”. Há um sentido onde gradual quer dizer “não se dá aos saltos”, neste sentido todos, inclusive Gould, como veremos, é gradualista. Mas há outro sentido onde o que é gradual é a taxa de evolução, como se a evolução tivesse, nas palavras de Dawkins, uma aceleração constante. Embora o desenho das árvores genealógicas pareça indicar realmente uma aceleração constante, ninguém de fato defende esta teoria (cf. Ridley, 2006, p.621). Ninguém defende que a evolução se dê sempre com a mesma taxa, sem que existam períodos onde a taxa seja praticamente nula e períodos onde ela seja alta. Mas Gould confunde estes dois gradualismos como podemos ver neste fragmento: Outros questionam a ligação, feita por Darwin, entre a seleção natural e a mudança gradual e imperceptível, passando por todos os estágios imperceptíveis; alegam que a maioria dos eventos evolutivos pode ocorrer muito mais rapidamente do que Darwin previu (Gould, 1992, p.255). A confusão feita por Gould está nesta oposição entre “mudança gradual e imperceptível” e “ocorrer muito mais rapidamente”. Não há uma verdadeira oposição aqui, é perfeitamente possível que tais mudanças graduais imperceptíveis ocorram muito mais rapidamente. Há, aqui, a confusão já citada entre os dois sentidos de “gradual”. Uma leitura mais apressada dos textos de Gould levaria qualquer um a pensar que no lugar do gradualismo darwiniano ele coloca uma evolução que se dá aos saltos. Ao contrário do que é comum supor, Gould não é um saltacionista e nem um defensor dos “monstros promissores”. Ele mesmo já afirmou que “a teoria de Goldschmidt nada tem a ver com o equilíbrio pontuado” (Gould, 1992, p.260). Para ele, as adaptações mudam gradualmente, mas dentro de um período geologicamente muito curto. Tais mudanças graduais ocorreriam em períodos de dezenas de milhares de anos, um período que, geologicamente, é um piscar de 122 olhos. Mas é ele mesmo que diz: “não sou antagonista da mudança gradual; acredito, mesmo, que esse tipo de alteração costuma prevalecer” (Gould, 1997, p.173). O que Gould defende, então, não diz respeito a como as adaptações mudam, pois para ele elas também mudam através de um processo gradual sem saltos, e sim quanto tempo demora este processo de evolução das adaptações. Por isso Dawkins pode dizer, sem cair em contradição, que “a teoria do equilíbrio pontuado é em si mesma gradualista” (Dawkins, 2005, p.373). Não só é gradualista como é perfeitamente aceita dentro da visão ordinária da evolução e foi até apresentada pelo próprio Darwin: embora cada espécie deva ter atravessado numerosas fases de transição, é provável que os períodos durante os quais sofreu transformações, embora longos, se calculados em anos, tenham sido curtos, em comparação com aqueles durante os quais cada uma permaneceu sem modificações (Darwin, 2004, p.378) Fica claro, então, que o equilíbrio pontuado pode ter ajudado na compreensão dos grandes períodos da evolução, mas não é uma revolução dentro do darwinismo e não é, nem nunca foi, uma refutação de que a evolução se dá de maneira gradual. Mas Gould nunca deixou clara esta diferença entre os dois tipos de gradualismos e parece ele mesmo ter se confundido. Já uma outra crítica de Gould parecia que iria atingir o darwinismo mais profundamente, mas acabou também não alterando a “visão recebida” em larga escala, a saber, sua crítica ao adaptacionismo. Adaptacionismo, como seu nome indica, é acreditar que cada traço em um ser vivo qualquer é uma adaptação a alguma pressão ambiental, surgida pela seleção natural. Seria acreditar que todos os seres vivos evoluíram através de pequenas, graduais, adaptações que correspondem à melhor adaptação possível àquele ambiente. Como o adaptacionismo explica as grandes mudanças da macroevolução através dos pequenos passos adaptativos da microevolução, ele também foi chamado de extrapolacionismo. Nas palavras de Gould: todos os eventos evolucionistas de grande escala (macroevolução) eram produto gradual e acumulado de inúmeros passos, sendo cada um deles uma minúscula adaptação às condições mutantes dentro de uma população local (Gould, 1992, p.13). Em outras palavras, o adaptacionismo seria uma defesa da ubiqüidade da seleção natural, todos os caracteres encontrados deveriam ser explicados através 123 de ajustes de seleção (cf. Sterelny, 2001, p.56). É neste sentido que Gould não se considera um “darwiniano estrito” (Gould, 1992, p.24). São asserções como estas que tendem a confundir e obscurecer um debate interno da biologia que acaba se transformando em um debate contra a seleção natural nas mãos de alguns pensadores mal-intencionados. Entre os “darwinianos estritos” Gould enquadra, principalmente, Dawkins e Dennett, mas também grande parte dos defensores da sociobiologia, psicologia evolucionária e memética. A estes Gould chama, pejorativamente, de ultradarwinistas ou hiperdarwinistas: seriam aqueles que exageram no seu darwinismo e acabam vendo darwinismo “em tudo”. Para Gould, o principal problema do adaptacionismo é a chamada “hipótese do bom projeto”, que é assumir que todas as estruturas dos organismos estão sempre bem adaptadas ao seu meio ambiente e é por isso que elas existem. Deste modo, alguém escolhe alguma característica de um animal e faz uma narrativa histórica de como ela surgiu e qual a vantagem adaptativa que ela tem para ter se tornado tão comum. “Como muitos autores observaram, as explicações evolutivas são inegavelmente narrativas históricas” (Dennett, 1998, p.329). Tais narrativas freqüentemente não são testadas, por este motivo Gould diz que “virtuosidade na invenção substitui a capacidade de testar como o critério de aceitação” (Gould, 1998, p.54). Elas são o que ficou conhecido como “just so story” (história assim mesmo), uma história defendida só pela sua plausibilidade e por uma certa “preguiça” intelectual de considerar e testar as outras opções18. Nas palavras de Ruse: Eles [Gould e outros] argumentam que para todos os casos os entusiastas da evolução conseguem arranjar uma história ‘mais ou menos’ adaptacionista. Em conseqüência, acabamos por ter diante de nós um quadro pseudo-científico, panglossiano e metafísico do mundo, no qual tudo acontece da melhor maneira possível, do ponto de vista da adaptação, por força da seleção natural (Ruse, 1995, p.43) Esta estratégia foi chamada de Panglossiana, uma referência ao personagem que Voltaire criou para parodiar a idéia do melhor dos mundos possíveis de Leibniz. É justamente esta sagacidade que Gould repudia. Tais histórias não podem ser feitas porque nem tudo no organismo é uma adaptação, algumas coisas são simples contingências históricas. Nem tudo no organismo precisa ter uma 18 Leda Cosmides, em uma conferência realizada na UFRJ em 2006, disse considerar tal termo inadequado, pois “just so storys, na verdade, é só um termo ofensivo para ‘explicação’”. 124 função e mesmo aquilo que tem uma função não precisa ter surgido para cumprir aquela função. Um exemplo dado é o queixo humano, ele existe por causa da forma como o maxilar surge. Procurar uma função própria do queixo seria errado. E o ultradarwinismo é o adaptacionismo levado ao extremo, levado para além da biologia. Por isso, Gould o considera um erro e diz se preocupar principalmente com os praticantes de outras disciplinas que “apaixonam-se por sua simplicidade enganosa”. O principal exemplo que ele dá de tal praticante é, exatamente, Daniel Dennett (cf. Fabian, 1998, p.36). Além disso, há um problema ainda mais profundo que Gould considera no cerne do adaptacionismo, é o problema que ocorre quando uma destas narrativas históricas criadas para dar conta da evolução de um traço fenotípico se mostra errada. Neste caso, os adaptacionistas ao invés de considerar que tal traço poderia não ser uma adaptação, simplesmente inventam uma nova história para substituir a antiga. Deste modo, o fato de que tal caractere é uma adaptação semi-ótima selecionada pela seleção natural nunca é posto em dúvida (cf. Futuyma, 2002, p.272). Neste sentido, pelo menos em alguns casos, Gould pode ser considerado correto, como podemos ver no seguinte fragmento: Weismann professava sem hesitar que ele era um panselecionista. ‘Não há qualquer parte do corpo de um indivíduo ou de qualquer de seus ancestrais, nem mesmo as partes mais insignificantes, que não tenha surgido de outra maneira a não ser pela influência das condições de vida’ (1886:260). Ele admitiu, entretanto, que ‘estas são apenas convicções, não provas reais’ (Mayr, 2006, p.116). Temos, então, um famoso adaptacionista declarado, mas como podemos ver, ele considera isso um convicção e não um fato provado. O mesmo podemos dizer de todos os outros auto declarados adaptacionistas, como Dawkins e Dennett, este inclusive diz que “o raciocínio adaptacionista não é opcional; ele é a alma da biologia evolutiva” (Dennett, 1998, p.247). Mas ao afirmar isso, nenhum deles nega a necessidade de se testar, na medida do possível, estas narrativas históricas evolucionistas (seção 9.6). O adaptacionismo é central na biologia não porque todos os traços são de fato adaptações, mas porque ele é a principal ferramenta para explicar adaptações. Uma vez descoberta uma adaptação, o mais razoável é tentar descobrir como ela se originou por seleção natural, pois este é o principal processo no surgimento de adaptações. Mas ninguém nega que tal traço possa não ter surgido por seleção, no entanto, contar sempre com isso seria dar muito crédito 125 ao acaso. Acreditar que muitas adaptações surgem por contingência histórica seria acreditar em milagres e ninguém, nem mesmo Gould e Lewontin, acreditam nisso. Gould mesmo disse que “a seleção natural é o mecanismo predominante na mudança evolutiva (uma proposição que não contesto)” (Gould, 1993, p.12). O que ele contesta é que ela seja o único processo responsável pela evolução. O pensamento panglossiano é tão constante e central na biologia, como disse Dennett, que até mesmo Gould o utiliza largamente como pode ser observado em praticamente todos os seus artigos nos quais ele desenvolve narrativas históricas evolucionistas. No entanto, este uso fica ainda mais claro quando um verdadeiro anti-darwinista e defensor do Design Inteligente, Michael Behe, critica Gould ironicamente nos mesmos termos que Gould critica os adaptacionistas: Ele supõe que o planejador agiria como ele o faria, que os polegares do panda ‘deveria’ ser dispostos de maneira diferente. Ele, em seguida, acha que essas asserções são provas da evolução. (...) Gould nada fez além de inventar uma história (Behe, 1997, p.230). O polegar do panda é o nome de um elogiado livro de Gould onde ele mostra justamente alguns caracteres de alguns animais que não podem ser explicados como adaptações, ou seja, é um livro escrito para ser uma crítica direta ao adaptacionismo. Mas Behe diz que Gould não apresentou provas empíricas para embasar sua conclusão, simplesmente disse que o polegar do panda não é uma adaptação ao seu meio. Ao fazer isso, Gould cria uma just so story nãoadaptacionista para tal caractere! Isto deveria ser o suficiente para mostrar que a criação de tais narrativas históricas não é um capricho adaptacionista, ela é central na biologia evolutiva e, como o próprio Gould admite que “a seleção natural é o mecanismo predominante na mudança evolutiva”, então a maioria destas histórias será adaptacionista. Como já vimos, até Dawkins se mostra um defensor do neutralismo, ou seja, da teoria que a maioria das mudanças evolutivas no nível molecular se dá através de trocas neutras ou sinônimas que variam pelo acaso e não pela seleção natural (seção 1.1). No entanto, mesmos os neutralistas não defendem que as mudanças adaptativas se dêem de maneira neutra: elas seriam fixadas pela seleção natural. Pode haver discussão sobre qual seria o papel da seleção: eliminando mudanças ruins ou selecionando mudanças boas. Mas nenhuma destas opções tira o papel central da seleção. Uma adaptação que se dá ao acaso é possível, mas improvável, 126 mudanças como estas não desempenharam um grande papel na evolução das espécies. Mas há traços fenotípicos que não são propriamente adaptações e é uma ênfase nestes traços que Gould quer dar. Entre os processos que Gould pretende colocar no lugar das adaptações, um em específico causa mais confusão, a chamada exaptação. Nas palavras de Gould: Devemos restringir o termo adaptação somente para as estruturas que desenvolveram para a sua utilidade corrente; as demais estruturas úteis, que desenvolveram por outras razões, ou por nenhuma razão convencional, e tornaram fortuitamente disponíveis para outras utilidades, nós as chamamos ‘exaptações’ (Gould, 1992, p.170). se se se de Exaptações são estruturas que tinham uma certa função adaptativa, mas acabaram sendo usadas com um outro propósito, como uma moeda ou faca que pode ser usada como chave de fenda. Os exemplos são inúmeros: as penas das aves serviam como um dispositivo térmico, mas acabaram sendo usadas no vôo, as barbatanas dos peixes acabaram sendo os quatro membros dos tetrápodes, os ossos do maxilar dos répteis se transformaram nos ossos do ouvido dos mamíferos etc. As exaptações eram chamadas de pré-adaptações, mas este termo era enganoso, pois passava a noção de que algo poderia surgir sem ser uma adaptação, sendo só o futuro suporte de uma adaptação por surgir. Já eram conhecidas por Darwin, como ele mesmo nos mostra: Podem ser trazidos muitos exemplos de órgãos e instintos adaptados originariamente para uma só finalidade que mais tarde foram usados para vários fins distintivos (Darwin, 2002, p.657). Elas não são só bem conhecidas, como são consideradas extremamente comuns e uma das principais “ferramentas” da natureza na seleção natural. É por causa delas que Darwin afirmava que a natureza “é pródiga em variações e avara em inovações”. Dificilmente algo verdadeiramente novo surge, o mais comum é uma invenção velha ser usada de outro modo. Mas se as exaptações são tão bem estabelecidas dentro da “visão recebida” da evolução, o motivo de Gould para destacá-las se torna obscuro. O que pode ser percebido é que Gould pretende fazer uma diferenciação entre exaptação e adaptação. O termo adaptação seria “somente para as estruturas que se desenvolveram para a sua utilidade corrente”. Esta distinção é típica de Gould e é uma das principais fontes de suas criticas aos adaptacionistas, pois se 127 alguém acredita que exaptações não são adaptações, então realmente muitos caracteres nos seres vivos não são adaptações. Mas não há motivos para fazer esta separação, exaptações são adaptações! Se você voltar bastante no tempo, verá que todas as adaptações se desenvolveram a partir de estruturas precedentes que tinham algum outro uso ou que não eram usadas para nada (Dennett, 1998, p.293). Não há motivos para fazer esta separação, mas Gould, junto com Vrba, a faz sob o pretexto de eliminar o termo “pré-adaptação”. Nisto foram bem sucedidos, mas ao fazer uma distinção entre exaptação e adaptação causaram muita confusão, principalmente na sua crítica ao adaptacionismo. Há ainda um motivo menos explícito e que também causa confusão: Gould diz que o termo adaptação só pode ser usado para estruturas que surgiram “para a sua utilidade corrente”. Vemos aí que este caractere teria que ter surgido “para algo” para ser uma adaptação, já na exaptação ele não teria surgido “para” ela, foi simplesmente uma reutilização fortuita. Ele está certo ao ressaltar que algumas vezes um caractere de um ser vivo pode não ter surgido inicialmente “para” o motivo que ele é usado atualmente, mas isso não faz com que o modo que ele é usado atualmente deixe de ser uma adaptação. A utilização da linguagem de que uma adaptação é “para algo” pode ser utilizada, mas sempre com cuidado. Quando a presença ou ausência de um gene é capaz de fazer uma diferença fenotípica, podemos dizer que este gene serve para aquele caractere específico. Nunca esquecendo que um gene só terá um determinado efeito em determinado ambiente. No entanto, há um sentido forte de “ser para algo” que está errado. Dizer que as penas de um pássaro “são para” manter a temperatura do corpo e não “para” voar, pois elas surgiram só com o primeiro motivo, é errado. Um gene “é para” aquilo que ele é utilizado no ambiente e não para aquilo que ele foi pela primeira vez utilizado. Uma perspectiva que evitaria erros seria simplesmente não utilizar este tipo de linguagem, estritamente falando, genes não são para nada, eles simplesmente decodificam determinadas proteínas em determinados ambientes. Mas a idéia de que genes são “para algo” é muito comum e compreensível dentro de um panorama evolucionista onde estes mesmos genes foram fixados justamente porque eram capazes de determinar a presença ou ausência de certos caracteres. 128 Neste sentido bem óbvio, tais genes eram “para” estes caracteres. O que evita o erro de determinar o que um gene “é para” é ter sempre em mente que o efeito de um gene vai depender, em alguns casos largamente, do ambiente e, por isso, o que ele “é para” também dependerá do ambiente. A falta de compreensão deste fato levou Gould a uma má-interpretação das extinções em massa, como veremos neste mesmo capítulo. Tendo considerado a exaptação só uma forma comum de adaptação, vemos que o paradigma adaptacionista não está correndo perigo. Mas existem sim caracteres nos seres vivos que não são adaptações ao ambiente presente, o principal exemplo são os órgãos vestigiais. Estes são órgãos que não têm mais nenhuma função, mas que permanecem existindo. Um caso clássico é a do osso da pélvis em baleias. Baleias, é claro, não têm patas traseiras, por isso não precisam de uma pélvis, mas seus ancestrais tinham patas traseiras. Hoje algumas espécies de baleias conservaram uma pélvis rudimentar, um órgão sem finalidade nenhuma e que só está presente porque, teoricamente, não houve pressão suficiente para que a seleção a eliminasse. Mas o caso mais notório de órgão vestigial é o nervo laríngeo recorrente, que já foi apresentado aqui quando se falava em homologias (seção 1.3.4). As “imperfeições físicas” nos mostram que vivemos em um mundo que obedece as leis da física. Um animal não pode ter qualquer tamanho, qualquer força, qualquer velocidade se isso for contra as leis da física. Embora a existência de leis biológicas seja discutível (seção 9.2), as imperfeições biológicas nos mostram que nosso mundo é também um mundo biológico e restrito pelas possibilidades biológicas. Mas aqui também Gould não está falando nada de novo, Darwin, mais uma vez, já dizia: Nos mamíferos, por exemplo, os machos possuem mamas rudimentares; nas serpentes um dos lóbulos dos pulmões é rudimentar; nas aves, a asa bastarda não passa de um dedo rudimentar, e em algumas espécies, a asa inteira é tão rudimentar que é inútil para o vôo. Quanto mais curioso não é a presença de dentes no feto da baleia, que quando adultas não têm vestígios desses órgãos; ou a presença de dentes, que jamais perfuram a gengiva, na maxila superior da vaca antes do nascimento? (Darwin, 2004, p.471) O que Gould aponta como problema aqui é o possível erro de se considerar tais órgãos como adaptações. Eles não são adaptados a nada, muito pelo contrário, às vezes chegam a atrapalhar. Identificá-los como algo selecionado pela seleção 129 natural seria um grande erro. Os adaptacionistas deveriam ter cuidado com exemplos como esse. No entanto, órgãos vestigiais podem não ser atualmente uma adaptação, mas já foram uma, e é perfeitamente possível construir uma história sobre para que eles serviam e como eles viraram vestigiais. Este tipo de história, contada por Gould várias vezes, seria também uma história adaptacionista comum, como vimos na crítica de Behe ao polegar do panda. Exaptações são adaptações e órgãos vestigiais foram adaptações, isto nos mostra que a única critica real que Gould fez ao programa adaptacionista diz respeito às restrições ao desenvolvimento, em particular ao desenvolvimento embriológico, a chamada canalização do desenvolvimento. Normalmente, para usar um exemplo comum, se conhecemos uma espécie onde os animais têm 20 ou 40 cm de cauda, naturalmente pensamos que pode nascer um indivíduo desta espécie com 30 cm de cauda, mas pode ser que isto esteja errado, pois o modo como o desenvolvimento embriológico desta espécie se dá pode não ser capaz de produzir indivíduos com caudas de 30 cm, só de 20 ou 40. Há, então, uma restrição no desenvolvimento e seria errado achar que os indivíduos com 30 cm de cauda não existem porque são selecionados contra este caractere. Muito pelo contrário, pode ser uma ótima adaptação ter cauda de 30 cm, mas simplesmente não é possível nesta espécie em questão. Além disso, alguns caracteres como, por exemplo, o queixo humano, pode não ter uma função própria, seria só um subproduto da forma como a mandíbula se desenvolveu (cf. Futuyma, 2002, p.270). Procurar uma função específica para ele seria errado. Aqui sim parece que encontraremos uma verdadeira divisão entre Gould e Dawkins. Há uma verdadeira discussão sobre a amplitude do espaço de formas possíveis. Dawkins e Dennett acreditam que, dado o tempo necessário, a seleção natural pode explorar um número muito grande de formas diferenciadas. Já Gould acredita que o número de formas possíveis é pequeno. Estas restrições se dariam principalmente pelo forte valor epistático, ou seja, porque há uma sintonia fina no trabalho entre os genes que dificilmente pode mudar sem que o produto final seja monstruosamente afetado. O modo como se dá o desenvolvimento embriológico impediria muitas mudanças, pois pequenas mudanças nele causariam grandes, e provavelmente mal-adaptadas, mudanças no fenótipo. Para deixar este problema mais claro, Dawkins e posteriormente Dennett, utilizaram a imagem do “Museu de Todos os Animais Possíveis”. Este seria um 130 espaço imaginário de múltiplas dimensões, cada dimensão dizendo respeito há algum tipo de variação em um determinado caractere. Assim, no que diz respeito ao tamanho de um certo tipo de cauda, teríamos todas as variações de tamanhos em uma dimensão, de formas de cauda em outra, de cores em outra, de espessura em outra etc. Cada indivíduo de fato existente ocuparia um determinado ponto neste espaço de múltiplas dimensões e os vizinhos dele seriam justamente os indivíduos mais parecidos com ele. Deste modo Dawkins pode dizer: Alguns biólogos acham que, à medida que caminharmos pelos longos corredores do museu, encontraremos gradações suaves em todas as direções. Aliás, grandes áreas do museu nunca foram visitadas por criaturas de carne e osso e, de acordo com essa abordagem, somente seriam visitadas se a seleção natural ‘quisesse’ se intrometer naquelas áreas. Um grupo diferente de biólogos, com os quais simpatizo menos, mas que podem estar certos, acha que grandes áreas do museu estarão sempre interditadas para a seleção natural; a seleção natural poderá esmurrar ansiosamente a porta de entrada de um certo corredor e nunca ser admitida, porque as mutações necessárias simplesmente não podem surgir. (Dawkins, 1998, p.244) Temos, então, uma visão clara da separação entre estes dois grupos. Um acha que o espaço de manobra para a seleção é rico, finamente graduado e só não foi visitado por falta de tempo e/ou por falta de pressão seletiva. Estes podem ser propriamente chamados de selecionistas ou fischerianos. Já um outro grupo, inspirados em Wright, acha que os altos valores epistáticos impedem o surgimento de muitas mutações e, deste modo, a seleção natural se encontra restrita, devendo trabalhar com as variações que lhe restam. Uma vez feita esta distinção, é preciso deixar claro um ponto crucial: Gould não nega a seleção natural e Dawkins não nega as restrições estruturais. Ao contrário do que pode parecer, não há discussão sobre a existência ou não de restrições ao desenvolvimento. Todos concordam que há. A discussão diz somente respeito a quão importantes são estas restrições. Infelizmente, a discussão pública feita entre Dawkins e Gould e a persistência deste de chamar seus oponentes de adaptacionistas, ou selecionistas ou até darwinistas estritos, causou e ainda causa muita confusão. A primeira confusão é quanto a existência da seleção natural: já vimos que Gould não a nega e nem mesmo tira a sua importância no surgimento de adaptações. Já a segunda confusão é uma caricatura dos selecionistas como se estes não acreditassem na existência de restrições. Mas Dawkins nos diz: Julga-se que a caricatura de darwinista acredita que o corpo é uma argila infinitamente maleável, pronta para ser moldada pela onipotente seleção em 131 qualquer forma que ela possa favorecer. É importante entender a diferença entre o darwinista da vida real e a caricatura (...) essa caricatura não existe de fato. Infelizmente, algumas pessoas acham que existe, e julgam que, por discordarem dela, estão discordando do próprio darwinismo (Dawkins, 2001, p.448 e 451). Esta caricatura do darwinista hiperselecionista que acredita que qualquer coisa é possível não corresponde a ninguém em particular. Ninguém nega o papel das restrições, o que está em discussão é o quão importante ela é e, neste caso, há um debate perfeitamente válido e dentro do próprio darwinismo. Ambos os lados têm que admitir que não possuem provas conclusivas para refutar o oponente e, então, a discussão se resume ao que cada um acha que deve ser verdade. Dawkins e Gould por várias vezes admitem que dão ao seu devido lado um poder maior nos processos evolutivos, mas sem prova nenhuma disso (cf. Dawkins, 2001, p.131 & Gould, 1992, p.53). No entanto, nem todas as restrições se devem à sintonia fina do desenvolvimento embriológico: há restrições que poderiam ser chamadas de históricas. São momentos onde um certo caractere se tornou comum por simples acaso e com a evolução subseqüente foi se tornando cada vez mais difícil dele mudar. É o que Dennett chamou de fenômeno QWERTY. Estas são as primeiras seis letras de praticamente qualquer teclado de computador. Os teclados não estão organizados em ordem alfabética porque, quando só existiam teclados em máquinas de escrever, organizá-los em ordem alfabética causava problemas: certas letras que eram muito utilizadas uma próxima da outra, e que eram de fato próximas uma da outra no alfabeto, tendiam a enganchar uma na outra quando se digitava algo rapidamente. Deste modo, foi necessário desenvolver uma seqüência de letras onde aquelas que eram muito comumente escritas juntas se encontravam separadas o suficiente para evitar o engate das teclas. Assim se originou este teclado que começa com as letras qwerty. Quando os computadores surgiram, não era mais necessário organizar as letras de tal forma, elas podiam ser colocadas de volta em ordem alfabética, mas como todos já estavam acostumados com o modo como elas eram organizadas, o qwerty continuou. Temos aqui um caso de uma decisão histórica que acabou congelada, mesmo quando não era mais necessária, uma vez que ela tenha surgido torna-se difícil se livrar dela. Fenômenos parecidos com este existem na natureza, são “acidentes congelados” que dificilmente mudam. Um exemplo que Gould gosta de dar são dos quatro membros dos tetrápodes, segundo ele, não há explicação 132 adaptativa para termos só quatro membros, simplesmente descendemos de um ser que tinha quatro membros. Um exemplo mais marcante é o já apresentado nervo laríngeo recorrente (seção 1.3.4). Existe a possibilidade que o próprio código genético seja um exemplo, não se sabe se a relação entre cada trinca de nucleotídeos e seu aminoácido é como é porque algum outro modo não seria quimicamente possível, neste caso seria uma restrição físico-química, ou se isto se deve ao fato de que tal código é realmente o melhor entre os inúmeros possíveis, então ele se deveria à seleção natural. Pode ser também que ele seja um simples caso de acidente congelado que dificilmente poderia ser mudado. A existência de tal tipo de restrição é inquestionável, mas diferente do exemplo anterior, esta restrição não tem que ter necessariamente uma relação direta com o desenvolvimento embriológico. Este poderia ser capaz de construir um ser diferente, mas que não seria viável por um outro motivo qualquer. Uma mãe, por exemplo, pode recusar filhotes que ela considere como mal-formados, mesmo que esta má-formação seja, na verdade, uma ótima adaptação. O que todos concordam é que em qualquer caso real é sempre muito difícil saber se um caractere de um determinado ser vivo existe por causa da seleção, das restrições ou de ambos. O que realmente Gould critica é somente a pressa de alguns em decidir logo que foi a seleção o principal responsável e nisto ele pode estar certo, embora, como já foi dito, a seleção seja de fato a nossa melhor explicação para o surgimento de adaptações. A idéia de que as restrições moldam os seres vivos fez Gould procurar por grandes padrões nas formas dos animais. Se o poder das restrições fosse muito grande, seria esperado um número limitado de formas possíveis, só com pequenas variações dentro destas formas. A estas formas gerais Gould deu o nome de bauplan, ou “planta baixa”. Estas seriam formas básicas de se construir seres vivos. Ter quatro membros, por exemplo, seria uma característica muito comum e que diferenciaria os tetrápodes. A partir desta idéia de que há algumas poucas formas fundamentais, Gould pôde distinguir entre disparidade e diversidade. Disparidade seria justamente o número de formas fundamentais, já diversidade seria o número de possíveis variações desta forma. Seres humanos, chimpanzés, orangotangos, gorilas etc. todos têm a mesma forma básica, não há diferença de disparidade, mas há diferenças que garantem a diversidade. A disparidade seria 133 medida principalmente pelo número existentes de filos, uma das maiores escalas da hierarquia de Lineu. Munido desta diferença, Gould pôde dizer que na explosão cambriana, momento há cerca de 550 milhões de anos, que aparentemente durou cerca de 5 à 10 milhões de anos onde “subitamente” surgiram um número grande de novas formas de vida que até então não existiam, houve um súbito aumento de disparidade e, desde então, a disparidade diminuiu, mas a diversidade aumentou. A explosão cambriana seria a responsável pelo surgimento de praticamente todos os filos que existem hoje e também por alguns que deixaram de existir. Seria uma espécie de “‘máquina de fazer filos’” (Gould, 1997, p.146). Além disso, os filos que permaneceram existindo não sobreviveram porque eram melhores adaptados, mas simplesmente por acaso, ou seja, poderiam muito bem ter sobrevivido outros filos que não os presentes. Ignorando o perigo da possível recaída no essencialismo, existem alguns problema sérios com esta visão. Um filo tem que ser identificado por alguma característica altamente conservada, mas qual característica é essa é uma questão muito difícil, ainda mais se tratando de filos que teoricamente teriam sido extintos: Deve haver algum princípio que mostre, por exemplo, que a variação no número de patas entre os artrópodes seja um aspecto genuíno da disparidade, enquanto que a variação no número de pelos nas narinas dos primatas não o é (Sterelny, 2001, p.106. Minha tradução). Se já é difícil identificar qual seria esta característica em um filo existente, em um filo que teria sido extinto isto se torna praticamente impossível. Em um ser com, por exemplo, vinte pernas e quatro antenas, não há como saber qual característica definiria o filo. Pode ser qualquer uma das duas, as duas ou até nenhumas delas. As características nem sempre têm que ser óbvias. Uma das características que marca a separação entre répteis e mamíferos, como vimos, é que alguns ossos do maxilar dos répteis viraram ossos do ouvido do mamífero, algo que está longe de ser uma característica definidora óbvia. A dificuldade em dizer como definir um filo, ainda mais um que “acabou de surgir” ou um que “deixou de existir” mostra que Gould incorreu em uma falácia tipicamente essencialista: achar que um filo novo já nasce pronto como se fosse um filo e não uma espécie que vai se diversificando tanto em outras espécies 134 filhas que, no futuro, suas características passam a ser consideradas como demarcando um filo. Esta é a falácia que ficou conhecida como “coroamento retrospectivo”. Filos não nascem já filos, não brotam por conta própria. O que surge são sempre novas espécies. Ou melhor, são novos indivíduos separados de seus parentes próximos por alguma barreira reprodutiva. Para um filo ser designado como tal, devem existir algumas características altamente conservadas em inúmeras espécies a partir de um descendente comum que tinha estas características. Mas para uma característica ser designada como “altamente conservada” ela deve ter sido altamente conservada! Não é possível que algum grupo de características diferentes que tenha surgido e depois desaparecido seja considerado como designador de um filo que nunca existiu. Além disso, quando estas características surgem, elas não são características de um filo nascente e sim de uma nova espécie que, seja por que motivo for, eventualmente terá tantas espécies filhas, ou melhor, netas, bisnetas, etc. que será considerado como um filo. Como Dawkins notou muito bem, dizer que filos surgem de uma maneira diferente das espécies é o mesmo que dizer que em uma árvore os troncos grossos surgem de uma maneira diferente dos troncos finos (cf. Dawkins, 2005, p.379). Isto está claramente errado, pois todos os troncos grossos foram uma vez troncos finos e qualquer tronco fino atualmente existente pode vir a ser um tronco grosso no futuro. Não há nada de especial em um determinado tronco fino que garanta que ele seja um verdadeiro pretendente a ser tronco grosso. Do mesmo modo, filos não surgem por conta própria já predestinados a ser filos, só surgem novas espécies que talvez dêem origem a novos filos. A idéia de que um novo filo possa nascer já sendo um novo filo só pode ser compreendida a partir de uma visão essencialista da biologia. No final das contas, o que Gould quer mostrar com a explosão cambriana, além de mostrar que existiriam grandes padrões na evolução, é que não existiriam motivos baseados na seleção natural para dizer por que alguns filos sobreviveram e outros não. Em outras palavras, quer mostrar o papel do acaso e das contingências históricas nas delimitações dos grandes padrões da evolução. Este é o mesmo motivo que faz Gould insistir também no tema das grandes extinções em massa. A extinção em massa mais conhecida é a que fica entre o cretáceo e o 135 terciário e que aconteceu por volta de 65 milhões de anos atrás. É a famosa extinção onde um meteoro deve ter atingido a Terra e dizimado os dinossauros, junto com cerca de 70% da vida no planeta. Esta é uma extinção muito importante para nós porque foi por causa dela que os mamíferos puderam se desenvolver e, eventualmente, chegar nos seres humanos. O que Gould pretende mostrar é que nessas extinções há um grande papel para a sorte: os indivíduos que sobreviveram a ela não sobreviveram porque estavam bem adaptados a sobreviver em períodos catastróficos. Não houve motivo adaptativo para a sua sobrevivência, as espécies que se extinguiram poderiam ter sobrevivido e vice-versa. Em oposição a ele estaria uma visão de que já havia um processo de extinção ocorrendo e que a queda do meteoro só o agravou (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.303). Defender que o mesmo processo que operava antes da queda operou durante os momentos de catástrofe seria justamente a defesa do chamado extrapolacionismo, que já vimos aqui. Esta visão, ao colocar toda a força na seleção e tirar o papel da sorte estaria indo longe demais no seu adaptacionismo. No entanto, Gould parece mais uma vez estar criticando um lugar vazio. “Todo darwiniano ortodoxo concordaria inteiramente que as grandes extinções são em larga medida uma questão de acaso” (Dawkins, 2005, p.361). Em um sentido isto é bastante óbvio, ninguém em sã consciência acreditaria que algum ser vivo já possuiria um caractere para sobreviver a uma queda de meteoro, como se já soubesse o que iria acontecer. Mas há uma questão a ser explorada aqui: como vimos, Gould acredita que o termo adaptação deve ser usado só para a função que um caractere foi desenvolvido pela primeira vez, se ele é reutilizado de outra forma, deixa de ser uma adaptação e passa a ser uma exaptação. Neste sentido é em princípio óbvio que nenhum ser vivo poderia ter uma adaptação para sobreviver a uma queda de meteoro. Gould acha que nos períodos de extinção acontece algo diferente dos períodos “normais” porque certas características “são para algo”. Neste sentido, durante uma catástrofe elas estão sendo usadas de uma maneira diferente e que elas não são “para aquilo”. Uma importante digressão deve ser novamente feita aqui. Estritamente falando, genes não são “para” nada. Eles apenas funcionam de determinada maneira em determinado ambiente, sendo que, e isto é muito importante, os outros genes com os quais ele interagem são considerados como 136 partes do ambiente dele. Em outro ambiente externo ou interagindo com outros genes, um determinado gene pode ter efeitos fenotípicos bem diferentes. Deste modo, dizer que gene é “para” alguma coisa significa dizer que em um mesmo ambiente ele tenderá a ter um mesmo efeito e, se for retirado ou modificado, o efeito será diferente. Nas palavras de Dawkins: Quando um geneticista, falando da Drosophila, se refere a um gene “para” os olhos vermelhos, ele não está se referindo ao cístron que age como modelo para a síntese da molécula do pigmento vermelho. Ele está implicitamente dizendo: há uma variação na cor dos olhos da população; mantendo-se inalterados os demais fatores, uma mosca com esse gene tem maior probabilidade de apresentar olhos vermelhos do que uma mosca sem esse gene (Dawkins, 1999, p.21. Minha tradução). Podemos ver, então, que ao se falar de um “gene para” o que interessa não é o efeito de um pedaço de cromossomo e sim a diferença que a sua presença ou sua ausência acarreta. “Os fenótipos não são causados pelos genes; apenas as diferenças fenotípicas são causadas pelas diferenças dos genes” (Dawkins, 1999, p.195. Minha tradução). Deste modo, este mesmo cistron, em outro ambiente, será um “gene para” outra coisa. Mas uma característica não é, no sentido estrito, “para” nada. Ela só funciona bem em determinado ambiente e não há nada de anormal se ela funcionar também em um ambiente de catástrofe, pois não era exclusivamente “para o ambiente pré-catastrofe”. Se um ser vivo tiver uma adaptação que lhe permita sobreviver bem em um ambiente catastrófico ocasionado pela queda de um grande meteoro, então podemos dizer que ele tem uma adaptação “para” este determinado ambiente, mesmo que ela não tenha surgido com este propósito específico. Um exemplo seria uma espécie que pudesse hibernar por longos períodos onde haveria uma baixa de nutrientes: ela teria desenvolvido isso para situações ditas “normais”, mas esta também seria uma ótima adaptação “para” um ambiente catastrófico não previsto. Deste modo, não há motivos para não se considerar a sobrevivência dela um processo comum de seleção natural. Isto de maneira nenhuma significa tirar o papel do acaso e de acidentes históricos. O próprio surgimento daquela situação peculiar seria por mero acaso e também por mero acaso aquela espécie teria uma boa adaptação para tal novo ambiente. Mas uma vez que todas as peças estejam postas em jogo, a sobrevivência ou não daquela espécie não seria por acaso e sim porque ela estava mal ou bem adaptada ao novo ambiente. No entanto, foi por pura sorte que 137 naquele momento existiam espécies capazes de sobreviver àquele ambiente. O acaso só teria um papel forte para representar naquelas espécies que estavam justamente na área que foi dizimada pela queda do meteoro. Estas sim simplesmente poderíamos dizer que estavam “no lugar errado, na hora errada”. Mas mesmo neste caso extremo não seria errado dizer que elas estavam mal adaptadas ao ambiente, sendo que neste caso o ambiente seria um gigantesco meteoro caindo sobre elas! Podemos perceber que durante toda esta longa discussão Gould tentou criar revoluções que acabaram se mostrando no máximo ajustes à “visão recebida” do evolucionismo. Em grande parte das vezes, o que Gould criticava já fazia parte do próprio darwinismo ortodoxo e Gould parecia querer dar só uma ênfase a um processo que já era conhecido, mas não muito comentado. Este seria o caso de equilíbrio pontuado. Em outros casos, como no da exaptação, o que era proposto era uma mudança terminológica que deveria, quase que por conta própria, “refutar o adaptacionismo”. No caso aparentemente mais grave que dizia respeito ao papel das restrições em oposição à seleção natural, a separação entre Gould e Dawkins, que espelha a separação entre Fisher e Wright, é só um debate interno do próprio darwinismo e onde ambos os lados simplesmente escolhem onde darão sua ênfase sem que existam provas conclusivas para defender um lado em detrimento do outro. Isto sem contar nas inúmeras vezes que Gould diminuiu sua retórica panfletária e mostrou que ele não está em oposição ao que parece que está, como quando diz que a seleção natural é o principal processo na evolução de adaptações. Toda esta gama de falsas revoluções nos faz perceber que o papel de antidarwinista que imputam a Gould está errado, embora possa ter sido incentivado pelo próprio Gould. Grande parte de suas propostas estão corretas e, principalmente, fazem parte do darwinismo quando bem compreendido. Por isso uma oposição entre Gould e Dawkins é uma falsa oposição. No máximo é uma questão de ênfase em alguns processos ou em outros e não uma verdadeira dicotomia no seio do darwinismo contemporâneo. 3 Memes e Memética, um Início Vimos anteriormente que é possível pensar na evolução por seleção natural apenas analisando a sua estrutura abstrata e deixando de lado o substrato no qual esta estrutura é realizada, ou seja, que é possível construir um esqueleto da evolução sem a sua carne (seção 1.2). Análises como estas normalmente são chamadas de funcionalistas, e significa que algo pode ser entendido não pelo material com o qual é feito, mas pelo modo como funciona. O exemplo clássico é o de um motor de carro, que poderia ser feito de várias maneiras e com vários materiais, mas se cumprir a sua função ainda será considerado um motor de carro. Dentro da biologia o funcionalismo ficou conhecido como Darwinismo Universal. O Darwinismo Universal afirma que onde houver variação e reprodução com hereditariedade, de modo que tal variação possa influenciar a probabilidade de tal reprodução, e houver também uma quantidade finita de “nutrientes” necessários para a reprodução e tempo para este processo se desenvolver, haverá a possibilidade de um processo de evolução por seleção natural. Dado que esta reprodução nem sempre será perfeita, podendo surgir novas variações, e dado que dentre estas variações algumas poderão aumentar ainda mais o sucesso reprodutivo, então algumas variedades se tornarão mais comuns do que outras porque serão capazes de um número maior de reprodução. Tais variedades poderão sofrer novas mutações que as tornem ainda mais eficientes em se reproduzir. Este processo, onde mutações tornam algo mais eficaz de se reproduzir, é o que se convencionou chamar de “seleção natural”. Já este outro processo, no qual as mutações vão se acumulando, é o que se chama “evolução”. Temos, então, um processo de evolução por seleção natural perfeitamente compreendido sem nenhuma menção ao seu substrato. O fato de que tal análise pode ser feita, de maneira nenhuma garante que temos aqui um processo abstrato, ou como Dennett disse, algorítmico, que seria capaz de ser implementado em vários substratos. Para manter o exemplo já dado, é claro que o modo da construção de um motor de carro e o tipo de material com o qual ele foi construído podem influenciar no seu desempenho. Se tal motor fosse feito de 139 manteiga, por exemplo, ele sequer funcionaria. Pode ser que o único motor de fato possível seja o existente, neste caso nenhuma de suas variações possibilitariam o seu funcionamento. Existiria, então, uma forte dependência entre o material e a função, de tal modo que o funcionalismo daria lugar ao que se convencionou chamar de reducionismo. Mas se este for o caso, deve ser possível explicar o que há de “especial” em um determinado substrato para que ele seja o único existente capaz de cumprir tal função. Já vimos rapidamente que na filosofia da mente tais discussões acabam originando a separação entre o funcionalismo, o reducionismo e o dualismo (capítulo 2). Posições como as que Searle defendeu, de que o cérebro é o único substrato capaz de ter mente, deveriam ser capazes de explicar o que há de especial nos neurônios e que falta em todo e qualquer outro substrato existente. Na biologia, a possibilidade de se compreender o darwinismo de maneira abstrata causa consideravelmente menos controvérsia do que na filosofia da mente. Já vimos que vários biólogos, dentre eles o próprio Darwin, fizeram análises deste tipo. Mas mais importante ainda, vimos que já existem vários processos onde a evolução por seleção natural é, de uma maneira mais ou menos rigorosa, aplicada a outros substratos. Tal é o caso do sistema imunológico e dos príons. Vimos também Cairns-Smith aplicando tal processo à replicação de cristais, Jablonka aplicando-o à evolução epigenética e até Lee Smolin aplicandoo a universos inteiros! Estes são alguns dos casos conhecidos e já estudados, embora, principalmente nos exemplos de Cairns-Smith e Lee Smolin, existam fortes controvérsias. É por isso que Dawkins nos diz que “os genes são só os exemplos mais óbvios de replicadores. Outros candidatos são os vírus de computador e memes” (Dawkins, 2007, p.253). O mesmo podemos dizer dos príons, cristais e, quem sabe, até de universos! Além disso, o Darwinismo Universal tem certo poder preditivo na medida em que acredita que seres vivos que possam existir em outros universos muito provavelmente também se desenvolverão por um processo de evolução por seleção natural, mesmo que sejam feitos de substratos diferentes do nosso. Na verdade, como o nosso conceito de “vida” está muito associado aos processos encontrados no nosso planeta, é possível que a procura de vida em outros planetas fique limitada ao que conhecemos como vida aqui, de modo que outros “seres vivos” completamente diferentes dos encontrados aqui sejam ignorados 140 justamente por serem diferentes. Neste caso, a descoberta de um processo de evolução por seleção natural, seja em que substrato for, poderia ser um forte indicativo de que há grandes chances de haver vida ali. Nas palavras de Dawkins: As leis da Física supostamente são verdadeiras em todo o universo acessível. Há qualquer princípio da Biologia que possivelmente tenha uma validade universal semelhante? (...) haverá, ainda assim, um princípio geral que se aplique à toda vida? Evidentemente eu não sei, mas se tivesse que apostar, confiaria meu dinheiro em um princípio fundamental. Esta é a lei de que toda a vida evolui pela sobrevivência diferencial de entidades replicadoras (Dawkins, 2001, p.213). 3.1 Richard Dawkins e o Nascimento dos Memes Uma vez compreendido o que é o Darwinismo Universal, podemos compreender o que é a memética simplesmente dizendo que ela é o algoritmo da evolução por seleção natural aplicada diretamente à cultura. A única questão pendente seria, na verdade, saber se este substrato tem todas as propriedades necessárias para implementar a evolução darwinista, ou seja, se ele tem reprodução com hereditariedade, variação intraespecífica, possibilidade do surgimento de novas mutações, aptidão diferencial, falta de recursos para a reprodução e tempo para o processo ocorrer. Foi justamente para deixar mais intuitiva a idéia de que a evolução independe do substrato que Dawkins cunhou, no último capítulo de seu livro O Gene Egoísta, em 1976, o conceito de meme: Precisamos de um nome para o novo replicador, um substantivo que transmita a idéia de uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação. ‘Mimeme’ provém de uma raiz grega adequada, mas quero um monossílabo que soe um pouco como ‘gene’. Espero que meus amigos helenistas me perdoem se eu abreviar mimeme para meme. Se servir como consolo, pode-se, alternativamente, pensar que a palavra está relacionada com ‘memória’, ou à palavra francesa même. (Dawkins, 2001, p.214) Um meme pode ser compreendido como uma unidade de cultura, um comportamento ou uma idéia que pode ser passado de pessoa para pessoa. Os exemplos de memes são inúmeros e os mais comumente citados são: a moda no vestuário e na alimentação, cerimônias e costumes, arte e arquitetura, engenharia e tecnologia, melodias, músicas, idéias, slogans, maneiras de construir arcos, o 141 alfabeto, a linguagem, queimar a bandeira americana, a religião, o xadrez, o nazismo, a pornografia, os direitos humanos, o desconstrucionismo etc. Toda a cultura, todos os comportamentos sociais, todas as idéias e teorias, todo comportamento não geneticamente determinado, tudo que uma pessoa é capaz de imitar ou aprender com uma outra pessoa é um meme. A definição mais usada de memes foi dada por Susan Blackmore: “memes são instruções para realizar comportamentos, armazenadas no cérebro (ou em outros objetos) e passadas adiante por imitação” (Blackmore, 1999, p.17). Vemos já aí a referência a questão: os memes estão só em cérebros ou se podem ser encontrados em outros substratos também como livros, cds, fitas etc? Tal questão será abordada aqui, mas algumas implicações só serão discutidas no último capítulo (seção 10.8). Além disso, Blackmore fala de memes como “instruções”. Deste modo ela habilmente foge de uma definição comum, usada por Dawkins e Dennett, de memes como informação. É preferível utilizar esta definição, pois o conceito de informação não está bem definido nem mesmo na biologia, como muito bem observou Maynard-Smith (1993, p.79). No entanto, é possível ao menos deixar um pouco mais intuitivo o que está sendo chamado de informação. Uma possível definição utilizada nesta área diz que informação é “qualquer tipo de estado mental, consciente ou não, que é adquirido ou modificado pelo aprendizado social, e que afete o comportamento” (Richerson & Boyd, 2006, p.5. Minha tradução). Qualquer mudança que cause uma diferença no conteúdo de um estado mental será considerada como uma informação. Se tal conteúdo será entendido de maneira externalista ou internalista é uma discussão importante, mas não é uma questão que será tratada aqui. Utilizase o termo “conteúdo mental” apenas para diferenciar este termo de “estado mental”, pois em certas concepções pode-se dizer que mudanças de humor podem não alterar o conteúdo e neste caso tais mudanças não seriam relevantes para a memética. Blackmore deixa bem claro que mudanças de humor não são passadas por imitação, por isso não são meméticas. Mas, de outro modo, pode-se considerar que mudanças de humor podem sim ser tratadas como transmissíveis e carregando alguma espécie de informação em um sentido mais amplo. O primeiro passo para falar em uma evolução memética é separá-la da evolução genética. Veremos, no próximo capítulo, que a biologia já foi fonte de várias outras abordagens que tinham o intuito de explicar o comportamento, em 142 particular o comportamento humano, e o advento e desenvolvimento da cultura. Dentre estas destacamos a sociobiologia e a psicologia evolutiva. No entanto, é preciso separar claramente a memética destes tipos de tratamento para a questão da cultura. Estas abordagens explicam a cultura de alguma forma ligada a evolução genética. Daí ter surgido a imagem da cultura amarrada em uma coleira (leash) comandada pelos genes. Mas a memética, tratando-se de uma evolução por conta própria, não considera aceitável a idéia de que a evolução da cultura é de alguma forma comandada pela evolução dos genes e, particularmente nesta questão, se aproxima mais das ciências humanas. Dawkins fez questão de ressaltar isso assim que criou o conceito de meme: Sempre que surgirem condições nas quais um novo tipo de replicador possa fazer cópias de si mesmo, os novos replicadores tenderão a dominar e a iniciar um novo tipo de evolução própria. Quando essa nova evolução começar não terá, em nenhum sentido obrigatório, que se submeter à antiga. A evolução antiga de seleção de genes, produzindo cérebros, forneceu o ‘caldo’ no qual os primeiros memes originaram-se (Dawkins, 2001, p.215). Deste modo, os memes passariam de pessoa para pessoa por imitação “em um sentido amplo”, o que lhes garantiriam a hereditariedade. Como se daria exatamente a passagem dos memes é uma questão em aberto. Dawkins fala da imitação “em um sentido amplo”, pois quer incluir aí também outros processos de aprendizagem cultural que não se dão exatamente por um processo imitativo. Já Susan Blackmore, como veremos no final deste capítulo (seção 3.3), defende que memes só passariam através da imitação “em um sentido estrito”, ou seja, através de cópias do comportamento. Essa discussão será apenas tangenciada no presente capítulo e tratada adequadamente no oitavo capítulo, pois o que importa aqui é que os memes são passados, e não a forma como isso acontece. Em uma primeira simplificação podemos pensar nos memes como "padrões de comportamento": uma pessoa aprende a dançar imitando certo padrão de comportamento. Este padrão pode ser bem adaptado ou não a esta pessoa. Será, por exemplo, melhor adaptado se ela tiver um bom desempenho físico, um bom ouvido para seguir o ritmo da música, uma boa estrutura cerebral capaz de traduzir este ritmo em movimentos do corpo, uma boa memória corporal, um gosto pelo tipo de música que está dançando, uma vida social que a leve a lugares onde se pode dançar, etc. Tudo isso é o "ambiente" no qual este meme vai se inserir. Se este for o caso, ele estará bem adaptado a este ambiente e poderá, 143 então, ser passado para outras pessoas, o que significa somente que esta pessoa tenderá a influenciar outras pessoas a dançar, seja através de incentivo verbal, seja dançando com elas, seja ensinando-as a dançar, ou mesmo somente sendo observada e admirada. Dawkins nos conta uma história interessante que exemplifica bem o que pode ser chamado de um meme. Ele nos conta que teve uma aluna que tinha um hábito bastante peculiar: Quando lhe era feita uma pergunta que exigia um pensamento muito profundo, ela espremia os olhos, abaixava a cabeça em seu peito, e então ficava imóvel por até meio minuto, depois do que ela levantava novamente a cabeça, abria os olhos e respondia a pergunta com fluência e inteligência (Dawkins, in: Blackmore, 1999, p.vii. Minha tradução). Tal comportamento seria só uma idiossincrasia particular se Dawkins não tivesse resolvido fazer uma imitação dela para alguns colegas durante um jantar. Surpreendentemente um filósofo de Oxford, que estava neste jantar, imediatamente reconheceu tal padrão de comportamento como típico de Wittgenstein e, baseado nisso, disse qual deveria ser o sobrenome desta aluna. Por um acaso ele conhecia os pais desta aluna, ambos seguidores devotos de Wittgenstein, e que tinham copiado estes gestos dele. A aluna era, então, pelo menos a terceira geração deste padrão de comportamento, e Dawkins a quarta! No entanto, não devemos pensar em memes só como cópias diretas de comportamentos. Em seu livro O Rio que saía do Éden (1996), Dawkins nos fornece uma análise muito interessante feita com a propagação de correntes de cartas. Ele nos fala da “carta de São Judas” que circulou o mundo em várias versões, sendo já conhecida pelos registros oficiais do correio americano que relatam ser ela de uma época anterior a tais registros e exibir surtos epidêmicos recorrentes. Dawkins faz uma análise de tal carta mostrando que podem ser encontradas mutações que a torne mais provável de ser passada, aumentando, deste modo, a sua freqüência. Afirmações completamente implausíveis, por exemplo, tendem a mudar para afirmações mais plausíveis e que apelam não diretamente para o medo, mas para o bom senso. Algo do tipo “talvez nada aconteça com você, mas não é melhor prevenir do que remediar?” é muito mais eficaz em se reproduzir do que “se você não mandar esta carta para sete pessoas em uma quarta-feira você morrerá na quinta”. Modificações como estas vão 144 gradualmente tornando a carta cada vez mais eficaz e, por isso, Dawkins pode dizer que “como no caso das correntes de cartas, o sucesso entre os replicadores químicos é simplesmente sinônimo de freqüência de circulação” (Dawkins, 1996, p.130). Um exemplo simples de evolução por seleção de memes é o fato de que endereços na internet competem entre si pela atenção do público. Embora seja óbvio que o conteúdo da página eletrônica influencie nesta competição, podemos ver que endereços na internet mais simples e objetivos têm maior chance de serem lembrados e tenderão a prosperar. A previsão clara é que seu número aumente consideravelmente. Enquanto isso, endereços mais complicados criarão uma pressão seletiva para a existência de melhores sites de busca. Se todos os endereços fossem simples, se fosse só uma questão de colocar o assunto que alguém busca entre o “www” e o “com.br”, sites de busca seriam largamente irrelevantes. Com a existência de sites de busca muito eficientes e muito usados, a tendência é que a pressão seletiva por endereços mais simples diminua. Já teríamos, então, um “objeto” de seleção que seria o meme que, através da imitação, poderia se reproduzir com hereditariedade, ou seja, suas cópias seriam significativamente semelhantes a ele mesmo. Perceber a existência da hereditariedade neste processo é extremamente relevante. Vimos no primeiro capítulo que podemos ter reprodução sem hereditariedade, como no caso de nuvens e do fogo (seção 1.1), mas não é isso que parece acontecer na cultura. Além dos exemplos já tratados, podemos pensar em sotaques, línguas maternas, religiões, preferências políticas etc. Todos estes comportamentos culturais são fortemente influenciados pelo comportamento dos pais. Já “surtos culturais” entre as crianças, como ioiôs, bambolês, pula-pulas e virar o boné para trás são comportamentos também herdados, mas normalmente dos pares, pessoas com a mesma idade. Para a memética, se o comportamento foi transmitido pelos pais ou por pares é algo largamente irrelevante. O que de fato importa é que ele foi transmitido com hereditariedade. Embora possamos não saber como esta hereditariedade se dá detalhadamente, isto não importa muito no momento. Para se falar de herança comportamental basta que tais comportamentos sejam “estatisticamente afetados pelo comportamento de seus pares” (Dawkins, 2005, p.243). 145 Já a variação entre os memes é uma outra constatação que pode ser confirmada por qualquer antropólogo, inclusive pode haver até um excesso de variação que, como veremos no último capítulo, foi usado para criticar a memética (seção, 10.5). Além disso, temos também o tempo necessário para ocorrer um processo de evolução, até porque é largamente aceito, e evidente, que as mudanças na cultura são muito mais rápidas do que na biologia, tão rápidas que sua exagerada velocidade também é usada, como veremos no último capítulo, como uma crítica à memética (seção 10.7). Falta, então, somente constatar se esta variação é de fato adaptativa, isto é, se ela influencia diretamente na capacidade de um meme ser copiado. Já vimos o caso dos príons que são replicadores por conta própria, pois eles só precisam encontrar um outro tipo determinado de proteína para induzi-la a tomar a sua forma e, deste modo, se replicar. Mas replicadores independentes como estes normalmente são raros e muito simples. Do mesmo modo que um gene não se replica sozinho, pois precisa de toda uma estrutura celular complexa para isso, os memes também não são replicadores por conta própria. Memes precisam principalmente do aparato cognitivo-comportamental humano19 para se replicar. É justamente por isso que os memes competem: O cérebro humano e o corpo por ele controlado não podem fazer mais do que uma ou algumas coisas de cada vez. Se um meme quiser dominar a atenção de um cérebro humano, ele deve fazê-lo às custas de memes ‘rivais’. Outros artigos pelos quais os memes competem são o tempo de rádio e televisão, espaço para anúncios, espaço de jornal e espaço de estantes de biblioteca (Dawkins, 2001, p.219) . Deste modo, memes competiriam por espaço para replicação. Memes podem ser passados de mente para mente não só através de cópias do comportamento, como, por exemplo, quando se aprende a dançar valsa, mas também através de outros meios como livros, e-mails, cartas, internet, propagandas, televisão, rádio e tudo mais que é capaz de passar cultura. Eles também competem por estes meios de informação, como competem pela produção e pela publicação. Para exemplificar a variedade e a competição entre memes podemos citar a organização WIPO (World Intellectual Property Organization)20 que nos diz que em 2005 foram apresentados cerca de 1.660.000 pedidos de patentes somente nos 19 Quais outros animais seriam capazes de evolução memética será parte do assunto do oitavo capítulo. 20 Mais dados sobre a WIPO podem ser encontrados em http://www.wipo.int/portal/index.html 146 Estados Unidos. Se somarmos a este número as patentes registradas em outros países, que deve ser consideravelmente menor, e somarmos também o número de invenções que nem tentaram registrar patentes, ficaremos com um número assombroso de novas invenções em um único ano. A maioria destas patentes nunca sairá do papel para a linha de produção ou para a publicação. Das que foram produzidas, poucas terão sucesso, e destas, poucas terão sucesso duradouro. Fica clara, então, a enorme pressão seletiva para estas inovações. Isso sem contar com as pressões seletivas “internas”, pois nem todas as idéias são perseguidas pelos seus próprios criadores: algumas devem se contentar com uma brevíssima existência mental. Quem há de saber quantas idéias inovadoras nunca vêem a luz do dia? Sousa e Sousa (2007) nos fornecem o exemplo da indústria farmacêutica: para que cada remédio novo chegue ao mercado, entre 10 e 5 mil compostos químicos são testados, destes, só cerca de 250 conseguem chegar aos testes préclínicos. Fica claro que a imensa maioria é recusada, sendo que mesmo aquele único remédio que foi produzido pode não ser aceito bem pelos consumidores. Dado este gigantesco número de tentativas até que algo dê certo, fica levantada a questão: quanto este processo é de fato conscientemente dirigido por um agente livre capaz de fazer escolhas bem direcionadas e o quanto é simplesmente tentativa e erro? Sabemos que grande parte da visão de que o desenvolvimento tecnológico se dá de maneira planejada e dirigida é motivado pelo fato de que os erros são esquecidos e ignorados quando fazemos uma análise rápida deste processo. Isso não acontece somente no processo tecnológico, pois Gould nos apresenta exatamente o mesmo problema no processo científico (cf. Gould, 1997, p.159 em diante)21. Existe, por exemplo, um número limitado de livros impressos por ano. Um meme será impresso em um livro se ele conseguir vencer os outros memes que querem ser impressos. O que determinará o vencedor é a adaptabilidade do meme ao ambiente. Assim sendo, se uma editora costuma publicar livros de literatura, dificilmente publicará livros de filosofia. Os memes da filosofia não estão adaptados ao ambiente da literatura, do mesmo modo uma banda de chorinho 21 Khun, Feyerabend e todos os sociólogos e historiadores da ciência também insistem neste fato e nos apresentam vários casos de erros esquecido pela historiografia tradicional. Se feita uma análise detalhada veremos que os erros superam em muito os acertos. O dito “progresso” da ciência e da tecnologia se dá muito mais por tentativa e erro do que gostamos de supor. 147 dificilmente vai gravar um cd de Hard Core, etc. Todavia mutações podem ocorrer: os livros de filosofia podem ficar cada vez mais parecidos com livros de literatura. Se isso ocorrer, eles poderão ser impressos pelas editoras de literatura e terão, assim, um maior sucesso replicativo. É esperado então que eles se tornem cada vez mais comuns devido ao seu sucesso adaptativo. É uma questão em aberto se neste caso citado o ambiente dos memes é o próprio ambiente da literatura, como as gráficas, os livros e as livrarias, ou se é a mente das pessoas que participam deste ambiente, os editores, os leitores, os gerentes das livrarias etc. Nesta segunda hipótese, o ambiente dos memes será exclusivamente a mente e o resto será considerado parte do comportamento memeticamente determinado. Nas palavras de Dennett: O estoque de mentes é limitado, e cada mente tem uma capacidade limitada de memes, portanto, há uma forte competição entre os memes para entrar no maior número de mentes possíveis. Esta competição é a principal força seletiva na memosfera (Dennett, 1991, p.206) . Deste modo, temos que memes competem por espaço para replicação. Há um número muito maior de idéias, conceitos e comportamentos do que uma mente é capaz de aprender e, principalmente, executar. Esta seria uma pressão seletiva “interna” que se adicionaria a já tratada pressão “externa”. Como eles são variáveis, é provável que tal variação seja adaptativa, no sentido de que pode auxiliar ou atrapalhar nesta competição. Se auxiliar, será dito que tal meme foi selecionado, pois, como vimos, ser selecionado significa somente ter um maior número de cópias do que a média da população. Como tais memes podem sofrer novos processos de variação e como esta nova variação pode ser adaptativa ou não, então teremos um acúmulo de variações o que, na verdade, é o significado do termo “evolução”. Cabe aqui a questão de saber se esta seleção se dá de maneira que poderia ser chamada de natural ou artificial, ou seja, se existe um sujeito da escolha capaz de decidir que memes entrarão ou não em sua mente. Tal questão será tratada em breve e também no último capítulo (seção 10.10), mas é uma questão que somente tangencia o assunto tratado, pois seja como for haverá evolução por seleção. Temos assim, todas as características necessárias para se entender o processo da evolução cultural como um processo tipicamente darwinista e, deste modo, podemos falar do algoritmo do darwinismo universal sendo instanciado na 148 cultura. Podemos, então, analisar a cultura a partir das técnicas desenvolvidas para tratar da evolução biológica. A primeira análise feita por Dawkins foi direcionada para o assunto mais controverso que ele gosta de tratar: a religião. Para Dawkins a religião é o que acabou sendo chamado de “memeplexo”, ou seja, um conjunto de memes que se unem em um todo coeso, pois cada meme particular se beneficia desta união, exatamente do mesmo modo que genes diversos se associam na construção de organismos. Nas palavras de Dawkins: Talvez pudéssemos considerar uma igreja organizada, com sua arquitetura, rituais, leis, música, arte e tradição escrita como um conjunto co-adaptado estável de memes que se auxiliam mutuamente. Para mencionar um exemplo específico, um aspecto da doutrina que tem sido eficiente em compelir à obediência religiosa é a ameaça do fogo infernal (Dawkins, 2001, p.219). A religião seria, então, constituída de diversos memes que se uniriam justamente porque unidos eles são mais capazes de sobreviver e se replicar do que separados. O conceito de deus22, por exemplo, que sozinho pode significar só uma fonte suprema de poder, tem uma capacidade muito maior de ser passado adiante se se unir com a idéia de que este deus é que garante um mundo justo, punindo os maus e recompensando os bons. Dawkins gosta de discutir a religião como um memeplexo simplesmente porque ele gosta de criticar a religião. Mas duas coisas devem ficar claras: em primeiro lugar, tratar a religião como um meme não é uma crítica por si só, pois a ciência, e tudo mais que Dawkins escreve, também seriam memes. Em segundo lugar, e mais importante, há aqui uma clara retórica enganosa, pois Dawkins não nos dá uma análise consistente o suficiente para aceitar sua proposta, ele apenas constrói um ótimo exemplo de uma just so story. O problema com este modo de argumentação é que as just so story são enganosamente interessantes, mesmo sem nenhuma evidência que as provem. Poderíamos dizer que elas são memes muito eficazes! É exatamente por causa destas “narrativas sagazes sem fundamento empírico” que, como vimos no segundo capítulo, Gould critica o panglossianismo dos chamados “adaptacionistas”. É esta saída do adaptacionismo de dentro da biologia para outras áreas que ele considera ainda mais perigoso, e está certo. Não podemos aceitar explicações meméticas só porque elas nos parecem interessantes, 22 O termo “deus” será sempre usado em minúsculo no que se segue. 149 sagazes, criativas ou simples. É uma “simplicidade enganosa”, como disse Gould. Uma boa narrativa memética necessita ter, como pano de fundo, uma análise empírica mais detalhada, bem como análises psicológicas explicando o motivo de certos memes terem mais sucesso do que outros. Não basta construir uma história interessante, pois uma história assim é apenas uma estória. Deixando de lado esta questão, e olhando-a pelos olhos de Dawkins, podemos ver que de fato a idéia do temor do “fogo eterno” realmente se une a idéia de “deus” possibilitando que elas se auxiliem e até se protejam mutuamente. Talvez a expressão mais clara e aberta sobre este assunto seja a teoria de Pascal que afirma que se não sabemos se deus existe ou não, é melhor apostar que ele existe, pois se acreditarmos na sua existência e ele não existir, não teremos perdido muito se comparado com o que perderemos não acreditando nele e com ele de fato existindo. Neste segundo caso poderemos ter simplesmente uma eternidade de sofrimento! Assim, por uma simples questão de probabilidade, é melhor apostar que deus existe. É interessante reparar que a formação de cultos, religiosos ou não, é um ótimo exemplo do poder dos memes. E quanto mais rigoroso for o culto, melhor é o exemplo. Muitos cultos religiosos exigem de quem adota a sua ideologia a total abdicação dos valores mundanos em favor dos valores de tal culto. Deste modo, a pessoa passa a trabalhar quase que exclusivamente para propagar tal culto. Os memes deste culto tomam conta do comportamento dela. Isso poderia ajudar a explicar porque mesmo em sociedades que tendem à secularização ainda encontramos segmentos religiosos que parecem ficar cada vez mais rigorosos ou, pelo menos, mantendo um rigor antigo que já não parece fazer sentido algum. A memética nos diz que tais cultos não prosperam a despeito de tal rigor, eles prosperam por causa de tal rigor. Quanto mais rigoroso, mais seus fiéis dedicarão seu tempo à propagação de seus memes. Afinal, eles crêem “porque é absurdo”! Como Dawkins muito bem mostrou, isso está presente em todo tipo de religião baseada na fé. Ter fé, segundo ele, não é acreditar sem evidências, e sim acreditar a despeito das evidências contrárias. Esta é uma das diferenças fundamentais entre ciência e religião, pois um cientista pode crer fortemente em suas teorias, mas evidências contrárias devem, no mínimo, abalar suas crenças. Como nos disse Blackmore: 150 Conforme aponta Dawkins, os bons católicos têm fé; eles não precisam de prova. De fato, é uma medida de quanto espiritual ou religiosa uma pessoa é o fato de ela ter fé suficiente para acreditar em coisas completamente impossíveis sem fazer perguntas, tais como se o vinho realmente se transforma em sangue. Essa afirmativa não pode ser testada, porque o líquido dentro do copo ainda tem o gosto, o cheiro e a aparência do sangue – é preciso ter fé para tomá-lo como sendo realmente o sangue de Cristo. Se você for tentado pela dúvida, é preciso resistir. Deus não é apenas invisível, mas ele ‘age de maneiras misteriosas’. O mistério é parte do pacote, e tem que ser particularmente admirado e admitido. Essa qualidade de estarem além de qualquer teste protege os memes da rejeição (Blakmore, 1999, p.192. Minha tradução). Religiões seriam, então, conjuntos de memes formando um memeplexo. Um exemplo bem simples e intuitivo apresentado por Blackmore para esclarecer o que é um memeplexo é o do símbolo da reciclagem: reciclar, por si só, é um meme ou um conjunto de memes, mas tal meme se uniu a outro que é o símbolo da reciclagem que todos conhecem. Esta união não só aumenta a reprodutibilidade de tal símbolo, encontrado com frequência, mas também aumenta a reprodutibilidade do meme da reciclagem, pois ao ver tal símbolo imediatamente o associamos com a reciclagem. Assim, a união de dois memes aumentou a reprodutibilidade de cada um deles individualmente. Questões como a religião são extremamente controversas e Dawkins particularmente gosta de colocar a mão neste vespeiro. Um outro vespeiro é tratar o nazismo como um meme. Um nazista, por exemplo, ao defender o nazismo está tentando passar este meme, ou memeplexo, para outras pessoas. Se as mentes dessas outras pessoas forem um ambiente propício para o meme do nazismo se instalar, ele assim o fará e tentará passar dessas pessoas para outras pessoas. Muitos fatores podem tornar a mente mais propícia para o nazismo. Um muito citado é a capacidade de obedecer regras sem questioná-las. Algumas análises sobre como o nazismo surgiu colocam esta “habilidade alemã” dentre os motivos para a proporção na qual se deu o nazismo na Alemanha. Podemos conjecturar que em um país como o Brasil, onde algumas leis simplesmente “não pegam”, tal meme teria uma dificuldade consideravelmente maior para se propagar. Mas tal fator é claro que não foi o único: a idéia de uma raça pura, do nacionalismo, o aumento no desemprego e sua posterior culpa sendo colocada sobre os judeus e estrangeiros são alguns dos outros fatores necessários para a propagação do nazismo. 151 Na verdade, o meme do nazismo é um exemplo um tanto complicado. Os fatores que levaram ao surgimento do nazismo na Alemanha foram muitos e poderíamos citar desde um anti-semitismo já presente na Europa até problemas econômicos, passando, inclusive, por controvertidas pesquisas de psicologia evolutiva (seção 4.4) que afirmam haver módulos cerebrais para uma espécie de xenofobia, na medida em que distinguir o seu grupo de grupos rivais foi algo importante na história evolutiva do homem. Mas o nazismo é um exemplo interessante aqui em primeiro lugar porque parte da sua causa foi a própria teoria da evolução, que depois de Darwin, com o seu primo Galton e outros, deu origem ao programa eugenista que visava “limpar as raças”. Algumas vezes este programa foi direcionado contra criminosos, como no caso de Cesare Lombroso, outras vezes contra doentes mentais, como no caso da eugenia nos Estados Unidos, e na Alemanha foi contra todos os que não eram arianos. Veremos um pouco mais sobre esta questão no capítulo 5, mas para uma discussão mais trabalhada há o brilhante livro de Gould A Falsa Medida do Homem (2003). A questão é que todos estes fatores, sejam eles psicológicos, neurológicos, econômicos ou sociais, por mais complexos que possam ser, do ponto de vista memético são parte do ambiente ao qual um meme, ou memeplexo, deve se adaptar. É sempre importante lembrar que o ambiente do meme não é apenas o substrato físico dos memes nos cérebros, mas também os outros memes com os quais ele deve competir ou com os quais ele deve trabalhar junto. Isso significa que grande parte do sucesso replicativo do nazismo pode ter se dado porque já existiam outros memes, como o anti-semitismo, que lhes eram propícios. Mas o fato que nos interessa aqui é que o nazismo é hoje em dia considerado um claro exemplo de como até mesmo uma péssima idéia pode se propagar rapidamente em um ambiente que lhe é propício de uma forma que em tudo lembra a dinâmica de uma epidemia. O exemplo do nazismo foi propositalmente utilizado para deixar em evidência um aspecto comumente citado dos memes. Estes são normalmente tratados como parasitas ou vírus que se instalam em nossa mente por simples benefício próprio. Assim como o vírus da raiva, que faz o cão salivar e ficar nervoso, pois tal vírus só pode ser passado da saliva para o sangue, os memes também se instalam em nossa mente e mudam o nosso comportamento para o benefício próprio, é assim que eles se replicam. Os melhores memes são os que 152 melhor conseguem mudar o nosso comportamento permitindo que outras pessoas possam nos copiar, ou melhor, copiar a eles. Estes memes serão mais comuns no acervo dos memes, ou seja, eles terão mais sucesso replicativo do que os outros. Existe uma discussão se a principal analogia dos memes seriam os vírus e as doenças infecciosas, ou se seria a transmissão genética. Tal discussão não tem nenhuma implicação mais profunda sendo só uma questão de escolha da analogia que se considera mais intuitiva. Veremos que Cavalli-Sforza, particularmente, gosta de tratar a cultura de maneira epidemiológica (seção 4.9). Dennett também aprecia tal abordagem, mas com algumas ressalvas que serão tratadas em breve. Já Dawkins costuma enfatizar mais a questão da replicação genética, embora também fale do “vírus da mente”. Mas, como vimos, dentro de uma perspectiva de seleção genética, de onde surge o conceito de gene egoísta, todo gene pode ser tratado como um tipo de vírus, ou seja, uma entidade particular preocupada somente com sua própria replicação. E se existem organismos é porque tais entidades egoístas se uniram, pois unidas cada uma delas é capaz de aumentar o seu número de cópias. Fica claro, então, que estas duas maneiras de se tratar os memes não se diferenciam em nada relevante. No entanto, a analogia do vírus permite um tratamento mais direto da memética com modelos da epidemiologia. De qualquer modo, temos que memes se replicam em grande parte através da imitação e competem por espaço em seu ambiente. Se isso acontece, ocorrerá uma seleção de memes e, por conseguinte, uma evolução dos memes. Por evolução dos memes entende-se que cada vez mais os memes serão mais eficazes em fazer cópias de si. O que é importante aqui, e o que diferencia esta abordagem das outras abordagens da cultura, é que agora surge a chamada perspectiva do meme. Ou seja, a visão de que os memes mais comuns são comuns porque são bons replicadores e isso quer dizer que os memes, assim como os genes, trabalham em vantagem própria e não em vantagem do indivíduo ou do organismo. Nas palavras de Dawkins “o que não levamos em conta anteriormente é que uma característica cultural poderá ter evoluído da maneira como o fez simplesmente porque é vantajoso para ela própria” (Dawkins, 2001, p.221). Esta seria a resposta à pergunta que Dennett considera fundamental, a saber, Cui Bono? “Quem se beneficia?” Do mesmo modo que a separação entre o gene e o indivíduo fica mais clara na relação entre os dois onde os “anseios” são diferentes, mas é o “anseio” do gene que vai dominar, é na relação entre o meme e 153 o organismo que fica mais clara a separação entre eles. Há, por exemplo, mutações genéticas que impedem a transmissão dos memes, o autismo poderia ser um exemplo. Mas há também situações onde é o meme que comanda. Os exemplos mais citados são o do suicídio coletivo, da castidade, do controle de natalidade e da adoção de pais férteis. Todos estes memes impedem a passagem dos genes, por isso a transmissão deles não pode ser genética. Uma pessoa casta não pode passar o gene da castidade adiante23. A explicação, pela perspectiva do meme, para a existência do meme da castidade é que uma pessoa casta não tem que gastar o seu tempo resolvendo problemas de família e de criação dos filhos, assim sobra mais tempo para ela passar os seus memes e, dentre eles, o meme da castidade. Tal explicação pode parecer estranha, mas a consideração que uma pessoa casta pode se preocupar menos com os valores “mundanos” e assim passar os valores “divinos” com mais eficiência é, de fato, um dos motivos declarados para a existência do voto de castidade em muitas religiões (Dawkins, 2001, p.220). No entanto, é claro que esta não é toda a história memética da difusão da castidade. Dawkins precisaria ainda explicar porque a castidade se mostrou bem adaptada à mente do casto, quais foram as estratégias desenvolvidas para ela se espalhar desta mente para outras e também porque dentre as várias pessoas que entraram em contato com este meme, ele só se fixou em algumas. Por questões como estas é que os textos que temos sobre memes, incluindo o livro de Blackmore, não podem ser ainda considerados como um trabalho em memética. Do mesmo modo, um biólogo que explicar que um pavão tem cauda grande e por isso teve mais filhote, se esqueceu de explicar por que a cauda grande lhe propicia isso. É uma explicação interessante, mas parcial. Enquanto não houver fundamentação empírica é uma just so story. Estes exemplos do que é ver a cultura através da visão dos memes normalmente causam desconforto, pois neles são os memes que se replicam e não nós que os replicamos porque queremos. São as palavras que querem ser ditas e não nós que as queremos dizer. Pensemos no caso de cultos que fazem “lavagem cerebral” e chegam até a levar ao suicídio coletivo, como o de Jim Jones. 23 Isso não implica que não possa haver um “gene da castidade”, pois pode acontecer aqui o mesmo que acontece no caso da anemia falciforme: este gene pode ser um alelo recessivo em um ambiente onde ser heterozigoto é positivamente selecionado. 154 Pensemos também no processo de criação artística onde um personagem de um romance ou um quadro ou uma música parecem ter uma vida própria. A própria idéia de propaganda, por exemplo, vem da idéia de que um comportamento pode se propagar de pessoa em pessoa. Estes são casos em que sentimos claramente que quem comanda são os memes, são eles é que querem ser passados. Esta é a origem da visão de um meme como um vírus que invade nossa mente. Mas Susan Balckmore e Dennett não concordam com esta visão, nas palavras do filósofo: O porto seguro de que todos os memes dependem é a mente humana, mas ela mesma é um artefato criado quando os memes reestruturaram um cérebro humano para torná-lo um habitat melhor para os memes. (...) Mas se é verdade que as mentes humanas são, em grau notável, as criações de memes, então não podemos sustentar a polaridade de visão que analisamos anteriormente; não pode ser ‘memes versus nós’, porque infestações anteriores de memes já tiveram um papel importante determinando quem ou o que somos. A mente ‘independente’ que luta para se proteger de memes alienígenas e perigosos é um mito (Dennett, 1991, p.207). Blackmore, concordando com Dennett, diz que o “eu” é um meme, ou melhor, um conjunto de memes extremamente bem adaptados à nossa mente e com uma forte estratégia protetora, onde tudo que não é ele é tido como perigoso (cf. Blackmore, 1999, p.231). O “eu” é um complexo de memes do mesmo modo como um organismo é um complexo de genes, cada um trabalhando em benefício próprio. Tal questão será rapidamente trabalhada no último capítulo (seção 10.10), mas já foi dito aqui que esta posição não é necessária para se compreender a memética. Kate Distin, por exemplo, em um livro recente sobre a memética, fala do papel de um agente da mudança memética que seria o sujeito de tal mudança (cf. Distin, 2005, p.172). Já a explicação de por que a mente humana foi criada pelos memes é uma tentativa de explicar um fato ainda inexplicável dentro da antropologia, a saber, o tamanho do cérebro humano e o surgimento da cultura. Não existe tese comumente aceita até hoje sobre como o cérebro humano ficou grande tão rápido. Também não existe uma tese comumente aceita de como podemos ter tamanha capacidade de absorver cultura tendo um cérebro basicamente igual ao cérebro de nossos ancestrais de 100 ou 150 mil anos atrás. Para abarcar tais problemas, Dawkins, Dennett e Blackmore utilizam o princípio de co-evolução entre memes e genes. Tanto a co-evolução, como as explicações para o rápido aumento na 155 capacidade craniana dos seres humanos serão tratadas na seção 4.9 e 5.4 respectivamente. No entanto, Dawkins é criticado por ter voltado atrás nas suas considerações sobre a memética (cf. Dawkins 1999, p.112). Chegou a dizer que a evolução cultural não era de fato uma evolução no sentido rigoroso do termo, havendo apenas algumas características similares (cf. Dawkins, 2001, p.319). Voltou a falar que esta relação seria apenas uma de analogia, e embora reconheça que algumas analogias levaram a grandes avanços nas ciências, diz que não se deve levar analogias longe demais (cf. Dawkins, 2001, p.326). Mas posteriormente ele disse que, na verdade, seus motivos sempre foram mais modestos do que criar uma ciência dos memes. Ele só estava tentando mostrar o que era o Darwinismo Universal, ou seja, mostrar que o importante dos genes não era o DNA, mas que ele era um replicador. No entanto, em uma análise do problema sobre a possibilidade de uma memética, feita para o prefácio do livro de Blackmore, ele considera que as críticas feitas à memética não foram suficientes para refutá-la: Creio que defendi de forma suficiente a analogia entre os memes e os genes, estabelecendo-a como uma analogia persuasiva, e também deixando claro que as objeções óbvias que lhe podem ser feitas podem ser respondidas de forma satisfatória (Dawkins in Blackmore, 1999, p.xv. Minha tradução). No prefácio deste livro ele diz que agora a verdadeira questão que deve ser respondida é se tal analogia é útil, embora não dê uma resposta, diz se manter aberto para propostas como as de Blackmore. Logo após ler o livro de Blackmore, mas antes de sua publicação, ele questiona se a memética é boa ou má ciência e conclui que ainda acha que é boa ciência, embora reafirme que alguns entusiastas “se deixam arrebatar e vão longe demais” (Dawkins, 2000, p.383). No entanto, em seu penúltimo livro ele considerou refutado o fato de que perdeu o entusiasmo com os memes (cf. Dawkins, 2005, p.209). Já em seu último livro, Dawkins parece estar bem menos cético em relação à memética. Faz uma defesa de que memes, se bem entendidos, tem fidelidade, mostra o que é um memeplexo e como ela não é diferente do que encontramos na genética e conclui: “Para mim algum tipo de seleção natural memética parece oferecer uma explicação plausível para a evolução detalhada de religiões específicas” (Dawkins, 2007, p.265). No prefácio ao livro de Blackmore, Dawkins apresenta uma pesquisa que fez com alguns termos em uma página de busca na internet. Na seguinte tabela 156 comparamos a incidência de tais termos na época (1998) com a incidência de tais termos 10 anos depois24: 29 de Agosto de 1998 29 de Agosto de 2008 Memetic 5042 303.000 Sociobiology 6679 1.040.000 Extended Phenotype 515 54.400 Exaptation 307 46.900 Meme pool 352 122.000 Memeticist 163 2.890 Meme complex 494 5.490 Population memetics 41 607 Tabela 1: memes na internet Podemos ver que existem discrepâncias enormes que provavelmente se justificam porque as páginas de busca de hoje em dia são muito mais poderosas do que as de 10 anos atrás. No entanto, para mostrar que houve realmente um grande avanço fizemos variações das análises de Dawkins. Quando o termo memetic foi buscado exclusivamente no título das páginas encontramos em um número de 17.500 páginas. Buscando o mesmo termo, mas desta vez só no título publicados apenas no último ano encontramos o surpreendente número de 1.180! Se tal termo for colocado no plural passamos a ter 856 ocorrências só para títulos no último ano, e 21.800 só para títulos em qualquer época. Achamos mais páginas para memetics do que memetic porque solicitamos a busca somente da palavra exata e deste modo uma palavra e seu plural são considerados palavras distintas. Além disso, encontramos também 5.220 arquivos em formato de pdf para memetics e 709 arquivos em doc. Ou seja, pode-se encontrar hoje mais arquivos em pdf com o termo memetics do que era possível encontrar 10 anos atrás para qualquer aparição da palavra memetic. Isto é uma ótima prova de como os últimos 10 anos foram bastante produtivos nesta área. 24 Fiz esta busca exatamente 10 anos depois utilizando o maior agente de transmissão de memes da contemporaneidade: o Google! Não foram buscados todos os termos que Dawkins originalmente buscou. 157 3.2 Daniel Dennett e a Tentativa de Aborto da Memética Quando Dawkins criou o meme de meme ele estava simplesmente querendo mostrar que o importante do gene não era ser uma molécula da DNA e sim ser um replicador. Tendo criado o conceito em 1976, por anos ele passou sendo pouco citado e, quando o faziam era mais comum que fosse dentro de uma crítica. Mas em 1991, com o livro Consciousness Explained, o filósofo Daniel Dennett passa a adotar o conceito de meme na sua teoria da mente. Em 1995, com Darwin’s Dangerous Idea, Dennett separa um capítulo inteiro do seu renomado livro para defender o conceito de memes e discutir a possibilidade de uma ciência dos memes, a memética. Deste modo, o meme do meme se mostrou muito bem adaptado à sua mente e encontrou lá o seu mais renomado defensor. Dawkins inclusive disse que Dennett é o mentor filosófico dos memes (cf. Dawkins in Blackmore, 1999, p.xvi). Em seu último livro, Quebrando o Encanto (2006), Dennett continua a usar os memes, e todas as intuições oriundas desta análise da cultura, como central em sua teoria, mais especificamente, em sua teoria sobre o surgimento e a permanência das religiões. Embora agora se mostre mais cauteloso com os exageros cometidos por muitos críticos e entusiastas da memética. Nos revela, inclusive, uma fórmula interessante para se julgar tal questão: quanto mais crítico, ou mais entusiasta, maior a probabilidade de estar falando besteira em relação ao tema (cf. Dennett, 2006, p.93). O interessante é que normalmente tanto os críticos quanto os entusiastas erram por exagerar nas analogias com a genética, ou seja, por levá-las longe demais (seção 10.2). As analogias podem ser bastante úteis, mas na maioria das vezes tem só um valor heurístico e não um valor científico, ou seja, elas nos ajudam a entender, mas não provam nem demonstram absolutamente nada. É preciso, antes de tudo, estudar a evolução cultural por ela mesma, com todas as suas idiossincrasias que não tem análogos na evolução genética. Mas mais importante do que suas críticas às religiões foi o fato de que ele passou a usar o conceito de meme como central em sua teoria da mente e da consciência, esta, inclusive, para Dennett, “é, ela mesma, um grande complexo de memes” (Dennett, 1991, p.210). Compreender profundamente a teoria da 158 consciência de Dennett fugiria do escopo deste trabalho, mas é interessante conhecer superficialmente alguns dos seus pontos principais, visto que eles podem ajudar a questão do papel do sujeito na evolução dos memes que trataremos no último capítulo (seção 10.10). Dennett é um funcionalista, isso significa que, para ele, estudar a mente seria estudar o funcionamento do cérebro. A mente é o que o cérebro faz. Segundo Dennett, o estudo do cérebro nos mostra que não há nele um controle geral ou um lugar para onde tudo converge. A sua estrutura é, na verdade, a de vários grupos de neurônios trabalhando paralelamente, mesmo quando estamos fazendo algo simples como, por exemplo, observar uma figura colorida que se move. A pergunta que normalmente surgiria daí seria “como uma estrutura que funciona de maneira tão fragmentária pode dar origem ao fluxo contínuo da consciência que parecemos perceber?” E a resposta de Dennett foi inovadora, ele disse “ela não dá origem a tal fluxo”. O mito do teatro cartesiano é como Dennett chama a teoria de que tal fluxo existe. É justamente tal mito que ele pretende derrotar. Quem acredita neste mito acha que as experiências conscientes, nossa vida mental, acontecem em algum lugar, seja no nosso cérebro, seja em alguma substância mental. Para eles, a mente é como um palco interno por onde o fluxo da consciência passa. Seríamos, então, um observador que assiste a tal peça teatral. É como se houvesse em nosso cérebro uma tela onde nossas experiências fossem projetadas. Deste modo, quando observamos um quadrado azul que se movimenta da direita para a esquerda em um fundo amarelo, temos uma área do cérebro que percebe o azul, outra que percebe a forma do quadrado, outra que percebe o movimento e outra que percebe o amarelo. Mas também teríamos um lugar onde todo este processamento de informação converge, para então perceber um quadrado azul que se move em um fundo amarelo. Este lugar seria o lugar da consciência, seria o palco ou tela onde tudo se reúne, este seria o teatro cartesiano. O cérebro então deveria fazer sempre duas coisas: primeiro processaria a informação de cada circuito neural separadamente em suas respectivas áreas cerebrais e depois reuniria tudo para formar uma experiência consciente do conjunto. É o chamado problema da ligação (the binding problem). Só que não há evidências de que exista no cérebro um lugar onde tudo se reúne ou onde tudo deve passar e, para Dennett, e isso é o mais importante, não há necessidade de 159 haver tal lugar. Também não há necessidade alguma de que toda a informação que já foi processada em áreas separadas do cérebro seja mais uma vez processada para se tornar uma experiência consciente, como se tudo tivesse que ser feito duas vezes. Os detalhes da teoria de Dennett não são importantes para a presente discussão. Mas podemos perceber que, para o filósofo, não há um fluxo único da consciência, pois não há a reunião entre os diferentes circuitos especialistas. Cada circuito neural faz o seu diferente trabalho paralelamente aos outros circuitos e cada um cria seu próprio esboço que, na maioria das vezes, não terá muita importância. Mas alguns esboços deste pandemônio paralelo conseguem ter um papel funcional que vai comandar o comportamento de um ser humano. A cada momento vários esboços estão sendo criados e desenvolvidos, qual esboço será dito ou qual esboço comandará o comportamento depende de qual pergunta é feita ou em qual situação a pessoa se encontra. A cada momento um esboço pode ser mais forte do que o outro e nunca há o esboço que corresponda ao verdadeiro texto. Para deixar tal visão mais intuitiva, o que é extremamente difícil, podemos lembrar da situação comum onde só percebemos que estamos ouvindo um barulho quando ele para. Não poderíamos ter ouvido só depois dele ter parado, mas também não estávamos conscientes dele antes dele ter parado. Esta situação só é inusitada para quem acredita em um único fluxo da consciência. No modelo de Dennett já tínhamos o circuito neural que estava criando o esboço sobre o barulho antes dele ter parado, ele só estava sendo muito pouco influente em nosso julgamento e nossa memória sobre o que estava acontecendo à nossa volta. O mesmo acontece quando só depois da, digamos, terceira batida de um sino, percebemos que ele está batendo, mas percebemos já sabendo que ele está na terceira batida. O esboço que estava contando estas batidas só estava tendo um papel muito pequeno a representar, o que muda depois da terceira batida do sino. Se alguém lhe perguntasse antes da terceira batida o que você estava fazendo, você poderia responder algo como “lendo”. Se alguém lhe perguntasse depois, você responderia “ouvindo o sino bater”. Assim Dennett pode dizer que “não há fatos fixos a respeito do fluxo de consciência que sejam independentes das sondagens particulares”(Dennett, 1991, p.138). Tendo isto em vista, não haverá a possibilidade de se definir uma linha divisória entre o que deveria vir antes e o 160 que deveria vir depois da consciência. Para defender isso, Dennett propõe a teoria dos múltiplos esboços (multiple drafts) que é assim resumida: Não há um “fluxo de consciência” único e definitivo porque não há um Quartel General central, um Teatro Cartesiano no qual “tudo se reúne” para exame de um Significador Central. Ao invés de um fluxo único deste tipo (por mais largo que ele seja), há múltiplos canais nos quais circuitos especialistas tentam, em um pandemônio paralelo, fazer, cada um, o que tem que fazer, criando Múltiplos Esboços ao longo do caminho. A maioria destes esboços fragmentários de “narrativas” desempenham papéis de vida curta na modulação da atividade corrente, mas alguns deles são promovidos para papéis funcionais mais avançados, em rápida sucessão, pela atividade da máquina virtual no cérebro (Dennett, 1991, p. 253 – 254. Minha tradução). Vemos, então, que em Dennett, o comando do comportamento, ou melhor, o funcionamento do cérebro, se dá através de múltiplos esboços que, de uma maneira quase literal, lutam pelo comando do comportamento. Deste modo, podemos dizer que para Dennett o nosso comportamento é, na verdade, fruto de uma guerra interna que origina um processo de seleção de memes em nossos cérebros. Por este motivo, como já vimos, Dennett não acredita que se possa considerar os memes como vírus que nos invadem, pois o conceito de “nós” não é mais do que um meme ele mesmo. Foram os memes que transformaram os macacos “seus hospedeiros involuntários, em algo totalmente novo: em hospedeiros voluntários” (Dennett, 1998, p.355). O papel do meme na evolução do homem ficará mais claro quando tratarmos propriamente desta questão na seção 5.4. No momento, devemos apenas deixar claro o papel extremamente importante que Dennett dá aos memes: são eles é que fazem uma pessoa ser uma pessoa: Seguindo Dawkins (1976), chamo os invasores de memes, e o tipo de entidade radicalmente nova criada quando um determinado tipo de animal é adequadamente suprido – ou infestado – de memes é o que costumamos chamar de pessoa. (Dennett, 1998, p.355). Embora Dawkins tenha sido o criador (ou seria descobridor?) dos memes, foi Dennett que lhes deu a devida importância, tornando-o um conceito fundamental dentro da sua teoria. As principais contribuições de Dennett foram colocar os memes dentro de uma filosofia da mente mais ampla e explicativa, além de iniciar as discussões sobre a memética. Foi Dennett também que trouxe à 161 tona algo que já existia, mas estava pouco desenvolvido em Dawkins, que é a questão do que significa ser um “bom” meme. Ser “bom” é um conceito valorativo que pode significar muitas coisas. Podemos fazer uma divisão entre bons e maus baseada no nosso senso comum do que é bom ou mau. O nazismo seria mau e os direitos humanos seriam bons, por exemplo. Mas esta não é uma questão para a memética. A questão é que independente dele ser um meme bom ou mau, ele pode ser um bom ou mal replicador. O problema é que estas duas instâncias estão claramente separadas. O nazismo seria largamente considerado como um “meme mau”, no sentido de errado, enganoso, falso, mas mesmo assim ele se mostrou um ótimo replicador, tendo tomado conta de nações inteiras e ainda existindo até mesmo hoje em dia. Ser um bom replicador significa que ele consegue fazer um número considerável de cópias de si mesmo e, na Alemanha nazista, tal meme se mostrou um ótimo replicador. Ainda no que diz respeito à ética, há uma outra questão que será só rapidamente abordada aqui: a da responsabilidade pessoal. Dennett trata deste assunto em detalhes em Freedom Evolves (2003). Algumas interpretações da memética, como se nós fôssemos invadidos por vírus que nos comandassem, tendem a levar a interpretações de que não teríamos responsabilidade alguma por nossos atos. Mas já vimos que, segundo Dennett e Blackmore, não existe um “nós” dominado pelos nossos memes, nós somos os nossos memes. Não podemos nos desculpar, como Dennett muito bem colocou, dizendo que “um meme comeu o meu dever de casa”, do mesmo modo que não podemos nos desculpar dizendo que “meu cérebro comeu o meu dever de casa”. As ações de nossos cérebros e de nossos memes são as nossas ações. Partimos do pressuposto aqui de que qualquer ação terá uma fundamentação biológica, ou cultural (memética), ou, o mais provável, alguma mistura entre ambas. Afinal de contas, se uma ação não foi biologicamente direcionada ou culturalmente (memeticamente) direcionada, ou uma mistura entre ambas, de onde ela terá surgido? Um “sujeito livre” que não é nem biológico, nem cultural, é o quê? E, seja lá o que ele for, como podemos responsabilizar, punir ou gratificar, algo que não seria nem biológico, nem cultural? Tendemos a acreditar, ou ao menos torcer, para que bons memes sejam os bons replicadores, mas a única coisa que poderia garantir isso seria se nosso 162 cérebro, principal ambiente dos memes, fosse um ambiente que aceitasse mais facilmente memes bons do que memes maus. Não há indícios claros de que isso funcione assim. Mas de qualquer modo, deve ficar claro que a discussão ética sobre o bem e o mal está separada da questão de se o meme é um replicador eficiente ou não. É claro que, em última instância, toda esta discussão deve ser considerada como um meme. Por este motivo surge aqui um outro problema: o problema da verdade. Assim como não há relação necessária entre bons memes e memes eficazes em se replicar, não há também uma relação necessária entre estes e os memes “verdadeiros”. Não é importante qual conceito de verdade esteja sendo usado aqui. Se ele não for um conceito estatístico de verdade, ou seja, que considera verdadeiro aquilo que a maioria das pessoas diz que é verdadeiro, então ele não terá relação direta com a eficiência reprodutiva dos memes. Em outras palavras, memes falsos podem ser replicadores mais eficazes do que memes verdadeiros. Dennett nos dá o exemplo de que muitas idéias consideradas como refutadas se difundiram, e foram muito publicadas em livros e artigos, simplesmente porque professores de filosofia precisavam “de uma versão tão simples de uma má idéia que até um calouro pudesse ser capaz de refutar” (Dennett, 1995, p.366). Um bom exemplo de um meme falso que vem se adaptando muito bem às circunstâncias atuais é o do criacionismo, que tenta ser ensinado nas escolas americanas em oposição à evolução. Inicialmente o argumento era que a Bíblia era a palavra de Deus e, por isso, deveria ser ensinada. Argumento que funcionou muito bem na mente dos americanos até que surgiu o processo contra o professor evolucionista John T. Scopes, em 1925, que visava barrar o ensino da evolução nas escolas públicas25. Ele perdeu o processo, mas só teve que pagar uma pequena multa, o que abriu espaço para os outros professores. Mas só em 1968 a Suprema Corte americana considerou inconstitucional todas as leis estaduais que barravam o ensino da evolução em escolas públicas, dada a liberdade de expressão da 1° emenda constitucional americana. Logo depois disso veio o chamado “criacionismo científico” que visava descobrir as pretensas “falhas na evolução”, uma tentativa de tratar o criacionismo como alternativa cientificamente viável, em oposição à evolução, e que deveria, por isso, receber tempo equivalente durante as 25 O filme “O Vento será sua Herança” é sobre este processo. 163 aulas de ciência. Mas em 1987 a Suprema Corte proibiu esta estratégia, também baseada na 1° emenda. Como o termo criacionismo já não era mais bem visto para fazer parte dos currículos escolares de ciência, ele foi transformado em “Design Inteligente” com o livro Of Pandas and People de 1989, de modo que o termo Deus passou a ser chamado de “projetista”. O argumento era que existiam complexidades irredutíveis na natureza que provavam a existência de projeto, mas não tínhamos como saber quem era o projetista. Quando ficou provado que o design inteligente não passava de criacionismo, em um julgamento em 2005, o debate se adaptou mais uma vez e a discussão passou a ser em termos de “liberdade acadêmica” ou “capacidade crítica”, algo muito mais difícil de combater, pois nenhum cientista, juiz ou professor vai dizer que é contra o desenvolvimento da capacidade crítica dos alunos. No entanto, se for feita uma filogenia deste debate, ficará claro que a defesa de tal capacidade crítica é descendente direta da defesa do criacionismo bíblico, na verdade, é a sua mais nova adaptação. Se o problema que eles encontravam era com a 1° emenda, agora eles estão perfeitamente adaptados a ela. O criacionismo bíblico foi gradualmente se adaptando e se transformando em algo que pode ser aceito por uma mentalidade secular, passando de “dogma religioso” para “defesa da liberdade acadêmica” e, deste modo, ainda tem conhecido sucesso em um ambiente onde dogmas religiosos não podem ser ensinados fora das aulas de religião. Em um sistema jurídico onde uma emenda constitucional garante a liberdade de expressão, tentar proibir o ensino do darwinismo, ou mesmo restringi-lo, dificilmente passaria pela Suprema Corte. Por isso, essa tentativa se camufla em uma defesa da liberdade crítica, aumentando em muito as suas chances de sobreviver. Na natureza normalmente temos espécies inócuas se mimetizando de espécies venenosas para poder sobreviver, mas aparentemente na cultura, idéias venenosas se camuflam em idéias inócuas. É o famoso lobo em pele de cordeiro, ou seria melhor dizer o cordeiro de deus em pele de cientista? Podemos voltar ao meme do nazismo e lembrar que uma das propostas era de que os arianos eram uma raça antiga e pura26. Tal conceito é hoje considerado como evidentemente falso, mas isso não impediu que ele se espalhasse 26 Mais especificamente, seriam uma raça com descendência direta dos Brâmanes hindus. 164 rapidamente. Assim como o seu conceito correlato, e também falso, de que os judeus não são seres humanos, ou não devem ser tratados como tais. O fato de que memes falsos possam ter um gigantesco sucesso reprodutivo pode ser algo que não queiramos que aconteça, mas não podemos culpar a memética por isso! Muito pelo contrário, ela se mostra como uma ferramenta extremamente eficaz para mostrar o motivo pelo qual isso acontece e, deste modo, nos prevenir que só porque todos acreditam em algo não quer dizer que seja verdade. Que idéias falsas podem ter um imenso sucesso cultural é algo que pode ser constatado por qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento histórico. Isso indica, mas não implica, que muito do que é defendido hoje pode se mostrar falso no futuro, inclusive a própria memética. Mas dizer se uma teoria é falsa ou verdadeira não diz respeito à memética, esta somente trata do fato de se ela é capaz de se replicar eficazmente ou não. A teoria memética não é contra a existência da razão e de princípios racionais, estes podem muito bem fazer parte do ambiente ao qual memes devem se adaptar, e memes podem também ser catalogados como racionais ou irracionais, se for encontrado um critério para isso. A única coisa que a memética afirma é que eles podem ser ótimos, ou péssimos replicadores, a despeito de sua racionalidade e também da nossa racionalidade. Nas palavras de Dennett: A única posição racional que a memética contradiz é a posição quase incoerente que supõe que existem razões sem qualquer amparo da biologia, e que estão como que penduradas de algum gancho imaginário (skyhook) cartesiano (Dennett, 2003, p.187. Minha tradução). Seria possível questionar que qualquer teoria capaz de distinguir verdade e falsidade seria também um meme e, deste modo, também poderia ser largamente aceita, mas ainda assim ser falsa. Isso é verdade! Deste modo, aparentemente a memética acabaria com sua própria fundamentação. Mas mais uma vez deve ser levado em consideração que isso não é um problema exclusivo da memética e sim de qualquer teoria sobre a verdade. Seja lá que teoria for proposta para distinguir verdade de falsidade, ela terá que ser capaz também de dizer se ela mesma é verdadeira ou falsa. Mas, assim como um mentiroso estaria mentindo se dissesse “eu sempre falo a verdade”, tal teoria pode se fundamentar como verdadeira, dentro de seus próprios preceitos, mas ainda assim ser falsa! Nenhuma teoria da verdade pode fundamentar a si mesma, pois seria um fundamento sem 165 fundamento, uma perfeita demonstração de uma petição de princípios. Veremos, no capítulo sobre filosofia da ciência (capítulo 9), que devemos concordar com Popper quando este diz que todo o nosso conhecimento, principalmente no que diz respeito ao mundo empírico, é sempre tentativo, conjectural. O importante aqui é que embora a memética não possa se fundamentar como verdadeira, isso não é um problema dela, mas sim um problema de qualquer teoria da verdade, problema este que é conhecido desde os céticos da antiguidade (cf. Leal-Toledo, 2008) e é um fato que qualquer epistemólogo pode constatar. Mais uma vez, ao contrário de vermos aí uma fraqueza da memética, devemos ver sua força, pois outras teorias da verdade não costumam ser capazes de explicar porque idéias falsas podem ser tão permanentes. Se tivéssemos posse de um conceito rigoroso e bem fundamentado de verdade, seria esperado que ele pudesse ser utilizado para simplesmente limpar a humanidade de toda a falsidade e mentira. Mas tal fato nunca se deu e provavelmente nunca se dará, e a memética, ao contrário de muitas teorias, pode explicar o motivo disso: teorias falsas podem ter um alto valor replicativo. A memética é capaz de explicar que não adquirimos uma determinada idéia baseada em sua veracidade, mas sim baseada em sua adequação à nossa mente. Assim ela é capaz de explicar porque a falsidade é tão difundida e permanente na história da humanidade. Ao contrário de muitas teorias, temos na memética a explicação pragmática para a existência constatada da falsidade. Richerson e Boyd, embora não chamem a sua teoria de memética, mostram muito claramente como este processo pode se dar (cf. Richerson & Boyd, 2006, p.152). Um dos processos tratados por Richerson e Boyd diz simplesmente que pessoas tenderão a copiar o que a maioria está fazendo. Dennett e Dawkins tratam exatamente do mesmo assunto falando de uma espécie de “seleção sexual dos memes” (Dennett, 1998, p.367). Na seleção sexual, um caractere é escolhido simplesmente porque é escolhido. Pavões tem caudas grandes simplesmente porque fêmeas de pavão escolherão machos com caudas grandes. Deste modo, machos com caudas grandes têm maiores chances de se reproduzir dando origem tanto a outros machos, também com caudas grandes, quanto a outras fêmeas também com o impulso de se reproduzir com machos com caudas grandes. Ou seja, não há motivo adaptativo nenhum a não ser o fato de que este caractere auxilia na reprodução. Um macho com cauda pequena simplesmente não vai se 166 reproduzir, e uma fêmea que escolha tal macho dará origem a descendentes que terão grande dificuldade em se reproduzir. É um simples caso de “siga o que a maioria está fazendo ou seus genes serão eliminados”. Na cultura um processo bastante similar acontece com o conceito de “fama” e, mais especificamente, com a publicação de lista de livros mais vendidos. Quando tais listas são publicadas, os livros que constam nela “disparam” simplesmente porque constam nela, e não por nenhuma outra qualidade específica. O fato de que muitas vezes agimos simplesmente através da regra “siga o que a maioria está fazendo” é, segundo Richerson e Boyd, um dos motivos que teorias falsas, e também teorias maladaptativas, prosperam. O mesmo também se daria com a regra “copie o que uma pessoa de destaque faz”. “O fato de um meme espalhar-se ou não depende de se indivíduos de sucesso, carismáticos ou poderosos o adotam.” (Laland & OdlingSmee, 2000, p.135. Minha tradução). Mas apesar disso tudo, uma das contribuições mais importantes de Dennett para a teoria dos memes foi começar a discutir abertamente a possibilidade da memética. A memética seria uma ciência capaz de aplicar a perspectiva do meme. Tal perspectiva seria semelhante às narrativas históricas adaptacionistas comuns na biologia. Ao estudar um meme devemos mostrar o que o torna um bom replicador, ou seja, porque ele tem sucesso replicativo. É nisto que a memética se diferencia de outras teorias que normalmente são confundidas com ela, a saber, o Darwinismo Social, a Sociobiologia, a Psicologia Evolutiva e o chamado efeito Baldiwn, que serão tratadas no próximo capítulo. No momento basta saber que a primeira tem implicações éticas que fogem completamente da memética, sem contar com erros teóricos em sua interpretação do darwinismo, as demais são todas tentativas de mostrar como o nosso comportamento está, em certa parte, fundado nos genes. A memética vem justamente contra isso, ela estuda o comportamento que não é geneticamente determinado. Isto não quer dizer que os estudiosos da memética neguem que existam comportamentos geneticamente determinados, eles existem também, como nos mostra a etologia, mas a memética estuda aquela outra parte de nosso comportamento que é culturalmente (memeticamente) determinado, ou melhor, direcionado. No entanto, Dennett se mostrou claramente cético em relação a esta possibilidade, dando à memética um valor que ele chamou de filosófico (explicativo) em oposição a um valor científico (experimental). Veremos, no 167 capítulo de filosofia da ciência, que tal divisão talvez não seja tão rigorosa (seção 9.6). No momento o importante é perceber que Dennett questionou a possibilidade de uma memética como ciência por causa de sua visão dos memes como entidades extremamente abstratas. Como já vimos, Dawkins tratou os memes não como uma teoria empírica, mas sim como uma ferramenta auxiliar para entender o caráter abstrato do darwinismo universal. Além disso, a definição mais comum de memes, de Susan Blackmore, considera os memes como um tipo de informação encontrada em cérebros. Tal definição tem a seu favor o fato de que a definição de gene utilizada por Dawkins, e retirada de George Williams, é, como já vimos, também em termos de informação (seção 1.7). Neste sentido, ambas as definições estariam em um mesmo nível e uma seria tão criticável quanto a outra. Dennett insiste que este nível deve ser mantido e que memes devem ser entendidos mais como uma classificação semântica do que como uma classificação sintática. Por este motivo ele sequer se preocupa em procurar o que seria o substrato empírico dos memes, não porque ele não acredita que exista um, mas porque ele não acredita que seja relevante. Em suas palavras: Mesmo que encontremos algo tão improvável, devemos preferir o conceito mais abstrato e fundamental dos memes, visto que já sabemos que a transmissão e armazenamento de memes pode continuar indefinidamente em formas nãocerebrais – em todos os tipos de artefatos -, que não dependem de uma linguagem descritiva compartilhada (Dennett, 1998, p.369). No entanto, o problema com tal nível de abstração, que foi identificado pelo próprio Dennett é que quanto mais abstrato, mais difícil é distinguir entre plágio e convergência. Ou seja, quanto mais abstrato é considerado um meme, mais difícil é saber se um mesmo meme encontrado em dois lugares diferentes se dá porque um copiou o outro ou porque a mesma idéia surgiu independentemente em dois lugares. Já vimos que tal problema é, dentro da biologia, tratado por técnicas de classificação cladística (seção 1.10). Tais técnicas, embora muito poderosas, não são perfeitas. Mas na memética, se os memes forem tratados de maneira completamente abstrata, tais técnicas seriam quase que irrelevantes, pois não dariam resultados. Para deixar mais intuitivo tal problema podemos pensar na seguinte situação proposta pelo próprio Dennett: se encontramos em dois livros um mesmo parágrafo palavra por palavra, dificilmente acreditaríamos que um não copiou o 168 outro. É claro que algumas questões seriam levantadas, o tamanho do parágrafo importa, assim como sua relevância para o tema. Devemos levar em consideração também se os termos utilizados em ambos são termos típicos e universais para o tipo de questão tratada ou são termos particulares de um determinado autor, etc. Mas no geral não se deve esperar por tais “coincidências cósmicas”. Um júri poderia, corretamente, dar o veredicto de cópia, mesmo se não tivesse provas materiais de como se deu este processo causal, simplesmente baseado na improbabilidade de tal coincidência (cf. Dennett, 1998, p.75). A questão fica infinitamente mais confusa se o que estiver sendo considerado como copiado não for a seqüência exata das palavras do parágrafo, mas sim a idéia mais abstrata que o parágrafo quer passar para o leitor. Neste caso é muito mais difícil saber o que realmente aconteceu, pois a possibilidade que dois autores tenham independentemente a mesma idéia não é de maneira nenhuma desprezível. Na falta da evidência dada pelos dois parágrafos idênticos em suas palavras, o júri precisaria recorrer a outras evidências externas para resolver tal caso. Algo extremamente semelhante a isso ocorreu na disputa pela “paternidade” do cálculo entre Newton e Leibniz (cf. Boyer, 1996, p.273). Não haviam indicações que mostrassem que houve um processo de cópia, mas baseado no fato de que os dois sistemas eram bastante diferentes e que outras provas materiais, como cartas, esboços, conversas pessoais, não indicavam plágio, foi aceito que houve aqui um processo de evolução convergente. Institutos de patentes se deparam com tais problemas diariamente e para isso precisam estabelecer certos limites, normalmente arbitrários, para distinguir entre plágio e convergência. Eles têm que enfrentar questões do tipo: saber quanto de novidade é necessária para que algo seja considerado um produto novo. Para fazer isso eles não podem trabalhar com noções extremamente abstratas, pois perderiam todo critério para um julgamento eficaz. Segundo Dennett, tal problema acabaria com a possibilidade de se fazer uma memética, pois se a memética vai se basear na teoria da evolução, ela deve ser capaz de criar as narrativas históricas tão comuns desta ciência, mas trabalhando neste nível de abstração fica quase impossível construir tais narrativas. Ele inclusive apresenta a crítica do antropólogo Dan Sperber, talvez o maior crítico dos memes e que trataremos com mais detalhes na seção 10.1, contra a possibilidade de se lidar com tais objetos abstratos. Para Sperber, tais objetos não 169 participam diretamente das ações causais27. Quando um bolo sola, por exemplo, não é culpa da receita entendida de maneira abstrata, mas sim de uma instanciação específica de tal receita. Exatamente o mesmo se dá quando o bolo sai perfeito do forno. Objetos abstratos não causam nada, apenas suas instanciações físicas podem causar algo. Mas uma ciência dos memes deveria ser capaz de tratar das causa, justamente o problema que Dennett levantou. Curiosamente o próprio Dennett desenvolve uma linha de resposta à sua própria crítica, outras possíveis respostas serão tratadas no último capítulo deste trabalho (seção 10.1, 10.4 e 10.6). Como um bom funcionalista ele nos fala que conhecer os detalhes causais não é necessariamente relevante para conhecer o caminho por onde a informação memética passou. O exemplo que ele nos dá é que podemos pensar que, para capturar um espião dentro de uma agência, um investigador pode distribuir informações falsas, porém relevantes, e ver quais são passadas para os inimigos. Deste modo ele pode ir reduzindo as buscas baseado só no seu conhecimento de quais informações estão sendo passadas, mas ignorando completamente como esta informação foi passada. Ou seja, mesmo sem saber o processo causal da transmissão de informações, ele pode descobrir quem as passou. Um caso semelhante a esse aconteceu com a Who’s Who, uma enciclopédia biográfica, que para saber se estava sendo copiada por outras enciclopédias simplesmente colocava alguns verbetes falsos no meio. “Pode ter certeza que se um desses aparecer nas páginas de um concorrente, não foi por coincidência!” (Dennett, 1998, p.148). Temos, assim, que saber exatamente como se deu o processo causal, não é necessário para saber qual a relação causal entre diversos memes permitindo, desta forma, a construção de sua filogenia. Mas mesmo assim Dennett, por manter seu conceito de memes extremamente abstrato, acaba tendo que lidar com o problema que é a falta de relações causais tão importantes para qualquer ciência empírica. Poderíamos pensar, não contra Dennett, mas expandindo sua análise, que assim como memes podem ser passados através de diversos meios, como livros, cds, internet etc. é bem provável que, em um futuro não muito distante, genes também possam ser transmitidos de tal maneira, pois com a engenharia genética um código de DNA pode ser todo traduzido em letras do alfabeto (A, T, 27 A crítica de Sperber é extremamente parecida com a crítica de Kim (1998) contra o funcionalismo na filosofia da mente. 170 C, G), enviado por e-mail, e então reconstruído fisicamente em um laboratório do outro lado do mundo. Se o gene for tratado como informação, devemos assumir que a informação contida no e-mail é, ela mesma, um gene. A rigor não há nada de fundamentalmente errado nisso, mas é definitivamente mais simples considerar os genes como instanciados só em DNAs. Do mesmo modo, um meme pode ser passado através de livros, mas para isso não precisamos tratar o que está escrito no livro como sendo, ele mesmo, um meme por conta própria, mas sim como uma espécie de instrução para que um meme que estava na mente de um autor seja reconstruído na mente de seus leitores. Já vimos esta questão neste mesmo capítulo ao tratarmos da competição de memes por espaço na publicação de livros de uma editora. Podemos, como Dennett gostaria, tratar o ambiente dos memes como as gráficas, os livros, as livrarias, mas isso causará exatamente o problema que Dennett reconhece. No entanto, tal problema perde sua gravidade se tratarmos os memes como habitando as mentes dos editores, dos donos de gráficas, dos leitores, dos donos e gerentes das livrarias etc. Ainda restará a questão de qual é, na mente humana, o substrato dos memes, mas dado que é notoriamente aceito que mentes podem trocar informação através da comunicação, fica muito mais simples construir uma relação causal. Mas isso de maneira nenhuma impede que memes, assim como genes, sejam tratados em um sentido mais amplo e conceitual como sendo informação. A única coisa que muda é que, ao se tentar fazer ciência ou criar uma explicação causal, é necessário levar em consideração o substrato de tal informação. Pois quanto mais abstrato o conceito de informação, menos poderes causais ela tem28. A verdade é que a antropologia, a história e a filologia, assim como os institutos de patentes como a WIPO, já tratam deste problema há décadas com um sucesso considerável. Suas análises e técnicas podem muito bem ser utilizadas futuramente pela memética. Podemos ver um exemplo de tal análise na questão da invenção (ou seria descoberta?), do “zero”. Sem o conceito de zero e o princípio da posição decimal, no nosso caso, não teríamos tido o grande desenvolvimento da matemática que hoje conhecemos. Aparentemente, o zero provém justamente de tal princípio de posição da escrita. A questão é que para escrever, por exemplo, 28 Além disso, sejamos honestos, cientistas gostam de coisas palpáveis. 171 o número 729, uma escrita sem o sistema posicional de base decimal teria que escrever, por exemplo, os algarismos correspondentes a 7 x 100 + 2 x 10 + 9. Ao invés de simplesmente colocar o 7 na casa das centenas, o 2 na casa das dezenas e o 9 na casa da unidade. Sabemos que já na Babilônia, antes de 1750 a.c., já existia o sistema de base, mas que não era decimal, no caso era sexagesimal (cf. Ifrah, 1985, p.237). O problema de um sistema posicional sem o número zero é bastante simples: o que colocar quando não há algarismo nenhum em uma das posições. Por exemplo, no número 606 não há nada na posição das dezenas. Se o zero é desconhecido, há grande probabilidade deste número ser confundido com 66. Os babilônios resolveram este problema colocando um espaço vazio entre os números. Mas é claro que esta não era uma boa solução, pois dá margem a muitos erros. Finalmente, no séc III a.c. aparece um símbolo semelhante a um prego na diagonal que deveria marcar o lugar vazio, sendo o primeiro zero da história (cf. Ifrah, 1985, p.243). Mas talvez o mais curioso é que o zero não era ainda concebido como “quantidade nula”, ela não era uma quantidade, só uma marcação da posição vazia. Se fosse feita, por exemplo, a subtração “20 – 20”, os babilônicos não tinham a quantidade zero para colocar no local do resultado! Aparentemente o mesmo problema surgiu independentemente entre os indianos, mas com outro resultado. A numeração antiga indiana exigia muitos algarismos diferentes. Para fugir disso eles passaram a escrever os números por extenso, 3.709, por exemplo, era escrito nava sapta sata ca trisahasra, escrito de trás para frente em relação ao nosso modo, significava “nove, sete cem e três mil” (Ifrah, 1985, p.267). Depois viram que poderiam simplesmente perder os algarismos que serviam só para marcar a posição com dez (dasa), cem (sata), mil (sahasra) e manter o sistema de casa decimal. O problema óbvio era o que fazer quando uma casa estava vazia. O número 3.709 não poderia ser escrito nava ca tri, pois isso é o número 379. No entanto, o conceito de vazio (sunya) já era extremamente importante para os sábios hindus por motivos religiosos. Foi só uma questão de colocá-lo na posição vazia. Ficamos, então, com o número nava ca sunya tri (nove, sete, vazio, três). A descoberta do princípio de posição e do zero são ambas do séc V d.c. e não ficou restrita aos meios eruditos. No séc VI d.c. ela chega ao Camboja e ao Vietnam. Neste mesmo século aparece o algarismo zero, que talvez tenha a sua forma circular porque um de seus nomes, ele tinha 172 vários nomes além de sunya, era bindu, que significava “ponto”. Mas ao contrário dos babilônicos, o zero hindu logo deixou de ser só uma marcação de posição vazia e virou uma quantidade nula, permitindo, assim, que ele fosse usado em cálculos matemáticos. No séc. VIII d.c os árabes adotam o sistema hindu e posteriormente levaram tal sistema para a Europa que, embora tenha relutado, acabou aceitando tal sistema por volta do séc. XII d.c (cf. Ifrah, 1985, p.310). O interessante é que o mesmo aconteceu de maneira independente na China, durante a chamada dinastia Han (séc. II a.c. – III d.c.), onde existia um sistema posicional um pouco diferente, que combinava traços verticais e horizontais, e que enfrentou o mesmo problema da posição vazia. Uma das soluções foi escrever o número por extenso, por exemplo, escrevia-se 2.640 como “264 dez”, outra foi simplesmente colocar todos os números em quadrados, de modo que ficava claro que certos quadrados estavam vazios. Mas só no século VIII d.c., aparentemente por influência dos indianos, apareceu um número que correspondia ao zero semelhante a um pequeno círculo (cf. Ifrah, 1985, p.248). Há aqui a questão se os chineses de fato copiaram os indianos ou se desenvolveram este algarismo por conta própria. O problema já era conhecido pelos chineses, e as soluções utilizadas por estes não eram boas, deste modo é possível que eles tenham resolvido este problema sozinhos. Mas tudo indica que eles copiaram os indianos. O mesmo ocorreu com os árabes, no entanto, aqui o caso é muito menos controverso. Os próprios árabes deixaram claro que tinham copiado a descoberta dos indianos! Um exemplo de humildade intelectual que não foi repetido pelos europeus. Exemplos de problemas como estes são comuns na antropologia: a escrita pode ter tido três origens diferentes, pode ter surgido na Mesopotâmia em 3.000 a.c, na China em 1.500 a.c e na Mesoamérica em 300 a.c. Mas dado o grande espaço de tempo entre estas invenções, ficamos com a dificuldade de saber se elas foram realmente independentes. Temos um problema semelhante a este com a invenção neolítica da cerâmica e com a invenção da navegação. Também encontramos problemas semelhantes na filologia, esta utiliza as mais variadas técnicas para descobrir o texto original a partir de variadas cópias. Devemos a estas técnicas os nossos estudos de Platão, por exemplo. São problemas graves e que causam grande discussão. Infelizmente não temos aqui a capacidade de fazer algo parecido com uma análise molecular do DNA, que fazemos para resolver 173 problemas semelhantes na cladística. Mas através de um raciocínio bastante semelhante ao da biologia, os antropólogos procuram semelhanças e diferenças entre os produtos, entre os seus modos de fabricação e de utilização, datam as descobertas, analisam se outros traços culturais indicam alguma troca entre os povos e podem, assim, chegar bem próximo de uma resposta. Como no caso do zero, os Chineses poderiam tê-lo inventado, mas dado que os indianos o inventaram antes, dado que esta invenção já tinha sido propagada para outros lugares da Ásia, dada a proximidade da Índia e da China, dado que existia intercâmbio entre estes dois povos, dado que o zero aparece subitamente na China e, principalmente, dada a semelhança na grafia do zero chinês com o zero indiano, acredita-se que ocorreu um caso de empréstimo e não de criação independente. Já em relação aos árabes, mesmo que eles não tenham deixado claro que copiaram os indianos, isso seria facilmente descoberto pelos mesmos motivos anteriores e pelo fato de que eles, diferentes dos chineses, não copiaram só o zero, mas todos os algarismos e o modo de fazer cálculos. Diga-se de passagem, a grafia dos números e o modo de fazer cálculos são ótimos exemplos de memes que foram passados entre culturas com uma fidelidade de cópia bastante considerável. Vemos, então, que o problema levantado por Dennett já é trabalhado com relativo sucesso. No entanto, em Quebrando o Encanto, Dennett continua defendendo que devemos pensar em memes no sentido abstrato e dar a estes mais ou menos o mesmo suporte ontológico que damos às palavras (cf. Dennett, 2006, p.92). Palavras podem ser escritas, ditas, sinalizadas etc, mas elas não podem ser rigorosamente reduzidas a nenhum destes meios, elas são entidades abstratas e, no entanto, ninguém duvida que elas existam. Mas o problema é, como bem nos mostrou Sperber, que mesmo que palavras sejam objetos abstratos, ainda assim em explicações causais são necessários objetos concretos. O meme do meme não entrou na mente de Dennett através de objetos abstratos, mas sim através de, provavelmente, borrões de tinta em um exemplar do livro de Dawkins. É claro que Dennett está correto ao dizer que é improvável que se encontre uma linguagem cerebral universal de modo que uma idéia na mente de uma pessoa seja fisicamente idêntica, ou muito semelhante, a esta mesma idéia na mente de outra pessoa. Por isso o meme não poderia ser reduzido a tal substrato físico e devemos manter sua definição em termos informacionais e abstrato, assim 174 como é a definição de genes para Dawkins e Williams. Mas se tratarmos a mente humana como principal, ou mesmo único, ambiente dos memes, sendo que memes em livros, por exemplo, não seriam mais memes do que genes descritos em livros são genes, deve então existir alguma regularidade física ou funcional entre dois cérebros para que um meme conte como sendo o mesmo meme nestes dois cérebros. No mínimo deve haver uma regularidade no comportamento causado por tal meme. Neste segundo caso, seria uma questão empiricamente ainda em aberto se regularidades no comportamento precisam ou não de regularidades, sejam elas físicas, estruturais ou funcionais, em cérebros (seção 10.1). Informações podem ser abstratas, mas informações em cérebros devem ter algum suporte físico. Pode ser improvável que exista uma linguagem universal de modo que cada meme específico tenha um, e só um, tipo de substrato físico no cérebro, mas também é improvável que exista um pandemônio cerebral de modo que não exista regularidade nenhuma entre os cérebros. Neste último caso seria muito difícil entender como se daria qualquer transmissão de informação entre sujeitos. O que contaria como sendo “a mesma” informação? E principalmente, como ambos saberiam que contém a mesma informação? Voltamos aqui para questões de filosofia da mente onde encontramos vários tipos de reducionismo, além do funcionalismo, dualismo e outras teorias. Tratá-las aqui seria fugir do tema, mas podemos lembrar que mesmo o funcionalismo que Dennett defende, onde substratos muito diferentes poderiam instanciar o mesmo processo (a mesma regra, mesma informação, o mesmo software), ainda assim ele precisa de uma regularidade funcional para contar como sendo o mesmo processo em diferentes substratos. Talvez sejam estas regularidades funcionais, e não regularidades físicas, que devamos buscar nos cérebros29. O substrato do meme não precisa ser um substrato físico, mas pode ser um padrão funcional do cérebro humano. Do mesmo modo, a palavra “cachorro” pode ser dita, escrita e sinalizada de várias maneiras, mas não de qualquer maneira. Existe um limite pragmático, e não de princípios, que garante a inteligibilidade, e também existem relações, quanto mais rígidas e biunívocas melhor, que garantem a tradutibilidade em relação aos seus diferentes meios de transmissão. Vemos isso muito claramente nas relações entre fonemas e os 29 Mas ainda permanece o desafio de Kim que diz que tais regularidades funcionais podem sempre ser reduzidas a regularidades físicas. 175 grafemas fonológicos: a relação não é tão biunívoca como gostaríamos, o fonema /j/ por exemplo, pode ser o grafema g ou j, como em gelo e jarro. Além disso, o grafema g pode também indicar outro fonema, como em gato. A falta de uma relação mais simples causa confusões, mas tais relações têm que ser simples o suficiente segundo um critério pragmático da utilidade. A comunicação efetiva, a transmissão de memes, precisa de regras, e tais regras não podem ser, elas mesmas, memes, pois precisariam de outras regras para serem entendidas e assim infinitamente. No caso dos memes é possível que tais regras façam parte constitutiva de seu próprio ambiente, ou seja, do cérebro humano. 3.3 Susan Blackmore e a Descoberta do Óbvio Embora Dennett tenha se mostrado um cético em relação a memética, suas discussões deram início a várias outras considerações sobre uma ciência dos memes. Se o meme do meme, criado por Dawkins, foi achar seu lugar na mente de Dennett, o meme da memética, propagado por Dennett, encontrou seu espaço na mente de Susan Blackmore, que foi considerada por Dawkins e Dennett como a principal defensora da memética. “Foi Susan Blackmore, em The Meme Machine, que levou a teoria memética mais longe” (Dawkins, 2007, p.259). Foi neste livro de 1999 que ela fez o que é ainda um dos melhores modelos de como a memética deveria ser, embora veremos que não é nem de longe uma ciência bem desenvolvia. Assim como Dennett se diferencia em alguns pontos de Dawkins, principalmente no que diz respeito à questão do papel do sujeito na evolução memética, Blackmore também se diferencia parcialmente de ambos. Ela parece estar convencida de que a memética pode ser uma ciência e, para mostrar isso, ressalta alguns pontos que não foram bem trabalhados por seus predecessores. Talvez o ponto mais fundamental seja a sua idéia de que os memes só podem ser passados por imitação “no sentido estrito”. Tal questão será tratada com mais detalhes, e criticada, no oitavo capítulo, mas no momento algumas considerações devem ser feitas. Por imitação aqui ela quer dizer a cópia exata de um padrão de 176 comportamento. Para ocorrer a imitação é preciso, segundo ela, que três fatores existam: o indivíduo tem que ser capaz de escolher o que vai imitar; ser capaz de fazer uma transformação complexa de um ponto de vista para o outro; e, tem que de fato realizar tal padrão comportamental30. Segundo Blackmore, é necessário fazer esta separação, pois só na imitação algo de fato está sendo passado, a saber, um padrão de comportamento específico. Nas outras formas de aprendizado social não há cópia de informação. Para mostrar isso ela lembra de um dos casos mais comentados sobre este assunto sobre pássaros ingleses que aprenderam a abrir garrafas de leite. Tal comportamento se espalhou rapidamente, mas tudo indica que não houve imitação nenhuma. Um pássaro simplesmente percebeu, por tentativa e erro, que poderia tirar leite abrindo a tampa de garrafas, e outros pássaros, vendo este se alimentar, resolveram também buscar leite em garrafas, mas não imitaram tal pássaro no seu padrão comportamental de abrir garrafas, simplesmente bicaram as tampas até descobrir como abri-las sozinhos, por tentativa e erro também. Segundo Blackmore, não houve aí nenhum processo de transferência de padrões de comportamento entre indivíduos, não houve imitação, então não houve transmissão memética. Só através da imitação podemos dizer que houve algum tipo de hereditariedade Uma vez restringindo a transmissão memética exclusivamente aos processos de imitação no sentido estrito, restringe-se também quais animais são capazes de transmitir memes. Tirando algumas poucas exceções, só mesmo os humanos são capazes de “verdadeira imitação” no sentido restrito de Blackmore. No momento não trataremos dos outros animais, pois o mais importante aqui é, de fato, a transmissão de memes entre seres humanos. No oitavo capítulo esta questão será abordada com mais detalhes (seção 8.1). Deve-se notar que Blackmore está correta ao afirmar que, de todos os seres vivos, são os seres humanos os mais capazes de imitar. A explicação neurológica disso será dada no sétimo capítulo, que falará sobre os neurônios-espelho. Por hora basta ficarmos com a seguinte intuição em mente: é fato que o ser humano já tem uma grande habilidade de imitar literalmente desde o primeiro minuto de sua vida, e ao contrário dos outros animais, tal habilidade nunca é diminuída ou perdida com o tempo. No ser humano pode-se dizer que esta habilidade é praticamente ilimitada e, na verdade, 30 No capítulo sobre neurônios-espelho (sétimo) veremos que o processo cerebral da imitação pode ser muito mais simples do que isso. 177 é bem provável que seja a principal característica que nos distinga de todos os outros animais. Simplesmente não existiria cultura sem imitação. Nas palavras de Blackmore: As crianças humanas são capazes de imitar uma ampla gama de sons vocais, posturas corporais, ações sobre objetos, e até mesmo ações completamente arbitrárias tais como abaixar-se e encostar a cabeça em um painel plástico. Por volta dos 14 meses de idade, a imitação às vezes pode atrasar-se até cerca de uma semana ou mais, e as crianças parecem saber quando os adultos lhes estão imitando. Ao contrário dos demais animais, nós imediatamente imitamos quase tudo, e parece que sentimos prazer em fazê-lo (Blackmore, 1999, p.50. Minha tradução). Por estas questões, Blackmore defende que memes devem passar exclusivamente por imitação. Uma vez levado isso em consideração, é preciso notar que nem todos os padrões comportamentais terão a mesma chance de serem imitados. Uma música simples, por exemplo, é muito mais provável de ser imitada do que uma complexa. O mesmo se dá para uma música boa em relação a uma música ruim, sendo que bom e ruim vai, é claro, depender do aparato cognitivo de cada indivíduo. Também é mais provável que se imite o comportamento de alguém que admiramos do que de alguém que desprezamos. Outros fatores que facilitam ou dificultam a transmissão dos memes poderiam ser levantados, por exemplo, é mais fácil lembrar de um meme que coopera com os outros memes que já temos. Qualquer um percebe isso ao ver que é mais fácil lembrar de uma nova palavra na nossa língua do que em alguma outra língua desconhecida. Também podemos lembrar que uma idéia útil terá uma maior chance de ser aprendida. Vemos o caso não só da roda e do fogo, mas também da linguagem, da medicina, da prostituição etc. Além disso, a natureza de nossos mecanismos cerebrais de atenção e de memória também influencia na capacidade de um meme ser passado ou não. Tudo isso deve ser estudado como parte do ambiente dos memes. Só assim poderemos saber quais memes são mais prováveis de serem imitados. No entanto, veremos que Blackmore ignora largamente estas questões em suas análise meméticas! Temos assim que vários fatores, principalmente psicológicos, mas também biológicos e até mesmo culturais (meméticos) vão influenciar a probabilidade de um determinado meme ser aprendido, retido na memória e, posteriormente passado. Isto influencia diretamente em que memes serão mais comuns, pois estes 178 serão os mais prováveis de serem passados e retidos por outros, e que memes serão mais raros. Mas sabemos que memes podem mudar. Não entraremos no momento na questão de se essa mudança é dirigida por um sujeito ou não. O fato é que eles mudam e isso é o suficiente para a memética. Estas mudanças podem torná-los mais ou então menos prováveis de serem copiados e passados. Quanto mais provável de ser imitado, quanto mais adaptado ao seu meio, que é a mente humana, mais comum ele será. E poderá se tornar ainda mais comum se sofrer novas modificações que o torne ainda mais provável de ser imitado. Dito isso, podemos lembrar de um caso sobre a evolução do sabor das frutas: a maioria das frutas são saborosas, cheirosas e até mesmo belas. Sem contar que são fáceis de colher, sendo rapidamente destacáveis de suas árvores, quando simplesmente não caem abertas no chão. O motivo adaptativo que torna uma fruta saborosa é porque ela “quer” ser comida, pois quando algum animal a come ele está espalhando as suas sementes e está evitando que ele coma as folhas das árvores. Existem até algumas frutas que precisam passar pelo trato digestivo de um determinado animal para poder germinar. Por este motivo muitas frutas são doces, suculentas e saborosas, pois elas estão adaptadas ao paladar dos animais que as comem. Quanto mais saborosa ela for, maior a probabilidade de que suas sementes se espalhem. Neste sentido, podemos entender o paladar de determinados animais como parte do ambiente ao qual uma árvore frutífera deve se adaptar. Não importa que tal animal possa ser considerado um sujeito livre e capaz de escolha, isso simplesmente não faz diferença alguma. Na verdade, as frutas estão “contando com isso”, elas querem ser escolhidas por estes animais! Assim, até mesmo a capacidade de escolha de um animal pode ser considerada parte do ambiente ao qual uma fruta se adapta. É por isso que dissemos no primeiro capítulo que não há uma diferença radical entre seleção natural e seleção artificial (seção 1.3.1). Levando o que acabou de ser dito em consideração, podemos entender mais facilmente a memética. Memes devem ser passados por imitação, para isso têm que se adaptar ao aparato cognitivo dos seres vivos capazes de imitação. Pode ser verdade que tais seres vivos sejam sujeitos livres e capazes de escolha, mas isso não faz fundamentalmente diferença nenhuma. Tais seres, mais especificamente os seres humanos, sempre terão uma maior probabilidade de imitar algum comportamento do que outro. Isso significa que os memes mais parecidos com 179 tais comportamentos se tornarão mais comuns simplesmente porque são mais parecidos com tais comportamentos! O aparato cognitivo humano, seja ele capaz de escolha ou não, pode ser considerado só como parte do ambiente ao qual o meme deve se adaptar. Memes melhor adaptados a tal ambiente se tornarão mais comuns. Sem compreender isso não é possível compreender a memética. Para um animal o seu paladar é o que permite escolher o que comer ou não, mas para a fruta ele é só o ambiente ao qual ela deve ser adaptar. Exatamente o mesmo se dá com plantas com gosto ruim que se adaptaram a tal paladar para evitar serem comidas. Do mesmo modo, para um ser humano seu aparato cognitivo pode ser o que o que lhe faz escolher entre o que imitar e o que não imitar, mas para um meme ele é só parte do ambiente ao qual ele deve se adaptar. Ao contrário do que muitas vezes fica subentendido na analogia do meme como um vírus que invade nossa mente, um meme não nos domina ignorando as nossas capacidades cognitivas, ele “nos domina” por causa de tais capacidades! Se não tivéssemos predileção por determinados memes todos os memes teriam a mesma chance de se multiplicar. Não haveria seleção e, consequentemente, não haveria evolução. Nunca é demais ressaltar que há aqui uma mudança de ponto de vista extremamente necessária para compreender o que a memética traz de novo ao estudo da cultura e à compreensão do que é ser um ser humano. O sucesso de um meme não se dá a despeito dos seres humanos, e sim por causa deles. Do ponto de vista dos memes os seres humanos são o ambiente ao qual eles devem se adaptar. Mas do ponto de vista do seres humanos, escolhemos passar os memes que mais gostamos. Do mesmo modo, do ponto de vista da fruta, o paladar do macaco é só o seu ambiente, mas do ponto de vista do macaco é ele que escolhe as frutas que mais gosta de comer. Estes dois pontos de vista, que muitas vezes parecem ser opostos, são, na verdade, complementares31. Isto quer dizer que poderíamos, então, continuar falando de uma maneira cotidiana de padrões culturais que os humanos decidem ou não adotar. Mas o que há de novo agora é que podemos finalmente falar também do ponto de vista 31 Margulis nos fala de um curioso caso: o cientista russo Vladimir Ivanovich Vernadsky (1863 – 1945) tratava os seres vivos como “matérias vivas” no sentido de que eram “minerais andantes e falantes”. Neste sentido “um bando de gansos migratórios era, para Vernadsky, um sistema biosférico de transporte de nitrogênio” (Margulis, 2002, p.63). Ele via a vida do ponto de vista dos minerais. 180 oposto, o ponto de vista dos memes, onde os seres humanos e sua capacidade de escolha não são nada além do ambiente dos memes. Nasce, assim, a chamada perspectiva-dos-memes. A memética trata a cultura não do ponto de vista dos humanos, mas do ponto de vista da própria cultura. Em última instância é isso o que significa tratar a cultura como uma replicadora por conta própria. Podemos dizer que são os memes que querem ser replicados e não nós que os queremos replicar. Mas este fato não está em oposição com o fato de que nós replicamos os memes que queremos replicar. É o mesmo processo visto de dois ângulos diferentes. Usar a memética é tratar os memes como os sujeitos e os seres humanos como o ambiente, mas isso não quer dizer que o ambiente não possa ser, ele mesmo, um sujeito. É este ponto de vista do meme como sujeito que a memética nos traz e é esta sua grande inovação. Nas palavras de Blackmore: Ao invés de pensar em nossas idéias como nossas próprias criações, e como coisas que trabalham para nós, temos que pensar nelas como memes autônomos egoístas, que trabalham apenas no sentido de serem copiados (Blackmore, 1999, p.8. Minha tradução). A grande questão agora é ver como se dá a transmissão da cultura deste novo ponto de vista e, depois disso, ver se este novo ponto de vista nos provém com novas intuições, novas explicações e, porque não, novas predições. Caso ele se mostre frutífero, então não há motivos de porque não adotá-lo e até preferi-lo em relação ao modelo antigo das ciências sociais. Vimos que Dawkins fala basicamente o mesmo quando se refere ao chamado ponto de vista do gene (seção 1.12.5). Normalmente tal ponto de vista será o mesmo que o ponto de vista do indivíduo. Deste modo, as explicações da evolução por seleção do indivíduo não serão radicalmente diferentes das explicações por seleção de genes. No entanto, existem alguns casos onde só a seleção de genes é capaz de explicar, como o caso das castas estéreis, que veremos na seção 4.3. Do mesmo modo que a visão dos genes nos diz o que estes “pensam” sobre os organismos, a memética nos diz o que a cultura “pensa” sobre os seres humanos. Nesta nova perspectiva ao invés de ver um meme como um produto criado por um sujeito, e que ele tenta passar para os outros, deve-se ver um meme como uma instrução que diz “copie-me e espalhe-me” exatamente da mesma forma que os vírus: 181 Os vírus são instruções de programa codificadas, escritas sob a linguagem de DNA, e existem em beneficio das próprias instruções. As instruções dizem ‘Copie-me e espalhe-me por toda a parte’ e as que forem obedecidas são as que encontramos. Isso é tudo. Esse é o mais próximo que se pode chegar da questão ‘Por que os vírus existem?’ (Dawkins, 1998, p.293) Os memes mais comuns serão os que mais terão sucesso em serem copiados e espalhados. O que vai ditar este sucesso é a sua adequação ao seu ambiente, ou seja, à mente humana. Pode parecer que o que está sendo dito aqui é estranho, mas é só um outro modo de dizer que as idéias e comportamentos mais comuns serão aqueles que mais gostamos, ou melhor, que mais se adequam à nossa estrutura cognitiva. Dito assim, fora da perspectiva do meme, parece algo perfeitamente natural, mas não há nada de diferente sendo dito, é só uma questão de ênfase. É claro que nossas estruturas cognitivas não podem ser reduzidas à nossa habilidade de gostar, mas inicialmente e na falta de análises mais detalhadas de como essas estruturas funcionam, é uma aproximação útil. Por qual ponto de vista é melhor trabalhar depende do poder explicativo e preditivo de cada um. Fora isso, não passa de uma questão de gosto. Deste modo, basta agora que vejamos um número considerável de exemplos do que é utilizar a perspectiva do meme para estudar a cultura. Alguns exemplos já foram apresentados, como o da castidade, da religião, da fama, mas existem muitos outros. Dos que serão apresentados em seguida, alguns só serão melhor compreendidos posteriormente com a ajuda de alguns conceitos e teorias tanto da antropologia quanto da lingüística, que serão apresentados no seu devido tempo (capítulos 5 e 6). Para todos os exemplos que serão mostrados deve ser feito o mesmo raciocínio inicial: Imagine um mundo cheio de hospedeiros de memes (ou seja, cérebros), e muito mais memes do que possivelmente poderiam vir a encontrar um lar. Agora se pergunte: quais são os memes que têm maior chance de encontrar um lar seguro, e serem passados adiante? (Blackmore, 1999, p.37. Minha tradução). Tal pergunta é o início de qualquer consideração memética. Ela pode causar certo desconforto, mas acabamos de mostrar que tal desconforto é indevido. Podemos refazer esta pergunta da seguinte maneira: “dada as preferências cognitivas dos seres humanos, quais idéias e comportamentos serão mais comuns?”. Esta segunda pergunta não parece problemática, mas tais perguntas são 182 simplesmente idênticas. A diferença é só a partir de que ângulo estamos questionando o mesmo problema. Mas é claro que, no final das contas, a questão que realmente importa é qual destas duas perspectivas é mais frutífera. No que se segue, devemos levar em consideração que muitas vezes adotar a visão do meme pode parecer estranho por ser muito óbvio, mas é preciso não se deixar levar por tal obviedade. Devemos lembrar que a teoria de Darwin, que poderia ser resumido simplesmente como “aqueles que mais se reproduzem se tornam mais comuns”, pode parece também bastante óbvia, tão óbvia que, como veremos na seção 9.5, foi até acusada de ser tautológica! Mas na sua dita obviedade ela nos trouxe um modo completamente novo de tratar o mundo vivo, modo este que demoramos milênios para descobrir e mesmo agora ainda é criticado e mal compreendido por muitos. Infelizmente, os exemplos que serão dados a seguir não podem ser entendidos como memética propriamente dita. São só análises iniciais que poderiam ser utilizadas por futuros cientistas meméticos para fazer a sua pesquisa. O problema é que Blackmore desconhece as estruturas cognitivas que fazem um meme ser mais ou ser menos adaptado. Além disso, em uma atitude tipicamente memética que será criticada no decorrer deste trabalho, Blackmore ignora largamente as pesquisas que já existem sobre os assuntos que ela está tratando em antropologia, arqueologia, história, lingüística etc. Ficará claro ao longo desta tese que um dos primeiros trabalhos que um cientista memético deverá fazer é conhecer profundamente estes estudos e utilizá-los em sua pesquisa. O problema de Blackmore, assim como foi o caso de Dawkins, é que ela só constrói just so story, narrativas históricas interessantes e inteligentes, mas sem nenhum fundamento empírico mais preciso. Exatamente o que Gould temia. Este, inclusive, faz várias críticas à memética, mas não as desenvolve (cf. Gould, 2003, p.319). Veremos, então, que as análises de Blackmore são interessantes em sua obviedade, mas talvez sejam óbvias demais. O primeiro exemplo que Blackmore nos dá para utilizar o ponto de vista dos memes é a transformação do ser humano, que era principalmente caçador-coletor, em agricultor. Blackmore nos diz que, ao contrário do que muitos pensam, a mudança para esta nova forma de subsistência trouxe uma enorme quantidade de malefícios para a condição de vida e para a saúde. Dados mostram que caçadorescoletores têm absurdamente mais tempo para lazer e uma saúde melhor. 183 Aparentemente isso também era um fato 10.000 anos atrás e podemos comproválo através do estudo de esqueletos remanescentes. Neste ponto ela se baseia em estudos antropológicos existentes. Podemos até lembrar que na Bíblia o trabalho é considerado como a punição de adão. Existem também explicações biológicas do porquê esta transição se deu. Agricultores podem ter mais filhos e podem viver em comunidades maiores do que caçadores-coletores nômades. Tais explicações são as aceitas até o momento, mas Blackmore soma a esta explicação o fato de que memes não necessariamente se importam com o nosso bem estar. Se o comportamento de cultivar plantas e criar animais for mais simples do que o de caçar e coletar, ele se espalhará só porque é mais simples e nada mais. Cabe aqui perguntar se novas explicações para este fato tão estudado são realmente necessárias. De qualquer modo, este é um exemplo de uma explicação que a memética poderia dar. Uma outra questão trazida por Susan Blackmore é porque pensamos tanto. Qual o motivo que faz ser praticamente impossível parar de pensar? Inicialmente este não parece ser um problema. Estamos tão habituados a pensar constantemente que sequer imaginamos que poderia ser diferente. Mas tal pensamento incessante, e às vezes até desconfortável (em uma noite de insônia), não parece ser uma característica necessária, pois poderíamos muito bem pensar bem menos ou quase nada. Na verdade, é possível defender que poderíamos ser só comportamentais e não pensar absolutamente nada, como fizeram alguns bahavioristas. Então, por que pensamos tanto? Questões como essas são justamente exemplos do que a memética pode trazer de novo para o debate atual. Lembremos do caso de Gould e seu equilíbrio pontuado. Antes dele era comum aceitar que a mudança evolutiva é que exigia explicação, sendo os momentos de estase algo simplesmente natural. Mas Gould mostrou brilhantemente que isso estava errado, pois os momentos de estase eram controversos e precisavam sim de explicação. Uma espécie não fica milênios em estase simplesmente “porque sim”. É preciso dizer o que aconteceu que permitiu tal estase. Do mesmo modo, a memética nos mostra que existe um problema onde inicialmente não perceberíamos. A nossa incansável mente não é assim “porque sim”, deve haver um motivo. Para a memética este motivo não poderia ser mais simples: memes estão a toda hora competindo por espaço em nossos cérebros. Toda hora temos uma idéia ou um padrão de comportamento que quer se tornar mais “forte” do que os outros para ser passada adiante. Na verdade, 184 esta seria a explicação memética do modelo dos múltiplos esboços de Dennett. É claro que tal explicação exige uma fundamentação empírica mais rigorosa do que somente baseá-la nas idéias de um filósofo. É preciso saber antes se o cérebro realmente funciona de modo que vários pensamentos estejam competindo por espaço. Um outro exemplo que ela nos dá será tratado separadamente na seção 5.4 por precisar de um conhecimento em antropologia, mas por hora basta saber que não só Blackmore, Dennett e Dawkins, mas também Feldman e Cavalli-Sforza, defendem que a evolução humana e, em particular, o tamanho do cérebro humano, pode ter tido a sua origem em pressões culturais (meméticas) que construíram o nicho ecológico que selecionou genes para tal processo. Tal análise de Blackmore tem conseguido um sucesso maior, provavelmente porque tem uma base empírica mais sólida, como veremos no quinto capítulo. No momento podemos ficar com outro exemplo semelhante ao anterior, pois não só pensamos demais, mas também falamos exageradamente, às vezes até sozinhos. Esta é mais uma questão que inicialmente parece prescindir de explicação, mas a memética pretende mostrar que não é bem assim. Falar custa tempo e energia que é desperdiçada em conversas que parecem ser completamente inúteis, principalmente do ponto de vista dos genes. Mas do ponto de vista dos memes, falar é extremamente útil, pois permite que eles sejam passados. Na verdade, devemos questionar por que adquirimos tal habilidade de falar. Estamos tão acostumados com isso que suas vantagens parecem óbvias. Em grande parte das vezes, falamos simplesmente por prazer, o que é mais verdadeiro ainda em relação a cantar32. Mas qual seria o motivo que faz parecer tão difícil parar de falar? A explicação memética mais uma vez surpreende por sua simplicidade: pessoas que falam mais espalham mais memes, dentre eles estão os memes para falar mais. No entanto, ela pode ser exageradamente simples. Há indícios, por exemplo, que nossa habilidade de falar pode ter co-evoluido com a cooperação dentro do grupo e auxiliado na criação de laços dentro deste grupo. Poderia, então ter também um boa explicação biológica. Por sua vez, psicólogos evolutivos poderiam explicar tal evento como um resquício da origem do homem: falar 32 A nossa facilidade de lembrar de versos talvez esteja na origem dos memes para cantar. Tal facilidade é constatada em qualquer cursinho pré-vestibular onde se usam músicas para gravar regras que não seriam lembradas de outra maneira. Técnica semelhante é usada em pré-escolas. 185 demais pode ter sido adaptativo, mas não é mais. O importante aqui é ver que embora a explicação de Blackmore seja interessante, lhe falta qualquer base empírica para que ela seja considerada como a melhor resposta entre várias respostas possíveis. A questão para Blackmore é que uma pessoa que se mantenha calada terá dificuldade de passar os memes de “ficar calada”. Podemos levar tal caso ao extremo para entender melhor: imagine uma pessoa que descobriu um gigantesco e surpreendente benefício de nunca mais falar coisa alguma seja por que meio for. Imagine que tal pessoa descobriu que se comunicar é, na verdade, um grande malefício. Pois bem, o problema agora é como esta pessoa poderia dizer para as outras pessoas aquilo que ela descobriu? Ela não poderia, ficaria calada e sua grande descoberta morreria com ela. Tal meme seria um meme suicida. Agora, pessoas que falam bastante podem facilmente espalhar o meme de que é bom falar bastante. Por este motivo é esperado que este meme se espalhe mais do que seus concorrentes. De fato isso se daria deste modo, mas se é assim que realmente ocorre é uma questão para a qual Blackmore não tem resposta. Falta, mais uma vez, uma análise psicológica e empírica mais detalhada. Temos que questionar também não só por que falamos tanto, mas também por que falamos o que quer que seja. Parece ser perfeitamente possível que a linguagem nunca tivesse existido, ou fosse para sempre extremamente rudimentar como encontramos em alguns animais. Ao pensarmos qual é a função da linguagem podemos perceber que uma de suas principais funções é a de espalhar memes. A linguagem pode ter surgido justamente porque é um ótimo meio de passar informações. Na verdade, a nossa linguagem atual deve ter surgido cerca de 100.000 anos atrás e ainda hoje é a nossa melhor maneira de passar informação não-genética. Mas, passar informação não-genética é só um outro modo de falar “passar memes”. Do ponto de vista da memética, a linguagem foi selecionada para passar memes. Ou com um pouco mais de rigor conceitual, a linguagem existe porque é um meio eficiente de passar memes, dentre eles os memes da própria linguagem. Mais uma vez, não podemos ignorar que existem algumas outras explicações com mais embasamento teórico e empírico para o surgimento da linguagem, dentre elas a já mencionada anteriormente, que é a habilidade de cooperar e de manter relações sociais. 186 Já vimos que o meme da castidade é passado porque pessoas com tais memes têm mais tempo para gastar passando seu memes, dentre eles o meme a castidade (seção 3.1). O mesmo poderíamos dizer dos memes do controle de natalidade. Nas palavras de Blackmore: As mulheres que têm apenas um ou dois filhos, ou nenhum, são muito mais capazes de encontrar empregos fora de casa, ou de terem uma vida social excitante, ou de usar e-mail, escrever livros ou artigos, ou se tornarem personalidade políticas ou públicas, ou praticarem atividades que possam espalhar seus memes, inclusive os memes para o controle de natalidade e os prazeres de uma pequena família. São essas as mulheres que aparecem na mídia, cujos sucessos inspiram as outras pessoas, e que oferecem modelos de comportamento a serem copiados por outras mulheres (Blackmore, 1999, p.140. Minha tradução). Mais uma vez podemos ver que há um certo estranhamento quando se vê a cultura do ponto de vista dos memes, mas se conseguirmos deixar nossas sensações iniciais de lado poderemos perceber que de fato mulheres com menos filhos têm muito mais tempo para espalharem os seus memes, inclusive os memes de ter menos filhos. Sabemos que, tirando raras exceções, nossa sociedade privilegia mulheres com poucos filhos. No entanto, Blackmore falha em mostrar porque esta alternativa é melhor do que outras. Veremos no próximo capitulo, por exemplo, que a ecologia comportamental é capaz de explicar porque certos animais têm menos filhos do que eles aparentemente poderiam ter (seção 4.5). O último exemplo de Blackmore que trataremos aqui são os memes do altruísmo. Já vimos no capítulo anterior que existem algumas explicações biológicas para o altruísmo (seção 1.12.1, 1.12.3 e 4.3). As mais destacadas são o altruísmo recíproco e seleção de parentesco. Mas a memética também pode contribuir e até dar uma explicação para o chamado “verdadeiro altruísmo”, onde não há necessariamente reciprocidade e não é direcionado para parentes. Neste caso o altruísmo é passado porque tendemos a gostar mais de pessoas altruístas do que de pessoas egoístas e, além disso, tendemos a imitar pessoas que gostamos. Altruístas simplesmente nos inspiram bem mais do que egoístas: Experimentos psicológicos confirmam que é mais provável que as pessoas sejam influenciadas e persuadidas pelas pessoas de que gostam. Assim, os amigos imitam seu comportamento popular e, dessa forma, seu altruísmo se espalha. E quanto mais amigos ele tem, mais pessoas podem potencialmente adotar suas formas de se tornar popular (Blackmore, 1999, p.155. Minha tradução). 187 Publicitários sabem disso há muito tempo e utilizam esta informação para espalhar seus memes, ou melhor, os memes que eles são pagos para espalhar, colocando pessoas, normalmente artistas que as pessoas gostam, para vender produtos, mesmo que estes produtos não tenham absolutamente relação nenhuma com tais artistas. Isso nos mostra que também na memética pode acontecer uma espécie de “fenômeno-carona” como acontece na biologia quando certos animais pegam carona na adaptação de outros, ou certos genes se beneficiam da adaptação de outros genes. Neste exemplo em particular, Blackmore melhora um pouco a sua base ao tratar de experimentos psicológicos. Richerson e Boyd, como vimos neste mesmo capítulo (seção 3.2), também falam que muitas vezes seguimos a regra “faça o que aquela pessoa que parece ser bem sucedida está fazendo”. Seria o caso, então ver se as outras explicações para o altruísmo, como o altruísmo recíproco e a seleção de espécies, não poderiam dar uma explicação melhor. No caso da cultura Blackmore sugere que esta seria também uma possível explicação do por que certos comportamentos bem educados e politicamente corretos se espalham com tanta frequência. A questão é simples, do mesmo modo que uma borboleta pode sobreviver só porque parece com uma outra borboleta que é venenosa, tais comportamentos existem simplesmente porque parecem altruístas, mesmo não sendo necessariamente este o caso: Nós sorrimos muito para as pessoas, e sorrimos de volta para as pessoas que sorriem primeiro para nós. Também dizemos frases educadas e gentis para elas: “Como você vai?” “Espero que esteja tudo bem com os seus pais” “Divirta-se na sua festa” “Como posso ajudá-lo?” “Tenha um bom dia” “Feliz ano novo”. Com todos esses memes comuns, damos a impressão de nos importar com a pessoa com quem falamos, mesmo quando esse não é realmente o caso. É por isso que esses são memes vitoriosos. Nossa conversação quotidiana está cheia deles (Blackmore, 1999, p.165. Minha tradução). Mais uma vez é preciso deixar nossas primeiras impressões de lado e perceber que realmente somos constantemente bem educados, mesmo quando não queremos, e somos assim porque deste modo parecemos nos importar com as pessoas, mesmo quando não nos importamos. Fazemos isso porque de fato queremos que as pessoas achem que nos preocupamos com elas. Queremos parecer altruístas e amigáveis. Fingimos ser altruístas e amigáveis, pois assim podemos usufruir dos benefícios que os altruístas ganham, dentre eles o benefício de que nossos memes sejam levados em consideração pelas pessoas. Pessoas mal 188 educadas são menos capazes de transmitir seus memes, dentre eles os memes para a má educação. Muitas pessoas são capazes de lembrar de um ou mais eventos onde elas foram gentis quando não queriam ser, simplesmente porque estavam interessadas em algo da outra pessoa. Este é um evento e uma explicação cotidiana para a necessidade de ser gentil, no entanto outras explicações poderiam ser dadas, por exemplo, a psicologia evolutiva poderia dizer que a gentileza fortalece os laços sociais e que temos um módulo mental para isso. É claro que esta seria uma outra just so story, mas só o fato de que existem duas explicações diferentes já é o suficiente para perceber a necessidade de mais pesquisas. Todos estes exemplos que nos parecem estranhos, também nos parecem óbvios. Ao mesmo tempo que a memética pode ser vista como uma maneira completamente nova de olhar para a cultura, suas análises muitas vezes parecem ser tão simples que nos questionamos se é realmente preciso de uma teoria dos memes para desenvolvê-las. A questão é que a memética nos mostra que existe um aparato conceitual muito mais forte por detrás de algumas intuições cotidianas sobre por que certos comportamentos são mais comuns do que outros. No final das contas, a resposta sempre é que eles são mais comuns simplesmente porque “gostamos” mais deles. A mesma “obviedade” pode ser achada em Darwin que, em resumo, dizia que certas variações eram mais comuns simplesmente porque se reproduziam mais. Do mesmo modo que gostamos mais de certos comportamentos porque eles se adequam melhor ao nosso aparato cognitivo, certas variedades de seres vivos se reproduzem mais porque se adaptam melhor ao seu ambiente. É o mesmo problema, é a mesma resposta, é a mesma obviedade, e mesmo assim demoramos milênios para finalmente descobrir o óbvio. No entanto, assim como Gould percebeu corretamente que o darwinismo pode cair em um adaptacionismo exagerado, criando narrativas históricas inteligentes sem fundamento empírico nenhum, podemos detectar este mesmo problema na memética. Existe um aparato conceitual, mas ainda lhe falta desenvolver praticamente todo o seu fundamento empírico. Isso não significa que as análises feitas por Blackmore estão erradas, somente que elas não são o suficiente, não são científicas, isso ainda não é a memética33. É preciso muito 33 Como muito bem ressaltou Chateaubriand em uma conversa pessoal “a memética ou é uma ciência ou não é nada!”. Se ela não tiver uma fundamentação empírica, uma estrutura matemática, 189 mais. São necessários estudos mais detalhados da cultura, é preciso se mostrar melhor que as explicações concorrentes, é preciso fundamentar suas bases em conhecimentos sobre a psicologia e o cérebro humano, é preciso descobrir como memes passam, como são guardados e, principalmente, o que faz uma pessoa ser “invadida” por um meme e não pelo outro. Do mesmo modo, Darwin não apresentou só uma estrutura abstrata de sua teoria. Ele a fundamentou com inúmeras análises empíricas! David Hull nos dá um dos poucos exemplos mais consistentes de análise memética, mas ainda com vários problemas. O trabalho dele foi analisar a disputa existente na biologia entre cladistas e taxonomistas numéricos. Rapidamente explicados, são duas escolas da biologia que fazem duas classificações diferentes das espécies: os cladistas acreditam que a melhor classificação é a classificação filogenética, já os taxonomistas numéricos utilizam vários caracteres fenotípicos e análises numéricas para classificar os clados. Normalmente eles concordam na classificação, mas existem divergências importantes (seção 1.10). Hull fez sua análise pegando a principal revista do ramo, Systematic Zoology, e analisando todos os pareceres de todos os artigos em um período de 7 anos. A idéia fundamental era que os memes do cladismo deveriam estar melhor adaptados às mentes dos cladistas, e algo similar deveria acontecer com os taxonomistas numéricos. Deste modo, sua pergunta foi: “será que pareceristas cladistas tratam os artigos enviados por companheiros cladistas de forma mais bondosa do que os artigos enviados por não-cladistas?” (Hull, 2000, p.62. Minha tradução). O que ele precisava fazer era separar os pareceristas cladistas e ver se artigos cladistas seriam mais aceitos por eles. Inicialmente acharíamos que a resposta deveria ser obviamente sim. Não há problema nenhum com isso, pois as primeiras tentativas de modelar o que quer que seja tendem a iniciar com o óbvio. Mas para a surpresa de Hull ele não achou correlação nenhuma. Mas o interessante foi que, anos depois, ele descobriu que justamente durante o período de sete anos em que trabalhou esta questão, os cladistas estavam se diferenciando entre cladistas transformados e cladistas filogenéticos. Baseado nisso ele voltou aos seus dados, fez esta nova diferenciação e viu que os resultados eram exatamente o esperado. Por isso ele capacidade experimental e preditiva, ela simplesmente não interessa. A memética não surgiu para ser só mais uma teoria interpretativa da cultura. 190 disse, baseado em Lakatos: “Transformei um aparente falsificador em uma instância confirmadora, um dos indicadores mais fortes de que um programa de pesquisa é progressivo” (Hull, 2000, p.62. Minha tradução). É claro que Hull não respondeu o que torna o meme do cladismo mais adaptado à mente do cladista, por exemplo. Nem respondeu como este processo de seleção se dá na mente. A análise é claramente superficial e descobriu somente que cladistas gostam do cladismo. Aos olhos de um leigo, que não conhece as dificuldades de se modelar o óbvio, isso parece muito pouco. Mas uma aproximação mais cautelosa nos mostra que se Hull tivesse, na época, acreditado mais em seus dados, ele poderia ter notado a divisão dentro do grupo dos cladistas antes mesmo dos próprios cladistas! Ele presenciou um momento do que poderia ser chamado de “especiação memética” quando ninguém sabia bem o que estava acontecendo e quando os dois diferentes grupos de cladistas ainda não tinham entendido claramente as suas diferenças. Um resultado em nada irrelevante! E este sim um experimento memético com mais base do que as análises de Blackmore. 4 Naturalizando o Comportamento e a Cultura Desde o surgimento da teoria da evolução por seleção natural existem tentativas de compreender a cultura através de um paradigma evolutivo. Para ser mais exato, até mesmo antes da publicação da “Origem das Espécies”, e a despeito dela, Herbert Spencer já falava de evolução da cultura e da sobrevivência dos mais aptos. Com o passar das décadas, as tentativas de compreender o comportamento e a cultura através da biologia, se multiplicaram. Com um panorama tão diverso é muito comum que dois mal-entendidos aconteçam: podese confundir a memética com alguma destas abordagens ou pode-se achar que elas são opostas ao programa memético. Curiosamente estas duas más compreensões são claramente opostas, mas igualmente comuns. É de se esperar que neste caso algo esteja errado, e de fato está. Diversas são as áreas do conhecimento que são confundidas com a memética. Abordar todas seria impossível. Na verdade, mesmo tratar apenas algumas destas áreas de maneira profunda já seria fugir do tema do presente trabalho. Deste modo, o que pretendemos aqui é bem mais simples: compreender somente o suficiente para ser capaz de distinguir o que estas abordagens têm de semelhante e, principalmente, de diferente em relação à memética. Ao fazermos isso será possível distinguir a memética de todas estas áreas. Muitas vezes, entretanto, serão encontrados pontos em comum que mostram que tais abordagens não são excludentes e não devem ser consideradas como refutadas pela memética ou possíveis refutadoras desta. Muito pelo contrário, algumas delas têm grande potencial para trabalhar ao lado da memética em uma análise muito mais poderosa da cultura e do comportamento humano. Logo ficará claro que a maioria das abordagens tratadas tem quase todas a mesma diferença em relação à memética, a saber, elas são formas de tratar a cultura e o comportamento através dos genes. É justamente por isso que elas não são opostas à memética, pois esta trata só da parte da cultura e do comportamento que é ao menos largamente independente dos genes. E exatamente pelo mesmo motivo elas podem ser consideradas como complementares à memética. Algumas 192 das áreas de maior relevância para este assunto são: a sociobiologia, a etologia, o fenótipo estendido, a psicologia evolutiva, a co-evolução, a ecologia comportamental, o efeito Baldwin, a evolução epigenética e o darwinismo social. É claro que existem divergências não só entre elas, mas entre todas elas e a memética. Geralmente esta divergência diz respeito a quanto do nosso comportamento é geneticamente determinado. No entanto, tal questão não será tratada aqui, pois como Pinker (2004) muito bem mostrou, esta é uma questão empírica e deve ser tratada desta maneira. Ou seja, só com o futuro trabalho nestas áreas será possível resolver esta questão. Cada um destas áreas tem uma história e muitas vezes esta história foi bastante conturbada. É impossível negar que a teoria da evolução, quando aplicada sobre o ser humano e a cultura foi uma fonte de grandes monstruosidades como o nazismo, racismo, sexismo e as mais diversas formas de segregação que buscavam dar caráter científico aos preconceitos de então (cf. Gould, 2003). Isto faz com que a memética ande hoje sobre um terreno minado repleto de medo e receio que uma análise darwinista da cultura tente trazer de volta tal passado hediondo. Por este motivo é comum que toda nova tentativa de naturalizar a cultura fuja de tais comparações tentando se distanciar o máximo possível de qualquer idéia e conceito que pode ter sido ligado no passado a tais monstruosidades. Tal tentativa é válida, pois as ciências humanas tiveram que enfrentar por décadas as incursões do darwinismo dentro de sua área, de modo que qualquer nova incursão pode ser considerada como uma volta dos antigos preconceitos, mesmo antes de ser propriamente analisada. Mas infelizmente isto acaba criando dentro das próprias ciências humanas um preconceito contra Darwin e a evolução por seleção natural. A fuga de um preconceito nos leva a outro. Seria então mais saudável para ambas as partes parar um pouco e tentar fazer uma análise mais ponderada do que está se passando. A memética tem relações com estas diversas áreas, além de fazer parte de um conjunto maior que engloba todas elas e que poderia ser resumido como “tentativas de levar o darwinismo para dentro do estudo do homem e da cultura” ou simplesmente Darwinismo Universal. Neste sentido tudo é, de fato, “farinha do mesmo saco”. Mas uma análise mais detida é capaz de encontrar grandes diferenças entre todas estas diversas áreas, de modo que críticas que foram uma 193 vez feitas a uma delas não podem ser simplesmente reutilizadas para criticar a outra. Deste modo, é necessário encontrar as semelhanças e as diferenças entre estas abordagens e, principalmente, entre cada uma delas e a memética. Para que façamos isso de maneira apropriada é importante que seja realizado sem medo, ou seja, sem se preocupar com possíveis rótulos. 4.1 Etologia Começaremos pela etologia que é o estudo comparativo do comportamento animal. Embora a confusão entre etologia e memética seja rara, ainda assim existe. Além disso, é preciso entender um pouco de etologia para compreender a sociobiologia e o fenótipo estendido. A etologia pode ser confundida com a memética porque estuda o comportamento animal. Pode-se dizer que ela surgiu antes mesmo da noção de genes com os estudos de Darwin sobre as emoções nos animais e sobre a seleção sexual. O que Darwin fez de revolucionário nesta área foi mostrar que não só os organismos físicos podem ser estudados pela evolução, mas também os comportamentos destes organismos foram selecionados e evoluíram através do mesmo processo que seus corpos. Nas palavras de Darwin: A hereditariedade da maioria de nossos movimentos expressivos explica por que os nascidos cegos os exibem tão bem quanto os que têm visão, como me foi dito pelo rev. R.H.Blair. Podemos assim também compreender por que jovens e velhos de raças muito diferentes, tanto entre homens quanto entre os animais, expressam um mesmo estado de espírito com os mesmos movimentos (Darwin, 2000, p.327) No entanto, a etologia propriamente dita começou por volta dos anos 30 e se originou, de maneira curiosa, da ornitologia, que é o estudo dos pássaros. Tais pesquisadores têm o costume de observar longamente seus objetos de estudos e durante estas observações começaram a descobrir que padrões comportamentais também poderiam ser considerados como características das espécies. Nas palavras de um dos criadores da etologia, Konrad Lorenz: Sob estas circunstâncias, um microsistemata, na procura de caracteres comparáveis, dificilmente deixará de notar que existem padrões comportamentais que representam características tão confiáveis (e conservativas) de espécies, Gêneros e, 194 até mesmo, grupos taxonômicos maiores, quanto quaisquer características morfológicas. Em sua nota científica ‘Über bestimmte Bewegungsweisen bei Wirbeltieren” (1930), Heinroth demonstrou claramente que o conceito de homologia é aplicável igualmente a padrões motores e características morfológicas. (Lorenz, 1995, p.140) A descoberta de que existiam homologias comportamentais foi o que Lorenz chamou de “ponto arquimediano” da etologia. Homologia, como já vimos (seção 1.3.4), é a constatação que alguns caracteres semelhantes entre diferentes espécies têm um ancestral comum. A grande descoberta foi que existiam homologias comportamentais e, deste modo, elas podiam ser estudadas assim como qualquer outro caractere animal. Darwin já havia mostrado isso, mas tinha ficado esquecido (cf. Darwin, 2000, p.209). Estas homologias poderiam, inclusive, ser utilizadas para descobrir parentesco entre espécies! Com o aprofundamento das pesquisas nesta área, foram utilizados não só observações de campo, mas experimentos de laboratórios que indicaram que ao menos parte do comportamento era geneticamente determinado, como nos mostra Robert Trivers: A criação de linhagens de ratos (ou cães) que diferem geneticamente uns dos outros revela diferenças comportamentais quando o ambiente permanece constante. Os cruzamentos entre espécies de pássaros que têm parentesco próximo, porém apresentam comportamento distinto, produzem uma descendência que apresenta uma mistura de comportamentos, sugerindo uma mistura de genes que atuam em diversos loci. Há muitos exemplos disso. Tomados conjuntamente, eles sugerem que os traços comportamentais não são diferentes dos outros traços, na medida em que têm componentes genéticos (Trivers, 1985, p.98. Minha tradução). Passa, então, a ser correto utilizar o chamado “método comparativo” aos comportamentos animais. Deste modo a etologia traz o estudo do comportamento para dentro da biologia e trata-o como um caractere como qualquer outro34. A etologia também se interessou especificamente pelo comportamento social dos animais e criou o que chamamos hoje de sociobiologia. A diferença entre a etologia e a memética é bastante simples. Como vimos, a etologia se preocupa especificamente com a parte do comportamento que é geneticamente determinado. Só deste modo ele pode ser passado por gerações e pode contar como um caractere biológico. Já a memética se preocupa exclusivamente com o comportamento não-determinado geneticamente. Por este motivo, em uma primeira leitura elas podem parecer até antagônicas. Mas este não 34 Lorenz costumava dar uma explicação da origem do comportamento como se fosse um sistema hidráulico (cf. Lorenz, 1995, p.240); 195 é o caso. É claro que em determinados comportamentos existirão discussões sobre se eles são determinados pela cultura ou pelos genes. Além disso, existem comportamentos onde estes dois fatores atuam conjuntamente. Tirando estas pequenas discussões, elas trabalham de forma paralela tratando de fenômenos muito diferentes. São, na verdade, complementares na busca muito mais geral do estudo do comportamento como um todo. 4.2 Fenótipo Estendido Quando não foi o criador, Dawkins foi o popularizador de uma série de conceitos relacionados com a biologia. Para citar apenas três dos mais famosos, temos os memes, o gene egoísta e o fenótipo estendido. Ao contrário dos memes, os outros dois conceitos tiveram livros específicos sobre eles escrito por Dawkins. Todos os três estão de certa maneira ligados, mas não devem ser confundidos. A idéia de gene egoísta foi o que originou a idéia de meme, pois nela Dawkins estava defendendo que o objeto de seleção deveria ser o replicador. Já o fenótipo estendido fala da relação entre estes genes e o ambiente. Já vimos que o fenótipo é o efeito que o genótipo e o ambiente têm na criação de um indivíduo e acabamos de ver que o comportamento de um determinado animal pode ser considerado como parte deste fenótipo. Fica, então, fácil compreender que o fenótipo estendido são os efeitos ambientais criados por tais genes através de tais comportamentos. A idéia é bem simples: estruturas materiais criadas por tais comportamentos contam também como parte do fenótipo. Podemos dar inúmeros exemplos, como ninho de pássaros, teias de aranha, represas de castores, etc. O fato de que a teia da aranha é produzida diretamente pela aranha, mas o ninho e a represa não, é de pouca relevância. Até porque para ser capaz de produzir sua teia a aranha deve ingerir nutrientes que não são partes do seu próprio fenótipo. Ambas as construções precisam de algo externo, sendo que a única diferença é como este algo será trabalhado. Pode-se também questionar que a relação entre os genes e os fenótipos estendidos é muito distante e indireta em comparação com os efeitos fenotípicos 196 “normais”. Mas este seria um outro erro. Segundo Dawkins, “até efeitos fenotípicos ‘internos’ normais podem ser encontrados no final de cadeias causais longas, ramificadas e indiretas” (Dawkins, 1999, p.198. Minha tradução). Como já foi tratado no primeiro e no segundo capítulo do presente trabalho, dizer que um gene é “para” algo significa somente dizer que dado o mesmo ambiente (não só externo, mas em relação aos outros genes), se este gene for diferente ou ausente os efeitos serão diferentes ou ausentes. Como é possível dizer exatamente isso sobre o fenótipo estendido, então podemos falar de gene para teias, genes para construção de ninhos etc., assim como podemos falar de genes para olhos azuis. O mais interessante é que, por ser estendido, tal fenótipo pode se beneficiar do comportamento de indivíduos diferentes, como no caso da construção de um cupinzeiro. Neste caso, o cupinzeiro é o fenótipo estendido de vários genes particulares em vários cupins diferentes. Nas palavras de Dawkins: O princípio é o mesmo, tanto quando ocorre de as células estarem organizadas em um único clone homogêneo, como é o caso do corpo humano, ou em uma coleção heterogênea de clones, como em um cupinzeiro (Dawkins, 1999, p.201. Minha tradução). O fato de que genes cooperam para a construção de um fenótipo estendido não é diferente do fato de que eles cooperam para a construção de um fenótipo comum. Para que genes trabalhem juntos eles não precisam estar em um mesmo indivíduo, na verdade, dado o conceito de gene egoísta, a própria idéia de indivíduo é estranha aos genes. Em seu trabalho a única preocupação é a sua própria replicação e os outros genes, mesmo aqueles com os quais eles trabalham juntos, são só parte do ambiente para eles. Dado o conceito de fenótipo estendido, temos uma interessante aplicação dele. Acontece que os efeitos de um gene podem influenciar o fenótipo de um outro indivíduo que não possui tal gene. Deste modo, um gene poderia ter um efeito fenotípico em um indivíduo que não o possui. Um dos casos mais conhecidos é o do vírus da raiva, que por passar da saliva para o sangue, faz o cão ficar raivoso, aumentando assim a chance da sua passagem. Mas existem exemplos muito mais surpreendentes, como de um parasita (Dicrocoelium dendriticum) que infecta formigas e lesmas: para entrar no estomago de certos animais, como ovelhas, onde se estabelecerá, este parasita infecta a formiga e faz com que ela suba no alto da grama e fique lá parada. Ao contrário das outras 197 formigas que desceriam por causa do frio, esta fica lá parada e só desce por causa do calor, pois este pode matá-la. Mas fica no alto da grama até ser comida por alguém (cf. Dawkins, 1999, p.218). Temos, então, o gene de um parasita com um efeito fenotípico no comportamento de uma formiga ou lesma. Um outro caso interessante é citado por Dawkins: Duas espécies de vermes acantocéfalos, o Polymorphus paradoxus e o P. marilis. Ambos usam o “camarão” de água doce (trata-se, na verdade, de um anfípode), Gammarus lacustris, como hospedeiro intermediário, e ambos usam os patos como hospedeiros definitivo. O P. paradoxus, entretanto, especializou-se no mallard, que é um pato nadador de superfície, enquanto que o P. marilis especializou-se nos patos mergulhadores. Idealmente, portanto, o P. paradoxus se beneficiaria se pudesse fazer seus camarões nadarem na superfície, onde pudessem ser comidos pelos seus patos preferidos, enquanto que o P. marilis se beneficiaria se pudesse fazer com que seus camarões evitassem a superfície (Dawkins, 1999, p.116. Minha tradução). Normalmente o Gammarus lacustris fica no fundo e evita luz. Mas quando infectado pelo P. paradoxus, ele sobe para a superfície. E quando infectado pelo P. marilis, ele continua no fundo, mas deixa de evitar a luz. Temos, então, o mesmo indivíduo com três comportamentos diferentes: um quando ele não está infectado e dois dependendo do parasita que o infecta. Nos dois últimos casos seu comportamento beneficia o parasita e não ele mesmo. Dadas as principais implicações do conceito de fenótipo estendido, é fácil ver que ele não deve se confundir com o conceito de meme. Embora ambos possam causar traços que serão chamados de culturais e possam manufaturar produtos, o meme diz respeito à evolução puramente cultural, sem nenhum “comando” dos genes. É claro que os genes têm um papel a interpretar, pois são eles que produzem o principal ambiente dos memes. Mas o ambiente é aquilo ao qual o meme deve se adaptar, e não o próprio meme. A confusão entre estes dois conceitos normalmente se dá porque ambos foram criados por Dawkins, e também porque os efeitos do fenótipo estendido podem ser muito distantes do gene que o causa. Mas eles não são efeitos meméticos porque são efeitos genéticos como qualquer outro. Nas palavras de Dawkins: Os genes afetam as proteínas, e as proteínas afetam X que afetam Y que afetam Z que... afetam o caráter fenotípico de interesse. Mas os geneticistas convencionais definem de tal forma o “efeito fenotípico” que X, Y e Z precisam todos estar confinados dentro de um muro corporal individual. O geneticista estendido reconhece que esse corte é arbitrário, e está bastante satisfeito em permitir que seu 198 X, Y e Z saltem a brecha que existe entre os corpos individuais (Dawkins, 1999, p.232. Minha tradução). 4.3 Sociobiologia A sociobiologia pode ser considerada como uma parte específica da etologia. Enquanto esta estuda o comportamento animal, aquela só se preocupa com a parte do comportamento que diz respeito às diversas formas de interrelações entre os organismos. “A sociobiologia é definida como o estudo sistemático das bases biológicas de todo comportamento social” (Wilson, 1975, p.4). No que diz respeito aos animais ela é muito pouco controversa e universalmente reconhecida como tendo grandes avanços. Foi de dentro destes avanços que nasceu o conceito de “gene egoísta” como o próprio Dawkins reconhece. Os estudos mais conhecidos da sociobiologia provém das descobertas sobre o altruísmo. Pois o “altruísmo verdadeiro”, ou seja, quando um organismo diminui sua possibilidade de sobrevivência e reprodução em nome de algum outro organismo não deveria existir dentro do panorama darwinista. Tal organismo simplesmente não poderia ser selecionado, pois a própria definição de “seleção natural” é ter um sucesso reprodutivo maior do que o da média da população. Mas a existência do altruísmo é largamente aceita, existindo até castas estéreis em alguns insetos da ordem Hymenoptera (formigas, vespas, abelhas, marimbondos) e os cupins. Tal altruísmo chegou a ser considerado como um refutador do Darwinismo. Posteriormente foi dada uma explicação baseada na seleção de grupos ou na seleção de espécies. Esta questão já foi discutida na seção 1.12 onde foi apresentado também a regra de Hamilton RB > C onde o custo (C) da ação altruísta tem que ser menor do que o benefício (B) e a chance (R) de que o gene responsável por praticar o benefício esteja no beneficiado. Neste caso, tal gene beneficiaria cópias de si mesmo e se espalharia na população. A ordem Hymenoptera tem mais de 100 espécies, todas haplodiplóides, mas nem todas são sociais. Os machos são haplóides e as fêmeas são diplóides. No caso de tais insetos com castas estéreis, por causa deste sistema reprodutor 199 diferente do nosso, as fêmeas destes insetos têm um parentesco maior com suas irmãs (75%) do que com suas próprias filhas (50%), deste modo faz muito mais sentido para os seus genes se elas ajudarem a dar origem às irmãs do que terem filhos por conta própria (cf. Ruse, 1983, p.56). A explicação do que deveria ser um refutador do darwinismo dentro da própria ortodoxia darwinista foi, e é até hoje, considerado um dos grandes sucessos da biologia. Dennett chega até a comentar um “triunfo” ainda maior quando R. D. Alexander fez um exercício de pensamento do que seria necessário para que tais castas estéreis existissem entre os mamíferos e foi informado por Jennifer Jarvis que animais exatamente como ele descrevera de fato já existiam! Eram ratos subterrâneos pelados e coprófagos (comem suas próprias fezes) que tinham castas estéreis e todas as características que Alexander previra (cf. Dennett, 1998, p.508). O sucesso da sociobiologia só se aprofundou com a utilização da teoria dos jogos, que Hamilton e, principalmente, Maynard-Smith (1973) introduziu na biologia, ocasionando a descoberta das chamadas Estratégias Evolutivamente Estáveis (EEE). Explicar o que é uma EEE, dada a sua extrema complexidade, fugiria muito do presente trabalho. Uma definição mais simples dada por Dawkins foi a seguinte: “Uma estratégia que obtém sucesso quando compete com cópias de si mesma” (Dawkins, 1999, p.120. Minha tradução). A questão é que se uma estratégia comportamental for boa ela será selecionada e, com a evolução, ela logo estará cercada de cópias de si mesma e só prosseguirá existindo se for boa em competir consigo mesma. Nas palavras de Ruse: Isso significa uma situação em que se tem uma população com um certo número de formas possíveis e onde, dada a proporção particular das formas realmente obtidas, a seleção individual não favorece uma forma mais do que a outra. Em resumo, a população se mostra equilibrada ou estável, já que não se espera que uma forma se desenvolva às expensas de outras (Ruse, 1983, p.36) . Assim, o estudo das EEE pode nos dar a proporção quantitativa das diferentes estratégias comportamentais que garantirá tal estabilidade. Tais análises permitiram estudar o comportamento social dos animais de maneira rigorosa, estudando e analisando matematicamente vários comportamentos sociais como conflitos, cooperação, compartilhamento de informação, estratégias sexuais etc. 200 O grande problema da sociobiologia foi quando a aplicaram aos seres humanos. Assim que E. O. Wilson (1975) criou o termo, ele logo foi largamente atacado por cientistas sociais, e alguns biólogos como Gould e Lewontin, que viam em tais tentativas não só um reducionismo, mas um panglossianismo inaceitável (cf. Gould, 1992, p.242). Alguns problemas levantados por eles realmente são bem pertinentes. Sociobiólogos muitas vezes descobrem características em animais pouco relacionados com o ser humano e acreditam que isso possa indicar alguma coisa sobre o nosso comportamento. A existência de “estupro” em patos selvagens da espécie Anas platyrhynchos, por exemplo, nos mostraria que o estupro é algo natural (cf. Gould, 1997, p.518). Esta é uma péssima linha de raciocínio, mas não cabe aqui uma crítica à sociobiologia, pois a questão são suas relações com a memética. Um típico exemplo de análise sociobiológica, que depois resultou no surgimento da psicologia evolutiva, era o estudo de gêmeos monozigóticos que foram separados ao nascer e nunca tiveram contato entre si. Como ambiente no qual estes foram criados eram diferentes, mas seus genes eram os mesmos, então suas similaridades deveriam ser de responsabilidade mais genética do que ambiental. E foram descobertas similaridades impressionantes, por exemplo: Suas famílias nunca haviam se correspondido e, no entanto, várias similaridades foram imediatamente evidentes quando elas se encontraram no aeroporto pela primeira vez. Ambos usavam bigodes e camisas de dois bolsos com ombreiras. Ambos portavam óculos com armação de arame, e compartilhavam uma série de idiossincrasias. Os gêmeos gostam de temperos fortes e bebidas doces, são distraídos, dormem diante do televisor, acham que é engraçado espirrar em meio a uma multidão de pessoas estranhas, dão a descarga do sanitário antes de usá-lo, armazenam elásticos nos pulsos, lêem revistas de trás para frente, e mergulham a torrada com manteiga no café (Trivers, 1985, p.100. Minha tradução). Esta citação é ótima para mostrar exatamente o que muitos cientistas sociais temem na sociobiologia: a especificidade das similaridades e o modo como tudo é apresentado parece indicar que se está querendo comprovar a origem genética de praticamente tudo no comportamento de um ser humano. Até as idiossincrasias mais detalhadas. Mas é claro que, na verdade, ninguém propõe que existam genes para “dar a descarga antes de usar o banheiro” ou “ler revistas de trás para frente”! Embora tais semelhanças sejam surpreendentes, elas, por si só, não provam absolutamente nada. O que é cientificamente relevante é que dado as comparações entre um grande número de gêmeos criados separadamente e entre pessoas 201 distintas da mesma idade, escolhidas aleatoriamente, é muito mais comum encontrar semelhanças comportamentais e psicológicas entre os primeiros do que entre os segundos. Deste modo fica estatisticamente demonstrado que há sim uma base genética para o comportamento humano. Qualquer coisa além disso deve ser comprovado em futuras pesquisas muito mais detalhadas e mais difíceis de realizar, e que talvez sejam até impossíveis, pois não é permitido fazer experimentos com seres humanos e o número de gêmeos nesta situação é muito pequeno para ser considerado como uma boa amostra estatística35. Exemplos como este acabaram tendo um maior uso na psicologia evolutiva, mas de qualquer modo eram casos assim que tentavam demonstrar a existência de fatores genéticos no comportamento humano. A principal discussão era até que ponto podia-se falar de predisposição genética. Como biólogos apaixonados pelo seu campo, e impressionados pelos resultados da sociobiologia com animais, Wilson, e também Lumsden, criaram a noção da cultura presa a uma coleira (leash) comandada pelos genes e de fato exageraram em suas expectativas da importância dos genes na cultura. Em suas palavras: À medida que a cultura progride através da inovação e da introdução de idéias novas e artefatos do exterior, é, de alguma maneira, constrangida e orientada pelos genes (Lumsden & Wilson, 1981, p.73). Grande parte do comportamento social humano é afetado pela hereditariedade e, portanto, pode ser explicado mais prontamente pela biologia do que pelas formulações usuais das ciências sociais (Lumsden & Wilson, 1987, p.50). Quando é dito que eles exageraram não é porque estavam errados, mas porque não tinham resultados empíricos suficientes para afirmar o que estavam dizendo. Na verdade, embora o estudo da relação entre genes e comportamento humano tenha se desenvolvido bastante desde então, ainda não há dados claros o suficiente para afirmar o que eles afirmavam há mais de 20 anos atrás. Os debates contra a sociobiologia chegaram perigosamente próximos da agressão física e ela adquiriu tão má reputação que foi quase esquecida. Na verdade, aulas e palestras de Wilson foram invadidas por manifestantes portando 35 Cabe aqui uma pequena ressalva, talvez tola, mas que nos diz muito sobre como se faz ciência: estes mesmos experimentos poderiam ser utilizados para mostrar que a data e local de nascimento influenciam o caráter, ou seja, que a astrologia está certa! Para refutar isso seria necessário um outro experimento, comparando gêmeos monozigóticos e heterozigóticos que foram separados ao nascer. É sempre importante lembrar que dados estatísticos podem ser interpretados de inúmeras formas. 202 cartazes, ele foi chamado de racista, sexista, eugenista e chegaram até a despejar um jarro de água sobre ele (cf. Pinker, 2004, p.160)36. Mais tarde, quando o calor dos debates já tinha diminuído, Wilson resumiu sua idéia da seguinte maneira: Os seres humanos herdam uma propensão a adquirir comportamento e estruturas sociais, e essa propensão é tão compartilhada que permite sua qualificação como natureza humana. Os traços definidores incluem a divisão do trabalho entre os sexos, a proximidade de parentesco, evitar o incesto, outras formas de comportamento ético, a desconfiança com relação a estranhos, tribalismo, ordens de dominância dentro dos grupos, dominação masculina, agressão territorial como reação a uma limitação de recursos. Embora as pessoas tenham livre arbítrio e capacidade de escolha entre diversas direções, os canais de seu desenvolvimento psicológico são, de todo modo, (...) talhados mais profundamente pelos genes em certas direções do que em outras. Embora as culturas variem enormemente, elas inevitavelmente convergem em direção a esses traços (Wilson, 1994, in: Laland & Brown, 2002, p.88. Minha tradução). Pode-se facilmente ver porque afirmações como estas foram vistas como inaceitáveis por pessoas que já temiam o chamado, e inexistente, determinismo genético e fugiam das implicações eugênicas a que o darwinismo tinha se submetido. Uma leitura menos atenta de fato iria parecer que Wilson estava defendendo o sexismo machista, bem como o racismo e outras aberrações culturais. Mas este, com certeza, não era o caso. E até mesmo Dennett, um defensor da sociobiologia, admite existirem excessos que infelizmente denegriram a sociobiologia como um todo. Comparações entre comportamentos humanos e de outros animais evolutivamente muito distantes, como insetos, foram usados para justificar certos comportamentos de uma maneira que não faz nenhum sentido biológico. A comparação de comportamentos só é evolutivamente significativa quando eles têm uma origem genealógica comum, de outro modo pode ser uma simples coincidência. Esta tentativa de buscar similaridades a todo custo criou sérios problemas e ignorou o que o próprio Dennett considera como um sério obstáculo à inferência sociobiológica. Em suas palavras: mostrar que um tipo particular de comportamento humano é ubíquo ou quase ubíquo, em culturas humanas muito distantes não adianta nada para mostrar que existe uma predisposição genética para tal comportamento. Segundo o que sei, em todas as culturas conhecidas por antropólogos, os caçadores atiram suas lanças com a ponta para frente, mas isso obviamente não estabelece que exista um gene de 36 Infelizmente tratar desta questão fugiria muito do escopo deste capítulo. Mas é possível ver a que ponto a ignorância chega! A melhor resposta para este debate em português ainda é Pinker, 2004. 203 ponta para frente que se aproxime da fixação em nossa espécie (Dennett, 1998, p.511)37 . Muitas são as críticas que podemos fazer à sociobiologia. Algumas, como acabamos de ver, oriundas até de seus defensores. Mas a questão mais importante aqui é se estas críticas são críticas também à memética. Depois do que foi apresentado, fica claro que são duas abordagens completamente diferentes e, embora possam ser complementares no estudo do comportamento humano, chegam a ser opostas. O próprio Dawkins, outro grande defensor da sociobiologia, nos diz: Meus colegas sociobiólogos insistem em me censurar como vira-casaca, porque não concordo com eles no que diz respeito à idéia de que o critério de sucesso de um meme deve ser sua contribuição para uma adaptação Darwiniana. No fundo, conforme insistem, um “bom meme” se espalha porque os cérebros são receptivos com relação a ele, e a receptividade dos cérebros está, em última análise, formada pela seleção natural (genética). O fato de que os animais imitam outros animais deve ser explicado, em última instância, em termos de sua adaptação darwiniana (Dawkins, 1999, p.110. Minha tradução). A grande crítica feita contra a sociobiologia humana é justamente o fato dela pressupor que o comportamento humano está como que amordaçado por um coleira (leash) que é comandada pelos genes, mesmo se esta coleira for bem longa. Mas a memética vem justamente para liberar a evolução cultural desta coleira e tratá-la como uma evolução por conta própria. 4.4 Psicologia Evolutiva Uma vez já apresentada a etologia e a sociobiologia fica fácil compreender o que é a psicologia evolutiva, que poderia ser vista só como um novo enfoque da sociobiologia. Leda Cosmides e John Tooby, que podem ser considerados a mãe e o pai da psicologia evolucionária com o livro The Adapted Mind (1992), acreditam que ela não deve muito à sociobiologia. Já Henry Plotkin pensa 37 Argumentos com base na ubiqüidade devem ser tratados com muito cuidado não só na biologia, mas em outras áreas também como a filosofia da lógica e da matemática. O fato de que todo ser conhecido soma “2+2=4” pode significar muito menos do que esperamos em termos de universalidade da matemática. 204 diferente. De fato as duas abordagens são bem diversas, mas uma provavelmente não teria existido sem a outra. O ponto arquimediano da psicologia evolutiva é a constatação de que a mente humana só pode ter surgido pela evolução. Nas palavras de Mithen: O ponto de partida dessa argumentação é a mente ser uma estrutura funcional complexa que não poderia ter surgido pelo acaso. Se estamos dispostos a ignorar a possibilidade de uma intervenção divina, o único processo conhecido que pode ter dado origem a tamanha complexidade é a evolução por seleção natural (Mithen, 2002, p.68). Pinker define a psicologia evolutiva, ou evolucionária, como o “estudo da história filogenética e das funções adaptativas da mente” (Pinker, 2004, p.81). Darwin mesmo já falava que “as faculdades mentais são seguramente variáveis, e as variações são hereditárias” (Darwin, 2002, p.702). Vemos já aí uma diferença com a sociobiologia, pois esta não está interessada no comportamento exclusivamente social. Na verdade, pode-se dizer que ela sequer está interessada nos comportamentos e sim no mecanismo que produz tais comportamentos. Seu princípio básico é uma explicação para a existência de comportamentos contemporâneos que são mal-adaptativos, segundo eles tais comportamentos eram adaptativos quando surgiram durante a evolução do homem, mais precisamente durante o Pleistoceno (cerca de 2 milhões de anos), quando os homens eram caçadores-coletores. Dada a rápida evolução do homem, e a mais rápida ainda evolução cultural, ficamos com um cérebro que contém estruturas para tratar de problemas antigos em um mundo moderno. Uma das grandes propostas da psicologia evolutiva é a modularidade da mente. Embora existam divergências de quão modular ela seja, e até mesmo psicólogos evolutivos, como Mithen, que acreditam que esta modularidade foi significativamente reduzida com a evolução do homem. Mas mesmo assim, a modularidade permanece como um ponto central da psicologia evolutiva: Cosmides e Tooby (1987) caracterizaram a diferença entre a visão padrão da ciência social e sua própria perspectiva em termos de uma escolha entre dois modelos da mente, um que enfatiza um número pequeno de processos de domínio geral, e outro que sublinha um grande número de módulos de domínios específicos (Laland & Brown, 2002, p.182. Minha tradução). Dizer que a mente é modular significa dizer que ela trabalha como um canivete-suíço, ou seja, que ela é formada de partes diferentes e especializadas 205 (domain-specific), cada parte com o intuito de achar uma solução eficiente e rápida para um determinado problema que nossos ancestrais poderiam ter encontrado (cf. Plotkin, 2004, p.142). Além de serem especializados e informacionalmente fechados, tais módulos também seriam opacos, significando que seus processos internos são fechados para a consciência, e não seriam escolhidos pela pessoa, significando que ao se deparar com determinado tipo de problema a pessoa não é capaz de escolher que módulo vai usar. O oposto da mente modular seria uma mente tipo “esponja”, algo único capaz de absorver tudo sem fazer distinções. É a idéia de uma mente única, mas multi-uso, capaz de absorver o que quer que seja, é conhecida como “aprendizagem”. Existem evidências que indicam que a mente não funciona assim, podemos destacar, por exemplo, a rapidez de aprendizado de uma criança, mesmo de conteúdos complexos, que dificilmente seria obtida dentro de um processo baseado em algo tão neutro e vazio. Mas mais importante é o fato de que é difícil compreender como uma mente tipo “esponja” poderia ter surgido na evolução. Alguns exemplos de quais poderiam ser tais módulos mentais são dados por Tooby e Cosmides: Um para reconhecimento do rosto, um para as relações espaciais, um para a mecânica de objetos rígidos, um para o uso de ferramentas, um para o medo, um para as trocas sociais, um para emoção-percepção, um para a motivação associada ao parentesco, um para a distribuição do esforço e recalibração, um para o cuidado das crianças, um para as inferências sociais, um para a amizade, um para a aquisição da gramática, um para a comunicação e pragmática, um para a teoria da mente, e assim por diante! (Tooby & Cosmides, 1992, p.113) Uma objeção surge imediatamente, pois não percebemos nossa mente como sendo modular e nem nos percebemos como presos a um número limitado de ações possíveis. Ainda mais quando levamos em consideração que em um sistema modular a informação não é facilmente passada de um módulo para o outro. No entanto, existem momentos onde a modularidade é bastante evidente, por exemplo, nas fobias. O medo de baratas, por exemplo, não pode ser superado simplesmente com argumentos de que um ser humano é muito mais perigoso para elas do que elas para um ser humano. Existe uma barreira que impede que argumentos funcionem contra fobias, mesmo estando os dois pensamentos no 206 mesmo cérebro38. Um outro exemplo comum são as ilusões de óptica. Mesmo sabendo que estamos vendo uma ilusão, não conseguimos deixar de vê-la. A questão é que o fato do cérebro ser modular não significa que ele não possa trabalhar em conjunto. Nas palavras de Pinker: Os humanos comportam-se de maneira flexível porque são programados: suas mentes são dotadas de software combinatório capaz de gerar um conjunto ilimitado de pensamentos e comportamentos. O comportamento pode variar entre as culturas, mas a estrutura dos programas mentais que geram o comportamento não precisa variar (Pinker, 2004, p.67). Talvez o mais interessante da psicologia evolutiva seja a sua capacidade de criar experimentos que nos ajudam a compreender o funcionamento da mente humana. Alguns dos experimentos mais intrigantes envolvem crianças, ou melhor, bebês que nem mesmo são capazes de falar. Neste caso utiliza-se uma técnica que se baseia na capacidade da criança de prestar atenção em algo. Tudo é baseado no simples pressuposto de que a criança olha mais atentamente (por mais tempo) algo que não lhe é familiar39. Com base nesta idéia pode-se descobrir que certos conceitos da física e da matemática, que normalmente consideraríamos como aprendidos, já fazem parte de conteúdos inatos dos bebês. Alguns casos podem ser citados: Alan Leslie trabalhou com bebês de 6 meses de idade mostrando um filme onde uma bola em movimento atingia uma bola parada e fazia esta bola se mover. Um caso de ação e reação perfeitamente comum e que não chamou muito a atenção dos bebês. Mas se a segunda bola parasse antes de atingir a bola que estava imóvel e esta, ainda assim, demonstrasse o mesmo movimento de antes (um tipo de ação à distância) os bebês demonstravam um alto nível de interesse (cf. Plotkin, 2004, p.132). Renée Baillargeon fez uma pesquisa com bebês de até 18 semanas que se mostraram surpresos com eventos fisicamente impossíveis como a remoção de um bloco inferior que deixa o bloco superior flutuando no ar (cf. Plotkin, 2004, p.133). Karen Wynn desenvolveu experimentos sobre a matemática, com o mesmo resultado, mostrando que bebês com apenas cinco meses de idade já tinham uma certa competência numérica: 38 No entanto, de algum modo a psicologia comportamental-cognitiva busca quebrar esta barreira com racionalizações das fobias, ansiedades e depressões. 39 É claro que tal pressuposto não foi simplesmente inventado e sim testado! 207 Esperavam que a adição de um objeto a outro resultaria em um objeto, e não em um ou três, e que um objeto, retirado de dois, resultaria em um objeto, e não em dois, ou em nenhum (Plotkin, 2004, p.133. Minha tradução)40 . Por ser irrazoável supor que tais bebês já teriam aprendido propriedades físicas e matemáticas, a conclusão dos psicólogos evolutivos é da existência de um módulo mental para uma física básica e outro para uma matemática básica. Sendo que os experimentos servem mesmo é para descobrir quais exatamente seriam os conteúdos de tais módulos. É claro que a existência de tamanha modularidade é criticada, às vezes por psicólogos evolutivos também (cf. Mithen, 2002), mas tal questão não é relevante aqui. Outros supostos módulos foram descobertos: crianças de 3 anos já atribuem estados mentais a outros, no que foi chamado de “teoria da mente”, demonstrando uma psicologia intuitiva. Tal é a base da capacidade de mentir, pois só depois de saber diferenciar entre o que “eu” estou pensando e o que “o outro” está pensando é que podemos conceber a possibilidade de mentir. Esta capacidade foi chamada de “teoria da inteligência maquiavélica”. Em poucas palavras, diz que o desenvolvimento do cérebro se deu por causa do desenvolvimento de habilidades sociais, dentre elas a de mentir, enganar e manipular os outros. Tal nova habilidade precisava da teoria da mente para ser capaz de saber que o que passa em minha mente pode não passar na mente de outros. Blackmore nos diz, inclusive, que existe uma conexão entre tal habilidade e a nossa gigantesca capacidade de imitação, pois para mentir precisamos ser capazes de pensar a partir do ponto de vista do outro (cf. Blackmore, 1999, p.76). Além disso, crianças na mesma idade já têm uma biologia intuitiva também, sendo capazes de atribuir uma espécie de “essência” para seres vivos, pois entendem que mudanças na aparência não são mudanças na “essência”: um cavalo com pijama listrado, por exemplo, não é uma zebra, e um cachorro mudo e só com três pernas ainda é um cachorro (cf. Mithen, 2002, p.81). Um dos experimentos mais conhecidos foi desenvolvido por Peter Wason (1969), e depois melhorado por Leda Cosmides. Wason queria discutir até que ponto somos lógicos, na verdade, queria saber se pensamos da maneira aprovada 40 Curiosamente experimentos praticamente idênticos a estes, e com o mesmo resultado, foram realizado com cães. 208 por Popper (cf. Plotkin, 2004, p.139)41. Eram mostradas para estudantes universitários somente uma face de cada carta, de um conjunto de quatro cartas, cada uma contendo uma letra em uma face e um número na outra. Em seguida, estabelecia-se uma regra e as pessoas tinham que, através da lógica, saber quais cartas, no mínimo, deveriam ser viradas para confirmar esta regra. Uma regra poderia ser a seguinte “se a carta tem uma vogal em um lado, então tem um número par no outro”. Dennett nos dá um exemplo de outra regra. Ele sugere as cartas com as seguintes faces apresentadas “D, F, 3, 7” e a seguinte regra “se uma carta tem ‘D’ em uma das faces, ela tem um ‘3’ na outra” (Dennett, 1998, p.513). A questão é a seguinte: quais cartas é preciso virar de modo que seja virado um número mínimo de cartas? Surpreendentemente menos da metade dos alunos universitários, alguns versados em lógica, acertou o desafio. Em alguns casos, menos de um quarto acertou (cf. Laland & Brown, 2002, p.166). No entanto, o mais surpreendente não está aí, se fossem dados a esses mesmos alunos exatamente o mesmo teste, com a mesma estrutura lógica, mas com os seguintes textos escritos nas faces das cartas “bebendo cerveja, bebendo refrigerante, 25 anos, 16 anos”. Sendo que foi colocado a idade em uma face e o que o indivíduo estava bebendo na outra. Neste caso seria feita a seguinte pergunta: que carta deve ser virada para descobrir se alguém com menos de 21 está bebendo? Desta vez a resposta parece bastante óbvia para todos e cerca de 75% acertaram42. Em ambos os casos a resposta é a primeira e a última carta. Ambos os testes seguem o mesmo raciocínio, com a mesma estrutura e mesma resposta. A diferença é só o que está escrito na carta, nada mais. Mas, mesmo aqueles que acertaram ambas, demoraram muito mais para acertar a primeira do que a última. Isto continuou sendo verdade mesmo depois que Cosmides adicionou alguns outros experimentos de controle para impedir explicações alternativas do tipo “pessoas se saem melhor em contextos mais familiares que elas encontram no diaa-dia”. O que a psicologia evolutiva procura ver com isso é que “os raciocínios humanos mudam, dependendo do assunto a respeito do qual estão raciocinando” (Laland & Brown, 2002, p.168. Minha tradução). Ou seja, mais uma evidência de 41 42 Um exemplo curioso de filosofia naturalizada! Você acertou? Quanto tempo levou para acertar cada uma delas? 209 módulos mentais. É bastante improvável que existissem módulos mentais para resolver problemas lógicos como o mencionado, problemas de lógica abstrata não faziam parte de nosso ambiente selecionador. Mas problemas sociais, especificamente problemas que dizem respeito a descobrir quem está trapaceando, devem ter sido bastante comuns. Mesmo que ambos os problemas tenham a mesma estrutura lógica, nós só desenvolvemos módulos mentais para resolver aqueles que de fato surgiram43. Para utilizar um problema que poderia ter sido enfrentado por um ancestral nosso, poderíamos pensar nas seguintes cartas “comendo a caça, não comendo a caça, tem sangue nas mãos, não tem sangue nas mãos” e um caçador com a seguinte questão para resolver “só deve comer a caça quem tem sangue nas mãos (só estes participaram da caçada)”. Fica imediatamente claro que ele deve ver se o primeiro tem “sangue nas mãos” e se o último está “comendo a caça” para resolver seu problema. Existem muitas críticas que foram dirigidas à psicologia evolutiva. Dentre elas podemos citar que suas análises são normalmente baseadas em questionários de múltipla escolha, que deveriam indicar quais tipos de comportamento são mais comuns. Além disso, o estudo dos caçadores-coletores ainda existentes podem não refletir o ambiente ao qual os nossos antepassados tiveram que se adaptar. Há também a questão de que nem todos os nossos processos cerebrais inatos surgiram durante o Pleistoceno, alguns, como o sistema emotivo, parecem ser bem mais antigos. Veremos também, neste mesmo capítulo, quando tratarmos da coevolução (seção 4.9), que o homem sofreu mudanças evolutivas após o Pleistoceno. Isso significa que poderiam também ter ocorrido mudanças em tais módulos. No entanto, não visamos aqui defender ou criticar a psicologia evolutiva, apenas ressaltar as suas semelhanças e diferenças com a memética. Não é nada difícil perceber que a diferença entre a psicologia evolutiva e a memética é exatamente a mesma das anteriores, ou seja, a psicologia evolutiva busca o fundamento biológico/genético do comportamento. Na verdade, ela procura a explicação adaptacionista de por que certas estruturas mentais maladaptativas ainda existem hoje. No entanto, talvez mais do que as propostas apresentadas anteriormente, a psicologia evolutiva poderia tratar diretamente das 43 Deste ponto de vista, nossas habilidades lógicas dependem justamente destes módulos. São “exaptações” deles, utilização de uma estrutura antiga para uma função nova. 210 bases que são o ambiente no qual um meme deve ser selecionado, pois pesquisa as estruturas da mente humana. Neste sentido psicologia evolutiva e memética se auxiliam. 4.5 Ecologia Comportamental A ecologia comportamental (behavioral ecology) não é tão conhecida quanto as outras abordagens apresentadas aqui. Talvez isso se dê por esta ser mais técnica, utilizando modelos matemáticos. Mas o mais provável é que o fato dela ser mais técnica a faz menos propensa a grandes elucubrações teóricas, o que a torna quase imune em relação aos críticos da naturalização do comportamento. A metodologia da ecologia comportamental é bem direta: eles têm como principal pressuposto que a seleção vai sempre priorizar os comportamentos que maximizam os ganhos adaptativos, ou seja, onde se tem mais benefícios pelo menor custo. Sendo que o principal benefício quando se fala de evolução por seleção natural não é nada mais do que um maior número de descendentes. Com este pressuposto, eles criam modelos e comparam as predições destes modelos com comportamentos reais cuidadosamente observados na natureza. É claro que nem todo modelo tem que predizer um número de filhotes no final, pode-se assumir, por exemplo, que fugir de um predador com um menor custo calórico, ou adquirir o maior número de calorias com o menor gasto clórico, será adaptativamente ótimo, pois de um modo ou de outro possibilitará um maior número de descendentes. Plotkin nos dá um exemplo de um estudo feito com corvos que se alimentam largando do ar caramujos para quebrar suas conchas na pedra: Os custos, medidos em termos da energia necessária para voar até uma altura específica, e o número de vezes que é necessário deixar cair um caramujo até que ele se quebre, podem ser trocados pelos benefícios, o valor calórico de cada caramujo. A observação do próprio comportamento, da altura desde a qual os caramujos são atirados, e a freqüência média em que isso precisa ser feito quando são largados de alturas diferentes, pode ser comparada com as predições de um modelo simples que compute qual é o comportamento ótimo que resulta nos maiores benefícios com o menor custo (Plotkin, 2004, p.119. Minha tradução). 211 Caso o modelo não se ajuste muito bem, dentro de uma determinada margem de erro, então ele é refeito. Talvez o mais interessante da ecologia comportamental seja justamente quando ela dá errado. Estes casos onde o modelo é muito diferente do esperado normalmente se dão porque o pesquisador ignorou alguma variável, ou não lhe deu a devida importância. Deste modo, acaba-se descobrindo que certas causas que pareciam ser irrelevantes são surpreendentemente importantes. A ecologia comportamental se preocupa principalmente com as pressões evolutivas e com as estratégias adaptativas para sobreviver e ter um maior número de descendentes. Neste caso, ela estuda o ser humano praticamente da mesma maneira que estudaria qualquer animal. Nas palavras de Laland & Brown: O objetivo principal da ecologia comportamental de seres humanos é explicar a variação do comportamento humano através da pergunta de se os modelos ótimos e de maximização de adaptação oferecem boas explicações para as diferenças encontradas entre os indivíduos (Laland & Brown, 2002, p.112. Minha tradução). Isso significa que a principal preocupação dela são só as estratégias adaptativas e ela se questiona se os diferentes comportamentos individuais não poderiam ser diferentes estratégias adaptativas, ou seja, diferentes modos de garantir uma reprodutibilidade biológica maior. Aqui aparece a grande diferença com a psicologia evolutiva, pois para a ecologia comportamental não interessa os detalhes psicológicos de como certos comportamentos são criados, mas só se tal comportamento existe pelo fato de ser adaptativo àquele ambiente. Neste sentido ela estuda desde questões como se os indivíduos se alimentam de maneira ótima (ganhando o maior número possível de calorias por hora) até a evolução da menopausa (diminuindo o risco de problemas na gravidez, mas ainda permitindo o cuidado de filhos e netos)44. Muitos outros exemplos de estudos que comparam custos e benefícios poderiam ser dados. Estuda-se, por exemplo, em que condições um determinado indivíduo deve tentar se reproduzir e em que condições é melhor ajudar parentes a se reproduzir; em que condições é melhor buscar outras tentativas de reproduzir e em que condições é melhor cuidar da prole que já se tem; deve-se investir na qualidade ou na quantidade de 44 Aqui é bom lembrar que nem todos os animais têm um período de menopausa. Alguns morrem depois de se reproduzir, outros têm uma expectativa de vida menor do que a sua possibilidade de se reproduzir. Por isso a menopausa pode sim ter uma explicação adaptacionista. 212 descendentes; qual o tamanho ideal para grupos sociais de modo a aumentar a possibilidade de caça sem ter que dividir muito a presa. Modelos como estes nos ajudaram, por exemplo, a compreender porque muitas aves colocam um número bem menor de ovos do que elas poderiam colocar. Um raciocínio rápido nos diria que é evolutivamente melhor colocar o maior número de ovos possível para garantir o máximo de descendentes. No entanto, modelos da ecologia comportamental mostraram que colocar muitos ovos exige muito esforço no cuidado com os filhotes, dentre outras desvantagens, e que, no final, um número menor de ovos é que garante um maior número de descentes vivos(cf. Laland & Brown, 2002, p.118). Uma das principais críticas a esta abordagem, crítica que deu origem à psicologia evolutiva, é o fato de que nem todos os comportamentos serão adaptativamente ótimos. Vimos no início deste trabalho que na natureza é comum estruturas físicas que não têm muita utilidade, simplesmente porque são resquícios de uma outra época (seção 1.3.4 e capítulo 2). O mesmo poderia acontecer com os comportamentos. Exatamente por isso que a psicologia evolutiva nos diz que muito de nossos comportamentos são mal-adaptativos porque foram selecionados para o ser humano pré-histórico. No entanto, a seleção vai sempre favorecer adaptações ótimas e por isso assumir tal adaptação é, no geral, mais seguro. A questão, no final das contas, parece ser esta: se o comportamento observado não for igual a adaptação ótima prevista pelo modelo, deve-se modificar o modelo até descobrir no que aquele comportamento é ótimo ou devese descobrir que tal comportamento não é ótimo? A ecologia comportamental e a psicologia evolutiva dão respostas diversas. Mas ambas não fogem da estrutura conceitual maior que é explicar o comportamento através de benefícios para os genes. No caso da ecologia comportamental ela trata do benefício para os genes atuais, ou seja, que estão em funcionamento nos seres vivos do presente, e a psicologia evolutiva trata dos genes do Pleistoceno, ou seja, que estavam nos “seres humanos” daquela época. De um modo ou de outro, ambas não podem ser confundidas com a memética que trata do benefício adaptativo dos memes e não dos genes. Mas a capacidade impressionante de criar modelos evolutivos ótimos que foi desenvolvida pela ecologia comportamental pode um dia ser usada para estudar modelos ótimos de evolução cultural. 213 Além disso, estritamente falando, a ecologia comportamental não se importa muito se a adaptação ótima atual diz respeito aos genes ou à cultura. “Se o comportamento é adaptativo, então pode ser previsto por modelos formais” (Laland & Brown, 2002, p.136). Isto fez com que alguns pesquisadores desta área se voltassem para os trabalhos que visam o papel da aprendizagem, da imitação e da cultura na adaptabilidade de um animal. E alguns, como Lee Alan Dugatkin, começaram a questionar o papel da memética na adaptação de certos animais (cf. Dugatkin, 2000, p.128). Dugatkin estuda através deste método o comportamento sexual dos Guppies, um pequeno peixe colorido e muito comum, por se reproduzir facilmente. Dugatkin fez experimentos muito cuidadosos, rigorosamente controlados e descobriu que mesmo em animais tão pequenos existe um importante papel para a imitação no comportamento reprodutivo deles. Na verdade, Dugatkin fez os primeiros experimentos rigorosos que se tem notícia para testar a inter-relação entre transmissão genética e cultural! Em seus experimentos com guppies as fêmeas normalmente têm uma preferência sexual já geneticamente determinada para machos de uma certa cor, mas se elas forem capazes de ver outra fêmea escolhendo um macho que varia em cerca de 25% da cor que elas escolheriam, seu comportamento geneticamente determinado é suplantado em favor da imitação do comportamento da outra fêmea. Em suas próprias palavras: A predisposição genética da fêmea a estava “empurrando” em direção ao macho mais alaranjado, mas as sugestões sociais e o potencial de copiar a escolha dos outros a estavam puxando na direção exatamente oposta: em direção ao macho mais pardo. Nos casos em que os machos diferem apenas em pequenas quantidades de cor laranja, as fêmeas consistentemente escolhem os machos menos alaranjados. Em outras palavras, elas copiavam a escolha de uma fêmea colocada perto de um macho desse tipo (Dugatkin, 2000, p.24-25. Minha tradução). Talvez o mais interessante destes modelos seja um ponto extremamente crucial para a memética, e que Dugatkin reconhece: o fato que a força da imitação e da cultura pode ser tão grande que é capaz até de direcionar um determinado comportamento de um modo claramente não-adaptativo para os genes. Ele comenta um experimento feito por Kevin Laland e Kery Williams, também com guppies: eram dados dois caminhos para os guppies chegarem a uma fonte de comida, um curto e um longo. Consistentemente eles aprendiam a pegar o caminho curto. Depois, outros grupos de guppies eram treinados, um para pegar o 214 caminho longo e outro para o caminho curto. Tais grupos, então, eram substituídos um a um por indivíduos não treinados. Começava-se com cinco indivíduos treinados, depois quatro treinados e um não treinado, e ia assim até só ter indivíduos que não foram treinados. A descoberta foi que mesmo aquele grupo de indivíduos em que nenhum tinha sido treinado pelo experimentador, mas que tinha tido contato com o grupo que foi treinado para percorrer o caminho longo, ainda percorria o mesmo caminho, mesmo podendo agora escolher o caminho curto (cf. Dugatkin, 2000, p.189). Ou seja, uma transmissão de comportamento não genética foi capaz de produzir um comportamento que não era o geneticamente determinado e também não era adaptativo. Isso pode parecer pouco aos olhos de um leigo, mas é aos poucos que a ciência avança e esta foi uma das primeiras tentativas de se fazer um experimento rigoroso onde a transmissão cultural segue em direção claramente oposta da transmissão genética. Em outras palavras, foi a primeira prova experimental rigorosamente controlada do poder da transmissão cultural! Um feito digno de nota. Fica claro, então, que embora a ecologia comportamental não seja memética, ela tem muito a oferecer a esta nova área e, na verdade, já está realizando experimentos que, no futuro, poderão ser considerados como os primeiros experimentos da memética. 4.6 Efeito Baldwin O chamado efeito Baldwin, ou fator Baldwin, foi publicado por James Mark Baldwin em 189645, numa época onde não se conhecia o conceito de gene e o Lamarckismo ainda era bem aceito. Baldwin queria achar um lugar para a inteligência e a capacidade de aprender na evolução das espécies, mas sem fugir do darwinismo e cair no lamarckismo. Na verdade, “Baldwin (...) foi mais claro do que o próprio Darwin em seu compromisso com uma abordagem nãolamarckista da evolução” (Downes, in: Depew & Weber, 2003, p.35. Minha 45 No mesmo ano, praticamente a mesma idéia foi publicada, de modo independente, por Conwy Lloyd Morgan e H. F. Osborn. (cf. Dennett, 1998, 80). Um outro bom exemplo de como é difícil distinguir cópia de convergência quando se trabalha em níveis abstratos. 215 tradução). Para isso ele apresentou o que chamou de “um novo fator na evolução” que seria uma forma de “imitar” o lamarckismo sem fugir do darwinismo. Tal fator novo é muito bem sintetizado por um de seus críticos, Godfrey-Smith: Suponhamos que uma população encontre novas condições ambientais, nas quais suas velhas estratégias comportamentais sejam inapropriadas. Se alguns membros da população são plásticos no que diz respeito ao seu programa comportamental, e podem, no curso de sua vida, incluir no seu programa comportamental novas habilidades adequadas ao seu ambiente, tais indivíduos plásticos sobreviverão e reproduzirão às custas dos indivíduos menos flexíveis. A população, então, terá a chance de produzir mutações que façam com que os organismos exibam perfis de comportamento ótimos que dispensem o aprendizado. A seleção favorecerá esses mutantes e, com o tempo, os comportamentos que, outrora, tinham que ser aprendidos, serão, agora, inatos (Godfrey-Smith, in: Depew & Weber, 2003, p.54. Minha tradução). Embora a idéia pareça ser bastante correta, há muitas controvérsias ao redor dela e muitas explicações diferentes do que ela significa e para que ela serve. Uma análise comum do efeito Baldwin é que ele cria um tipo de “espaço para respirar” onde uma determinada espécie tem um tempo para sofrer mudanças genéticas. Nas palavras do próprio Baldwin: Nos animais, as transmissões sociais parecem ser úteis principalmente no sentido de permitir que os instintos de uma espécie se voltem lentamente em uma direção específica, mantendo afastada a operação da seleção natural. A Hereditariedade Social é, então, um fator menor (Baldwin, 1896, p.540. Minha tradução). Um exemplo talvez seja útil para deixar claro o que seria tal “espaço para respirar”: imagine que o ambiente de um determinado esquilo foi de tal modo modificado que seu principal alimento se tornou raro. Nesta situação o esperado é que esta espécie se extinga. Mas pode acontecer que estes esquilos tenham um fenótipo relevantemente plástico, ou seja, que tenham uma capacidade de apreender novos comportamentos que vão além dos comportamentos geneticamente determinados. Neste caso, pode ser que um esquilo consiga descobrir como abrir uma outra semente que servirá para a sua alimentação. Neste ponto algumas interpretações divergem. Pode-se falar da habilidade dos outros esquilos em imitá-lo, mas pode-se falar também que outros esquilos geneticamente mais semelhantes a este terão uma maior chance de descobrir o mesmo truque. De ambos os modos, os esquilos capazes de obter esta nova fonte de alimento sobreviverão e existirá, agora, um espaço de tempo onde é possível que esta capacidade de abrir a nova noz deixe de ser aprendida (ou inventada, ou 216 imitada) e passe a ser geneticamente determinada através dos meios comuns da evolução por seleção natural. Dennett utiliza tal possibilidade para explicar um possível avanço mais rápido na evolução como o que teria ocorrido com o desenvolvimento do cérebro humano e o surgimento da linguagem (seção 5.4). Já Deacon, um outro grande defensor do efeito Baldwin, trata esta questão como uma questão de construção de nicho. Em suas palavras: O emprego extensivo da comunicação simbólica teria constituído algo análogo a um nicho novo impondo novas pressões de seleção sobre a cognição e o sistema vocal humanos (Deacon, in: Depew & Weber, 2003, p.90. Minha tradução). A teoria da construção de nicho nos diz que os descendentes de certas espécies herdam não só os seus genes, mas também o seu nicho. Ou seja, alguns animais modificam o ambiente onde vivem e este novo ambiente será o ambiente de seus descendentes que agora sofrerão com as novas pressões seletivas deste novo ambiente. No caso do esquilo podemos imaginar que o uso de uma noz diferente para a alimentação pode, por exemplo, influenciar no surgimento de uma nova enzima digestiva ou de dentes mais fortes etc. Estes novos caracteres não teriam surgido se não fosse a pressão seletiva causada pelo novo ambiente, ou melhor, o novo alimento. Muitas questões foram levantadas por Baldwin. Alguns o acusaram de lamarckismo, mas hoje é largamente aceito que seu efeito é perfeitamente darwinista, só restando mesmo a discussão se ele traz algo de novo para a evolução ou se é simplesmente trivial. Tal discussão já é antiga e colocou em oposição alguns grandes nomes da biologia. Simpson, por exemplo, disse: Se o efeito Baldwin ocorre, pode ou não haver conexão causal entre uma acomodação individual [traço adaptativo adquirido] e alterações genéticas subseqüentes na população. Se tal conexão não ocorre, então a alteração verdadeiramente genética tem que ocorrer inteiramente por mutação, reprodução e seleção natural, e a acomodação pode ser irrelevante. Se há alguma conexão causal, o argumento neo-lamarckista é tão suportado quanto é suplantado (Simpson, 1953, in: Depew & Weber, 2003, p.65. Minha tradução). Junto com Simpson, Mayr e Dobzhansky também afirmaram que tal efeito ou era irrelevante, no sentido de que era tipicamente darwinista e não trazia nada de novo, ou era puramente lamarckista. Mayr, na verdade, não acreditava que existiriam pressões seletivas para tornar inato algo que era resolvido pela 217 flexibilidade do fenótipo (cf. Depew & Weber, 2003, p.17). Já John MaynardSmith tinha uma outra posição: Se os indivíduos variam geneticamente em sua capacidade de aprender, ou de se adaptar através do desenvolvimento, então aqueles que são mais capazes de adaptar-se deixarão uma quantidade maior de descendentes, e os genes responsáveis por tal traço aumentarão em freqüência. Em um ambiente fixo, quando a melhor coisa a aprender permanece constante, isso pode levar à determinação genética de um caractere que, em gerações anteriores, tinha que ser adquirido novamente em cada geração (Maynard-Smith, 1996, in: Depew & Weber, 2003, p.38. Minha tradução). O mesmo pode-se dizer de Dennett, e Deacon, seus principais defensores. Curiosamente Darwin pensou em algo semelhante, embora diferente em alguns pontos importantes: Se algum indivíduo de uma tribo, mais sagaz do que os outros, inventou uma nova armadilha ou arma, ou qualquer outro meio de ataque ou de defesa, o mais óbvio interesse pessoal, sem necessidade de demasiada capacidade de raciocínio, poderia levar os outros membros a imitá-lo e disto todos se aproveitariam. A prática habitual de toda nova técnica numa certa medida pode igualmente revigorar o intelecto. Se uma nova invenção é importante, a tribo se desenvolverá em número, estender-se-á e suplantará as outras. Numa tribo que se tornou mais numerosa por este processo, sempre existem possibilidades um tanto quanto maiores de que nasçam outros membros superiores ou com capacidades inventivas. Se estes homens deixam filhos que herdam a sua superioridade mental, a possibilidade que nasça um número ainda maior de membros de engenho seria um tanto melhor e, numa tribo pequena, seria decisivamente melhor (Darwin, 2002, p.156). Existe uma leitura lamarckista que se pode fazer desta citação de modo que um maior uso do intelecto implique no nascimento de indivíduos com “superioridade mental”. No entanto, a leitura correta parece ser a seguinte: um avanço cultural permitirá um maior número de indivíduos que, por sua vez, aumentará a probabilidade de que um indivíduo mais “sagaz” nasça e sobreviva por pura seleção natural de mutações aleatórias. Neste caso, a proposta de Darwin é muito semelhante à de Baldwin e poderíamos então começar a falar do “efeito Darwin”. De qualquer modo, podemos ver que há sim uma ligação entre o efeito Baldwin e a memética, pois ambos predizem que uma melhora, que poderia ser chamada de cultural, pode criar o ambiente (construção de nicho) onde uma melhora genética tem chance de surgir e, mais importante, ser selecionada. Esta seria uma possível base para a co-evolução gene-meme que é uma das explicações para o rápido aumento do cérebro humano, como veremos na seção 5.4. Além 218 disso, Baldwin de fato chega a comentar sobre uma hereditariedade “extraorgânica” dizendo que “as ações socialmente adquiridas de uma espécie, especialmente do homem, são socialmente transmitidas, o que resulta numa espécie de ‘hereditariedade social’ que suplementa a hereditariedade natural” (Baldwin, 1896, p.538. Minha tradução). Deste modo, apresenta idéias típicas da memética exatamente 80 anos antes deste termo surgir com Dawkins. Embora ele não seja claro sobre a existência de unidades de cultura que seriam correspondentes aos memes, ele aborda todas as outras características da memética falando de um “‘ambiente de pensamento’ no qual as idéias são sujeitas à variação, são selecionadas, e então transmitidas e, portanto, conservadas” (Plotkin, 2004, p.77. Minha tradução). No entanto, o que ficou conhecido como “efeito Baldwin” não é memética, pois seu interesse primordial ainda são as mutações genéticas. A única grande diferença é a proposta de que mudanças fenotípicas poderiam influenciar mudanças genéticas através da construção de um novo ambiente selecionador. A confusão entre estas duas idéias é um tanto quanto comum e surge porque as duas buscam incluir a cultura e a aprendizagem dentro do darwinismo, por isso diferenciá-las é tão importante. 4.7 Herança Epigenética Com relação a herança epigenética identificamos uma simples confusão que pode ser resolvida prontamente. A pesquisadora Eva Jablonka ficou conhecida por um livro onde fala de quatro formas de herança: genética, epigenética, comportamental e simbólica. Ela de maneira nenhuma queria dizer que todas estas formas poderiam ser reduzidas a uma ou eram idênticas de alguma maneira. Muito pelo contrário, pretendia justamente mostrar a separação entre estas formas para questionar a visão biológica centrada somente na herança genética. Por um motivo qualquer, talvez pelo fato de ser o modo menos conhecido desses quatro tipos de herança, o nome de Jablonka ficou ligado à herança epigenética. Algo que 219 infelizmente só diminui a importância do que ela quer passar. Tal tipo de herança não-genética já foi tratado na seção 1.5. Como ela defende também a herança comportamental e a simbólica, criou-se uma leve confusão de que estas podem ser compreendidas sob o termo “epigenéticas” o que é um erro, pois este termo diz respeito somente à herança celular que não é genética. Deste modo surgiu uma pequena confusão de que a memética seria uma forma de herança epigenética, o que não é conceitualmente correto. Jablonka não teve culpa nenhuma nesta confusão, pois fez questão de separar bem os quatro tipos de herança com os quais lidou. Além disso, ela é uma crítica da memética e suas críticas serão todas brevemente abordadas no último capítulo (seção 10.2). Não há nenhuma necessidade de se aprofundar mais aqui nesta confusão até porque as leituras propostas por Jablonka da herança genética e epigenética já foram tratadas anteriormente. Já a herança comportamental pode ser tratada de duas formas principais, ou esta se dá pela mudança genética ou pela transmissão cultural. Se se dá pela genética já tratamos aqui sobre os nomes de etologia, sociobiologia, psicologia evolutiva e ecologia comportamental. Mas se é por transmissão cultural, então pode ser tipicamente tratada dentro da memética. O mesmo se dá com a herança simbólica, que seria mais especificamente memética, mas Jablonka não teoriza muito sobre como ela se dá e prefere se ocupar em fazer críticas à memética e à psicologia evolutiva. No que diz respeito à psicologia evolutiva, suas críticas já foram consideradas na seção 4.4 e no que diz respeito à memética, serão tratadas no último capítulo. No entanto, mesmo Jablonka sendo uma crítica da memética, como ela defende a existência de vários tipos de herança não genéticas, acaba se mostrando uma forte aliada do darwinismo universal e, ao falar da herança simbólica, utiliza uma estratégia muito semelhante a que a memética tem o costume de usar: Mas agora chegamos ao sistema de hereditariedade, no qual nada material é transmitido. É o que o animal vê ou ouve que importa. Isso faz diferença? Para o que nos interessa, acreditamos que não. Em todos os casos, a informação é transmitida e adquirida, e em todos os casos a informação precisa ser interpretada pelo recipiente, de modo a poder afetá-lo de alguma maneira (Jablonka & Lamb, 2005, p.166. Minha tradução). 220 4.8 Darwinismo Social Em um sentido bem amplo todas as formas de naturalizar a cultura e o comportamento podem ser chamadas de Darwinismo Social. Mas, no sentido restrito do termo, o Darwinismo Social foi a aplicação do evolucionismo, que encontrávamos antes mesmo do próprio Darwin, ao campo da cultura. Seu grande expoente foi Herbert Spencer que, inclusive, cunhou a expressão “sobrevivência dos mais aptos”. Veremos brevemente no próximo capítulo o papel do evolucionismo cultural na antropologia, na seção 5.3. Em pouquíssimas linhas os evolucionistas defendiam que toda a cultura humana poderia ser dividida em vários estágios de evolução, saindo do estado de selvageria até o estado civilizado. Em linhas gerais o evolucionismo cultural, que surgiu antes mesmo de Darwin publicar a “Origem das Espécies”, acreditava que existia uma única linha evolutiva percorrida por todas as sociedades e que ia do menos evoluído para o mais evoluído. Nas palavras do próprio Spencer: O avanço do simples para o complexo, através de um processo de sucessivas diferenciações, é igualmente visto nas mais antigas mudanças do Universo que podemos conceber racionalmente e indutivamente estabelecer; ele é visto na evolução geológica e climática da Terra, e de cada um dos organismos sobre sua superfície; ele é visto na evolução da Humanidade, quer seja contemplada no indivíduo civilizado, ou nas agregações de raças; ele é igualmente visto na evolução da Sociedade com respeito a sua organização política, religiosa e econômica; e é visto na evolução de todos (...) os infindáveis produtos concretos e abstratos da atividade humana (Spencer, 1857 in: Castro, 2005, p.26). Vemos assim a defesa spenceriana de que este caminho único para a evolução vale não só para as sociedades, mas para os organismos e, na verdade, para tudo mais. É possível notar que os evolucionistas tinham um tom claramente progressista onde esta evolução era um tipo de melhoramento cultural. Neste sentido eles eram muito mais lamarckistas do que darwinistas. Herbert Spencer não fugia da regra, nas palavras de Ruse: Spencer, por exemplo, considerava a evolução como um tipo de progressão, partindo da ‘homogeneidade’ para a ‘heterogeneidade’. Isso significava, na realidade, que se tratava de um tipo de progressão que vinha dos macacos, passava pelas formas de vida humana mais primitivas, como a dos habitantes da Terra do Fogo e a dos irlandeses, e chegava até as formas mais elevadas, as quais (conforme Spencer, a bem da honestidade, viu-se compelido a confessar) eram bastante 221 semelhantes à dos ingleses da classe média. E, a fim de transformar a todos em belos espécimes do Homo britannicus, Spencer era de opinião que devíamos dar carta branca à luta pela sobrevivência, adotando uma Economia e um sistema social do tipo laissez-faire e deixando perecer impiedosamente o mais fraco, em nossa sociedade (Ruse, 1983, p.229). Qualquer pessoa com o mínimo conhecimento de Darwinismo vê que não há nada darwinista aí. Esta passagem da homogeneidade para a heterogeneidade deveria dar conta de um aumento na especialização estrutural tanto nos animais quanto nas sociedades. Seria um aumento progressivo e um tanto linear que iria em direção a especialização das partes: Se traçamos a gênese de qualquer estrutura industrial, a partir dos ferreiros primitivos que tanto fundiam o ferro quanto criavam implementos a partir dele, até os nossos distritos de manufatura de ferro, onde a preparação do metal é separada em fundição, refinamento, pudlagem, laminação, e onde a transformação desse metal em implementos está dividida em diversas empresas (Andreski, 1971, p.131. Minha tradução). Entretanto, sabemos muito bem que a evolução não visa este aumento. Muito pelo contrário, oportunidades de diminuir tal complexidade são logo aproveitadas em nome de um menor custo de energia. Mas na verdade, a evolução não visa absolutamente nada. É um processo cego, que produz esboços reutilizando outros esboços. Por isso todo o grande esquema de Spencer que se baseia no progressismo é anti-evolucionista. No entanto, quando critica-se a memética, e também a psicologia evolutiva e a sociobiologia, dizendo que eles são novos Darwinistas Sociais, dificilmente se está falando da versão proposta por Spencer. Ainda pior do que a proposta teórica de Spencer foi a prática que algumas pessoas tiraram disso. O Darwinismo foi largamente utilizado na prática da eugenia, termo este que foi criado por Galton, sobrinho de Darwin e famoso eugenista. Tal utilização era fundamentada, principalmente na teoria de Spencer, pois ele defendeu que as instituições de ajuda aos necessitados estavam impedindo a eliminação destes pela seleção natural: É inquestionável o mal que fazem as organizações que se empenham de forma generalizada em ajudar os inúteis, impedindo assim o processo natural de eliminação através do qual a sociedade continuamente se purifica (Spencer, 1874, p.346, in: Ruse, 1995, p.102). A idéia de purificação de uma sociedade teve fortes implicações pelo mundo todo, podendo-se destacar o nazismo. Infelizmente, deve-se admitir que o próprio 222 Darwin, leitor de Spencer, defendeu ações semelhantes ao sugerir o impedimento do casamento entre os “membros mais débeis e inferiores” com os sadios e entre si também (cf. Darwin, 2002, p.162). Embora não se possa negar que Darwin tinha idéias eugênicas, vemos uma clara diferença em suas propostas. Ele não pede pela eliminação dos “membros mais débeis e inferiores”, sua constatação é a de que um fazendeiro nunca tentará reproduzir vacas inferiores, pois visa o melhoramento do rebanho. Baseado nisso, Darwin temia que se não fizéssemos o mesmo poderíamos sofrer as conseqüências futuramente. Mas se ele tivesse tratado a sua teoria com mais delicadeza, perceberia que uma variação inútil ou deletéria agora pode muito bem ser útil em um ambiente futuro, isso significa que diminuir a variabilidade não é algo que deve ser visado a longo prazo. O grande problema foi que, com o Darwinismo Social, a eugenia passou a ser considerada uma verdadeira ciência e ganhou a respeitabilidade que vem com isso, causando grandes estragos sociais. No fim do século XIX, Cesare Lombroso foi considerado um grande criminalista e seus estudos que relacionavam o formato da face com tendências criminosas diversas foram usados em vários tribunais como prova de culpabilidade. No começo do século XX a eugenia teve amplo apoio social e institucional quando falava-se no melhoramento da espécie humana. Na Inglaterra existiam cursos universitários sobre o tema e o mesmo aconteceu nos Estados Unidos, inclusive em grandes universidades como Harvard, MIT e Chicago. Em 1930, 30 estados americanos tinham leis para legalizar a esterilização de criminosos e loucos (cf. Plotkin, 2004, p.66). Até mesmo Hitler foi influenciado por tais práticas (cf. Pinker, 2004, p.216). Contra algo tão sombrio não é sem razão que Franz Boas, como veremos no próximo capítulo, se rebelou e trouxe à tona o relativismo cultural. Tais ações foram todas estarrecedoras, mas o mais importante aqui é que nenhuma delas tinha algum suporte propriamente evolucionista ou biológico pois, como veremos a seguir, é justamente a biologia que nos diz que não existem raças humanas. Darwin pode até ter tido o seu lado eugenista, mas o darwinismo nunca teve. Resumindo, não há nem nunca houve nenhuma ligação fundamental entre a evolução por seleção natural, bem como entre a etologia, a sociobiologia e a psicologia evolutiva, e o chamado Darwinismo Social ou qualquer outra forma de defesa da eugenia. Tal ligação só pode ser feita baseada na ignorância e no 223 preconceito dos críticos das tentativas de naturalizar a cultura. Normalmente o “darwinismo social” só é comentado ou por quem não entende ou não quer entender a memética, e deste modo disfarçando sua ignorância como se fosse uma escolha ética, ou por quem visa propositalmente que outros não leiam o que ele leu, propagando, assim, a ignorância. Como regra geral poder-se-ia sugerir que os textos críticos que tentam assimilar estas novas tentativas de estudar a cultura darwinisticamente a este tipo de prática simplesmente não deveriam ser lidos. 4.9 Teorias da Co-evolução: Feldman e Cavalli-Sforza, Richerson e Boyd As teorias da “co-evolução cultura-gene” ou “teorias da dupla-herança” (dual-inheritance) podem causar algumas dúvidas iniciais por existirem em dois grandes formatos: um proposto pelos geneticistas Marc Feldman e Luigi Luca Cavalli-Sforza e outro pelos antropólogos Robert Boyd e Peter Richerson. Mas é uma questão em aberto se as duas abordagens apenas falam a mesma coisa com diferentes nomes ou se podem ser de fato separadas. No entanto, mesmo se estas forem diferentes, não são opostas e, com o tempo, é esperado que se unam dentro de uma mesma estrutura conceitual. Ambas as teorias acabam tendo o mesmo destino da ecologia comportamental, ou seja, não são muito criticadas talvez pelo seu forte viés matemático que as tornam áridas para um leigo. No que se segue as partes menos acessíveis e mais técnicas não serão abordadas, pois o que é importante aqui é ter capacidade para reconhecer tais teorias para distingui-las da memética ao mesmo tempo em que se descobre no que aquelas poderiam ser úteis a esta. A conclusão talvez seja surpreendente, pois veremos que de todas as áreas abordadas até o momento, estas são as que se aproximam mais da memética. A grande diferença desta abordagem em relação as outras já mostradas é que para eles, “a ‘coleira’ que prende a cultura aos genes puxa pelos dois lados” (Laland & Brown, 2002, p.243. Minha tradução). Já vimos algo semelhante nos estudos sobre a cultura na ecologia comportamental, mas aquela trabalhava com experimentos rigorosos baseados em modelos de adaptação ótima, enquanto as 224 análises iniciadas pelos antropogeneticistas em 1976 tratam de um panorama muito mais amplo, algumas vezes envolvendo a evolução do homem como um todo. Mas a co-evolução já conseguiu até o “aval” do pai da sociobiologia como nos mostra a seguinte citação: É possível que a coevolução gene-cultura permaneça dormente enquanto tema por muitos anos ainda, esperando o lento acréscimo de um conhecimento que seja suficientemente persuasivo para atrair pesquisadores. Permaneço convencido de que sua verdadeira natureza é o problema das ciências sociais e, além disso, um dos grandes domínios inexplorados da ciência em geral; e não tenho qualquer dúvida de que seu momento chegará (Wilson, 1994, in: Laland & Brown, 2002, p.286. Minha tradução). Quase 20 anos antes, Mayr também reconheceu e apostou no sucesso do estudo da co-evolução baseado nas pesquisas de Cavalli-Sforza e Feldman (Mayr, 1977, 13, in: Bonner, 1980, p.21). Cabe aqui uma pequena ressalva sobre o termo “co-evolução” que na biologia exige que as duas espécies que estão co-evoluindo tenham uma árvore genealógica igualmente ramificada, indicando que uma mudança em uma ocasiona uma mudança na outra e vice-versa. Rigorosamente falando, é difícil provar um caso de co-evolução, pois muitos casos que parecem se enquadrar são, na verdade, de evolução dirigida, quando existe adaptação de uma espécie à outra, mas não vice-versa. Ou também de simples coincidências causadas por exaptação, quando uma espécie que era adaptada a um determinado ambiente acaba descobrindo que sua adaptação também pode ser muito bem utilizada em outro ambiente. No entanto, o termo “co-evolução”, quando diz respeito à relação entre cultura e gene, não deve ser ainda tão rigorosamente avaliado. No futuro tais diferenciações encontradas na biologia provavelmente serão encontradas neste novo caso. Na situação atual, o termo “co-evolução” simplesmente diz respeito às relações entre gene e cultura, principalmente quando mudanças em um direcionam mudanças no outro. A teoria da co-evolução busca estudar a relação ente a seleção genética e a seleção cultural, sendo esta definida como: um processo através do qual crenças particulares socialmente aprendidas, ou pedaços de conhecimento, aumentam ou diminuem em freqüência, devido ao fato de serem adotados por outros indivíduos de acordo com taxas diferentes (Laland & Brown, 2002, p.250. Minha tradução). 225 A relação desta com a seleção natural é óbvia. Além disso, percebemos que existe nesta teoria um conceito de cultura como crenças e idéias, embora, como veremos na seção 5.2, este não precisa ser o conceito usado e as pesquisas na coevolução poderiam continuar funcionando da mesma maneira com outros conceitos de cultura que admitam, por exemplo, padrões de comportamento e até mesmo a manufatura de objetos como traços culturais. Mas mais importante que a seleção cultural para tais pesquisadores é a relação desta com a seleção natural, pois através da seleção natural também podemos ter traços culturais que se espalham ou se extinguem. Por exemplo, a invenção de um novo método de caçar é um traço cultural que vai beneficiar diretamente a seleção natural fazendo com que os indivíduos capazes de dominar este novo método tenham mais descendentes. Temos, então, um processo onde a cultura e os genes estão conectados de modo que uma mudança na cultura ocasiona uma mudança nos genes. É esta relação que interessa para as teorias de co-evolução. Mas tais relações não precisam ser só benéficas, o ato de fumar, por exemplo, é um traço cultural que influencia negativamente a seleção natural. Um outro traço ainda mais óbvio é o controle de fertilidade via métodos anticoncepcionais. São justamente estas relações que mais interessam a um pesquisador nesta área. Cavalli-Sforza e Feldman começaram com a constatação de que normalmente a distância gênica aumenta com a distância das populações, deste modo, surgiu a questão se seria possível estudar a história destas populações estudando seus genes. Como já vimos, as mitocôndrias tem seu DNA próprio que são passadas só de mãe para filhos e filhas (seção 1.11). Algo semelhante acontece com o cromossomo Y dos homens, que é passado diretamente do pai para o filho 46. Esta passagem mais simples e direta permitiu uma grande facilidade nos estudos das variações de tais DNAs. Um exemplo interessante, mas ainda em discussão, é o caso de Öetzi, um homem congelado de cerca de 5 mil anos encontrado nos Alpes. Seu DNA mitocondrial mostrou pouca variação para o DNA atual, evidenciando uma clara descendência. Já o pouco DNA mitocondrial coletado dos Homens de Neandertal demonstrou uma distância considerável, indicando que ele pode ter sido de fato uma espécie distinta dos homens modernos 46 Baseado nisso é que se encontra a chamada “Eva mitocondrial” e o “Adão do cromossomo Y”. Mas tais descobertas não serão tratadas aqui. (cf. Cavalli-Sforza, 2000, p.112) 226 e que foi extinta somente há pouco mais de 30 mil anos (cf.Cavalli-Sforza, 2003, p.57). Fica claro, assim, como é possível utilizar técnicas de sequênciamento de DNA para estudar a história antropológica da humanidade. De maneira semelhante, utilizando amostras de sangue coletadas de populações de todos os cantos do mundo, foi possível compreender a migração do ser humano baseado exclusivamente em dados genéticos para, depois, compará-los com os resultados da antropologia. Mais interessante ainda é que através do chamado relógio molecular, que utiliza mutações neutras para calcular uma possível data de surgimento, é possível até mesmo obter uma data da separação entre as populações e compará-la com as datas descobertas pela antropologia. No entanto, mais interessante do que estes trabalhos são os trabalhos que estudam diretamente a relação entre a transmissão genética e a transmissão cultural. Cavalli-Sforza, por exemplo, nos fala de um estudo que ele realizou sobre a disseminação da agricultura há cerca de nove mil anos. Uma vez constatada a sua disseminação a partir do seu ponto de origem, surge a questão de se foram os agricultores que se disseminaram, ou se foi a técnica da agricultura. Foram feitos mapas de disseminação arqueológicos e genéticos, e a sua correlação era óbvia. Com técnicas de datação foi possível chegar à conclusão da que a hipótese de disseminação dêmica (genética) era a mais provável (Cavalli-Sforza, 2003, p.140). Isto significa que foram os próprios agricultores que disseminaram a agricultura. Um caso de evolução, ou melhor, migração genética levando uma modificação cultural. Logo veremos que no caso da digestão de lactose a descoberta foi oposta. Estudos semelhantes foram usados comparando as diferentes línguas com as diferentes populações genéticas e muitas semelhanças surpreendentes foram encontradas, mostrando que tal método também poderia ser utilizado para estudos lingüísticos. Nas palavras de Cavalli-Sforza: Duas populações diferentes são genética e linguisticamente diferenciadas. O isolamento, que pode resultar de barreiras geográficas, ecológicas ou sociais, reduz a probabilidade de casamento entre as populações e, como resultado, populações reciprocamente isoladas irão evoluir de modo independente, pouco a pouco, se tornar diferentes. A diferenciação genética de tais populações se dá lenta mas regularmente ao longo do tempo. Podemos esperar que um processo semelhante ocorra com as línguas: o isolamento diminui o intercâmbio cultural e as duas línguas acabam se afastando uma da outra. (Cavalli-Sforza, 2003, p.198) 227 Embora existam estas inegáveis semelhanças nestes dois processos, há sim diferenças entre eles. É uma questão em aberto se estas diferenças são verdadeiras divergências, ou só diferenças de grau. A mudança lingüística, por exemplo, apresenta uma variabilidade maior por palavra do que a variabilidade encontrada no gene. Ou seja, as mudanças nos genes muitas vezes só alteram um único nucleotídeo, e mesmo quando existem muitos alelos, normalmente temos só um grupo pequeno de nucleotídeos que mudaram. Já na língua, as palavras e seus “alelos” (sinônimos) podem ser extremamente diferentes, além do número de sinônimos poder ser enorme. Um caso típico seriam as centenas de sinônimos da palavra “pênis”. No entanto, a evolução da língua também pode ser surpreendentemente semelhante à evolução genética, quase idêntica, como no caso de um antigo poema de um monge irlandês do século VII, cujo original não mais existe, e que tem escrito a frase “antes da inevitável viagem” em inglês antigo (Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p.123). Tal manuscrito foi copiado por monges e depois foram feitas cópias de cópias. Nestas cópias erros foram cometidos, que podem ser casuais ou por uma preferência gráfica pessoal. De qualquer maneira, por causa destes erros pode-se reconstruir a árvore genealógica destes manuscritos. Seguem só fragmentos listados de acordo com a similaridade: Manuscrito Século Começo do poema 1 IX Fore th’e neidfaerae 2 X Fore thae neidfaerae 3 XII Fore th-e neidfaerae 4 XII Fore th-e neidfaer-e 5 XV Fore th-e neydfaer-e 6 XIII Fore th-e neidfaor-e 7 XII Fore th-e neidfaor-e Tabela 2: genealogia de um poema O hífen está onde uma letra desapareceu. “Thae”, por exemplo, se transformou em the (o). A palavra “fore” corresponde a before (antes), a palavra “neid” corresponde a need (necessidade) e “faerae” corresponde a viagem. De posse desta tabela basta comparar as semelhanças e diferenças precisamente como 228 se faz com a cadeia de nucleotídeos para criar uma árvore genealógica. A palavra “neidfaerae” mostra uma relação entre os manuscritos 1 a 3 e também entre os manuscritos 4 a 7. Já o “the” coloca o manuscrito 3 mais próximo do 4 a 7 do que do 1 e 2. Este problema foi resolvido estudando o resto do poema. Deste modo, feita a análise total, ficamos: O manuscrito do século VII, que hoje não existe mais, foi copiado por dois monges diferentes. Uma dessas cópias deu origem aos manuscritos 1 e 2; a outra cópia serviu de base para os cinco manuscritos restantes: primeiro vieram o 3, o 4 e o 7; depois seguiram-se o 6, que descende do 7, e o 5, que descende do 4. Essa árvore foi construída seguindo o mesmo raciocínio usado para reconstruir a evolução molecular. (Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p.124 - 125) Análises muito semelhantes a estas são feitas todos os dias por filólogos que buscam descobrir textos originais que são, inclusive, muito utilizados pelos filósofos que estudam filosofia antiga. Vimos já questão idêntica a esta ao tratar das analogias e homologias culturais que, segundo Dennett, deveriam inviabilizar a memética (seção 3.2). Exemplos assim nos mostram que a diferença entre a metodologia para estudar evolução da cultura e para estudar a evolução dos genes pode ser quase inexistente. E mesmo no que diz respeito às diferenças, podemos lembrar que uma mudança em um único nucleotídeo pode causar uma incrível mudança fenotípica. Darwin não poderia ter feito esta associação por desconhecer a genética, mas fez uma bastante semelhante dentro da própria “Origem das Espécies”: Comparam-se órgãos rudimentares às letras que, conservadas na ortografia de uma palavra, embora inúteis para a sua pronúncia, servem para lhe definir a etimologia (Darwin, 2004, p.476) Vimos, deste modo, várias maneiras que a transmissão cultural pode ser estudada, correlacionando-a ou não com a transmissão genética. Na maioria dos casos, os pesquisadores da co-evolução estão justamente interessados nesta relação entre as duas formas de transmissão. Para facilitar a pesquisa algumas “direções” de transmissão são melhor definidas. A transmissão genética se dá predominantemente de maneira vertical, ou seja, de pai para filho. Do mesmo modo existe a chamada transmissão cultural vertical, ou seja, aquela que se dá de pai para filho. Neste caso existe uma clara dificuldade de saber qual fator é mais importante para se explicar as semelhanças entre gerações. 229 Estudos feitos na universidade de Stanford mostraram que atitudes políticas e religiosas eram muito consistentes entre pais e filhos. Estudos como estes nos mostram como se pode fazer um trabalho rigoroso, mesmo em um campo tão complexo. Embora seja possível diferenciar infindáveis graus de atitudes políticas e religiosas, podemos, nos Estados Unidos, por exemplo, dividir as atitudes políticas entre democratas, republicanos, independentes e apolíticos. O número de variações pode ser gigantesco, mas elas podem ser inquestionavelmente agrupadas desta forma, o que as torna discretas e tratáveis cientificamente. Mas em um caso deste, onde a transmissão cultural é vertical, temos sempre a possibilidade de que parte do comportamento, ou mesmo todo ele, seja transmitido geneticamente. Neste caso, pesquisas mais elaboradas são necessárias. Tal problema não acontece na chamada transmissão horizontal, ou seja, entre pessoas de uma mesma geração. Embora existam vários casos de transmissão gênica horizontal, não há caso conhecido onde o doador e o receptor fossem também dois indivíduos capazes de transmitir cultura um para o outro47. Isto significa que se um comportamento, ou uma crença, foi transmitida deste modo, então ela é exclusivamente cultural. Por isso é a transmissão horizontal a mais estudada nas teorias da co-evolução. Mas existe uma clara relação entre a transmissão horizontal e a epidemiologia: A transmissão horizontal corresponde, sob alguns aspectos, à epidemia de uma doença contagiosa: a notícia espalha-se com velocidade crescente, que depois se torna constante e por fim vai a zero. Em condições particulares, o equivalente a doenças endêmicas também pode ocorrer (isto é, a situação em que uma população apresenta um certo nível de incidência de uma moléstia por um período indefinido de tempo) (Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p.283). Baseado nisso, alguns modelos iniciais buscam reinterpretar modelos epidemiológicos em termos de transmissão cultural48. Há também a transmissão oblíqua, quando ela se dá entre gerações diferentes, mas não entre pais e filhos. Podem ser tios e sobrinhos, professores e alunos, mestres e discípulos, etc. A transmissão oblíqua não é muito trabalhada por Cavalli-Sforza, embora ela seja tipicamente uma transmissão cultural. Richerson e Boyd dão uma importância maior para ela. 47 48 Embora isso possa mudar com o uso mais comum da engenharia genética (cf. Goodfield, 1994). “Muitos cientistas hoje usam as ferramentas matemáticas da epidemiologia (como as doenças se propagam) para construir modelos da evolução da cultura” (Pinker, 2004, p.99). 230 Vários outros exemplos de estudos já realizados dentro da estrutura conceitual da co-evolução poderiam ser apresentados: evolução da linguagem, coevolução da surdez genética e das línguas de sinais, a emergência dos tabus de incesto, como a construção de nicho afetou a cultura etc. Tal teoria tem se mostrado um campo muito profícuo, embora ainda conte infelizmente com um número bem pequeno de pesquisadores. Um exemplo muito interessante é o estudo do consumo de lactose feito por Feldman e Cavalli-Sforza (1989), entre outros: com exceção dos bebês, os seres humanos não tinham a enzima lactase suficiente em seus corpos para serem capazes de digerir a lactose do leite, deixando-os doentes se consumissem leite em grandes quantidades. Podendo causar “náuseas, inchaço no ventre, flatulência ou até mesmo diarréia” (Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p.139) Na verdade, a maioria da população mundial ainda não é capaz de digerir corretamente a lactose (Laland & Brown, 2002, p.260). O que varia entre aqueles capazes e aqueles não capazes de consumir corretamente leite é um simples gene. O interessante é que existe uma forte correlação entre a incidência de tal gene e a cultura de criação de gado de leite, sendo que tal gene está presente em cerca de 90% nas populações que têm esta cultura e em menos de 20% nos que não a têm. O fato é que o consumo de leite e seus derivados está presente na cultura humana há cerca de 6.000 anos, o que representa aproximadamente 300 gerações. Surge, então, a questão se a criação de gado de leite ocasionou a pressão seletiva para que o alelo da absorção do leite se espalhasse na população ou se foi o surgimento deste alelo que deu a oportunidade para que esta cultura se espalhasse? Ou seja, o que veio primeiro, o gene ou a cultura? Os modelos inicialmente criados mostraram que modelos exclusivamente genéticos não eram capazes de dar conta deste problema e recentemente os modelos estatísticos indicam que a cultura da criação do gado de leite veio antes do gene para a tolerância a lactose. Deste modo, foi um caso de seleção genética direcionado pela seleção cultural (cf. Laland & Brown, 2002, p.262). Outro exemplo de mudança evolutiva recente nos seres humanos causada por mudanças culturais é o fato de que os chimpanzés têm só um gene para a produção da amilase salivar, enquanto os seres humanos podem ter até 10. Esta ajuda a digerir o amido e, por isso, um número maior destes genes é encontrado 231 em populações que costumam comer muito amido, como o arroz, em oposição a populações que se alimentam da caça e pesca. Fica claro, então, que os trabalhos de Feldman e Cavalli-Sforza se mostram bastante produtivos e atraíram muito interesse da mídia e de outros grupos de pesquisa. Infelizmente, o mesmo ainda não se deu com os trabalhos de Richerson e Boyd. Mas não há nenhum motivo para isso, pois não só eles são de qualidade equivalente, como podem ser integrados aos de Cavalli-Sforza em uma grande área de pesquisa da co-evolução. Talvez o motivo tenha sido somente que tais trabalhos ainda não mostraram tantos resultados quanto os de Feldman e CavalliSforza, mas isso parece ser apenas uma questão de tempo. Existem algumas divergências entre eles, mas é provável que essas divergências sejam mais em relação aos termos e ao enfoque dado. Na terminologia de Richerson e Boyd o mais relevante são os diferentes modos de escolher entre variantes culturais e de evolução cultural. Dada a escolha entre dois comportamentos, indivíduos têm uma maior probabilidade de escolher um do que outro. Richerson e Boyd chamam isso de biased cultural transmission, um processo não muito diferente da seleção natural (cf. Richerson & Boyd, 2006, p.116). Tal processo pode ser dividido em vários tipos: ele pode ser uma directed bias, onde se escolhe diretamente qual comportamento adotar por causa de fatores como, por exemplo, uma predisposição genética para determinado tipo de comportamento ou de informação; ou pode ser um caso de frequency-dependent bias, onde o comportamento escolhido depende do quão comum ele é, sendo que o comportamento mais comum tenderá a ser mais aceito, somente por ser mais comum; e pode ser também indirected bias, ou model-based bias, onde um determinado traço pode servir de pista para se aprender outro traço cultural, por exemplo, copiar o modo de se vestir dos mais ricos ou mais famosos. Estudos mostram, inclusive, que “garotas populares em idade pré-adolescente, das classes baixas ou médias, são normalmente as líderes mais importante da evolução da linguagem nas cidades Americanas” (Richerson & Boyd, 2006, p.125. Minha tradução). Além disso, há o processo de guided variation, quando um indivíduo modifica seu comportamento e em seguida é imitado por outros. As mudanças culturais, neste caso, não dependem muito da existência prévia de variações, elas 232 são como que direcionadas em um modo um tanto lamarckista. “Imaginamos que as pessoas têm a habilidade, embora limitada, de julgar o mérito relativo de crenças e valores alternativos, e escolher entre eles” (Richerson & Boyd, 2006, p.105. Minha tradução). O sistema geral não é muito diferente do da memética. Boyd e Richerson utilizam a mesma analogia que a memética em seus estudos: “Os tipos básicos de processo são as forças da evolução cultural, análogas às forças da evolução genética, seleção, mutação e deriva” (Richerson & Boyd, 2006, p.60. Minha tradução). Mas há uma diferença aqui, pois eles se consideram críticos da memética, principalmente por causa dos memes serem “unidades culturais fielmente replicáveis” e em oposição sugerem que tais unidades podem não existir ou não serem replicadas. Um pensamento um tanto comum entre antropólogos, e eles não fogem a regra49. Para fugir do termo “meme”, assim como de termos como “idéia, habilidade, crença etc.” eles preferem utilizar o termo “variante cultural”, mas não chegam a definir este termo de maneira claramente oposta ao termo “meme”. Blackmore ressalta que Richerson e Boyd também parecem tratar as variantes culturais como replicadores por conta própria (cf. Blackmore, 2000, p.38). No entanto, até mesmo uma leitura superficial de seus textos nos mostra que eles tratam a cultura como composta de vários componentes individuais. Quando eles, por exemplo, falam que “se é provável que um número maior de pessoas de sucesso seja imitado, então aqueles traços que levam a que alguém tenha sucesso serão favorecidos” (Richerson & Boyd, 2006, p.13. Minha tradução) é difícil não entender o termo traços (traits) como uma série de características que podem ser tratadas de maneira unitária. Um outro exemplo seria: “a evolução das linguagens, artefatos e instituições pode ser dividida em pequenos passos e, durante cada passo, as alterações são relativamente modestas” (Richerson & Boyd, 2006, p.50 Minha tradução). Ou ainda: “os historiadores da tecnologia demonstraram muito bem como essa melhoria passo a passo gradualmente diversifica e melhora as ferramentas e outros artefatos” (Richerson & Boyd, 2006, p.115). Eles nos mostram como a evolução da cultura, mas particularmente da tecnologia, são formadas por pequenos passos que vão gradativamente se acumulando, assim 49 Estariam eles sofrendo de frequency-dependent bias? 233 como no caso da evolução biológica (cf. Richerson & Boyd, 2006, p.49 - 50). Embora eles não falem especificamente em unidades de cultura, isso parece mais uma decisão metodológica. Decisão esta que um defensor da memética pode também tomar sabendo do fato de que memes, assim como genes, nunca funcionam sozinhos. A crítica mais comum que Richerson e Boyd fazem contra a memética é precisamente em relação ao seu caráter discreto, tratando a cultura como unidades replicadas fielmente. Em oposição a isso eles afirmam que o termo que usam no lugar de memes, variantes culturais, não implica uma visão onde existam pequenos bits de cultura. Mas mais uma vez eles fazem uma confusão e também mais uma vez eles respondem a si mesmos: Procuramos manter em vista as diferentes variantes, os pequenos bits independentes ou grandes complexos, conforme o caso, presentes na população, e tentamos entender que processos fazem com que algumas variantes aumentem, e outras diminuam. A mesma lógica se aplica independentemente do fato das variantes serem regras fonológicas individuais ou gramáticas inteiras (Richerson & Boyd, 2006, p.91. Minha tradução). Podemos ver com facilidade que esta citação, que deveria ser contrária a memética, poderia muito bem estar em qualquer livro de memética! Eles parecem acreditar que a memética, para fazer algum sentido, tem que tratar a cultura exclusivamente como unidades mínimas de transmissão cultural, um típico caso de reducionismo. Mas assim como a genética das populações podem tratar tanto de genes individuais sendo selecionados, como de gigantescos complexos de genes sendo selecionados conjuntamente, a memética também pode tratar do que foi chamado de memeplexo. Para usar o exemplo que eles usaram, é bastante claro que a memética não precisa tratar só de competições entre regras fonológicas individuais, mas pode sim tratar de competição e seleção entre gramáticas inteiras. Na verdade, até o momento a memética tem tratado mais de tais complexos do que de memes individuais! O primeiro e mais famoso exemplo da utilização da memética é justamente um destes casos: a religião como um complexo de memes. Richerson e Boyd gostam sempre de ressaltar esta diferença entre o que eles fazem e a memética, na verdade, eles voltam na mesma questão exageradamente. Mas é bastante claro que eles compreendem erroneamente a memética como tratando exclusivamente de unidades mínimas de cultura. Esta é uma das 234 principais críticas deles em relação à memética, a outra está no fato destas unidades serem discretas: Nada no argumento depende de que as variantes culturais sejam partículas discretas semelhantes a genes. O argumento funciona exatamente da mesma maneira se os ‘memes’ variassem continuamente e as crianças adotassem uma média ponderada das crenças de seus pais e professores (Richerson & Boyd, 2006, p.154. Minha tradução). Embora eles digam que não é preciso que suas variantes culturais sejam partículas discretas, não mostram que é necessário que elas não sejam discretas. Nem mesmo que é melhor que seja assim. Em outras palavras, a teoria de Richerson e Boyd pode prescindir da memética para fazer sentido, mas pode também ser considerada como uma parte da memética. O que eles fazem não é verdadeiramente uma crítica, eles não dizem que suas análises devem ser entendidas sem unidades discretas da cultura, mas somente de que elas podem ser entendidas assim. Na verdade, a memética também pode ser entendida assim, do mesmo modo que Dawkins fala que a seleção pode ser entendida como agindo entre indivíduos. Como sabemos, embora genes não se misturem, indivíduos se misturam e os filhos são uma espécie de média entre os pais. Mas o fato é que se quisermos ser mais rigorosos devemos tratar de unidades menores. Para o que Richerson e Boyd defendem se transformar em uma verdadeira crítica da memética, eles deveriam mostrar algum caso específico onde a evolução só pode ser tratada como uma mistura. Onde tratar o processo discretamente seria impossível. Além destas críticas, eles ressaltam que a competição entre variantes culturais é diferente daquela entre alelos (cf. Richerson & Boyd, 2006, p.73). Não é comum, no caso da cultura, que duas variantes culturais compitam entre si exclusivamente. Casos como a competição cultural não são bem compreendidos como sendo entre dois alelos no mesmo lócus. Mas embora haja diferenças aí, o darwinismo não precisa que a competição seja específica por um determinado lócus, só é realmente necessário que ela exista e, neste caso, eles mesmos concordam que há: A competição pelo controle do comportamento é muito menos difusa que a competição por atenção. Se duas variantes especificam comportamentos diferentes no mesmo contexto, tipicamente apenas uma delas pode controlar o comportamento. Podemos dirigir ou na esquerda ou na direita, e apenas os bêbados 235 ou os adolescentes estúpidos tentam as duas coisas. Em ambientes bilíngües, é possível alterar rapidamente de uma linguagem para a outra, mesmo no meio de uma frase; porém, entre uma palavra e outra, ou, pelo menos, entre um fragmento de palavra e outro, só se pode falar uma língua de cada vez (Richerson & Boyd, 2006, p.74. Minha tradução). Temos, então, dois tipos de competição: competição por atenção e competição pelo controle do comportamento. Dentro da economia este tipo de competição é chamado de “opportunity cost” (Dugatkin, 2000, p.98) que basicamente significa que se você fizer uma coisa perde a oportunidade de fazer todas as outras, simplesmente porque não podemos nos dedicar a todas de uma só vez, é preciso escolher. Podemos acrescentar aí o que poderia se chamar de competição cognitiva, pois certas variantes serão mais fáceis de serem lembradas, aprendidas e usadas do que outras. Além disso, temos a competição direta entre variantes causada por uma certa, porém limitada, necessidade de coerência interna: a defesa do nazismo e dos direitos humanos dificilmente serão encontradas em um mesmo indivíduo. Quando uma se estabelece torna mais difícil a entrada da outra. É sempre importante deixar claro que quando se fala em ambiente dos memes, não se está falando só das capacidades cognitivas humanas, mas dos outros memes que já estão “instalados” e que podem trabalhar juntos ou competir com os novos memes que desejam entrar. Tais formas de competição são mais do que precisamos para que existam forças seletivas na cultura. É possível ver que Richerson e Boyd se confundem um pouco em relação à memética, confundindo-a com outras aproximações darwinistas da cultura que tentam explicar o comportamento através dos genes. Podemos ver isso claramente quando, logo no início de seu livro, eles tentam separar a sua abordagem da memética e dizem: A cultura é interessante e importante porque seu comportamento evolutivo é distintamente diferente daquele dos genes. Por exemplo, dizemos que o sistema cultural humano apareceu como uma adaptação porque ele pode causar a evolução de adaptações sofisticadas a ambientes mutáveis muito mais rapidamente do que é possível apenas através dos genes. A cultura nunca teria evoluído se ela não pudesse fazer coisas de que os genes são incapazes (Richerson & Boyd, 2006, p.7. Minha tradução). Em sua ânsia por separar o que estão fazendo da memética, eles consideram que qualquer diferença entre cultura e genes é o suficiente para mostrar que a memética não procede, quase como se essa falasse que ambos são a 236 mesma coisa! Assim, eles querem se distanciar simplesmente porque acreditam que a cultura é diferente dos genes e é justamente esta diferença que importa. No entanto, deixam de perceber que é exatamente este o ponto da memética! Esta só faz sentido porque cultura e genes são diferentes. Se a cultura só fizesse coisas que os genes podem fazer, seria melhor abandonarmos a memética e começar a estudar a sociobiologia ou a psicologia evolutiva. Além disso, pode-se entender a transmissão cultural sem se usar o termo “replicação”. Mas é necessário algo correlato que indique que o recebedor terá que ter uma chance maior do que a média da população de ter a mesma “variante cultural” do que o doador para falarmos em transmissão do que quer que seja! Vemos isso nesta própria passagem deles: As similaridades entre as populações ancestrais e descendentes surgem porque a informação necessária foi transmitida de indivíduo para indivíduo ao longo do tempo sem alteração significativa. As diferenças ocorrem porque algumas variantes se tornaram mais comuns, outras mais raras, e foram introduzidas algumas variações completamente novas. Assim, para explicar tanto a continuidade quanto a mudança, precisamos entender os processos populacionais pelos quais as idéias são transmitidas através do tempo (Boyd & Richerson, 2000, p.154. Minha tradução). Fica claro que esta citação poderia estar em qualquer livro de memética, e se trocado o termo “variantes” pelo termo “meme” ficaria uma ótima citação. Mas o mais curioso é que respondendo a crítica que Sperber faz, principalmente contra a memética, e que será vista na seção 10.1, Richerson e Boyd acabam respondendo a sua própria crítica contra a discretização da memética: Se fosse verdade que a evolução adaptativa dependesse criticamente das unidades de transmissão, Darwin e todos os seus seguidores ainda estariam passando o tempo, esperando que o desenvolvimento do trabalho mostrasse definitivamente como os genes causam o aparecimento das propriedades dos organismos. A compreensão de como complexos de genes interagem no desenvolvimento para criar os traços sobre os quais a seleção incide é atualmente um dos principais tópicos da biologia, se não o tópico principal. A visão de Darwin a respeito de como a herança orgânica funcionava estava muito distanciada da idéia dos genes, e envolvia, inclusive, a herança da variação adquirida. Mesmo assim, ele obteve considerável sucesso, porque os processos darwinianos essenciais são tolerantes em relação a maneira como a variação hereditária é mantida. Pela mesma razão, podemos tratar como uma caixa preta o problema de como a cultura fica armazenada nos cérebros empregando modelos plausíveis baseados em traços observáveis que somos capazes de compreender e, assim, seguir adiante (Richerson & Boyd, 2006, p.81. Minha tradução). Em outras palavras, para a analogia entre genética e memética persistir não é necessário nem que memes, e nem mesmo genes, sejam compreendidos como 237 unidades irredutíveis que passam fielmente entre gerações. A este respeito, a memética se encontra em uma situação que não é tão diferente da genética quanto poderia parecer. Pode-se criticar que memes não sejam unidades discretas, mas Darwin também ignorava isso e não deixou de ter sucesso. Quando finalmente descobriram a unidade dos genes, a genética molecular mostrou que era tudo muito mais confuso do que se esperava (seção 1.7). A crítica que eles mesmos fazem aos memes pode muito bem ser feita ao que passou a ser chamado, pejorativamente, de “bean-bags genetic”, ou seja, a uma genética essencialmente discreta. Como vimos, Dawkins gosta de ressaltar que o código genético deve ser entendido como uma receita: um gene não funciona separado do outro (seção 1.4). Tal citação ainda resolve um outro problema da memética que será chamado, no último capítulo, de problema ontológico (seção 10.4). Eles deixam bem claro que, no momento, podemos “black-box” o problema de como a cultura é guardada em cérebros. Ou seja, podemos prosseguir sem saber exatamente a ontologia das variantes culturais, e exatamente o mesmo vale para os memes! Tomando a teoria de Richerson e Boyd em conjunto, ela parece ser mais aceitável para antropólogos e cientistas sociais por não tratar a cultura como unidades discretas. Mas essencialmente ela não difere do que Feldman e CavalliSforza estão fazendo, utilizando, quando necessário, e sem maiores preocupações, uma análise discreta da cultura. Pois como os próprios Richerson e Boyd admitem, ao se fazer ciência, devemos utilizar modelos exageradamente simplistas, pois de outro modo é impossível tratar rigorosamente do que quer que seja. Em suas próprias palavras: De modo a efetivamente progredir com o trabalho teórico ou empírico, é preciso que sejamos capazes de simplificar, simplificar, e então simplificar ainda mais (...) Agradam-nos os modelos simples que são caricaturas deliberadas do mundo real (...) Nenhum cientista sensível pensa que a complexidade do mundo orgânico ou cultural pode ser subsumida sob umas poucas leis fundamentais da natureza, ou capturada em uma pequena gama de experimentos. O “reducionismo” da ciência evolutiva é puramente tático (Ricerson & Boyd, 2006, p.98. Minha tradução). Isto que eles falam deve ser considerado válido para todas as ciências evolutivas, não só as teorias da co-evolução, mas igualmente para a genética e para a memética. Na verdade, vale para qualquer ciência, evolutiva ou não. Se levarmos em consideração que a discretização na memética, assim como na genética, é uma simplificação para permitir o trabalho científico, temos que a 238 principal crítica deles contra a memética é respondida por eles mesmos. Dada todas estas semelhanças, o próprio Dawkins também parece considerar, embora não seja claro, que as análises de Richerson e Boyd sejam memética (cf. Dawkins, 2007, p.259). Ele não foi o único: A teoria da co-evolução gene-cultura é um ramo relacionado da genética de populações, ramo este que modela a interação entre os genes e os memes através do curso da evolução humana. Independentemente do fato de que a evolução dos memes ocorre exclusivamente no nível cultural ou através de uma interação entre memes e genes, já existe um corpo formal de obras teóricas que pode ser usado para explorar processos meméticos, testar hipóteses e modelar dados (Laland & Odling-Smee, 2000, p.136. Minha tradução). Por isso Laland e Brown afirmaram que: “A co-evolução gene-cultura é como um cruzamento híbrido entre a memética e a psicologia evolucionista, misturada com um pouquinho de rigor matemático” (Laland & Brown, 2002, p.242. Minha tradução). Ambas inclusive estão sujeitas as mesmas críticas, sendo que se a co-evolução parece escapar destas críticas é só porque eles decidiram dar um enfoque metodológico diferente. Mas ao que tudo indica, fazer uma separação rígida entre as teorias da co-evolução e a memética seria enganoso. A única grande diferença é que a co-evolução visa estudar a relação entre memética e genes, não trata da evolução cultural por conta própria, que é o enfoque principal da memética. Neste sentido, seria exagero dizer que memética e co-evolução seriam a mesma coisa. Mas de todas as abordagens tratadas aqui elas são as mais relacionadas. No entanto, a união feita pela co-evolução entre evolução cultural e evolução genética em muito interessa a memética e pode ser utilizada por esta em seus estudos sem a necessidade de se fazer grandes modificações. Mas ambas claramente se unem na perspectiva maior de explicar o comportamento, a cultura e a história do ser humano de uma perspectiva darwinista. 4.10 Final Vimos até aqui que muitas confusões podem ser feitas em relação à memética. A maioria delas foi motivada devido a memética fazer parte de um grupo mais amplo de tentativas de explicar a cultura através da teoria de Darwin. 239 No entanto, vimos claramente que a memética se opõe à maioria destas teorias, pois propõe estudar o comportamento e a cultura de maneira independente dos genes. Neste sentido, de todas as abordagens que tratamos aqui, a memética mantém mais relações com as teorias da co-evolução: Advogados da coevolução gene-cultura compartilham com os defensores da memética, e com a grade maioria dos cientistas sociais, a visão de que o que faz a cultura diferente dos demais aspectos do ambiente é o conhecimento que é passado entre os indivíduos. A cultura é mantida e herdada em uma cadeia infinita, freqüentemente adaptada e modificada para produzir alterações evolutivas cumulativas. Essa propriedade de transmissão infecciosa e baseada em informações é o que permite que a cultura se altere rapidamente, que novos comportamentos se propagem através da população, que as pressões de seleção que atuam sobre os genes sejam modificadas, e que uma influência tão poderosa seja exercida sobre nosso desenvolvimento comportamental (Laland & Brown, 2002, p.249. Minha tradução). Podemos, assim, fazer uma espécie de limpeza conceitual que deixa mais claro o que a memética é, distinguindo-a de tudo o que ela não é. Mas o mais importante feito aqui foi perceber que mesmo onde a memética não tem uma ligação direta com estas determinadas áreas, ainda assim estas podem ser bastante úteis para a memética, pois trabalham com o principal ambiente dos memes. 5 Antropologia: amor e ódio Para muitos antropólogos a parte biológica do comportamento humano é reduzida ao mínimo possível, dizendo respeito somente às funções vitais. Até mesmo alguns instintos básicos seriam recusados: o instinto de conservação não poderia existir, dado os kamikazes japoneses; nem o instinto materno, dado o infanticídio que ocorre em muitas tribos indígenas; ou o instinto filial, dado o abandono de idosos pelos esquimós, etc (cf. Laraia, 2006, p.51). Para eles, o fato de existirem sociedades onde tais instintos aparentemente não estão presentes significa que eles não são universais biológicos humanos, mas comportamentos culturalmente determinados. O comportamento humano deveria ser explicado quase que exclusivamente pela cultura, ou seja, seria aprendido após o nascimento. Tal teoria foi corretamente descrita por Pinker como uma reformulação contemporânea da tábula rasa defendida na modernidade (cf. Pinker, 2004). Um caso paradigmático, e que ficou muito conhecido, foi o de Margaret Mead que fez uma pesquisa junto aos Samoanos (1967) que foi considerada como “a demonstração definitiva de que os fatores culturais são mais determinantes que os fatores biológicos na vida do ser humano” (Marconi & Presotto, 2006, p.193). Mead observou, durante um ano, a total ausência de tensão e repressão sexual entre os adolescentes de Samoa, mostrando não só que determinados tabus sexuais eram culturais, mas que a própria noção de adolescência também o era. Suas pesquisas foram consideradas pelos antropólogos como uma verdadeira prova da soberania da cultura. Mas as pesquisas de Mead foram definitivamente refutadas por Derek Freeman que conviveu 40 anos com estes grupos, mostrando que “praticamente todas as afirmações da antropóloga estavam equivocadas” (Marconi & Presotto, 2006, p.193). A sociedade samoana era extremamente repressora e até punitiva em relação aos desvios sexuais. A falha de Mead talvez tenha sido por causa do seu pouco convívio, por não dominar a língua e pelo fato de ser uma mulher que não poderia participar das reuniões masculinas. Mas este caso particular pouco 241 importa aqui, o importante é notar como uma única pesquisa, feita por uma única autora, durante apenas um ano e em apenas uma comunidade, teve uma influência tão grande na opinião pública a respeito do papel da biologia no comportamento humano! Tal extrapolação de um caso particular é injustificável, mesmo se Mead estivesse correta, pois ignora completamente o fato de que tais relações entre comportamento e biologia são relações estatísticas. Isto é apenas um exemplo de como a controvérsia que se instaurou entre as explicações antropológicas e biológicas do comportamento deixou de ser uma disputa saudável entre explicações divergentes e se transformou em uma guerra onde cada um defende sua trincheira conceitual seja de que modo for. Tal guerra não é benéfica para nenhum dos dois lados, pois quando o diálogo não é possível perde-se até a mesmo a possibilidade de discutir devidamente. A história desta controvérsia entre cultura e biologia já é bem antiga, tendo quase um século de vida. Em sua crítica ao evolucionismo cultural, Franz Boas disse acertadamente que não deveríamos procurar as diferenças entre os povos em diferenças biológicas entre os homens (cf. Boas, in: Castro, 2006, p.60). Nisso ele estava correto, as diferenças biológicas entre os homens são mínimas e não dariam conta das diferenças étnicas. Tais diferenças deveriam ser buscadas na cultura e não nos genes. Mas infelizmente esta idéia foi extrapolada dentro das ciências humanas para uma outra que diz que não devemos buscar nenhum aspecto do comportamento humano na genética. É bastante claro que uma coisa não se segue da outra. Tal extrapolação é justamente o que causa uma gama de mal-entendidos. As diferenças entre os grupos realmente não têm um forte fator genético, mas isso não quer dizer que as semelhanças entre eles não possam ter esta origem, assim como também as diferenças entre indivíduos. É exatamente por isso que a maioria das pesquisas sobre fatores genéticos do comportamento ou tratam das semelhanças entre os mais diferentes grupos, como por exemplo, pesquisas sobre a maior agressividade do sexo masculino, ou tratam das diferenças e semelhanças entre indivíduos, como por exemplo, pesquisas entre gêmeos que foram criados em ambientes diferentes e sem contato entre eles (seção 4.3). Praticamente não se fazem pesquisas que tentam explicar as diferenças entre grupos étnicos! E este é exatamente o tipo de pesquisa que os antropólogos costumam temer, pois deu 242 origem à eugenia com a noção de “raça pura”. Mas o próprio conceito de raça humana não é aceito dentro da biologia. Nas palavras de Cavalli-Sforza: A variação entre dois indivíduos escolhidos a esmo numa população será cerca de 85% daquela existente entre dois indivíduos da população mundial escolhidos aleatoriamente (Cavalli-Sforza, 2003, p.50). Isto significa que a própria biologia não só admite, como mostra matematicamente, que a diferença genética entre as diversas populações, e nisso é possível incluir os grupos raciais mais restritos, é praticamente a mesma que a diferença entre quaisquer dois indivíduos escolhidos ao acaso. Ou seja, não existe diferença genética entre raças e com isso acaba também a idéia de raça humana como uma distinção biológica. Não existem raças humanas, mas mesmo se existissem, não seria possível retirar da biologia a atitude “ética” de considerar uma raça melhor do que a outra. Além disso, a própria noção de “raça pura”, que muitos dizem se originar na biologia, deveria significar algo do tipo “população sem muita variação genética”. Mas sabemos que isso ao invés de fortalecer uma raça a enfraquece, pois a evolução se encontraria com um pool genético restrito no qual poderia trabalhar para buscar as melhores adaptações. Além disso, a experiência que se tem com “raças puras” de animais nos mostra que isso só é razoavelmente possível com a reprodução entre parentes, o que por si só tende a aumentar a possibilidade do surgimento de configurações genéticas deletérias. Não há nenhum motivo biológico para buscar uma “raça pura”. Se a própria biologia nega a idéia de raças humanas, então não devemos temer que de dentro dela possa surgir algum tipo de racismo. Muito pelo contrário, o racismo se mostra, antes de mais nada, como um fenômeno tipicamente cultural! Mas sabemos isso hoje. Não muito tempo atrás a biologia era utilizada com fundamentação científica do racismo e da eugenia. Por isso Boas foi extremamente importante: Boas ficou extasiado, porque ele parecia o general de um pequeno exército que estava lutando contra a causa da determinação genética absoluta das diferenças raciais fixas, a qual estava sendo defendida por um exército muito maior de eugenistas e outro ideólogos racistas (Plotkin, 2004, p.62. Minha tradução). Como já foi dito, é inquestionável o papel lamentável pelo qual a biologia teve que passar em mãos erradas quando foi motivo para fundamentar cientificamente preconceitos culturais pré-existentes (seção 4.8). Isto é válido 243 desde o evolucionismo cultural que classificava as sociedades de acordo com um padrão elitista, até o nazismo e outras formas de preconceito que visavam “purificar” uma determinada raça50. Para tais antropólogos “a sua herança genética nada tem a ver com as suas ações e pensamentos, pois todos os seus atos dependem inteiramente de um processo de aprendizado” (Laraia, 2006, p.38). O homem teria se libertado da natureza através da cultura (cf. Laraia, 2006, p.41). E qualquer tentativa de se defender alguma habilidade inata é logo assemelhada à teoria de Cesare Lombroso, criminalista italiano do fim do século XIX que teve bastante sucesso com suas análises que relacionavam comportamentos e tipos físicos (seção 4.8). Este preconceito antropológico chega a tal limite que quando surge uma teoria como a memética, que não visa explicar a cultura através da genética, acaba sendo rechaçada como mais uma tentativa da biologia de dominar a antropologia! Vários são os relatos da forma até mesmo violenta, chegando inclusive perto da agressão física, que alguns pesquisadores tiveram que passar porque tentaram unir biologia e cultura, explicando parte das ações humanas através de mecanismos biológicos. O caso de Edward Wilson, criador da sociobiologia, é talvez o mais conhecido, tendo alguns manifestantes chegado absurdamente perto de agredi-lo (seção 4.3)! O grande medo dos antropólogos, historiadores, sociólogos etc. tem um nome: determinismo genético. Como já vimos nos dois primeiros capítulos, tal determinismo não é assim tão determinante (seção 1.12.5 e capítulo 2). Na verdade, podemos dizer que ele sequer existe, pois o funcionamento genético não se dá a despeito do ambiente em que se encontra51. Já vimos que um gene só tem um determinado efeito em um determinado ambiente. O efeito que um gene tem depende de sua relação com outros genes e com o ambiente. Uma mesma semente da planta Saggitaria saggittifolia, por exemplo, terá dois formatos bastante diferentes dependendo se ela vai brotar na terra ou na água (cf. Bonner, 1980, p.136). Por este motivo, a rigor nenhum biólogo pode falar em um determinismo genético estrito. Não existem genes que possam ignorar completamente o 50 Mas talvez o mais curioso de tudo é que se existisse “raça pura” eles não poderiam ser os europeus, pois eles são frutos de fusões de duas migrações distintas. “Os europeus são dois terço asiáticos e um terço africano” (Cavalli-Sforza, 2000, p.107). 51 O próprio Pinker, considerado um dos grandes defensores do determinismo genético, diz isso. Cf Pinker, 2004, p.77. O mesmo vale para Dawkins! 244 ambiente no qual eles são ativados. Já vimos também com Jablonka (seção 1.5) que a própria ativação ou não dos genes depende do ambiente em que eles estão, e o mesmo vale para como eles serão ativados e qual será o seu resultado. Dizer que algo pode ser exclusivamente determinado pelos genes não é só um erro antropológico, é também um erro biológico! Nas palavras de Sterelny & Griffiths: Com exceção das mutações que são letais independentemente das condições, reconhece-se universalmente que nenhum traço de qualquer organismo pode desenvolver-se a não ser que estejam dados inputs ambientais propícios (Sterelny & Griffiths, 1999, p.13. Minha tradução). Se considerarmos que o próprio organismo onde este gene está, bem como os outros genes que se relacionam com ele, fazem parte do ambiente deste gene, então não é exagero falar que absolutamente nenhum gene funciona independentemente do ambiente. Mas mesmo em uma definição mais restrita do termo “ambiente”, o chamado determinismo genético, como Sterelny & Griffiths falaram, simplesmente não existe! A falta de compreensão de que o determinismo genético não existe se alia com a falta de compreensão de que as pesquisas que relacionam genes e comportamento são estatísticas e acabam criando um monstro que só existe na cabeça daqueles que o temem. Quando um geneticista, por exemplo, diz que homens são mais agressivos do que mulheres por causa de uma maior produção de testosterona, ele não está relatando uma lei, um princípio inviolável. Ele está é mostrando uma relação estatística. Está dizendo que, de forma geral, os homens tendem a ser mais violentos do que as mulheres. Isto quer dizer que se um antropólogo achar alguma população vivendo em algum canto isolado do mundo onde as mulheres são mais violentas, ele não estará refutando a afirmação anterior. Em análises estatísticas é de se esperar que uma série de exceções existam, de outro modo a própria análise não faria sentido. Mas o fato de que ainda hoje tais antropólogos tentem refutar tais análises com casos isolados, como acabamos de ver no caso dos diversos instintos, só nos mostra que eles estão lutando contra um certo determinismo (se for homem, então é violento) que simplesmente não existe. Ou pelo menos não existe mais. Do mesmo modo que um gene não pode ser entendido fora de seu ambiente, um comportamento, mesmo um comportamento aprendido ou imitado, tem sempre um lado genético. Afinal de contas, a nossa capacidade de aprender e de 245 imitar, como veremos no capítulo sobre os neurônios-espelhos (capítulo 7), é ela mesma uma capacidade biológica que se desenvolveu durante a evolução do ser humano através da seleção natural, assim como qualquer outra característica física nossa. Separar biologia e cultura é criar uma divisão inexistente. Curiosamente, segundo Steven Pinker, esta divisão já não é aceita mais entre os biólogos, mas infelizmente ainda o é pelos antropólogos que defendem a total dominação da cultura, no que só poderia ser chamado de determinismo cultural. Até porque “não há nenhuma razão para esperar que influências genéticas sejam menos irreversíveis do que influência ambientais” (Dawkins, 1999, p.13)! Para refutar a doutrina do determinismo cultural, mas não para defender o determinismo genético, Pinker escreveu logo no início de um de seus últimos livros: A idéia de escrever este livro ocorreu-me quando comecei a fazer uma coleção de assombrosas afirmações de sumidades e críticos sociais acerca da maleabilidade da psique humana: os meninos brigam e lutam porque são incentivados a isso; as crianças gostam de doces porque os pais os usam como recompensa por comerem verduras; os adolescentes têm a idéia de competir na aparência e na moda por causa dos concursos de ortografia e prêmios acadêmicos; os homens pensam que o objetivo do sexo é o orgasmo devido ao modo como foram socializados (Pinker, 2004, p.13). Esta coleção criada por Pinker é justamente fruto do preconceito que deu origem ao determinismo cultural, que não é mais do que outro nome para tábula rasa. O mais importante é notar que nem um determinismo e nem o outro é satisfatório. Ambos não são capazes de dar conta do comportamento humano. Além disso, também não é viável tentar fazer uma separação do tipo “alguns comportamentos são explicados pela biologia e outros pela cultura”. Tal estratégia só manteria a segregação entre estas duas áreas quando o que se deve buscar é a união. Um comportamento, seja ele qual for, normalmente será uma mescla de motivações biológicas e culturais. Um simplesmente não se dá sem o outro. A cultura não está solta, livre da biologia, e a biologia não existe sem um ambiente. Infelizmente não será possível trabalhar estas questões aqui. A discussão que ficou conhecida como Nature vs. Nurture por si só ocupa vários livros, artigos e teses. Basta neste momento constatarmos que explicar a cultura e o comportamento humano através da biologia é considerado algo tão perigoso pela antropologia que deve ser imediatamente ignorado. Embora existam motivos históricos para isso, não existem motivos conceituais. Teme-se um determinismo 246 genético que, a rigor, não existe. Por isto estas críticas, ao invés de serem respondidas, podem ser simplesmente ignoradas, pois elas atacam um ponto de vista que simplesmente não é de ninguém52. Mas apesar de todas estas divergências que foram aqui apresentadas, é possível encontrar largas semelhanças entre o fazer antropológico e o fazer memético. Algo que já deveria ser mais do que esperado, já que ambos visam discutir a cultura e, mais importante ainda, ambos visam discuti-la nela mesma, ou seja, tratar a transmissão cultural de maneira independente da transmissão genética. Apresentaremos aqui brevemente algumas semelhanças entre a antropologia e a memética com o intuito de começar a construir uma ponte conceitual comum onde um diálogo seja possível. Faremos algo semelhante no próximo capítulo com a lingüística. O intuito é somente apresentar alguns poucos conceitos e idéias da antropologia que poderiam ser reutilizados pela memética, é claro que dentro de uma estrutura conceitual bem diferente, e que por isso servem como um lugar comum onde estas duas áreas podem focar mais nas suas semelhanças do que nas suas diferenças. Isso permite que exista uma compreensão mútua, algo que é indispensável mesmo quando se está querendo discordar. Mas antes de entrarmos neste assunto, é preciso tratar do objeto de ambas: a cultura. 5.1 Você Tem Sede de Quê? A palavra cultura tem tantos significados e tons diferentes que, ao mesmo tempo em que se torna importante definir do que estamos falando, torna-se também quase impossível fazer isso. No entanto, não só por rigor conceitual, mas também por respeito, a memética deve, no mínimo, escolher e defender um determinado conceito de cultura com o qual ela pretende trabalhar. Dizemos que é antes de tudo uma questão de respeito porque ao trabalhar com a cultura a memética entra na área de várias outras disciplinas que já estudam tal tema há 52 Aqui deve ser feita uma ressalva: infelizmente os relatos da mídia sobre as descobertas genéticas do comportamento estão cobertas de referência ao determinismo genético e ela é em grande parte a culpada pela invenção deste monstro. Mas uma discussão teórica séria não deve levar em consideração manchetes sensacionalistas! 247 mais de um século. Há muito tempo estas áreas de estudo vêm tentando definir o conceito de cultura e até o momento a memética simplesmente ignorou tal trabalho de forma que foi corretamente considerada como arrogante. Não devemos esperar que a memética defina de uma vez por todas o que é cultura e termine com este assunto. O que esperamos é que ela ao menos entre nesta discussão e proponha e defenda o seu conceito ou então assuma publicamente a adequação a um conceito já existente. Com este intuito apresentaremos aqui uma parte inicial desta discussão visando assumir uma posição da memética dentro da mesma, mas sempre tendo em mente que muitas tentativas de definir a cultura deverão ser feitas ainda pela memética no futuro. Não proporemos aqui a criação ou mesmo a defesa de um conceito de cultura tipicamente memético. O que buscamos é algo muito mais simples, buscamos somente a inclusão da memética dentro da discussão sobre o que é a cultura. O termo cultura tem muitos significados, curiosamente alguns deles de entonação biológica. Ter uma cultura de algo significa ter uma lavoura, uma criação de alguma entidade biológica. É um termo muito usado quando se faz, por exemplo, cultura de bactérias para estudo. Nas palavras de Eagleton: A raiz latina da palavra ‘cultura’ é colere, o que pode significar qualquer coisa, desde cultivar e habitar a adorar e proteger. Seu significado de ‘habitar’ evoluiu do latim colonus para o contemporâneo ‘colonialismo’(...).. Mas colere também desemboca, via o latim cultus, no termo religioso ‘culto’ (Eagleton, 2005, p.10). Estas ligações da palavra cultura se mantêm até hoje. Cultuar e cultivar são palavras ainda muito próximas no português, assim como usamos o termo “culto” tanto para o ato religioso quanto para uma pessoa de largos conhecimentos. Já podemos ver, mesmo neste sentido inicial do termo que é tão distante do sentido que usaremos na memética, alguns indícios do que normalmente chamamos de cultura. Há uma relação entre a noção de criar, fazer crescer, desenvolver, tipicamente física e biológica, com a noção mais mentalista de admirar, conhecer, aprofundar. Se unirmos as duas poderíamos ter, por exemplo, uma noção de “fazer crescer o conhecimento”, algo que já se aproxima bastante do que entendemos por cultura. As possibilidades de se trabalhar com este termo vão além: no nosso próprio uso cotidiano ele já se mostra bastante polissêmico. Cultura muitas vezes é usada 248 como sinônimo de civilização. Ter cultura é ser civilizado, ter bons modos, saber ler, escrever e se expressar bem. Vamos ao cinema ou ao teatro em busca de um pouco de cultura. Neste sentido cultura está associada a noção de “Alta Cultura” que originalmente era oposta ao barbarismo e à selvageria. Existe dentro desta concepção uma clara elitização. Alguns filmes, por exemplo, seriam “cultura” enquanto outros seriam “puro entretenimento”. Neste sentido o termo “cultura” está diretamente associado ao termo “culto”. No entanto, neste último século, principalmente depois dos estudos de antropólogos como Franz Boas, houve uma mudança radical na significação deste termo. Tal termo perdeu grande parte do seu caráter elitista e segregador e passou a ser considerado como muito mais abrangente. Cada povo, cada grupo, passou a ser considerado como tendo uma cultura que deve ser respeitada, estudada e até defendida das influências externas. É o surgimento do relativismo cultural. Enquanto o índio era antes o selvagem sem cultura, ele passa a ser agora justamente o defensor de uma cultura que deve ser protegida da invasão de culturas dominantes como a nossa cultura ocidental contemporânea. Na medida em que nossa cultura destrói outras culturas pelo mundo afora, deixamos de ser os cultos e passamos a ser os bárbaros! “Numa inversão curiosa, os selvagens agora são cultos, mas os civilizados, não” (Eagleton, 2005, p.50). A cultura deixou de ser um grupo de valores superiores de um grupo dominante e passou a ser “aproximadamente resumida como o complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico” (Eagleton, 2005, p.54), onde o termo chave é justamente a palavra “específico”. Quanto mais particular, mais raro, mais específico, maior é o valor de tal cultura. Uma língua falada somente por um punhado de índios, por exemplo, merece muito mais uma atenção do que uma outra mais difundida. Tal termo, então, originalmente significava algo de maior, grandioso, que superava as nossas particularidades e exigia estudo e atenção dedicada. Ser civilizado ou culto não era tarefa simples, demandava dedicação para submergir nas grandes criações dos maiores gênios da humanidade. Era preciso estudar as maiores obras que o homem já criou para ser considerado culto. Na verdade, ser culto ainda é, de algum modo, sair de si e entrar no que de melhor o ser humano produziu até então. Algo de etéreo, abstrato, superior, sublime, além do homem. Curiosamente o termo cultura passou a significar quase que seu oposto. Ao 249 contrário de buscar uma identidade humana universal, procurar pela cultura é hoje buscar uma identidade típica, particular, regional, específica. Quanto menos universalizante e globalizante melhor. A cultura não é mais o consenso do que há de melhor na humanidade, mas o conflito do que há de idiossincrático em cada grupo. Ainda hoje se discute o conflito entre alta cultura e cultura de massa, ou Cultura vs culturas. Mas mesmo dentro desta distinção não é mais possível deixar de reconhecer que cultura de massa também é cultura. Neste caso, a concepção da cultura como certos comportamentos idiossincráticos que, de certo modo, definem as relações internas de um povo ganhou destaque em relação ao conceito de cultura como civilização. 5.2 Cultura A primeira definição do termo cultura foi dada por Edward Tylor em 1871 em seu livro Primitive Culture logo na primeira página do primeiro capítulo. Segundo ele o termo cultura: Tomado em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade (Tylor, in: Castro, 2005, p.69). Após Tylor, literalmente centenas de novas definições surgiram. Curiosamente veremos em breve que logo esta primeira definição de Tylor já é suficientemente boa para ser utilizada na memética, pois sua definição acaba sendo similar à cultura tratada como “todo o comportamento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética” (Laraia, 2006, p.28). Tal definição é considerada por alguns como excessivamente abrangente (cf. Eagleton, 2005, p.55) de modo a se tornar pouco útil, abrangendo praticamente tudo. Esta crítica não é sem fundamento, mas uma definição da cultura que deve ser aceita pelas mais diversas áreas científicas que a estudam acabará sendo sempre abrangente, cabendo a cada área específica uma melhor delimitação deste conceito de acordo com seus interesses. 250 O conceito de Tylor era bastante amplo e neutro de modo a incluir igualmente os mais diversos tipos de atividades culturais. Mas assim que todas elas eram incluídas, eram logo classificadas dentro de uma escala que ia dos povos selvagens até as civilizações européias. Era o chamado evolucionismo cultural, doutrina que previa uma evolução unilinear de todos os povos: todos eles percorreriam as mesmas etapas de um extremo ao outro em um caminho progressivo que saía da selvageria e ia até a civilização (seção 4.8). Não só Tylor, como também Frazer, Spencer, Morgan e outros, defenderam idéias semelhantes a esta. Nas palavras de Morgan: A selvageria precedeu a barbárie em todas as tribos da humanidade, assim como se sabe que a barbaria precedeu a civilização. A história da raça humana é uma só – na fonte, na experiência, no progresso (Morgan, in: Castro, 2005, p.44). Frazer chega a comparar a passagem do selvagem para o civilizado com a passagem da infância para a idade adulta em uma clara alusão à teoria da recapitulação (cf. Frazer, in: Castro, 2005, p.107)53. Tal idéia de cunho claramente Spenceriano estava na origem da antropologia e embora tenha trazido grandes avanços, tinha como fundamento um preconceito que é hoje intolerável. O principal pesquisador que reagiu a este preconceito foi Franz Boas (1858 1952), conhecido como pai da antropologia moderna, criticando o evolucionismo e mostrando que cada cultura tinha sua história particular dentro da qual deveria ser entendida. Nasce o multiculturalismo e o relativismo cultural que aceita cada cultura dentro de seus próprios pressupostos. Nas palavras de Boas: Se admitimos que é possível existirem diversos tipos definitivos e coexistentes de civilização, fica evidente que não se pode manter a hipótese de uma única linha geral de desenvolvimento (Boas, in: Castro, 2006, p.42). Ao contrário dos evolucionistas, Boas não acreditava em grandes sistemas que valeriam para toda a humanidade. Cada cultura, cada povo, deveria ser estudado dentro da sua história e respeitando a sua individualidade. O método comparativo utilizado pelos evolucionistas dá lugar ao método histórico de Boas e a palavra cultura começa a ser usada no plural. Já é possível ver em Boas também um afastamento da biologia que, como acabamos de ver, tomou hoje uma proporção quase doentia dentro da antropologia. Ele acreditava que a constituição 53 Curiosamente Frazer também propõe uma teoria semelhante a memética ao falar da luta pela sobrevivência na esfera mental (cf. Frazer, in: Castro, 2005, p.115). 251 hereditária tinha influência comportamental, mas “qualquer tentativa de explicar as formas culturais numa base puramente biológica está fadada ao fracasso” (Boas, in: Castro, 2006, p.60). Como já vimos ,ao contrário de ser uma crítica à memética, esta constatação de Boas é justamente o que permite a existência dela (seção 3.1 e 4.3). A crítica de Boas ao evolucionismo colocou por terra a idéia de que existiria uma grande unidade, sendo que os diversos povos só representariam diversos estágios na evolução do que seria, no fundo, uma mesma cultura. O termo “cultura” perde a sua unidade para toda a humanidade e com a multiplicação da cultura também vem a multiplicação dos conceitos que visam definir o que é a cultura. Marconi e Presotto (2006, p.21) dizem que o número de definições deste conceito já passou de 160! Tratar mesmo uma pequena porção destes conceitos aqui seria impraticável, não só pelo número de conceitos, mas pela complexidade do tema. A memética, caso pretenda se fundamentar como uma ciência, terá que indubitavelmente se apropriar desta discussão e defender um conceito que lhe seja mais próximo. Infelizmente o que os defensores da memética têm feito até agora é simplesmente ignorar este problema deixando os antropólogos corretamente irritados. Pretendemos aqui dar somente o primeiro passo desta caminhada da memética em direção à antropologia. Para isso só um grupo pequeno de conceitos serão apresentados, mas na tentativa de que sejam conceitos representativos de um todo maior. Dentre estes conceitos, um em particular será indicado como mais conveniente para a memética e que fornecerá a base onde futuros pesquisadores desta área poderão começar a trabalhar. O primeiro conceito de cultura já foi apresentado: é o de Tylor. Seu grande opositor, Boas, apresenta um outro conceito de cultura mas que é considerado como fazendo parte do mesmo grande grupo de Tyler. Para Boas a cultura é “a totalidade das reações e atividades mentais e físicas que caracterizam o comportamento dos indivíduos que compõem um grupo social” (1964, p.166 in: Marconi & Presotto, 2006, p.22). Tylor, Boas, Linton, Malinowski e outros podem ser agrupados como tratando a cultura como idéias ou crenças que podem dar origem a padrões de comportamentos e costumes. A cultura seria de algum modo um fenômeno mental. 252 Também poderiam estar incluídos neste grupo W. Goodenough por tratar a cultura como “tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acreditar para operar de maneira aceitável dentro de sua sociedade” (Goodenough, in: Laraia, 2006, p.61). Embora mais pragmático, a cultura permanece como uma forma de conhecimento e crença mental. De maneira diversa, mas dentro de um grande grupo que definiu conceitos idealistas de cultura, estaria também Claude LéviStrauss ao tratar a cultura como “um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mente humana” (Keesing, in: Laraia, 2006, p.61). Já para Kroeber e Kluckhohn, Beals e Hoijer a cultura seria constituída de abstrações do comportamento (cf. Marconi & Presotto, 2006, p.22). Para eles a cultura não deve ser confundida com o próprio comportamento ou os artefatos produzidos por tal comportamento. No entanto, Leslie A. White criticava tal conceitualização como demasiadamente intangível e imperceptível, não sendo capaz de fundar uma ciência. A cultura deveria ser de algum modo observável, embora não fosse o próprio comportamento. Vimos uma crítica semelhante de Sperber contra Dennett, em relação ao papel da abstração na memética, na seção 3.2. Deste modo ela é definida como: Quando coisas e acontecimentos dependentes de simbolização são considerados e interpretados num contexto extra-somático, isto é, face à relação que têm entre si, ao invés de com os organismos humanos (Marconi & Presotto, 2006, p.23); Vemos já aí uma tentativa de estudar a cultura nela mesma. Observa-se o comportamento, mas tratando as suas relações não com o mundo físico e sim com os outros comportamentos. Ao fazer isso já se abre um caminho por onde a memética pode entrar. Mas foi Felix M. Keesing que apresentou um conceito que poderia ser usado, pelo menos inicialmente, pelos defensores da memética. Para ele a cultura é: Comportamento cultivado, ou seja, a totalidade da experiência adquirida e acumulada pelo homem e transmitida socialmente, ou, ainda, o comportamento adquirido por aprendizado social (Keesing, 1961, p.49, in: Marconi & Presotto, 2006, p.23). O enfoque que ele dá ao fato de que cultura é comportamento socialmente adquirido exclui praticamente só o comportamento geneticamente adquirido e cria aquele conceito mais amplo de cultura mencionado no começo deste capítulo. 253 Junto com Keesing, temos ainda G.M.Foster que amplia ainda mais este conceito, mas ainda mantendo o enfoque na transmissibilidade: A forma comum e aprendida da vida, compartilhada pelos membros de uma sociedade, constante da totalidade dos instrumentos, técnicas, instituições, atitudes, crenças, motivações e sistemas de valores conhecidos pelo grupo (Foster, 1964, p.21, in: Marconi & Presotto, 2006, p.23). Foster, então, amplia o conceito de Keesing para incluir elementos materiais e não materiais. Deste modo, cria uma definição de cultura como a transmissão de ambos os elementos dentro de uma sociedade. De certo modo, podemos dizer que ele une Keesing e White criando, assim, um conceito de cultura provindo de dentro da própria antropologia e que poderia ser largamente adotado pela memética. Infelizmente, dado o estado atual da questão, antropologia e memética se encontram em campos opostos. Os defensores da memética muito frequentemente se originam da ciência biológica ou são filósofos da biologia, já os antropólogos são cientistas sociais que, infelizmente, uniram a crítica ao evolucionismo antropológico a uma certa recusa a tudo o que é biológico no comportamento humano. No entanto, é possível buscar dentro da própria antropologia conceitos que podem ser utilizados pela memética e, deste modo, construir uma ponte que permita a melhor compreensão entre ambos. 5.3 Antropologia e Memética: um breve diálogo A antropologia pode ser dividida em três grandes áreas. Se retirarmos a antropologia filosófica, que faz mais parte da própria filosofia, ficamos com a antropologia social e/ou cultural e a antropologia física. Ambas têm como objeto o homem e suas obras, mas com um enfoque diferente. A antropologia física, também chamada de biológica, estuda a natureza física do homem, procurando conhecer suas origens, evolução, sua estrutura anatômica, seus processos fisiológicos e as diferentes características raciais das populações humanas, antigas e modernas” (Marconi & Presotto, 2006, p.4). 254 Esta pode ser dividida em diversas áreas. Entre elas estão a Paleontologia humana, que estuda a origem e evolução humana através dos fósseis; a Somatologia, que estuda as variedades físicas dos homens; a Antropometria, que estuda as técnicas de medição do corpo humano; entre outras. Percebe-se que a antropologia física não é similar a memética, mas pode ser estudada ao lado desta, por tratar do homem enquanto ser físico, que seria o principal ambiente ao qual o meme deve se adaptar. De maneira semelhante a própria biologia tem muito a ganhar com os estudos da geografia, geologia e meteorologia, como fica evidente pela biogeografia e pela teoria da vicariância, que será explicada na seção 9.7. Dentre os ramos da antropologia física, a paleontologia seria indubitavelmente a área que mais interessaria à memética, pois, como veremos na próxima seção, há indícios de que a evolução humana se deu largamente através da relação entre organismo e cultura. No entanto, seria a antropologia cultural que mais interessaria à memética, pois esta, como o próprio nome indica, estuda a cultura humana, praticamente o mesmo objeto de estudo da memética. A antropologia cultural: Investiga as culturas humanas no tempo e no espaço, suas origens e desenvolvimento, suas semelhanças e diferenças. Tem foco de interesse voltado para o conhecimento do comportamento cultural humano, adquirido por aprendizado, analisando-o em todas as suas dimensões (Marconi & Presotto, 2006, p.5). Fazem parte da antropologia cultural a Arqueologia, que é o estudo e reconstrução das culturas passadas extintas através de vestígios materiais; a Etnografia, que é o estudo de culturas normalmente simples e ainda existentes, visando a observação, análise e reconstituição de tais culturas; a Etnologia, que interpreta e compara as diferentes culturas estudadas pelos etnógrafos, entre outras. Todas estas áreas interessam diretamente aos estudiosos da memética por já conterem pesquisas de campo de grande valor com as quais deve ser possível criar interpretações meméticas e ver no que tais interpretações auxiliam ou não, na compreensão das diversas culturas e suas histórias. Para tais estudos os antropólogos utilizam diferentes métodos, como o comparativo, utilizado na etnologia, o descritivo, utilizado na etnografia e o genealógico, utilizado no estudo de parentescos. Dentre estes métodos dois merecem destaque por sua semelhança com o que é feito na biologia. Em primeiro 255 lugar temos o método estatístico, que é basicamente o mesmo método utilizado na biologia. Nas palavras de Marconi e Presotto: Método muito empregado tanto no campo biológico verificando as variabilidades das populações, quanto no campo cultural, levantando diversificações dos aspectos culturais (Marconi & Presotto, 2006, p.12). O segundo método é o chamado método histórico que também é usado dentro da teoria da evolução para se reconstruir histórias evolutivas (capítulo 2). Este consiste em investigar eventos do passado, a fim de compreender os modos de vida do presente, que só podem ser explicados a partir da reconstrução histórica da cultura e da observação das mudanças ocorridas ao longo do tempo (Marconi & Presotto, 2006, p.12). É uma questão bastante pertinente no momento discutir se as semelhanças nos métodos não indicam uma semelhança nos objetos. Objetos completamente díspares dificilmente poderiam ser estudados dentro de um mesmo método. Para que isso possa acontecer é preciso que haja algo em comum entre os diferentes objetos que lhes permitam ter um mesmo tipo de análise metodológica. A simples utilização dos mesmos métodos para se estudar a evolução e a variabilidade dos seres vivos e para estudar a evolução e a variabilidade da cultura já é, ao menos, um indício de que as semelhanças propostas pela memética entre a evolução cultural e a evolução da vida é mais do que uma simples analogia útil. Mas não é só nestas grandes linhas que a antropologia e a memética podem se encontrar. Existem conceitos e análises mais específicas que foram desenvolvidas pela antropologia, mas que podem ser apropriadas pela memética, ao menos em um primeiro momento, para garantir que haja uma tradução conceitual entre estas duas áreas. Podemos ver que muitas das análises feitas pela antropologia são igualmente válidas e importantes para a memética. Um exemplo já abordado, e que será aprofundado no capítulo sétimo, é o papel da imitação e da aprendizagem na transmissão da cultura. Ambos, a memética e a antropologia cultural, precisam da transmissão da cultura através de meios não genéticos para fazer algum sentido. Na verdade, curiosamente a memética precisa até mais do que a antropologia, pois se toda cultura fosse passada geneticamente a antropologia ainda poderia existir como área de estudo que tem como objeto a cultura, independente do meio de transmissão da mesma. 256 Já a memética só faz sentido ao tratar da transmissão cultural exclusivamente através de um meio não genético. De outro modo ela não existiria e seria substituída pela sociobiologia e pela psicologia evolutiva. Surpreendentemente podemos então ver que é mais importante para a memética do que para a própria antropologia se afastar dos reducionismos biológicos da cultura! Uma das principais críticas feitas à memética é o seu caráter discreto, ou seja, o fato de que divide a cultura em várias unidades discretas (seção 10.3). No entanto, esta crítica não é muito válida, pois tal divisão tem um fundo muito mais metodológico do que ontológico. Do mesmo modo vemos na genética a divisão entre genes, mas falando de maneira mais rigorosa um gene nunca pode ser tratado isoladamente (seção 1.12.5 e capítulo 2). Como nunca é demais enfatizar esta questão, pois ela não só traz problemas para a compreensão da memética, como também causa problemas na própria biologia, podemos citar Eva Jablonka: A rede genética é composta de dezenas ou de centenas de genes e de produtos de genes, os quais interagem uns com os outros e, conjuntamente, afetam o desenvolvimento de um traço particular (Jablonka & Lamb, 2005, p.6. Minha tradução). Considerar a cultura como formada de traços discretos não é mais errado do que considerar um organismo feito de partes separadas ou genes individuais. Ambos têm somente um valor metodológico na medida em que nos permite simplificar os estudos. Na verdade o que é dito é “se nada for alterado em seu ambiente, então este gene, ou este meme, terá a seguinte função___”. Como já vimos, genes não codificam estruturas fenotípicas, mas sim diferenças fenotípicas, ou seja, se só um determinado gene for alterado enquanto o genótipo e o ambiente no qual ele se encontra permanecem ambos inalterados, então dizemos que ele é um “gene para” aquilo que ele modificou (capítulo 2). Mas este mesmo gene em outro genótipo pode, e provavelmente terá, outro efeito. O mesmo se dará em outro ambiente. Fica claro então que um gene nunca pode ser verdadeiramente compreendido separado do todo que é o genótipo e os fatores ambientais. Mas para uma simplificação metodológica é importante fazer isso. O mesmo acontece com a relação entre os memes e a cultura. No entanto, a memética não é a única área a fazer uma análise discreta da cultura. A própria antropologia utiliza o conceito de “traço ou elemento cultural” como sendo o menor elemento que permite descrição de uma cultura. Um traço 257 cultural é a “menor unidade ou componente significativo da cultura, que pode ser isolado no comportamento cultural” (Marconi & Presotto, 2006, p.33). Tais traços seriam compostos de partes ainda menores, os itens, mas um item não tem valor cultural por si só. Uma caneta, por exemplo, só se torna um traço cultural em sua associação com a tinta. A diferença entre traço e item não é de maneira nenhuma simples. Um traço em uma cultura pode muito bem ser um item na outra e viceversa. O mais interessante é que traços culturais não precisam ser materiais. Eles podem ser atitudes, comportamentos, habilidades etc. Uma forma de aperto de mão, de beijo ou mesmo uma festividade pode ser considerada um traço cultural. A relação entre um traço cultural e um meme é imediata. Embora seja possível argumentar que eles não sejam a mesma coisa. Objetos, por exemplo, podem não ser considerados como memes. Uma cadeira não é um meme, mas o costume de se sentar em cadeiras, ou mesmo a idéia de que elas são para sentar, pode ser um meme. Temos então um conceito antropológico muito semelhante ao conceito de meme, mas mesmo assim a memética é criticada por cientistas sociais como tentando tratar uma realidade contínua de maneira discreta. A questão é que antropólogos normalmente não estão muito interessados na descrição dos traços culturais, seu interesse costuma estar voltado para como estes traços se unem em complexos culturais e como estes complexos se unem em padrões culturais. O seguinte exemplo é esclarecedor: O matrimônio, como padrão cultural brasileiro, engloba o complexo do casamento, que inclui vários traços (cerimônia, alianças, roupas, flores, presentes, convites, agradecimentos, festa, jogar arroz nos noivos, amarrar latas no carro etc.), o complexo da vida familiar, de cuidar da casa, de criar filhos, de educar crianças. (Marconi & Presotto, 2006, p.35) Vemos, então, um padrão, formado de complexos, que por sua vez são formados de traços. O interesse do antropólogo normalmente está voltado para a união dos traços e dos complexos na formação de padrões. Historicamente a antropologia tem focado mais na cultura vista como um todo do que nas particularidades dos traços individuais. Embora Franz Boas, como vimos, tenha se voltado para uma pesquisa mais particular, sem os grandes esquemas do evolucionismo, ele ainda manteve um estudo que visava o todo de uma 258 determinada cultura estudada. Esta característica se manteve no chamado “funcionalismo”, que surgiu na década de 30, tendo como seu principal representante Malinowski, e que, como o próprio termo indica, defendia que as partes não podiam ser plenamente compreendidas fora do todo. O configuracionismo, de Sapir e Benedict, que vem logo depois, mantém esta vertente, destacando a singularidade do todo e tendo “por tema básico a integração da cultura” (Marconi & Presotto, 2006, p.260). Mais recentemente, o estruturalismo de Leví-Strauss, como o próprio termo também indica, mantém o que está sendo dito aqui, pois “ela [a estrutura] consiste em elementos tais que uma modificação qualquer de um deles acarreta uma modificação em todos os outros” (Marconi & Presotto, 2006, p.265). Fica fácil perceber que praticamente ao longo de toda a história da antropologia o enfoque principal foi sempre o conjunto e nunca as partes. No entanto, esta é apenas uma escolha metodológica. A memética também é perfeitamente capaz de fazer exatamente esta mesma escolha se decidir focar mais na união de vários memes do que nos memes individuais, criando o que foi chamado por Dennett de memeplexo. Podemos ver isso nas análises que tanto Susan Blackmore quanto Dawkins fazem da religião como um grande conjunto de memes. O fato de se trabalhar só com um meme, ou só com um traço cultural, não significa que ele possa ser perfeitamente compreendido isolado dos outros traços, ou memes, e do ambiente no qual eles funcionam. É apenas uma simplificação metodológica para facilitar a pesquisa inicial, uma técnica extremamente comum dentro de todas as ciências e que existe desde Descartes, quando este sugere que se vá do mais simples para o mais complexo. É claro que neste momento um antropólogo pode criticar o fato de que traços culturais simplesmente não podem ser entendidos fora de complexos e padrões culturais. Deste modo não se pode estudar a cultura do mais simples para o mais complexo, pois o simples só pode ser compreendido dentro do complexo. É o chamado holismo que se encontra em oposição ao reducionismo. Mas em primeiro lugar poderíamos dizer que esta crítica ignora à própria definição de traço cultural que acabou de ser apresentada. Este deveria ser a “menor unidade ou componente significativo da cultura, que pode ser isolado no comportamento cultural”. Faz parte da própria noção antropológica de traço cultural o fato de que ele é significativo mesmo em sua simplicidade. 259 No entanto, definições podem ser modificadas, mas em nada isso mudaria o que está sendo dito aqui, pois, falando de modo mais rigoroso: um meme, exatamente como um gene, também só pode ser perfeitamente compreendido em relação aos outros memes, ou genes, e ao ambiente no qual eles estão inseridos. A rigor, o holismo vale para os dois. São muito comuns, por exemplo, as críticas de Gould e Mayr à genética de “saquinhos de feijão”, ou seja, que discretizam os genes como se eles pudessem ser entendidos separadamente. Mas mesmo assim a genética, e futuramente a memética, não devem abandonar o fato de que a melhor maneira para se explicar cientificamente algo complexo é começar por suas partes mais simples e ir aos poucos estudando as relações entre elas até que se tenha a capacidade de estudar um todo complexo. Mais uma vez é preciso deixar claro que a diferença entre traços e memes é muito mais uma diferença metodológica do que uma diferença de objetos de estudo. É típico da ciência simplificar para estudar, não por assumir que o objeto é, ele mesmo, simples, mas porque só assim pode ser dado o rigor que o objeto merece. O reducionismo metodológico é uma estratégia típica para tratar do holismo do objeto. Qualquer cientista sabe que o que ele faz é uma simplificação do todo, mas esta é a sua estratégia para compreender o todo (seção 4.9). Se modelos matemáticos não forem simples, por exemplo, eles podem facilmente extrapolar a capacidade computacional de nossos maiores computadores. A estratégia é sempre ir aos poucos, explicar as partes que compõem o todo. Se por um acaso o holismo estiver correto e o todo realmente não puder ser reduzido às suas partes, isso ficará evidente, pois depois de termos todas as partes explicadas faltará algo para chegar ao todo. Mas agora, já tendo tratado de tudo aquilo que podia ser reduzido, será muito mais simples tratar de tais “propriedades holísticas”. Vimos na seção 1.12.2 que algo semelhante a isso ocorreu na biologia com a seleção de grupo: uma vez tratado o que podia ser reduzido, restou o que não podia, que agora é tratado com muito mais rigor. Isso nos mostra que o holismo da antropologia e o “reducionismo” da memética não são duas visões de mundo opostas, e sim duas metodologias diferentes de como tratar este mesmo mundo. Já de posse do conceito de traços culturais podemos nos aprofundar em nossa análise da antropologia. Uma outra semelhança já analisada é a transmissão cultural por meios não genéticos. Esta transmissão causa a acumulação cultural. 260 Nas palavras de Laraia: “toda experiência de um indivíduo é transmitida aos demais, criando assim um interminável processo de acumulação” (Laraia, 2006, p.52). A acumulação é mais um ponto chave para relacionar a antropologia à memética, pois “acumulação de mutações” é, como vimos, uma das definições de evolução. Sem a capacidade de acumular a cultura que lhe é transmitida, para depois transmitir a cultura que foi acumulada, dificilmente poderíamos falar em mudança cultural. Um traço, complexo ou padrão cultural que não é acumulado junto com os outros simplesmente não pode ser considerado como fazendo parte da cultura de um povo. Ele seria realizado por aquele que o inventou e depois esquecido, pois não se uniria aos padrões já existentes. Tal acumulação nada mais é do que a retenção das características existentes e, sem ela, não pode haver nenhuma forma de evolução. Para manter o exemplo já dado anteriormente por Marconi e Presotto sobre o matrimônio, se por falta de arroz alguém resolve jogar feijão nos noivos duas coisas podem acontecer: ou este novo traço cultural será unido aos demais de modo que passará a ser transmitido como parte do complexo do casamento, ou simplesmente será esquecido. Para haver evolução cultural tem que haver acumulação. Exatamente o mesmo se poderia dizer da memética e da evolução biológica. Mas a acumulação não é o único fator importante. Para se falar em evolução, no sentido darwinista do termo, é também necessária uma seleção que só existe se houver competição. Nas palavras de Laraia: A participação do indivíduo em sua cultura é sempre limitada; nenhuma pessoa é capaz de participar de todos os elementos da cultura. Este fato é tão verdadeiro nas sociedades complexas com um alto grau de especialização, quanto nas simples, onde a especialização refere-se apenas às determinadas pelas diferenças de sexo e idade (Laraia, 2006, p.80. & cf. Marconi & Presotto, 2006, p.38). O fato de que há um número limitado de indivíduos com uma capacidade limitada de participação na cultura significa que alguma forma de processo seletivo deve estar ocorrendo. A seguinte citação é bastante esclarecedora sobre este tema: Eliminação Seletiva. Consiste na competição pela sobrevivência feita pelo elemento novo. Quando um traço cultural ainda se revela mais compensador do que 261 suas alternativas, ele perdura; mas quando ele deixa de satisfazer às necessidades do grupo, cai no desuso e desaparece, numa espécie de processo seletivo (Marconi & Presotto, 2006, p.44). Tal citação poderia muito bem pertencer a um livro de memética, mas foi escrita por dois antropólogos. É verdade que eles muito provavelmente estão falando metaforicamente, mas a memética vem justamente para mostrar que isso é muito mais do que uma simples metáfora, é uma nova metodologia para o estudo da cultura. Dado o que foi dito na citação anterior a esta, tal competição e seleção é um processo necessário, então não teríamos motivo para tratá-la simplesmente como uma competição metafórica. Nesta última citação de Marconi e Presotto é possível antever também o que faria o papel de agente selecionador: segundo eles é o fato de que um determinado traço é mais “compensador” ou “satisfaz melhor as necessidade de um grupo”. Vemos que quem faz o papel selecionador é justamente o que poderia ser chamado de o ambiente da cultura, ou seja, não só os seres humanos considerados de maneira biológica e psicológica, como também os outros traços culturais. Um novo traço só será aceito se ele for “compensador e satisfatório”, mas quem decide se este é o caso? Ser compensador e satisfatório só faz sentido mediante um critério e tal critério só poderia ser dado pelo aparato biológico e psicológico dos seres humanos, assim como pela adequação aos outros traços já existentes. Assim, por exemplo, uma sinfonia para piano só será parte da cultura de um povo se este a apreciar de alguma maneira, mas esta apreciação só poderá ser feita se for biologicamente possível para o ser humano. Uma música que não pode ser tocada devido a sua complexidade física, ou não é apreciada, não se tornará parte da cultura. Ou seja, será negativamente selecionada. Para ter competição entre traços culturais é preciso que existam diferentes traços. Sem variabilidade não há competição, seleção, ou evolução, seja ela cultural ou biológica. A variabilidade da natureza e da cultura é uma constatação antiga e só tomou o papel que tem hoje depois de Boas na antropologia e Darwin na biologia. Foram eles que ressaltaram a importância da variabilidade. No que diz respeito à biologia, tal variabilidade é fruto principalmente da mutação e da deriva genética. No que diz respeito à cultura podemos dizer que: Cada novo traço cultural nada mais é do que o desenvolvimento de elementos culturais existentes anteriormente. Mesmo que pareçam totalmente novas, as 262 invenções são compostas de velhos elementos, como os sindicatos, cuja origem se encontra na organização dos trabalhadores por ofícios. Sociedades indígenas isoladas têm um ritmo de mudança menos acelerado do que o de uma sociedade complexa, atingida por sucessivas inovações tecnológicas (Marconi & Presotto, 2006, p.43). O mesmo se dá na biologia, novas adaptações se fazem sobre as antigas. É, então, uma questão se tal variação é volitiva ou não volitiva. Como já vimos ao tratar da teoria de Dennett no terceiro capítulo (seção 3.2), esta questão deve ser tratada pelas ciências cognitivas que devem estudar, dentre outros temas, o que é a criatividade e como se dá a escolha racional (seção 10.10). Caso a escolha se dê de modo racional, ou seja, após uma análise do ambiente se crie por vontade própria uma solução, então o processo será mais semelhante ao lamarckismo. Caso não seja volitiva, se dê através de uma espécie de acaso, sendo que a própria criatividade humana pode ser um tipo de acaso, então será perfeitamente darwinista. Vimos então que podemos encontrar dentro da própria antropologia tradicional praticamente todos os elementos que precisamos para fazer uma análise memética da cultura. Com isso de maneira nenhuma está se propondo que antropologia e memética sejam a mesma coisa. A questão é simplesmente que existe sim um terreno comum onde ambas se encontram e onde um diálogo é possível. 5.4 Paleontologia: o nascimento do homem e do meme Até o momento tratamos a relação entre a antropologia cultural e a memética, mas esta relação também pode se dar entre a antropologia física, particularmente a paleontologia, e a memética, pois o estudo da evolução do homem nos indica que a evolução cultural pode ter tido um papel fundamental. Neste caso seria mais do que uma evolução simultânea entre cultura e a biologia, teríamos a cultura, e principalmente a linguagem, não só como caractere fundamental do ser humano, mas mais importante ainda: a necessidade de cultura 263 e da linguagem teria criado a pressão evolutiva que impulsionou o desenvolvimento do cérebro humano e o transformou no que é hoje (seção 4.9). Infelizmente estudos paleontológicos e antropológicos não podem resolver definitivamente esta questão, só podem nos dar indícios de que houve uma forte evolução cultural e o surgimento da linguagem ao mesmo tempo em que ocorria um rápido crescimento da capacidade craniana. Veremos no sétimo capítulo que parte deste aumento provavelmente se deve ao crescimento do sistema espelho, responsável por nossa habilidade de imitar. No entanto, é possível conjecturar que o crescimento do cérebro tem um alto custo evolutivo. Há um grande custo energético, pois um órgão com tamanha complexidade precisa de cerca de 22 vezes mais energia do que a mesma massa de tecido muscular para funcionar apropriadamente (cf. Mithen, 2002, p.21 e p.136). Ele chega a usar 16% do nosso metabolismo basal, enquanto a média dos mamíferos é somente 3% (cf. Richerson & Boyd, 2006, p.135). É um custo energético surpreendentemente alto. Ainda há um custo social, pois dar a luz a um bebê com uma cabeça muito grande é perigoso. Para resolver o problema do parto difícil, o ser humano nasce com um cérebro pequeno que crescerá bastante com o tempo. Isto exige um longo tempo de educação até que o indivíduo possa se virar sozinho. Ou seja, a criança humana deverá ser cuidada por vários anos. Nas palavras de Mithen: a prole dos humanos modernos mostra um tamanho de cérebro não maior que o de um chimpanzé recém-nascido – em torno de 350 cm³. No entanto, ao contrário do que ocorre com os chimpanzés, o cérebro humano continua aumentando na mesma velocidade do crescimento fetal, imediatamente após o nascimento. Aos quatro anos de idade, ele triplicou, quando a maturidade é atingida, corresponde a aproximadamente 1.400 cm³, ou seja, quatro vezes seu tamanho logo depois do parto. O chimpanzé, por sua vez, apresenta um discreto aumento cerebral pósnascimento, chegando a atingir um volume de 450cm³ (Mithen, 2002, p.314). Todas estas desvantagens em ter um cérebro grande só podem ter sido superadas por uma vantagem ainda maior, e todas as indicações são justamente que esta vantagem é a nossa habilidade de aprender e de comunicação. Nas palavras de Laraia: A cultura desenvolveu-se, pois, simultaneamente com o próprio equipamento biológico e é, por isso mesmo, compreendida como umas das características da espécie, ao lado do bipedismo e de um adequado volume cerebral (Laraia, 2006, p.58). 264 Esta simultaneidade deverá ser futuramente explicada, pois ela tanto pode indicar uma co-evolução, onde a mudança de uma causa uma mudança na outra e vice-versa; como uma evolução dirigida, onde a mudança em um causa uma pressão seletiva para a mudança no outro, mas não vice-versa; ou mesmo uma simples simultaneidade, onde as duas mudanças ocorrem de maneira largamente independente. A resposta a este tipo de questão provavelmente virá de pesquisas antropogenéticas como a de Cavalli-Sforza (seção 4.9), mas basta para o que se segue apresentar a correlação durante a evolução humana entre o aumento do volume cerebral e o desenvolvimento da cultura. Antes de entrarmos no Homo, tínhamos os chamados Australophitecus. Estes viveram na África há aproximadamente 5 a 3 milhões de anos. Foram a primeira linhagem que nos separou dos chimpanzés. Destes, os mais conhecidos são o Australophitecus africanus, que media cerca de 1,50 e tinha uma capacidade craniana de cerca de 400 a 550 cm³, um pouco maior do que de um chimpanzé, e o Australophitecus robustus, que era parecido com o africanus, embora bem mais pesado. Já tinham uma locomoção bípede, postura ereta e capacidade para utilizar alguns instrumentos. Talvez tenha caçado coletivamente, dado que chimpanzés ainda fazem isso, o que implica em alguma forma rudimentar de comunicação, também observada em chimpanzés. O primeiro da linhagem Homo foi o Homo habilis, mas existe uma discussão, na qual não entraremos aqui, se ele é de fato um Homo ou um Australophitecus. Além da discussão de se só existia o Homo habilis, ou se além dele também estavam presentes o Homo rudolfensis e o Homo ergaster. Para além destas discussões de classificação e nomenclatura, o mais importante é que ele também viveu na África há aproximadamente 2,5 a 1,5 milhão de anos e já tinha um volume craniano consideravelmente maior de 650 a 700 cm³. Seu nome vem, é claro, do fato de ele ser habilidoso na construção de instrumentos. Eram instrumentos simples, principalmente de pedra, mas já eram trabalhados e encontrados em grande quantidade, principalmente na Garganta de Olduvai, de onde surge o nome para os utensílios olduvaienses. Eram normalmente pedras lascadas de maneira bem simples, tendo como principal instrumento o machado de mão. Além disso, “o Homo habilis talvez já conseguisse falar alguma coisa há 2 milhões de anos” (Cavalli-Sforza, 2003, p.228). Tudo indica que se houve um 265 momento onde a cultura passou a criar uma pressão seletiva para cérebros maiores e mais capazes este momento foi o Homo habilis. Seguido dele temos o Homo erectus. Antes de entrar nas características anatômicas e culturais dele é importante fazer uma ressalva do que de fato quer dizer “seguido”. Quando construímos a cadeia evolutiva do ser humano a tendência natural é construir uma linha reta de melhoramento que vai do Australophitecus, passa pelo Homo habilis, depois, erectus e chega no sapiens, um substituindo o outro na escala evolutiva. Esta linha mostraria um desenvolvimento e um melhoramento progressivo de nossas habilidades. No entanto, o mais provável é que esta história, contada desta maneira, esteja errada. O Homo erectus não necessariamente foi um sucessor direto do Homo habilis. E o mesmo vale para a relação entre este e o Homo sapiens. Ao contrário de uma progressão linear existem indicações de uma progressão arbustiva com várias espécies de Homo, muitas vezes convivendo no mesmo tempo e até no mesmo espaço (cf. Gould, 2003, p.256). Alguns cientistas, por exemplo, acreditam que o Homo erectus surgiu do Australophitecus africanus e não do Homo habilis. Além disso, há muita discussão sobre as datas exatas, os locais, as migrações e muitos outros dados. A aparência de uma linhagem progressiva, linear e bem conhecida não é nada mais do que isso, uma aparência (cf. Gould, 2003, p.253). No entanto, o que interessa neste momento preliminar de estudo não é exatamente como organizar estas linhagens entre si, no tempo e no espaço, mas sim o fato de que Australophitecus, habilis, erectus e sapiens são marcos históricos na evolução do homem e são razoavelmente bem estudados em comparação com as outras espécies de Homo. O Homo erectus, já perfeitamente bípede e ereto, daí o seu nome, foi provavelmente a primeira espécie de Homo a sair da África. Sua origem está em algum lugar entre 2 e 1 milhão de anos e pode ter vivido até 100 mil anos atrás. Deste modo, é bem possível que tenha coexistido não só com outras linhagens de Homo como também com os Australophitecus. Sua capacidade craniana era bastante variável podendo ir de 630 até 1.000 cm³ na média, podendo chegar até mesmo a 1.200 cm³. Ele já fabricava uma gama de diferentes ferramentas de pedra em grandes quantidades. “É provável que o aumento do cérebro esteja associado, pelo menos em parte, ao aperfeiçoamento de utensílios” (Cavalli-Sforza & 266 Cavalli-Sforza, 2002, p.75). Deve também ter sido capaz de dominar o fogo. Caçava animais de grande porte se valendo da cooperação e do uso de armadilhas. O Homo sapiens pode ter se originado do erectus ou do Homo heidelbergensis, que às vezes é considerado uma sub-espécie do erectus. Surge entre 500 e 300 mil anos atrás e tem uma capacidade craniana já igual ao do ser humano moderno de aproximadamente 1.400 cm³. Por volta de 250 mil anos uma nova técnica de fabricar instrumentos, conhecida como Método de Levallois, surge, sendo capaz de produzir instrumentos muito mais trabalhados. Dos Homo sapiens um dos mais destacados, além, é claro, do Homo sapiens sapiens (chamado também de Cro-Magnon) que é a nossa sub-espécie e que surge há cerca de 50 a 100 mil anos, é o Homo neanderthalensis. Este é tipicamente encontrado na Europa e por lá habitava até aproximadamente 30 mil anos. Isto significa que o sapiens sapiens e o neanderthalensis devem ter se encontrado, sendo que uma discussão bastante atual é se o desaparecimento do neanderthalensis se deu por causa do sapiens, seja por competição por alimentos, seja por luta entre espécies, ou se o que aconteceu na verdade é que intercruzamentos uniram as duas espécies. Curiosamente o neanderthalensis pode ter tido uma capacidade encefálica ainda maior do que a nossa com uma média de 1.500 cm³! Vivia em cavernas e utilizava o fogo. “Aperfeiçoou as técnicas e os instrumentos. Além da pedra lascada, fez uso intensivo do osso e da madeira. Utilizou conchas, dentes e chifres.” (Marconi & Presotto, 2006, p.64). Era capaz de fazer machados, martelos, lanças, um tipo de cola, instrumentos musicais de ossos e foi o autor das primeiras sepulturas, tendo indicações de práticas ritualísticas. Já o Homo sapiens sapiens era indistinguível do ser humano moderno. Tinha uma grande habilidade na fabricação de instrumentos tendo sido conhecido por seus propulsores que eram capazes de atirar lanças a grandes distâncias e com muita força54. Ficou também conhecido pelo grande desenvolvimento da arte tanto em pinturas como em esculturas. Só depois de cerca de 40 mil anos de sua existência, há 30 ou 60 mil anos atrás, ele passou pelo que os antropólogos chamam de “explosão cultural” que define a passagem do Paleolítico médio ao 54 Tais propulsores podem ser vistos no filme “A Guerra do Fogo”. Este filme também mostra a coexistência entre diferentes espécies de homem. 267 superior (cf. Mithen, 2002, p.248). Desde então a biologia do Homo sapiens sapiens permaneceu a mesma, mas sua cultura se transformou na que temos hoje. Esta breve história do ser humano com certeza apresenta falhas e grandes lacunas, mas é o suficiente para mostrar como o desenvolvimento da cultura se deu sempre ao lado do desenvolvimento da caixa craniana. Como sabemos que é o cérebro o responsável por grande parte do nosso comportamento, seria no mínimo ingênuo considerar que não existe aí uma relação que se deu, literalmente, por milhões de anos. Tudo indica que a habilidade do homem de criar e transmitir cultura se mostrou biologicamente benéfica, pois o protegia de predadores, auxiliava na caça e na cooperação, que foi selecionada impulsionando um crescimento vertiginoso da capacidade craniana que saiu de uma média de 500 cm³ para uma média de 1.400 cm³, ou seja, quase o triplo. Mithen chega a falar de dois “surtos de aumento”: Podemos observar que ocorreram dois grandes surtos de aumento, um entre dois e um milhão e meio de anos atrás, que parece estar relacionado com o aparecimento do Homo habilis, e outro menos nítido, entre quinhentos mil e duzentos mil anos atrás. Os arqueólogos especulativamente associaram o primeiro ao desenvolvimento da manufatura de utensílios, mas não conseguem detectar nenhuma mudança marcante nos registros arqueológicos que se correlacione com o segundo pico de rápida expansão cerebral. Nossos ancestrais continuaram a viver no mesmo estilo básico de caçadores-coletores, com a mesma série limitada de ferramenta de pedra e de madeira (Mithen, 2002, p.20). É no mínimo curioso que existam registros arqueológicos de um surto que ocorreu há 2 milhões de anos, mas não exista de um outro bem mais recente. Uma possível resolução deste problema seria justamente propor que o que ocasionou o segundo surto não foi uma mudança propriamente material, como no primeiro caso, mas uma mudança cultural que não deixaria registros. Duas possíveis explicações, que não são excludentes, seriam um aprimoramento na linguagem e/ou nas relações sociais. Blackmore também concorda que este segundo surto pode ter significado o surgimento da linguagem moderna (cf. Blackmore, 1999, p.91). Hoje existem claros indícios de que o tamanho do cérebro em primatas está fortemente associado com as habilidades sociais, quanto maior a complexidade social, maior o cérebro (cf. Mithen, 2002, p.166). Uma análise memética da relação entre memes e aumento do cérebro foi dada por Susan Blackmore. Ela nos diz que em tal ambiente primitivo é possível que a habilidade de imitar tenha sido selecionada porque os melhores imitadores 268 seriam mais capazes de se proteger e de caçar. Uma vez existindo uma pressão seletiva para melhores imitadores é possível também que um processo conhecido como seleção sexual tenha ocorrido. Neste caso, assim como fêmeas de pavão buscam procriar com pavões que tenham a maior cauda somente porque assim seus descendentes terão também caudas grandes e, deste modo, serão escolhidos por outras fêmeas e assim por diante, os seres humanos podem ter procurado procriar com os melhores imitadores, causando, assim, uma forte pressão seletiva para a habilidade de imitar. Nas palavras de Blackmore: depois que a imitação evolui, aparece um segundo replicador que se espalha muito mais rápido que o primeiro. Já que as habilidades que são inicialmente copiadas são biologicamente úteis, será vantajoso, para os indivíduos, tanto copiar os imitadores quanto acasalar com eles. Essa conjunção significa que os memes de sucesso começam a ditar quais genes obtém maior sucesso: os genes responsáveis por ajudar a difusão daqueles memes (Blackmore, 1999, p.99. Minha tradução). No entanto, ela lembra que aceitar que houve tal seleção sexual não é necessário para compreender a explicação memética do desenvolvimento do cérebro humano. É claro que não há provas concretas desta história, assim como também não há provas que a desmintam. Várias outras explicações para o aumento do cérebro foram sugeridas (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.235). Ficamos, então, com uma possibilidade de como o cérebro humano pode ter se desenvolvido visando justamente a nossa capacidade de imitar. Aqui finalmente teríamos a relação entre a antropologia física e a memética que é a base, como vimos na seção 4.9, dos estudos da co-evolução, pois é possível que o cérebro tenha que se desenvolver cada vez mais justamente para dar conta de imitar comportamentos mais complexos que dão origem a instrumentos muito mais eficientes. Ou seja, a evolução da cultura teria ocasionado a pressão seletiva para o aumento do cérebro o que fez com que nos tornássemos o que somos hoje. É por isso que Dennett diz “que as mentes humanas são, em grau notável, as criações de memes” (Dennett, 1991, p.207) e defende que “ser” humano é uma criação dos memes (seção 3.2). 6 Todos Juntos Somos Fortes Uma análise apressada da memética a considera como uma ciência ainda por fazer, mas uma análise memética das ciências humanas pode mostrar que isso não é necessariamente verdade. A memética pode ser uma ciência com uma história bem maior do que a esperada, sendo anterior ao próprio darwinismo! O objeto de estudo da memética, a cultura em todas as suas facetas, já vem sendo objeto de estudo de outras áreas há séculos. A memética propõe uma nova forma de abordar tal objeto, no entanto, isso não significa ignorar o que já foi feito no passado. Um olhar mais cauteloso é capaz de observar que muitas outras áreas desenvolveram estudos que podem interessar à memética e alguns que podem, até mesmo, ser reclassificados como estudos propriamente meméticos. Se os defensores da memética se detiverem nestas análises antes mesmo de tentar desenvolver novas abordagens descobrirão que a memética é, de certa maneira, uma ciência que já existe e que está em pleno funcionamento. Como nos indicou Dobhzansky, o que Darwin fez foi em grande parte juntar as diferentes áreas da biologia dentro de uma compreensão unificada. Mais do que uma simples teoria, a evolução por seleção natural seria um tipo de “cola conceitual” capaz de unir diversas áreas. Embora estas fossem obviamente relacionadas, pois todas tratavam do mundo vivo de um modo ou de outro, não eram consideradas todas como fazendo parte de um mesmo arcabouço teórico e lhes faltava até mesmo os conceitos necessários para um diálogo entre elas. Darwin mostrou que no fundo todas eram faces diferentes de um mesmo problema. Com isso ele foi capaz de unir a biologia em um todo coeso e conceitualmente coerente. Por isso podemos dizer que se “nada na biologia faz sentido a não ser à luz da evolução”, então Darwin, de certa maneira, criou o que chamamos hoje de biologia. Um dos grandes benefícios da memética é justamente o fato de que ela talvez possa fazer o mesmo para as diversas abordagens da cultura que hoje se encontram separadas, sendo consideradas ciências distintas. Antropologia, lingüística, sociologia, história, economia, marketing, design, pedagogia, 270 publicidade e propaganda são só alguns exemplos de áreas que vêm, em alguns casos, há séculos trabalhando o desenvolvimento e a transmissão da cultura e devem todas ser respeitadas em sua individualidade, mas que podem ser compreendidas dentro de um mesmo conjunto conceitual originário da memética. Esta deve encontrar a unidade dentro da multiplicidade, mostrando, por exemplo, que dentro do aparato conceitual memético aquilo que um publicitário faz está diretamente relacionado ao que um antropólogo e um economista fazem. Seria impossível e contraproducente tratar de maneira profunda e completa todas as áreas a este respeito. Isto será um trabalho de centenas de pesquisadores durante décadas. Com certeza um dos primeiros trabalhos que a memética deveria fazer é justamente este, a saber, rever tudo o que já foi estudado sobre cultura e fazer uma análise memética, identificando as semelhanças e as diferenças. A memética não deve ignorar os estudos já feitos pelas ciências humanas, muito pelo contrário, deve respeitá-los e uni-los dentro de um mesmo conjunto de conceitos. Foi o que Darwin fez com a biologia e o que lhe garantiu a base empírica de sua teoria, dando-lhe respeitabilidade. É justamente esta habilidade da memética de unir áreas díspares a sua maior força e um dos principais motivos pelo qual deve-se tentar desenvolver tal ciência. De outro modo poder-se-ia facilmente criticar esta empreitada mostrando a sua inutilidade, ou seja, mostrando que se já temos diversas ciências capazes de dar conta da diversidade de estudos sobre a cultura, qual seria o motivo para incluir a memética neste grupo? Desenvolver a memética seria uma escolha pela redundância. Mas isso não acontece justamente porque a memética tem a capacidade de unir estas diversas áreas que, do contrário, manteriam a sua disparidade e não seriam capazes de descobrir o quão poderosa pode ser uma abordagem conjunta da cultura. 271 6.1 Linguística Histórica A linguagem terá destaque porque além de ser uma das características mais propriamente humana, ela ainda é um dos principais meios por onde a cultura é transmitida, permitindo que ela pule gerações. Um livro, por exemplo, pode ficar sumido durante séculos, mas ter grande influência na cultura assim que reencontrado. Não se sabe ao certo qual foi a origem da linguagem e como ela se deu. Como algo tão imaterial não deixa rastros fósseis, podemos apenas trabalhar com a adequação de hipóteses aos dados que temos. Como veremos no nono capítulo, sobre filosofia da ciência, a união de várias hipóteses provindas de áreas diferentes, trabalhando com dados diferentes e utilizando métodos diferentes, é a melhor abordagem científica que podemos ter neste tipo de estudo (seção 9.7). No caso da linguagem, vimos no capítulo anterior que há indicações paleontológicas de seu surgimento quando os primeiros humanos começaram a caçar em conjunto. Vimos também que tais indicações são confirmadas por estudos de neuroantropologia referentes ao desenvolvimento do cérebro. Veremos brevemente, no próximo capítulo, que estes estudos indicam uma possível origem da linguagem em nossas habilidades gestuais. Estudos também são feitos sobre a origem do nosso aparelho fonador. Embora saber exatamente como a linguagem surgiu pudesse fortalecer ou enfraquecer o assunto aqui tratado, teremos que deixar de lado esta questão e assumir que, durante a evolução do homem, se deu também a evolução da linguagem. Para o que será tratado aqui, mais importante do que saber como a linguagem surgiu será saber como ela se desenvolve, evolui. Não tentaremos desenvolver uma história da lingüística e nem mesmo uma abordagem inicial de suas várias áreas (psicolingüística, sociolingüística, pragmática, filologia, dialetologia, estilística, fonologia etc.), embora todas elas devam ser estudadas por futuros cientistas meméticos trataremos aqui somente o que Saussure chamou de lingüística diacrônica, em oposição à sincrônica, mas que é mais conhecida como lingüística histórica ou glossologia. Esta área foi escolhida justamente por se assemelhar mais à memética, possibilitando, assim, uma primeira união das duas, que futuramente poderá se expandir para as outras áreas da lingüística. O intuito do que se segue é apenas apresentar certas 272 características da lingüística diacrônica e mostrar como elas são semelhantes, às vezes idênticas, ao que se espera da memética. Com isso esperamos não só aproximar estas duas áreas, mas mostrar que de certa maneira a memética já existe. A lingüística diacrônica surge da constatação de que existe um longo processo de mudança em todas as línguas existentes e de que durante este processo novas línguas surgem e outras perecem. Além disso, foram constatadas regularidades neste processo de mudança que permitem, então, um estudo de como ela se deu. Nas palavras de Weedwood: Línguas poderiam ser sistematicamente comparadas no tocante a seus sistemas fonéticos, estrutura gramatical e vocabulário, de modo a demonstrar que eram ‘genealogicamente’ aparentadas. Assim como o francês, o italiano, o português, o romeno, o espanhol e as outras línguas românicas tinham se originado do latim, também o latim, o grego e o sânscrito, bem como as línguas célticas, germânicas e eslavas e várias ouras línguas da Europa e da Ásia tinham se originado de alguma língua mais antiga, à qual é costume aplicar o nome de indo-europeu ou protoindo-europeu (Weedwood, 2002, p.105). Feita a comparação sistemática entre as diversas línguas, é possível classificá-las por grau de parentesco e colocá-las dentro de uma árvore genealógica semelhante às usadas na biologia. A primeira constatação para entendermos a mudança lingüística é exatamente a mesma constatação que Darwin fez sobre os seres vivos e que permitiu o surgimento do pensamento populacional em oposição ao essencialismo, a saber, a constatação da variabilidade interna das línguas. A variabilidade externa é bastante óbvia, línguas diferentes são diferentes. Mas a variabilidade interna precisa de um cuidado maior para ser compreendida, pois de outro modo qualquer variação interna será considerada como somente um erro particular. O mesmo problema existia na biologia quando a variabilidade dentro de uma espécie era só considerada como um pequeno erro, ou desvio sem importância, e só a variabilidade entre as espécies era relevante (seção 1.1 e 9.3). Mas tanto para a evolução das espécies, quanto para a evolução das línguas, é justamente esta variabilidade interna que importa, sendo que a diferença entre as espécies, e entre as línguas, é na verdade o acúmulo destas pequenas diferenças. Nas palavras de Faraco: 273 As pesquisa dialetológicas (que se iniciaram por volta do fim do século XIX) e a sociolingüística (que se estruturaram a partir da década de 1960) têm demonstrado que não existe língua homogênea: toda e qualquer língua é um conjunto heterogêneo de variedades. Nesse sentido, quando usamos rótulos como português, árabe, japonês, chinês, turco para designar realidades lingüísticas, não fazemos referência a uma realidade homogênea ou a um padrão único de língua, mas sempre a um conjunto de variedades, podendo algumas ser até ininteligíveis entre si, como, por exemplo, o chinês pequinês e o chinês cantonês; ou o italiano da Calábria (sul da península itálica) e o italiano de Bérgamo (norte) (Faraco, 2005, p.31). Uma língua, que foi chamada na citação anterior de rótulo, não é um agrupamento homogêneo e sim um conjunto heterogêneo ligado por uma semelhança estatística. As semelhanças e diferenças dentro de uma mesma língua podem variar constantemente, sendo possível que de uma língua surjam várias outras, mas também sendo possível que diferenças sejam amenizadas, como vemos que está acontecendo neste exato momento com a reforma ortográfica do português. Normalmente as diferenças aumentarão ou diminuirão dependendo da freqüência do contato entre as diversas formas de uma língua. Exatamente como acontece entre as sub-espécies, ou espécies geográficas, de uma espécie que podem diminuir suas diferenças por intercruzamentos. Hoje é comum se falar sobre três fontes diferentes de variação: variação diatópica (geográfica), variação diastrática (social), variação diafásica (estilística) (cf. Faraco, 2005, p.178 - 184). Mas para o que se segue a simples constatação da existência da variação já é o suficiente. Uma outra forte semelhança entre as línguas e o reino natural é que estas diferenças se dão de uma maneira gradual. Não há um limite geográfico claro onde possamos separar dois dialetos da mesma língua. Um estudo que demonstrou isso foi feito por Georg Wenker em 1876. Ele enviou uma lista de sentenças em Alemão padrão para vários professores de várias localidades de Alemanha pedindo para que fosse colocado dentro do dialeto local. Colocaram-se as respostas em mapas, buscando-se demarcar a fronteira entre o alto e o baixo alemão. O resultado, porém, foi diferente do esperado: constatou-se que não havia uma fronteira nítida entre os dois grupos dialetais, mas áreas de transição em que o consonantismo do alto alemão afetava apenas segmentos do léxico, isto é, no mesmo dialeto algumas palavras seguiam o padrão conservador do Norte, e outras, o padrão inovador do Sul (Faraco, 2005, p.188). Vemos, então, uma outra característica da mudança lingüística: ela não se dá aos saltos. A transição entre dois dialetos se dá por partes e aos poucos e não de 274 maneira abrupta e radical. Tal fato garante, em um primeiro momento, a inteligibilidade dos dialetos que pode, com o tempo, ou diminuir até que eles sejam tão ininteligíveis um para outro que sejam considerados línguas distintas, ou também aumentar, reunindo os dois dialetos, ou simplesmente permanecer como estão. Pode acontecer também, é claro, que um dialeto domine o outro de modo a suplantá-lo a ponto do outro dialeto desaparecer. Mas o mais interessante no momento é que as mudanças lingüísticas se dão de maneira lenta e gradual passando por uma série de fases intermediárias, processo em tudo semelhante ao processo evolutivo na biologia: O que é perceptível por esses estudos é que, em geral, determinada mutação avança por pequenos incrementos e por meio da seleção gradual entre membros de um conjunto de variantes coexistentes, processo que costuma durar relativamente longos períodos de tempo (cf Labov, 1972; Labov, Yaeger & Steiner, 1972, Lass, 1978, entre outros, in: Faraco, 2005, p.88) Tal citação poderia muito bem estar em qualquer livro sobre evolução das espécies sem a necessidade de qualquer modificação. Deste modo, temos dentro da lingüística a própria base do pensamento populacional que, por sua vez, é a própria base da teoria da evolução por seleção natural: o lento e contínuo processo de mudança que transforma variações internas em espécies (tipos): O que era nesse longínquo ponto do tempo apenas um conjunto de variedades dialetais é hoje um emaranhado universo de línguas raramente compreensíveis entre si, resultado de milênios e milênios de ininterruptas mudanças e de contínua diferenciação (Faraco, 2005, p.46). Curiosamente podemos ver que no lugar onde estaria, segundo o conceito biológico de espécie, a capacidade de intercruzamento como o critério separador das espécies, está a mútua compreensão entre as diversas línguas. A falta da mútua compreensão é justamente o que impede uma língua de se unir a outra e, deste modo, é o que as mantêm distintas. Seria na biologia o chamado “mecanismo de isolamento”. Nas palavras de Cavalli-Sforza: Vale a pena notar que a unidade biológica espécie corresponde à unidade linguagem: ambas são grupos de indivíduos capazes de comunicar-se, isto é, de trocar informação. Membros de uma mesma espécie podem cruzar entre si e, assim, trocar informação genética, bem como indivíduos que falam a mesma língua comunicam-se trocando informação verbal (Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p.235). 275 Uma crítica poderia surgir aqui, talvez a crítica mais comum contra a memética provinda tanto da lingüística quanto da antropologia: é o fato de que mesmo línguas que já divergiram podem voltar a se unir ou parcialmente em um processo chamado de transculturação, ou totalmente em um processo chamado de aculturação (cf. Marconi & Presotto, 2006, p.46). Um exemplo que faz parte do nosso cotidiano são as palavras em inglês que vieram para o português principalmente com a informatização. Nas palavras do pai da antropologia moderna: Há uma diferença fundamental entre dados biológicos e culturais que torna impossível transferir os métodos de uma ciência para outra. As formas animais desenvolvem-se em direções divergentes, e uma mistura de espécies que uma vez se tornaram distintas é desprezível no conjunto da história de seu desenvolvimento. O mesmo não acontece no domínio da cultura. Pensamentos, instituições e atividades humanas podem se espalhar de uma unidade social para outra. Assim que dois grupos entram em contato estreito, seus traços culturais disseminam-se de um para o outro (Boas, in: Castro, 2006, p.98). Embora este processo pareça realmente ser muito mais comum na cultura do que no mundo vivo, é preciso levar certos aspectos em consideração antes de tratar isso como uma crítica arrasadora. Em primeiro lugar há a questão da relevância estatística. É preciso analisar se a transculturação e a aculturação são eventos estatisticamente relevantes, pois mesmo se a memética não for capaz de dar conta de tais eventos, não se pode impedir o surgimento de uma nova ciência por causa de algumas exceções. De outro modo é provável que nenhuma nova ciência ou nova abordagem científica seja capaz de surgir! Veremos melhor o papel das exceções na ciência no nono capítulo (seção 9.2). Devemos lembrar que, embora adotar palavras de uma língua estrangeira seja comum, a fusão de duas línguas não é. Talvez algumas pessoas bilíngües possam falar estranhamente duas línguas juntas, mas um punhado de pessoas habilidosas não pode ser classificado como uma língua. Mas nada impede que duas línguas, entendidas como dois memeplexos, habitem o mesmo cérebro e compitam pelo controle do comportamento. Há também a difícil questão de saber o quão deve ser parecida a evolução cultural e a evolução biológica para que se possa falar em memética. Algo que pode nos ajudar nesta questão é perguntar se esta característica que a cultura tem, mas que falta na biologia, não poderia ser também uma boa adaptação biológica, 276 ou seja, se fosse descoberto que duas espécies distintas se uniram total ou parcialmente no passado, teríamos refutado a evolução por seleção natural darwinista? Não parece haver motivo para achar que a evolução darwinista seria refutada por tal fato. Mas se consideramos que tal possível evento biológico não sai da estrutura conceitual maior que é o darwinismo, então não temos motivo para acreditar que o fato de isso acontecer na cultura significa que ela foge do darwinismo. Questionar se essas idiossincrasias da cultura sairiam do darwinismo se fossem encontradas na biologia é uma boa regra geral para se tratar este tipo de crítica e pode ser aplicada a inúmeros casos. Além disso, como já mostramos exaustivamente na seção 1.11, tais uniões entre diferentes espécies ocorreram e ocorrem na história da vida. Na verdade, ocorrem uniões até mesmo entre diferentes reinos. E a união parcial, que poderia ser chamada de “transculturação biológica” chega a ser bastante comum em bactérias. Temos ainda o caso das mitocôndrias que poderiamos chamar de “aculturação biológica”. Um ponto interessante a se observar é que esta crítica tão comum feita contra a analogia evolução cultural e evolução biológica pode se mostrar, na verdade, como mais uma entre as muitas instigantes semelhanças entre estes dois processos. O fato é que os processos de transculturação e de aculturação normalmente acontecem, tanto na biologia quanto na cultura, quando uma estrutura maior engloba uma menor. Sendo que os termos “maior” e “menor” não têm nenhum julgamento de valor e, do mesmo modo, poderiam ser usados os termos “mais especializada” e “menos especializada”. Isso pode acontecer também com duas culturas igualmente “pouco” especializadas que entram em contato. Mas muito dificilmente acontece entre duas culturas “muito” especializadas ou uma cultura menor englobando uma maior. Tais relações entre as culturas são encontradas também na história da biologia. O mais comum é que um ser vivo mais complexo englobe um menos complexo, ou dois seres pouco complexos se unam. Mas é raro que duas espécies complexas se unam ou que uma espécie mais simples englobe uma mais complexa55. Vemos, então, que justamente onde a analogia parecia falhar encontramos uma relação ainda mais profunda. 55 Uma definição preliminar do que seria ser mais “simples” e “complexo” foi dada por Dawkins (1998): se descrevermos dois indivíduos típicos de duas espécies diferentes no mesmo nível de descrição, aquele que tiver a maior descrição será o mais complexo. 277 Feita esta digressão, podemos voltar à análise da mudança lingüística. Esta mudança pode ocorrer em absolutamente todos os aspectos da língua. Podem ocorrer mudanças morfológicas, fonético-fonológicas, sintáticas, semânticas, lexicais, pragmáticas, sendo que em alguns a mudança será mais lenta. A escrita, por exemplo, tem um ritmo de mudança mais lento do que a fala. Vários motivos podem ser apontados para isso, entre eles está o fato de que a escrita é normalmente dominada por um grupo mais culto, onde “escrever corretamente” é valorizado56. Além disso, o fato de que o texto escrito tem uma permanência maior do que o falado permite com que a “forma correta” se mantenha por mais tempo. O fato de que a mudança da língua falada seja mais rápida do que a da escrita pode ser constatado por qualquer falante de língua portuguesa quando começa a aprender francês e logo observa que é muito mais fácil ler do que ouvir a língua francesa, pois na escrita ainda existem muitas semelhanças com o português que sumiram na fala. Apresentaremos aqui apenas alguns tipos de mudanças. Temos as mudanças fonético-fonológicas. Em uma mudança fonética são alterados apenas a pronúncia de certos segmentos. A mudança, por exemplo, do /l/ para o /w/ em alto, golpe, soldado. A grafia se manteve, mas a letra l agora tem som de u. Já a mudança fonológica altera-se o número de fonemas (unidade sonora distintiva) como, por exemplo, o desaparecimento de /ts/ e /dz/ do português medieval para o moderno. Tais mudanças podem se dar por um processo chamado de assimilação. Neste processo um som se torna semelhante ao som de seu vizinho. Na passagem do latim para o português, por exemplo, o ditongo /aw/, escrito au, se transformou, em grande parte das palavras, em /ow/, escrito ou. Auru, paucu e lauru se transformaram em ouro, pouco e louro, respectivamente (cf. Weedwood, 2002, p.110). Tal mudança ainda se aprofunda mais no português, sendo que /ow/ se transforma na fala em /o/, mas mantendo a grafia ou. Escrevemos ouro, mas falamos oro. Há também o processo de dissimilação, onde um som se torna diferente de seu som vizinho para que haja nítida distinção entre os dois. Por causa deste 56 Talvez por isso não consigamos nos livrar desta inutilidade que é a crase e o acento circunflexo no plural de “tem”, que permanecem na escrita, mas sem utilidade na fala. Só os indivíduos deste grupo são incapazes de entender uma frase em que estes acentos estejam faltando, deste modo, só para eles tais acentos são necessário. Mas infelizmente estão na mão deste grupo as mudanças oficiais do português. 278 processo, no Brasil o ditongo ei, como em queijo, é pronunciado por assimilação como /e/, já em Portugal é pronunciado por dissimilação com /ay/. Ou seja, falamos quejo enquanto eles falam quaijo. Um tipo de dissimilação é a haplologia, onde uma sílaba é eliminada por ser idêntica ou semelhante. Em português saudadoso virou saudoso, bondadoso virou bondoso, idolólatra virou idólatra e dedo-duro originou o verbo dedurar. Existem também mudanças morfológicas onde a estrutura interna da língua é modificada. Sufixos, como o –ulu- latino que designava um diminutivo, pode passar a fazer parte da raiz de uma palavra. A palavra artelho, por exemplo, não vem do latim artus, mas do diminutivo articulus (cf. Faraco, 2005, p.37). Outro exemplo muito conhecido é mudança do sistema de flexão de caso do latim que, nas línguas românicas, deixaram de existir, perdendo as terminações que marcavam as declinações, e passaram a ser marcados pela ordem das palavras e pelo advento do artigo definido. Dare lupu alimentum, por exemplo, se transforma em dar alimento ao lobo. Muito interessantes e bastante comuns são também as mudanças sintáticas. A mudança morfológica acima citada é também uma mudança sintática, pois muda a organização das sentenças. Podem surgir também novas distinções gramaticais. O pronome pessoal você surgiu da expressão lexical Vossa mercê. Tal processo é chamado de descoloração semântica e, neste caso, também está acontecendo uma redução fonética enquanto o você se transforma em cê. No interior do Brasil ainda é possível encontrar, junto com o cê, o voismicê. Vemos também que gradualmente a expressão a gente, vem se tornando um pronome equivalente ao nós (cf. Faraco, 2005, p.40). É interessante notar aqui o que foi dito anteriormente sobre o estudo feito por Wenker que em 1876 verificou a coexistência de diferentes formas no Alemão. O mesmo se dá no português do Brasil, pois qualquer falante hábil é capaz de utilizar e compreender ao mesmo tempo as duas formas a gente e nós e também você e cê. Inclusive é capaz de distinguir quando há necessidade de falar, na prática, da forma considerada mais correta. O modo como uma palavra deve ser usada na prática faz parte do que é chamado de pragmática, que também está sujeito a mudanças. O pronome pessoal você, por exemplo, passou também por uma mudança pragmática, já que a forma como ele é usado também mudou. O mesmo podemos observar no vous e no tu francês. 279 Há também mudanças semânticas, quando o significado de uma palavra muda. Tais mudanças deram origem ao estudo da etimologia. O verbo pensar, por exemplo, vem do latim pensare que significava “calcular o peso”, passando a significar “pesar as idéias”. Já veado, vem do latim venatu que significava qualquer caça morta (cf. Weedwood, 2002, p.115). Um exemplo bem conhecido é revolução que dizia respeito só ao movimento regular e cíclico dos corpos celestes, mas que foi ampliado para significar a destruição de uma ordem social velha e sua substituição por uma nova. Um outro exemplo bem interessante é rubrica que significava originalmente terra vermelha (rubro ainda significa vermelho), depois passou a significar tinta vermelha, depois significou título dos capítulos das leis escrito antigamente com tinta vermelha, posteriormente significou sinal ou marca, até chegar em assinatura abreviada, como é hoje (cf. Faraco, 2005, p.41). Por último, temos também mudanças lexicais, onde novas palavras surgem, seja internamente, seja por empréstimo externo. Além de todas estas mudanças, existem também aquelas na própria grafia das letras. Um exemplo bastante interessante é a invenção dos algarismos romanos. Normalmente eles são associados as letras do alfabeto (I, V, X, L, C, D, M), mas na verdade esta associação foi bastante tardia. Georges Ifrah, um dos grandes historiadores da matemática, nos diz: Os algarismos romanos (cuja normalização por identificação às letras da escrita latina monumental se fez, portanto, numa época tardia de sua história) nasceram na verdade centenas de anos – talvez mesmo milhares de anos – antes da civilização romana (Ifrah, 1998, p.188). Mais surpreendente ainda é que os algarismos iniciais (I, V, X), tanto dos romanos quanto dos etruscos, têm provavelmente uma origem extremamente antiga, na verdade, a mais antiga de todas, pois eles são remanescentes da prática do entalhe em madeira para se contar algo. Cada animal que entrava, por exemplo, se fazia um traço na madeira ( I ), quando cinco animais tinham entrado o quinto traço era diagonal (V), lembrando a relação entre os dedos e o dedão, e o décimo traço era marcado por dois traços diagonais se cruzando (X). Os traços diagonais eram feitos para facilitar a contagem, pois se o número de indivíduos fosse grande, seria contraproducente relacionar cada um com um traço individual e depois contar tudo de novo. Tais traços são uma das formas mais antigas de escrita conhecida, precedendo todos os alfabetos existentes. Fica claro, então, que 280 os números I, V e X não têm relação de origem nenhuma com as letras “i”, “v” e “x”. Nas figuras a seguir, tiradas do próprio livro de Ifrah, podemos ver o processo pelo qual se originou o algarismo para 50 (L), para 500 (D) e para 1.000 (M): Figura 1: história do algarismo romano para 50. Figura 2: história do algarismo romano para 500. Figura 3: história do algarismo romano para 1000. Um processo semelhante ao romano aconteceu na numeração árabe. Esta era uma numeração bem simples, também formada por traços individuais. Mas como era utilizado um pincel com tinta para grafar estes números o formato de seus algarismos também foi mudando de acordo com a necessidade de escrever um número sem levantar o pincel do papel, de modo que traços com significado bastante intuitivo foram se transformando em grafias sem qualquer significação direta (Ifrah, 1998, 208). Podemos ver tal processo no quadro da próxima página: 281 Figura 4: história dos algarismos árabes 5, 6, 7, 8 e 9. O estudo de todos estes diferentes tipos de mudança mostram que algumas regularidades podem ser encontradas. Estas regularidades algumas vezes são chamadas de leis da mudança, embora chamá-las de leis seja muito forte. De qualquer modo, tais regularidades existem e baseado nelas é possível até fazer razoáveis previsões, bem como reconstruções de línguas desaparecidas. Um exemplo muito comum de regularidade é a transformação do latim /kl-/ e /pl-/ que, quando estavam no início das palavras, se transformaram em /λ-/ do espanhol, escrita ll, e em /š-/ do português, escrita ch-. Assim, clamare, clave, plenu e plicare, todas do latim, viraram no espanhol llamar, llave, lleno e llegar, e no português chamar, chave, cheio, chegar, respectivamente. Tal correspondência não vale para todos os casos e pode ter se dado através dos seguintes estágios intermediários /kl- > ky- > ktš- > tš- > š-/ (cf. Faraco, 2005, p.55). Um dos mais famosos estudos de tais regularidades é a chamada lei de Grimm. Algumas das suas correspondências podem ser vistas a seguir, junto com alguns exemplos (cf. Weedwood, 2002, p.117): Grego Latim Gótico Sânscrito Eslavo p p f p p b b p b b ph f/b b bh b t t q t t 282 d d t d d th f/d d dh d phero fero biru bharami bera phrater frater brodhar bhratar bratru fotus páda peši taihun daśa Exemplos: pous, podôs pés, pedis deka decem Tabela 3: Lei de Grimm Baseado em regras como estas foram feitas tentativas de descobrir as formas originárias do proto-indo-europeu. No caso da palavra dez chegou-se ao resultado *dekm57. Claro que tal reconstrução é apenas uma tentativa, mas mesmo que errada ela mostra a força do que foi chamado, por óbvias razões, de método comparativo. Tal método, dada as devidas proporções, se mostra bastante semelhante aos métodos existentes na biologia para reconstruir filogenias, entre eles o cladismo que já foi longamente explicado (seção 1.10). Encontra, inclusive, problemas semelhantes como convergências e empréstimos que podem induzir a falsas relações genealógicas (seção 3.2). Um exemplo interessante se deu com o prefixo a- do português: O prefixo a- do português pode significar tanto uma privação (amoral, apolítico, acéfalo) como um “tornar-se” (avermelhar, amolecer, aportuguesar). O motivo é que tal prefixo vem tanto do an- grego, que significava privação, quanto do adlatino que significava aproximação (Martin, 2003, p.51). No entanto, mesmo em suas ousadias existem sucessos e existem comprovações da eficácia de tal método: Algumas vezes, as formas hipotéticas são confirmadas empiricamente por registros dialetológicos e/ou pela descoberta de documentos escritos. Essas situações, que ocorreram no passado, ajudaram a reforçar a confiabilidade no poder heurístico do método (Faraco, 2005, p.126) Já a questão de se todas as famílias provêm de uma mais antiga é uma questão bem complicada e quase nunca trabalhada58, mas Cavalli-Sforza nos fala 57 58 O asterisco marca que o termo é uma reconstrução. Problema idêntico a este existe sobre a origem única da vida. eu levo irmão pé dez 283 de um estudo de Greenberg sobre o étimo 59 tik, que parece estar presente em quase todas as famílias: das 17 ele não se encontra nas duas mais antigas, e em todas indica um significado similar, algo como “dedo, um, único, apontar, mão e braço” (Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p.249). Uma semelhança ainda mais surpreendente entre língua e biologia é que, na lingüística, existem estudos com praticamente a mesma função, e técnica semelhante, ao que é conhecido como relógio molecular na genética (cf. CavalliSforza & Cavalli-Sforza, 2002, p.230). A chamada glotocronologia serve justamente para dar uma medida de tempo às mudanças históricas. “Ela toma por base a premissa de que os vocabulários básicos das línguas se alteram em determinada proporção” (Marconi & Presotto, 2006, p.302). O vocabulário básico é composto de umas 100 ou 200 palavras referentes ao ar, às nuvens, ao sol, à chuva, às partes do corpo e aos fenômenos universais. Baseado em tal estudos chegaram a um número de mudança em tal vocabulário de cerca de 19% em 1.000 anos. Com isso eles são capazes de datar uma língua para o qual não tem dados precisos. O grupo de palavras adotadas pela glotocronologia são as que melhor se conservam com o tempo, talvez por serem na sua maioria aprendidas logo na tenra infância. É claro que existem muitas divergências aqui, mas alguns exemplos podem ser dados, baseados na sonoridade das palavras (cf. Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p.232): Um Dois Três Cabeça Olho Dente Irlandês aon dau ri ceann suil iacal Galês um do tri pen ligad dant Danês em to tre hoved öje tand Sueco em to ter huvud öga tand Inglês uan tu thri hed ai tuth Alemão ain zwai drai kopf auge zahn Espanhol um dos tres kabesa oho diente Francês ön dö truà tet oi dan 59 “Étimo” diz respeito ao significado ou origem de uma palavra. De onde provém o termo etimologia. 284 Romeno un doi tei kap okiu dinte Albanês nii dy tre krie sy dami Grego enas dyo tris kefali mati dondi Polonês jeden dva tsi glova oko zab Russo adin dva tri galavá oko zup Búlgaro edin dva tri glava oko zib Finlandês yksi kaksi kolme pää silme hammas Estoniano üks kaks kolm pea sailm hambaid Húngaro egy ket harom foe sem fog Basco bat bi iru buru begi ortz Tabela 4: palavras da glotocronologia Mesmo um olhar leigo pode descobrir uma serie de conexões nesta tabela. Por exemplo, o Basco parece ser radicalmente diferente de todas. Mesmo uma pessoa que nunca olhou um mapa poderia adivinhar que o Polonês, o Russo e o Búlgaro são falados em países próximos e com bastante relações entre si. Também são evidentes as semelhanças entre Finlandês e o Estoniano, o mesmo acontece com o Danês e o Sueco. O fato é que as 15 primeiras línguas são indoeuropéias, o Basco é de uma família desconhecida e as três restantes são Uralianas. Vemos, então, que existem fortes semelhanças entre os métodos já utilizados na lingüística história, e na filologia, e os métodos que poderiam ser usados na memética. Estas semelhanças já tinham sido há muito tempo notadas por alguns lingüistas. August Schleicher chega a escrever, em 1863, um panfleto intitulado O darwinismo testado pela ciência da linguagem ironizando a suposta inovação do darwinismo. Nas palavras dele: O que Darwin agora defende acerca da variação das espécies no curso do tempo [...] tem sido há muito tempo e em geral reconhecido em sua aplicação aos organismos da fala [...] Traçar o desenvolvimento de novas formas com base em formas anteriores é muito mais fácil, e pode ser realizado em escala bem maior, no campo da língua do que nos organismos de plantas e animais (Schleicher, in: Weedwood, 2002, p.93). Para eles chegava a ser engraçado tanta polêmica sobre métodos e resultados que consideravam há muito tempo comprovados nos estudos lingüísticos. Infelizmente Schleicher tinha algumas opiniões místicas e acreditava que as 285 línguas tinham vida própria, o que acabou dando origem a um preconceito contra as suas idéias. Mas esta relação entre o darwinismo e a lingüística ainda se mantém nos dias atuais. Konrad Lorenz, um dos pais da etologia, nos diz que: O estudo comparativo de linguagens usa, há muito tempo, os mesmo métodos, para desembaralhar a etimologia de uma palavra, que o método usado pela morfologia comparativa para determinar a história filogenética de um órgão ou organismo (Lorenz, 1995, p.39). Em concordância com isso o antropo-geneticista Luigi Luca Cavalli-Sforza nos diz: Do mesmo modo que os taxonomistas de plantas e animais, os lingüistas reconstruíram árvores que ilustram relações lingüísticas a que chamam de ‘genéticas’ – equivalente ao uso do termo em biologia (Cavalli-Sforza, 2003, p.178). Mas talvez o mais interessante é que o próprio Darwin notou tal semelhança. Como é tão raro ver Darwin falando de algo que ele não pesquisou exaustivamente, a citação merece ser colocada na íntegra: Da mesma forma que os seres orgânicos, as linguagens podem ser classificadas em grupos e subgrupos; e podem ser classificadas tanto naturalmente, segundo a descendência, como artificialmente, segundo outros caracteres. As linguagens dominantes e os dialetos se estendem largamente e levam as outras línguas à gradual extensão. Da mesma maneira que uma espécie, uma linguagem, uma vez extinta, conforme observa Sir C. Lyell, não reaparece mais. Uma mesma linguagem não tem dois lugares de nascimento. Duas linguagens diversas podem cruzar-se ou mesclar-se. Vemos variabilidade em toda língua e novas palavras sobrevêm continuamente; mas, dado que o poder da memória tem um limite, as palavras tomadas individualmente como as línguas inteiras vêm gradualmente se extinguindo. Conforme Max Muller muito bem observou: ‘A luta pela vida vai constantemente contra as palavras e as formas gramaticais em toda a língua. As formas melhores, mais breves e mais fáceis estão constantemente ganhando terreno e devem seu êxito à sua virtude intrínseca’. A estas causas mais importantes da sobrevivência de certas palavras podem ser acrescentadas simples novidades e modas; com efeito, na mentalidade do homem existe um forte amor pelas pequenas mudanças em todas as coisas. A sobrevivência ou a conservação de certas palavras favorecidas na luta pela existência é a seleção natural (Darwin, 2002, p.112 -13). Vemos, nesta última linha, que o que Darwin está propondo está longe de ser só uma analogia. Ele vai bem mais longe e faz uma afirmação que poderia estar em qualquer livro de memética. Darwin foi capaz de observar todos os traços importantes para a evolução e o desenvolvimento das línguas. Existiria a variação, 286 a hereditariedade e o ambiente selecionador que era a mente humana. Em uma análise mais recente o antropólogo e lingüista Terrence Deacon disse: Os cérebros humanos, com suas limitações de processamento, e as culturas humanas, com seu contexto comunicativo especial, podem ser considerados os “ambientes” nos quais a linguagem evolui (Deacon, in: Depew & Weber, 2003, p.86. Minha tradução). Teríamos, então, uma típica luta por espaço, sendo que só certas variações sobreviveriam. Palavras, expressões ou estruturas lingüísticas que fossem mais fáceis de aprender, de lembrar e de usar teriam uma maior probabilidade de serem passadas adiante. Vemos isso no caso do processo de regularização dos verbos em inglês. Além disso, palavras ou estruturas novas que podem ser usadas em muitas situações também seriam mais comuns. Como já vimos, palavras aprendidas mais cedo teriam uma menor chance de sofrerem mudanças. Darwin foi capaz de antever como seria possível reconstruir as genealogias: Se se descobre que duas línguas se assemelham por uma multiplicidade de palavras e de modos de construção, serão universalmente reconhecidas como derivadas de uma mesma fonte, apesar de diferirem notavelmente em algumas poucas palavras e modos de construção (Darwin, 2002, p.179). Vemos que até mesmo o cauteloso Darwin foi capaz de perceber as semelhanças entre a evolução das línguas e a evolução das espécies. Tais semelhanças poderiam parecer mera curiosidade ou mesmo coincidência, mas o número de semelhanças e a proximidade entre os dois processos e os dois métodos de estudos indicam que há algo mais que deva ser aprofundado. Afinal de contas, se o mesmo método pode ser aplicado em dois objetos diferentes, só pode ser porque existem semelhanças que permitem tal aplicação. Recentemente a lingüística diacrônica está mais esquecida, o foco da lingüística contemporânea tem sido outro. Chega-se a falar em tabu em relação ao estudo da evolução das línguas (cf. Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p.247). Mas isso em nada modifica o que foi dito aqui, pois mesmo os lingüistas interessados só no aspecto sincrônico não negam a mudança da língua, só não consideram este o aspecto mais interessante de se estudar. Além disso, a memética também tem muito a aprender com a lingüística sincrônica. Infelizmente, não trataremos dela neste trabalho. 287 No entanto, a lingüística diacrônica ensaia uma retomada de um modo que muito interessa à memética, ou seja, de uma maneira matematicamente rigorosa. Na edição de Outubro de 2007 da Nature, 3 artigos sobre o tratamento matemático da mudança lingüística foram publicados. Em um deles, que, na verdade, resumia os outros 2, chega-se até a falar sobre a memética, dando como referência justamente Blackmore, Dennett e Dawkins, e termina o artigo com a seguinte afirmação: Se algum dia aparecer uma ciência memética que possa rivalizar com a genética, ela deveria proceder nas seguintes linhas: combinando uma análise quantitativa cuidadosa de alterações lingüísticas bem-documentadas com modelos teóricos sofisticados capazes de levar em consideração a complexa diversidade de camadas da evolução cultural (Fitch, 2007, p.66. Minha tradução). Deve-se deixar claro que quando ele diz que a memética vai “rivalizar” com a genética é justamente porque ela pretende mostrar que nem toda a cultura é geneticamente predeterminada. O mais interessante é que estas “linhas” que ele fala que a memética deve seguir são justamente as “linhas” dos dois artigos anteriores, ou seja, de certo modo é memética já sendo feita nestes artigos. Tais artigos falam sobre a constância da mudança das línguas e mostram que palavras que são mais usadas mudam consideravelmente mais lentamente do que palavras que são pouco usadas. Nas palavras de Fitch: Apesar das diferenças significativas em seus métodos, ambos os artigos documentam o mesmo padrão geral: palavras freqüentemente usadas são resistentes à alteração. Inflexões relativamente raras, tais como “help/holp”60 tornam-se regularizadas, enquanto que verbos ingleses de alta freqüência retiveram seu estado ancestral irregular (“go/went” ou “be/was”61). Geralmente, termos que ocorrem com alta freqüência nos idiomas indo-europeus (tais como “um”, “noite” ou “língua”) são resistentes à substituição por novas formas fonológicas (Fitch, 2007, p.66. Minha tradução). Vimos que esta constância das palavras mais freqüentes é usada na glotocronologia, que é capaz de descobrir há quanto tempo duas línguas se separaram estudando tais palavras. O que estes dois trabalhos citados por Fitch fizeram foi trazer mais rigor matemático para esta técnica. Além disso, dois modos de mudança lingüística são sugeridos por tais artigos: palavras usadas 60 “Help” é tanto o substantivo “ajuda”, quanto o presente do verbo ajudar “to help”. “Holp” é uma forma do passado de “to help” que está presente sobretudo em certos dialetos. 61 Respectivamente, verbo “ir” no presente e no passado, e verbo “ser” no presente impessoal e no passado. 288 frequentemente podem ter uma taxa menor de erros de percepção ou de pronúncia, ou então todas as palavras têm uma taxa de erro constante, mas as usadas frequentemente têm uma menor chance destes erros serem adotados. Existiria uma espécie de sistema de correção de erros. Talvez a mais curiosa análise da mudança lingüística que Fitch apresenta seja a da transformação de palavras comuns em termos pejorativos. Ele analisa palavras em inglês como “hussy” e “wench” que originalmente eram uma maneira respeitosa de se falar de mulheres comuns, mas que se tornaram termos pejorativos. No entanto, o termo “lady” era restrito para as mulheres de nobreza, mas ficou comum. A possível explicação é que quando se falava com, ou sobre, uma mulher era sempre melhor ser bem educado. O termo mais educado era “lady”, então este era o usado frequentemente, enquanto os outros dois caíram no esquecimento. Como o termo “lady” era considerado superior aos outros dois, quando ele passa a ser usado para qualquer mulher, ou seja, desce de nível, os outros dois descem também e já não podem ser usados senão pejorativamente. Assim, uma palavra se sobrepôs às outras por haver uma pressão social para se ser bem educado. Algo semelhante acontece frequentemente quando termos médicos para tratar doentes mentais se tornam termos pejorativos como, por exemplo, idiota, mongolóide, debilóide e débil mental. Tal mudança obriga a criação de novos termos médicos, que futuramente se tornarão novos termos pejorativos. Este processo, inclusive, prediz o fracasso de qualquer tentativa politicamente correta em corrigir termos pejorativos criando novos termos como “afrodescendentes”, que provavelmente se tornarão também termos pejorativos no futuro. 6.2 Quanto Mais, Melhor: economia, história, publicidade e propaganda Ao tratar da cultura, a memética transita por áreas que tratam deste mesmo objeto há séculos, como acabamos de ver no caso da lingüística e anteriormente no caso da antropologia. Poderiam ser levadas em consideração também várias outras áreas que não serão tratadas na presente tese como a economia, a história, a 289 sociologia, a publicidade e propaganda etc. Destes, a publicidade e propaganda mereceriam um destaque, pois são as áreas que não só estudam a transmissão de informação por diversos meios, como também são capazes de fazer algumas previsões e até mesmo testá-las. Uma propaganda qualquer, como as que estão presentes na televisão ou revistas, normalmente têm atrás de si todo um aparato teórico-conceitual que indica como levar o consumidor a comprar tal produto e que pode ser testada simplesmente vendo se tal propaganda teve o efeito desejado. A memética já poderia encontrar aí uma primeira base empírica de suas previsões com a qual trabalhar. Dawkins mesmo trata da questão da propaganda, embora não faça uma relação direta com a memética. Mesmo não citando a memética, só dele ter falado na etologia nos mostra como a memética não é só uma recebedora passiva de analogias da biologia, mas pode, ela mesma, criar analogias que serão úteis dentro da biologia. Em suas palavras: As propagandas não estão aí para informar ou desinformar, e sim para persuadir. O anunciante utiliza seu conhecimento de psicologia humana, das esperanças, medos e motivos secretos de seus alvos, e desenha uma propaganda que possa manipular seu comportamento de forma eficaz. A exposição de Packard (1957) a respeito das profundas técnicas psicológicas dos anunciantes comerciais consistem numa leitura fascinante para o etologista. Lá, encontra-se a seguinte citação de um gerente de supermercado: ‘O que as pessoas gostam é de ver um monte de mercadorias. Quando há apenas três ou quatro latas de algum produto em uma prateleira, elas simplesmente não se movem.’ (Dawkins, 1999, p.62. Minha tradução). Publicitários precisam saber como vender e, para isso, precisam entender como afetar o comportamento de alguém de maneira direcionada e previsível. Muito do que eles fazem é justamente baseado no tipo de pesquisa que interessa à memética (cf. Norman, 2004). Experimentos, que no futuro poderão ser considerados experimentos em memética, já foram realizados dentro da psicologia e são utilizados por publicitários, e outros surgem a todo o momento. Em 1993, E. Hanna e A. Meltzoff fizeram um experimento com crianças de 14 meses e descobriram o poder da imitação e da transmissão cultural nestas crianças: Ensinou-se a algumas crianças – os tutores – a brincar com um brinquedo de forma nova. Esses tutores foram, então, levados a uma série de creches que nunca haviam visitado antes. As outras crianças ‘ficavam sentadas ao redor das mesas, tomando suco, chupando o dedo e agindo, em geral, como agem os bebês’, enquanto os tutores brincavam com o brinquedo de uma maneira nova. Dois dias mais tarde, os bebês observadores foram examinados em suas próprias casas (ou seja, não nas creches), e constatou-se que haviam obviamente adotado o comportamento que 290 envolvia brincar com o brinquedo da maneira nova. Devemos levar isso em consideração quando ouvimos alguém dizer que a televisão não afeta o comportamento infantil (Dugatkin, 2000, p.187. Minha tradução). Se as pesquisas e “experimentos” em publicidade e propaganda podem nos dizer qual produto irá vender, ou qual música será escutada, pode ser também que nos digam, por exemplo, qual variante lingüística terá maior sucesso, ou qual novo hábito se propagará com mais rapidez, ou qual método pedagógico é mais eficaz. Dentro de uma perspectiva memética, publicidade, lingüística, antropologia, sociologia, história etc. estão todas falando a mesma língua e devem trabalhar juntas para estudar a cultura. As técnicas utilizadas nestas áreas poderiam ser reaproveitadas pela memética. O professor de economia Don Ross acredita que já existem técnicas matemáticas rigorosas para serem exploradas pela memética: O aparato técnico que buscamos estava sob nossos narizes todo o tempo. Trata-se da macro-economia apoiada pela teoria evolutiva dos jogos. Tudo que Dennett e Blackmore fizeram com os memes é realizado e justificado, bastando, para tanto, observá-los como estratégias que competem para superar a replicação umas das outras em uma sucessão de hospedeiros (Ross, 2002, p.171. Minha tradução). Vale lembrar que a teoria dos jogos, que é hoje tão bem adaptada aos estudos do comportamento animal, entre outros, veio justamente da economia através de Maynard-Smith. Isso nos mostra que ela é claramente neutra em relação ao substrato e já é utilizada no estudo do comportamento cultural humano, mas estava restrita ao comportamento ligado à economia. Talvez o mais interessante neste tipo de estudo seja mostrar, como aconteceu no caso da etologia, como estratégias tipicamente irracionais, visando o bem individual, podem simular estratégias perfeitamente racionais. Cabe lembrar o fato interessante de que existem indícios que as ligações entre darwinismo e economia seriam ainda mais profundas, pois a teoria de Darwin pode ser entendida como uma “criativa adaptação intelectual” da teoria econômica de Adam Smith (cf. Gould, 1997, p.398). Isso significa que a própria biologia evolutiva poderia ser vista como tendo surgido de uma analogia da economia e, deste modo, da memética! A memética poderia aproveitar dos métodos, resultados e bases empíricas não só da macro-economia, mas também da neuroeconomia e da economia comportamental. O mesmo vale para todas as outras disciplinas já 291 citadas. Dawkins inclusive chega a levantar este ponto falando sobre o estudo de história da arte: A própria disciplina acadêmica da história da arte, com seu rastreamento sofisticado de iconografias e simbolismos, pode ser encarada como um estudo elaborado sobre a memeplexidade (Dawkins, 2007, p.264). Se a memética for percebida deste modo ficará claro que ela não é uma ciência por fazer. Seu valor está antes de tudo na sua capacidade de unir diversas áreas que não se encontram no momento dentro de uma estrutura conceitual comum. Há sim um longo caminho que ela deve percorrer, mas já há um caminho percorrido por outras ciências correlatas e não é preciso percorrê-lo de novo. Podemos, deste modo, ver a memética não só como uma promessa, mas como uma realidade em construção. A memética precisa, antes de tudo, de alguém com a capacidade de unir diversas pesquisas empíricas, realizadas pelas mais diversas áreas que estudam a cultura. Só assim ela terá embasamento empírico suficiente para se estabelecer como ciência. Costuma-se perguntar se a memética está esperando pelo seu Michelson e Morley, que refutaram a doutrina do éter, ou pelo seu Watson e Crick, que descobriram a estrutura física dos genes. Mas se o que foi dito aqui está certo, nenhuma das duas análises está correta. A memética ainda espera por seu Darwin: alguém com amplo conhecimento nas diversas áreas científicas que trabalham com a cultura e que seja capaz de mostrar como estas diversas áreas no fundo contam a mesma história e só podem ser compreendidas juntas. Neste sentido, o grande erro dos defensores da memética até o momento foi o de ignorar estas pesquisas. 7 Tentando em Frente aos Neurônios-Espelho A ciência não é feita de respostas definitivas, lógica e ontologicamente fundamentadas em todos os seus mínimos detalhes. Ao contrário disso, ela é feita por homens, homens que tentam da melhor maneira possível, mas sempre dentro de suas capacidades humanas. Durante a leitura de qualquer trabalho científico não devemos procurar por mais do que o melhor que aquela pessoa, na maioria das vezes grupo de pessoas, foi capaz de fazer dadas todas as suas limitações, sejam elas econômicas, sociais, políticas ou até mesmo limitações de tempo, limitações familiares, pessoais e psicológicas. E muitas vezes uma proposta científica, mesmo aquela que Kuhn colocaria dentro das ciências normais, não passa de uma tentativa, uma escolha de um grupo de indivíduos de como uma determinada questão poderia ser resolvida. A ciência não é feita de passos seguros e sim de boas tentativas. Tais tentativas devem ser julgadas, é claro, de uma maneira impiedosa, e também sem nenhuma consideração pelo indivíduo ou grupo que a propôs. Um artigo científico qualquer deve passar pelo mesmo escrutínio e provação pelos seus pares, não importando se seu autor é considerado um pária nos meios científicos ou um gênio. Só assim podemos ter alguma pretensão de objetividade. Embora tal escrutínio tenha que ser impiedoso, não precisa ser rude, brutal ou arrogante. Uma tentativa, qualquer tentativa, sempre vale, mesmo que sem sucesso. Na pior das hipóteses, pelo menos foi demonstrado que aquele caminho não deve mais ser seguido. Tal respeito pelas tentativas, mesmo as erradas, pode ser considerado como o que está na base do famoso lema panfletário “Tudo Vale” de Feyerabend. Tal lema poderia ser reescrito como “é preciso tentar para saber se vai dar certo ou não!”. Veremos no nono capítulo que Feyerabend nos mostra em certas passagens que o principal ensinamento que se pode tirar de seu Contra o Método é justamente este: não se pode negar uma tentativa antes dela ter fracassado62. Gould em um brilhante artigo também nos mostra a necessidade de 62 No entanto, é claro que devemos concordar com seus críticos de que o fracasso pode nunca ser reconhecido e péssimas tentativas podem ter vidas ilimitadas nos levando a um pluralismo tão exacerbado que seria demasiadamente contraproducente. Mas ainda aqui cabe a questão de se isso iria de fato acontecer ou se é só um temor exagerado. Não entraremos em tal questão aqui. 293 não se ver as tentativas fracassadas com um olhar puramente negativo (cf. Gould, 1997, p.159). Se isso vale para a ciência que poderíamos chamar de normal, ou mesmo de cotidiana, para fugir das implicações do termo de Kuhn, vale ainda mais quando se está explorando todo um novo ramo da ciência. Neste caso não temos nada mais do que tentativas a fazer. E como nos falta até mesmo os critérios já bem fundamentados para julgar tais tentativas, é de se compreender que até mesmo péssimas tentativas tenham uma vida longa. Na história das ciências não nos faltam exemplos de tais situações. Dentro da própria biologia podemos lembrar as inúmeras explicações para a diversidade do mundo natural que foram propostas antes de Darwin, muitas das quais já foram apresentadas nos primeiros capítulos da presente tese. Ao contrário de julgá-las de maneira extemporânea, devemos louvá-las como boas tentativas dentro das possibilidades de seu tempo63. Na falta de uma grande teoria, como a evolução por seleção natural, nada mais razoável do que usar a onisciência e onipotência divina para explicar a assustadora adaptação do mundo natural. Um exemplo mais recente são as tentativas de propor explicações naturais de cunho darwinista para áreas que ainda são dominadas pelas chamadas Ciências Humanas. A própria memética é um exemplo de tal tentativa, assim como a psicologia evolutiva, a sociobiologia, as teorias da co-evolução e, por que não, até mesmo o darwinismo social, todas vistas no quarto capítulo. Com exceção desta última, todas se mantêm como tentativas, com diversos graus de sucesso, de abordar as Ciências Humanas utilizando conceitos e métodos criados, principalmente, dentro da biologia. Como em qualquer tentativa, há sempre o que melhorar e também há sempre muito mais para fazer do que o que já foi feito. Mas mesmo dado todas as suas limitações e ineficácias o mais importante é que se tente, de outro modo não será possível seguir em frente. Em uma abordagem tão nova e ousada quanto a possibilidade de explicar a cultura através de um processo de seleção natural não é surpreendente que as diversas tentativas propostas se amparem em outras tentativas como modo de avançar, criando, assim, um acúmulo de tentativas que pode parecer como demasiadamente frágil para ser chamado de científico. Não podemos criticar que 63 Larry Laudan não será abordado aqui, embora faça considerações semelhantes (cf. Laudan, 1977). 294 tudo isso seja visto com muita precaução, mas é importante que esta tentativa seja feita, mesmo se for somente para fracassar logo adiante. A memética é sem dúvida uma das tentativas mais arriscadas, pois propõe um modo completamente novo de se olhar para a cultura e também para nós mesmos. Como foi visto em várias seções do presente trabalho, muitas críticas que ela deve enfrentar surgem justamente por causa desta sua demasiada ousadia. Se a memética for aceita como mais uma abordagem válida de estudo do ser humano e de sua cultura, então haverá toda uma nova possibilidade de estudo junto com uma quantidade de trabalho a ser feito. Tudo nela ainda está por fazer, não passa de tentativas e mais tentativas. Dentre os obstáculos que ela terá que enfrentar um se impõe logo de início, a saber, responder o que será chamado aqui de questão ontológica (seção 10.4). Mesmo levando em consideração o fato já apresentado que o conceito de gene não é tão sólido como se costuma acreditar, e que por muito tempo a biologia prosperou sem ele (seção 1.6 e 1.7), ainda assim, o fato de que existe hoje ao menos um substrato físico, capaz de responder por boa parte das funções que um gene deve realizar, já é o suficiente para que tal conceito tenha um status ontológico bem superior ao conceito de meme. Buscar pelo que seria o substrato ontológico dos memes pode tomar diversas formas, dependendo de que interpretação for feita da teoria memética. O mais comum é tratar o meme como sendo de alguma forma mental ou cerebral, sendo o comportamento e os objetos frutos de tal comportamento o efeito, o fenótipo, de tais estruturas mentais ou cerebrais (seção 10.8). Não será possível entrar aqui nas diversas discussões da filosofia da mente sobre a relação entre o mental e o cerebral64. Como a abordagem pretendida aqui é científica, será então assumido o que poderíamos chamar de “senso comum científico”, que trata a mente como nada além do que o próprio cérebro e seu funcionamento. Deste modo a questão passa a ser “qual o substrato cerebral dos memes?”. Uma indicação que pode ser útil para ajudar na tentativa de responder a esta questão é o fato de que seja lá qual for este substrato, ele deve estar, no mínimo, intimamente relacionado com o substrato que permite a nossa incrível capacidade de imitação. A nossa grande habilidade de imitar não só nos diferencia de 64 Tais problemas já foram tratados na monografia de final de curso, assim como na dissertação e em diversos artigos publicados (cf. Leal-Toledo 2002, 2005 e 2006) 295 praticamente todos os animais como também é justamente ela que, segundo a memética, nos permite a transmissão de memes entre indivíduos (seção 3.3 e 8.1). Dado o fato de que estudos sobre a nossa capacidade de imitar já são realizados há décadas, podemos, então, ver se estes estudos são capazes de jogar alguma luz sobre o problema aqui tratado. No entanto, como estamos procurando um substrato físico no cérebro, também podemos nos beneficiar principalmente dos recentes estudos do substrato neuronal da imitação. Dentre tais pesquisas uma se encontra em franco destaque, a saber, as recentes pesquisas sobre os chamados neurônios-espelho. Tais neurônios apresentam propriedades muito interessantes e podem ser tratados como uma primeira tentativa de buscar uma base cerebral para os memes ou, pelo menos, para a transmissão memética. Os neurônios-espelho são uma descoberta recente das neurociências (início dos anos 90) e já são considerados como uma das grandes promessas desta área, capazes de revolucionar como o cérebro é entendido, principalmente no que diz respeito a nossa capacidade de compreender, imitar e aprender. É comum acreditar, não só por causa dos estudos científicos, mas também por causa de nossas próprias intuições a respeito do nosso funcionamento mental, que para a mente compreender ou imitar uma ação o cérebro deve utilizar áreas distintas. A primeira área deve perceber tal ação, a segunda deve ser capaz de traduzir tal ação alheia em uma ação do nosso próprio corpo e a terceira deve ser capaz de comandar e coordenar nosso corpo para realizar tal ação. Vimos, na seção 3.3, que Susan Blackmore defende algo parecido. No entanto, uma das grandes descobertas das neurociências foi justamente que, ao contrário do que se imaginava antigamente, e ainda é comum acreditar hoje em dia, o cérebro não utiliza áreas distintas para certas percepções e funções motoras (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.19). Sabemos agora que áreas que eram até recentemente consideradas como sendo exclusivamente motoras na verdade têm um papel fundamental na percepção e reconhecimento das ações realizadas por outros. Desse modo, ao contrário de dividir funções, o cérebro faz tudo de uma vez só. Surpreendentemente Darwin chega perto de prever algo semelhante a isso: Não parece improvável que, quando pensamos muito numa determinada sensação, a mesma parte do sensório, ou uma bastante próxima, seja ativada da mesma maneira que quando realmente temos a sensação. Se isso acontecer, as mesmas células do cérebro serão estimuladas, ainda que talvez num menor grau, quando pensamos intensamente num gosto azedo e quando o sentimos realmente. E em 296 ambos os casos elas transmitirão forças nervosas para o centro vasomotor com os mesmos resultados (Darwin, 2000, p.319)65. A descoberta dos neurônios-espelho se deu por acaso no estudo da área motora, conhecida como F5, em cérebros de macacos. Foi observado que um mesmo neurônio individual disparava tanto quando uma determinada ação era realizada, quanto quando esta mesma ação era observada por este macaco. Tais ações, é claro, não eram quaisquer ações, mas ações evolutivamente relevantes como, por exemplo, pegar algo com precisão, segurar algo, mover os lábios para pegar algo ou para mastigar etc. Já era conhecido o fato de que tais áreas não diziam respeito à movimentos individuais e sim a atos motores, ou seja, um determinado neurônio disparava não quando um determinado movimento como, por exemplo, pegar algo com a mão esquerda, era executado, mas sim quando era executado um determinado ato motor como, por exemplo, pegar algo. Não importava se este algo era pego com a mão esquerda, direita ou mesmo com a boca, o que importava era somente a própria ação de pegar algo. Além disso, se exatamente este mesmo movimento físico de pegar algo fosse realizado dentro de outra ação, como se coçar, por exemplo, tal neurônio não disparava (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.23). Tais ações foram chamadas de ações intransitivas, ou seja, não envolvem um objeto específico para o qual a ação é voltada. Tudo isso indicava, mais do que claramente, que aquele neurônio da área motora F5 do cérebro de macacos não dizia respeito à codificação de determinados movimentos musculares da mão. O que ele codificava era algo de certa maneira mais abstrato: ele era ativado sempre que algo era pego de maneira precisa, não importava como. Um neurônio que poderia ser entendido como um “neurônio do agarrar-com-a-mão-e-a-boca” (Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.23. Minha tradução). Para a surpresa dos pesquisadores foi descoberto que este mesmo neurônio, que deveria ser exclusivamente motor, também era ativado quando o macaco observava exatamente esta mesma ação específica sendo realizada por outros. Ele era, então, um neurônio visuo-motor: a 65 Existem também, mas não serão tratados aqui, os chamado “neurônios-espelho emocionais” que estariam na base de nossa capacidade de empatia, principalmente no que diz respeito às nossas emoções primárias como o medo, a dor, nojo e alegria. Foi descoberto, por exemplo, que a mesma área cerebral que nos habilita a ter uma expressão facial de nojo é também o que nos permite identificar esta expressão em outros. Deste modo, se ela é afetada não só perdemos nossa habilidade de sentir nojo como também perdemos nossa habilidade de reconhecer expressões faciais de nojo, mas sem perder a habilidade de reconhecer nenhuma outra expressão (cf. Rizzolatti e Sinigaglia, 2008, p.181). 297 mensagem mandada por tais neurônios era exatamente a mesma, não importava se a ação estava sendo realizada ou observada66! Mais impressionante ainda é o fato de que em certas ações que produzem sons, como quebrar a casca de um amendoim para comer sua noz, os neurônios-espelhos podem ser ativados até mesmo só com este som, de modo que fica ainda mais claro que para tais neurônios o que importa é a própria ação e não o modo como ela é realizada (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.103). De certa maneira este neurônio era ativado não por um determinado ato, seja ele motor ou visual (ou mesmo sonoro), mas sim pela compreensão do significado deste ato (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.50). Isto indica que a função primordial de tais neurônios em macacos é justamente a capacidade de compreender de maneira imediata a ação dos outros. Nas palavras de seus descobridores: Nos seres humanos, como nos macacos, a visão dos atos realizados pelos outros produz uma ativação imediata das áreas motoras incumbidas da organização e execução desses atos e, através dessa ativação, é possível decifrar o significado dos ‘eventos motores’ observados, isto é, entendê-los em termos de movimentos centrados em objetivos. Tal entendimento é completamente isento de qualquer mediação reflexiva, conceitual e/ou lingüística, uma vez que é baseado exclusivamente no vocabulário de atos e no conhecimento motor do qual depende nossa capacidade de agir. Ademais, também como ocorre com o macaco, tal entendimento não é limitado a atos motores singulares, mas é extensível a toda uma cadeia de atos (Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.125. Minha tradução). Tais neurônios estariam envolvidos em uma capacidade motora de compreensão que seria imediata, ou seja, sem a necessidade de uma análise conceitual da ação que está sendo observada ou realizada. Simplesmente observando uma ação, sem nenhum ato conceitual mais elaborado, um macaco poderia, por exemplo, reconhecer que outro macaco estava pegando algo para comer. Para Rizzolatti e Sinigaglia esta seria a função primordial dos neurôniosespelho tanto em macacos quanto em humanos. No entanto, mais interessante que a semelhança entre o nosso cérebro e o cérebro dos macacos, são as diferenças que encontramos entre eles justamente no que diz respeito a estas áreas. Tais diferenças trazem toda a pesquisa sobre estes neurônios para ainda mais perto da memética. 66 É claro que não é tão simples assim. Alguns neurônios são de fato bem específicos quanto aos seus estímulos. Mas outros chamados de “broadly congruent” são estimulados por atos claramente conectados, mas não idênticos, por exemplo, responder ao ato motor de agarrar e ao ato visual de agarrar e segurar (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.82) 298 Existem algumas diferenças fundamentais entre os neurônios-espelho dos macacos e dos humanos, muitas são de extrema relevância para os assuntos tratados aqui, pois mostram justamente o substrato neural que nos dá um maior poder de aprendizagem, imitação e linguagem. Tal poder superior fica evidente com o fato de que tais neurônios ocupam um maior espaço cortical nos humanos do que nos macacos (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.124). Uma das diferenças fundamentais é que, ao contrário dos macacos, nos humanos os neurônios-espelho também respondem a atos intransitivos, ou seja, movimentos que não são diretamente relacionados a nenhum objeto em particular, como por exemplo, simplesmente mover o braço. Embora esta não pareça ser uma diferença importante, sua conexão com a possibilidade de linguagem é bastante clara: expressões corporais que buscam passar um significado, por exemplo, abrir os braços para indicar que algo é grande, não são diretamente relacionados a nenhum objeto em particular. Isso permite ao ser humano uma gama muito maior de atos motores que podem ser compreendidos e imitados através dos neurônios-espelho. Uma outra diferença importante é a capacidade de reproduzir fielmente a duração no tempo de vários movimentos observados (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.117). Este fato permite ao cérebro não só imitar os movimentos, mas imitá-los de maneira mais fiel, respeitando a duração de cada movimento, assim como a sua conexão temporal. Por causa disso podemos imitar um ato respeitando o seu aspecto temporal, ou seja, podemos distinguir se estamos fazendo uma aula de Tai-chi-chuan ou de aeróbica. É importante também para a nossa capacidade lingüística, pois esta, ao se tornar mais complexa, exige cada vez mais um determinado ritmo de expressão para ser compreendida e, além disso, o próprio ritmo tem significado. Uma mesma expressão pode ter significados bem diferentes de acordo com o ritmo e a entonação em que é expressa. Tal ligação entre os neurônios-espelhos e a espantosa habilidade humana para a linguagem se tornou ainda mais evidente quando tais neurônios foram descobertos na área de Broca, uma área notoriamente ligada à linguagem. Grande parte dos neurônios-espelho dizem respeito a atos relacionados com a alimentação, como pegar comida, mastigar ou chupar. Tais movimentos são muito semelhantes aos movimentos utilizados para a comunicação verbal. Experimentos recentes mostram que determinados neurônios-espelho em humanos são ativados quando se observa um outro homem, ou um macaco, ou 299 mesmo um cachorro, mordendo um pedaço de comida dado em sua boca. No entanto o mesmo não se deu quando foram observados atos comunicativos, mas sem som algum, só a imagem da boca se movendo de um homem, de um macaco e de um cachorro. Neste caso houve forte ativação quando o que era visto era um humano, uma fraca ativação quando era um macaco e praticamente nenhuma ativação quando era um cachorro (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2006, p.136). Os movimentos necessários para morder e para falar são muito semelhantes, mesmo assim os resultados foram díspares. Os neurônios-espelho foram capazes de compreender a mordida do cachorro, mas incapazes de compreender os movimentos ligados ao latido67. Já na observação de movimentos humanos, houve uma resposta eficaz a ambos os movimentos. Tais resultados indicam claramente que certos neurônios não disparam somente para movimentos labiais, mas são direcionados seletivamente para atos comunicativos. Teríamos, então, neurôniosespelho exclusivos para a comunicação. Esta característica reforça uma hipótese para o surgimento da linguagem entre os humanos que defende que esta surgiu de gestos realizados principalmente com os braços e também de expressões faciais. Partindo desse princípio, é bem possível que os neurônios-espelho tenham um papel fundamental em tal origem ajudando a resolver uma série de questões sobre ela. É importante notar que o próprio modo como tais neurônios funcionam já nos dá uma excelente indicação da sua importância para a comunicação, pois para um ato comunicativo ter sucesso deve haver uma espécie de paridade. Isto quer dizer que só podemos dizer que algo foi devidamente comunicado se a mensagem que foi recebida é de alguma maneira semelhante, de preferência idêntica, à mensagem que foi enviada. Sem isto podemos dizer que tal comunicação falhou. Para que isso seja possível parece ser necessário que uma mesma ação seja compreendida de uma forma razoavelmente idêntica em cérebros diferentes. Fica claro, então, que a própria forma como os neurônios-espelho funcionam facilita exatamente este tipo de processo. 67 Deve-se ressaltar aqui uma questão da filosofia da mente: a rigor neurônios não compreendem nada, quem compreende é a mente ou o sujeito. No entanto, estamos partindo do pressuposto materialista de que a mente é o cérebro, ou pelo menos é o que o cérebro faz. Além disso, o termo “compreender” foi usado por Rizolatti e Sinigaglia para explicar a capacidade de um neurônioespelho disparar sempre que observar o ato motor ao qual ele corresponde. 300 Se isto for verdade, poderemos encontrar ao menos parte da origem da linguagem em nossa habilidade de gesticular. Mesmo depois de milênios, a nossa capacidade de gesticular e de modificar o tom da voz ainda é extremamente importante para uma comunicação efetiva68. Há ainda uma ligação forte entre a comunicação oral e os gestos. Algumas pesquisas e uma série de dados clínicos indicam justamente isto. Tais pesquisas indicam uma ligação direta entre os gestos dos braços e o movimento da boca. Participantes que, por exemplo, eram instruídos a abrir a boca quando iam pegar um objeto tendiam a abrir mais a boca quando um objeto era maior do que quando era menor (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.165). Um outro exemplo é o efeito facilitador que o uso de gestos tem na recuperação da linguagem de pacientes debilitados (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.167). Embora as pesquisas sejam apenas iniciais, os resultados parecem promissores. Vemos mais uma vez que a relação entre neurônios-espelho, imitação, cultura e linguagem vai se estreitando cada vez mais e uma abordagem mais consistente da memética começa aos poucos a se delinear no horizonte. Tais neurônios com todas as suas funções são justamente as estruturas cerebrais que a memética precisa para começar a construir uma base sólida e ir além do seu poder explicativo passando a almejar até mesmo um futuro poder preditivo. Com o aprofundamento do estudo do cérebro talvez sejamos capazes de algum dia saber aproximadamente quais comportamentos têm uma maior probabilidade de serem imitados. Uma última observação que aproxima os neurônios-espelho da memética pode ser tirada da neuroantropologia, ou seja, o estudo das estruturas cerebrais de fósseis humanos. É claro que tais estudos não são muito precisos, pois eles devem ser realizados não com cérebros, mas com caixas cranianas fossilizadas. Mesmo assim, há indicações de que o desenvolvimento do sistema de espelho foi justamente umas das mudanças cerebrais relevantes para a evolução dos humanos. Assim, o papel de co-evolução entre memes e genes, que já foi mencionado, no surgimento do Homo sapiens, na seção 5.4, teria uma fundamentação neurocientífica. Nas palavras de Rizzolatti e Sinigaglia: 68 Qualquer pessoa que tenha o costume de conversar pela internet, seja através de chats, e-mails, orkut, etc. sabe como a falta de gesticulação e do tom da voz costumam originar mal-entendidos. Veremos brevemente na seção 10.7 que este problema pode ter ocasionado uma série de mudanças na grafia para dar tonalidade emotiva em textos escritos. 301 Análises realizadas em traços de circunvoluções cerebrais nas cavidades de um grande número de crânios de Homo habilis de quase 2 milhões de anos de idade mostram que as regiões frontais e têmporo-parietais desenvolveram-se fortemente naquele estágio do processo evolutivo. Isso sugere que a transição dos australopitecos para o Homo habilis coincidiu com a transição para um sistema espelho mais diferenciado, o qual forneceu o substrato neural para a formação da “cultura da imitação” que, de acordo com Merlin Donald, chegou ao ápice com o aparecimento do Homo erectus, que caminhou na terra entre 1.5 milhões e 300 mil anos atrás. Também é plausível supor que os neurônios-espelho evoluíram ainda mais durante a transição do Homo erectus para o Homo sapiens, a qual ocorreu há 250 mil anos, e responde pela expansão tanto do repertório motor quanto da habilidade recentemente adquirida de se comunicar intencionalmente através de gestos manuais que gradualmente vão se tornando mais articulados e que, freqüentemente, eram acompanhados por vocalizações (Rizzolati & Sinigaglia, 2008, p.162. Minha tradução). As áreas correspondentes hoje à linguagem (Broca e Wernicke) se situam na região temporal do hemisfério esquerdo, causando certa assimetria do crânio que já começa a ser encontrada nos Homo habilis. Por este motivo, cerca de 2 milhões de anos atrás é também a data estimada para o início das “pressões seletivas para uma vocalização aumentada” (Mithen, 2002, p.336) que implicaram no surgimento do que hoje chamamos de linguagem. Vemos, então, e provavelmente não por coincidência, o nosso principal instrumento para transmitir cultura e um aumento no sistema espelho surgindo praticamente juntos. Temos, deste modo, uma possível evidência fóssil capaz de fundamentar o papel crucial que a habilidade de imitar teve na evolução do ser humano. Curiosamente tal citação chega inclusive a mencionar a idéia de uma “mimic culture” na origem do ser humano que poderia ser facilmente entendida em termo meméticos. Cada vez mais as relações entre os neurônios-espelho e a memética vão se estreitando a começamos a desenvolver, para manter o espírito do início deste capítulo, no mínimo uma boa tentativa que deveríamos perseguir. 8 IMITAÇÃO O conceito de imitação é ao mesmo tempo óbvio e difícil de definir. Uma definição precisa do que é imitação tem sido buscada, mas sem consenso. Normalmente, assim como mostramos no caso do conceito de gene e de espécie, o conceito de imitação proposto depende da área científica em que ele é utilizado. Tal multiplicidade de conceitos torna difícil distinguir quais seres seriam capazes de imitação e em que grau. No entanto, algo é certo: não se conhece na natureza nenhum ser mais capaz de imitação do que o ser humano. Tal capacidade de imitar, como mostramos (seção 3.3, capítulo 5 e seção 5.4) e voltaremos a mostrar em seguida, parece estar no próprio fundamento do que nos faz humano, tendo sido um diferencial de extrema importância na evolução da nossa espécie. Seres humanos são extremamente hábeis em imitar e o são desde cedo. É sabido que se alguém mostra a língua para um bebê imediatamente após ele nascer, ele mostrará a língua de volta (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.152). Por este motivo, embora seja um conceito difícil de definir, a imitação nos seja tão próxima e intuitiva. Um ser humano completamente incapaz de imitação é quase inconcebível, ele deveria ter um grau de autismo tão alto que sua sobrevivência dependeria completamente da ajuda de outros68. Duas definições para imitação poderiam ser propostas: A primeira, que é usada principalmente pelos psicólogos experimentais, caracteriza a imitação como a capacidade de um indivíduo de replicar um ato que já pertence ao seu repertório motor, depois de vê-lo sendo executado por outrem; a segunda, aceita principalmente pelos etologistas, considera a imitação como o processo pelo qual um indivíduo aprende um novo padrão de ação através da observação, depois do que ele é capaz de reproduzi-lo até os mínimos detalhes (Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.139. Minha tradução). Estes dois conceitos interessam à memética e poderíamos discutir se eles são excludentes ou complementares. No entanto, o segundo é claramente mais 68 “Junto com os robôs e os chimpanzés, os autistas nos lembram que o aprendizado cultural só é possível porque pessoas neurologicamente normais possuem um equipamento inato para realizálo” (Pinker, 2004, p.94). Há algumas evidências de que tal “equipamento inato” seja justamente o sistema espelho (capítulo 7). 303 interessante na medida em que foca na capacidade de transmissão de padrões de comportamentos que não eram previamente conhecidos. Este conceito será focado aqui, embora haja evidências de que os neurônios-espelho também são responsáveis pelo primeiro tipo de imitação (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.144). Veremos na seção 10.1 que aquela primeira definição de imitação praticamente responde as críticas de Dan Sperber. Um experimento feito com humanos que observavam um vídeo onde um acorde musical que eles não conheciam era apresentado em um violão, mostrou a importância dos neurônios-espelho para a transformação de informação visual em respostas motoras (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.145). Baseado nos dados publicados até o momento, fica cada vez mais evidente que os neurônios-espelho participam nas duas formas de imitação citadas e que as diferenças entre o nosso sistema espelho e o dos macacos é justamente o que nos permite uma capacidade muito maior de aprendizado por imitação. A importância da imitação em seres humanos foi demonstrada não só através do estudo dos neurônios-espelho como através de estudos clínicos. Sabemos que, além de tais neurônios, devemos ter também alguma outra estrutura ligada a eles que seja facilitadora ou inibidora garantindo que as ações sejam de fato imitadas ou não. Sem esta estrutura, a mera observação de um movimento qualquer iria implicar em sua imediata imitação. E é precisamente isso que acontece em pacientes que sofrem de echopraxia. Um provável problema na área inibidora dos neurônios-espelho causa, nestes pacientes, uma compulsão de imitar os atos de outros de maneira imediata e quase reflexiva (cf. Rizzolatti & Sinigaglia, 2008, p.151). O próprio Darwin relata este fenômeno: Que existe no homem forte tendência para a imitação, independentemente da vontade consciente, é inquestionável. Isso se evidencia de forma extremamente marcante em certas doenças cerebrais, principalmente na fase inicial das degenerações inflamatórias do cérebro, e foi chamado de ‘sinal de eco’. Esses pacientes imitam, sem entender, qualquer gesto absurdo que se faça, e qualquer palavra pronunciada perto deles, mesmo em língua estrangeira (Darwin, 2000, p.331. Ver também: Darwin, 2002, p.92). No que diz respeito à memética, se devemos buscar nos neurônios-espelho a base neural dos memes ou da nossa capacidade de transmitir memes, devemos buscar nestas estruturas inibidoras e facilitadoras justamente a parte seletiva da evolução memética. São elas que vão dizer que atos serão imitados ou não, ou 304 seja, que memes serão transmitidos e recebidos ou não. Infelizmente o estudo de tais áreas, no que diz respeito à sua relação com os neurônios-espelho, ainda não foi muito desenvolvido. No entanto, no caso dos pacientes incapazes de segurar sua compulsão por imitação, sabemos que isso normalmente é originado por causa de lesões no lóbulo frontal. Justamente esta área do cérebro é a mais conhecida pelos leigos por ser retratada de maneira simplificada na mídia como o “lar da nossa personalidade”. O lóbulo frontal está notoriamente ligado à nossa habilidade de prever conseqüências, escolher ações, organização, planejamento e, talvez mais importante para a memética, adaptar nossas ações em relação às expectativas sociais relacionadas a elas, de modo a suprimir ações que não seriam socialmente aceitáveis69. Por estes motivos, mesmo que não existisse nenhuma evidência de que tal parte do cérebro está associada à inibição da imitação, ainda sim este seria o local mais apropriado para se buscar o que poderia ser chamado de “o ambiente seletivo dos memes”. Deste modo, vemos mais uma vez as pesquisas das neurociências se aproximarem da memética por inúmeras vias distintas. 8.1 Quem Imita, Quando Imita, o que Imita? Várias são as questões que o conceito de imitação levantou na memética. Elas normalmente giram em torno de três grandes temas: o que é a imitação? Os memes só podem ser passados por imitação ou também podem ser passados por outras formas de aprendizado social? Quais animais são capazes de “verdadeira imitação”? Todas estas questões fazem parte das discussões da memética, principalmente depois que Susan Blackmore, como vimos na seção 3.3, defendeu que só a “verdadeira imitação” é capaz de passar memes e que praticamente só os humanos são capazes dela. Cabe uma ressalva extremamente importante no que diz respeito às questões conceituais envolvidas na definição e utilização do conceito de “imitação”, a saber, por mais interessantes e importantes que elas sejam, sua discussão não é verdadeiramente relevante para o assunto tratado aqui. Pelo menos não neste nível 69 Por isso ele chegou a ser associado ao conceito de super-ego de Freud. 305 mais inicial da discussão, pois independente do que é imitação e quais animais são capazes dela, ainda assim é amplamente aceito que os seres humanos são capazes de uma quantidade e variedade praticamente ilimitada de imitações e que através da imitação um padrão de comportamento pode ser passado entre indivíduos. Estas duas características já são suficientes para o presente trabalho. Além disso, discutir quais animais são capazes de imitação, e em que grau, é uma discussão importante, mas somente tangencia o assunto relevante neste momento. Seja lá qual for a resposta dada a esta pergunta, podemos dizer que tais animais são capazes de transmissão memética exatamente no mesmo grau em que são capazes de imitação. O mesmo vale para a discussão de se a aprendizagem só pode se dar por imitação. Seja lá qual for a resposta para esta questão, o relevante para o que estamos tratando aqui é que a informação seja transmitida de modo que haja “hereditariedade cultural”. Onde houver esta transmissão haverá a possibilidade de discutirmos se ela se dá de forma memética ou não. Ou seja, mais importante do que saber exatamente o que é imitação, e como ela se dá, é saber se um padrão comportamental pode ser passado de um indivíduo para outro. Em outras palavras, é saber se existe de fato o que comumente chamamos de aprendizagem. Se esta aprendizagem só se dá por imitação ou não é uma questão menos importante no momento. Esta questão é menos importante porque assumimos que uma ação tem que ter uma origem, ou foi aprendida, seja por imitação ou algum outro processo de aprendizagem, ou é inata, ou foi inventada por aquele indivíduo. O fato é que tais processos normalmente trabalham juntos. Para imitar temos que ter estruturas cerebrais inatas que nos permitam imitar e, é importante ressaltar, que nos permitam também inibir a imitação. Os neurônios-espelhos são justamente tais estruturas. O mesmo vale para a nossa capacidade de aprender, seja de que modo for. Alguém que negue a nossa capacidade de aprender com os outros terá que defender que todas as nossas ações e/ou conteúdos mentais ou são inatos, ou seja, nunca foram aprendidos, ou foram criados individualmente por cada pessoa. Tal tese seria extremamente contra-intuitiva, o que não significa que ela esteja errada, mas seria responsabilidade de tal autor prová-la. Se todos os comportamentos forem inatos, caberá à psicologia evolutiva e à sociobiologia estudá-los. 306 No entanto, se todos os comportamentos forem inventados individualmente, a própria noção de cultura se perde. Na verdade, até a própria necessidade de se estudar o que quer que seja se perde, pois não há estudo se não há informação sendo passada. Será assumido no que se segue, então, que pelo menos uma parte bastante significativa do que chamamos de cultura é transmitida socialmente. No último capítulo trataremos mais propriamente da crítica de Dan Sperber sobre a não existência de uma verdadeira transmissão cultural por imitação (seção 10.1). A discussão que se segue deve, como acabamos de ver, ser considerada como um problema que só tangencia o que estará sendo tratado neste trabalho como um todo. Seu intuito é apenas reunir os problemas em torno do conceito de imitação para permitir a inserção neste problema de alguém que não esteja ambientado nesta discussão. Além disso, se torna relevante só na medida em que queremos discordar das afirmações de Blackmore. Antes disso é importante conhecer alguns casos de comportamento animal e transmissão de cultura que são comumente discutidos ao se tratar deste problema. É preciso, em primeiro lugar, lembrar que, como tudo mais na biologia, a capacidade de transmitir cultura através da imitação ou outro meio, deve ter evoluído através de pequenos passos. Mesmo que no surgimento do ser humano tenha havido um rápido aumento nesta capacidade, ainda assim foi um salto quantitativo, não qualitativo. Ao se tratar destas questões, sempre estaremos começando em algo que não parece ser cultural e, aos poucos, chegando no tipo padrão de transmissão cultural, passando por casos intermediários onde a sua classificação será sempre, por definição, arbitrária. Podemos já antecipar que esquecer de tal fato foi o erro de Blackmore. Em um trabalho sobre a cultura em animais John T. Bonner (1980) mostra claramente como se deu esta delicada gradação, desde seres vivos com comportamentos geneticamente rígidos, passando a outros capazes de uma escolha simples entre duas opções de comportamento, depois outros já capazes de aprender através de tentativas e erros individuais, chegando em animais que ativamente observam seus pares para saber como agir e, finalmente, alguns poucos animais, entre eles os seres humanos, capazes de entrar em um processo de ensino e aprendizagem consciente e de “verdadeira imitação”. No entanto, não será seguido este caminho aqui. A preocupação principal de Bonner é discutir como a cultura surgiu e mostrar que ela surgiu e foi selecionada por ser 307 adaptativa. Já a preocupação aqui é, aceitando o surgimento e a adaptabilidade da cultura, discutir em quais animais e com que tipo de transmissão poderiam ser passados memes. Para isso, basta ter em mente que, entre um comportamento geneticamente rígido e um comportamento cultural livre de determinações genéticas, existem inúmeros casos intermediários onde seria errado, enganoso, arbitrário e desnecessário tentar classificá-los rigidamente dentro de uma destas duas categorias mais evidentes. Em primeiro lugar é interessante ver ao que todos eles são opostos: ao comportamento puramente instintivo. Neste tipo de ação os padrões de comportamento surgem sem absolutamente nenhuma instrução e nem mesmo um processo de tentativa e erro. Algumas vespas, por exemplo, já nascem sabendo voar, caçar, comer, achar um parceiro, se reproduzir, construir ninhos, etc (cf. Bonner, 1980, p.37). Este é o típico comportamento geneticamente determinado, no sentido de que não precisa de nenhum tipo de aprendizagem. Em oposição a ele, podemos encontrar os mais diversos modos de passagem de informações não genéticas, divididos nos mais diversos graus. Normalmente associamos a capacidade de transmitir cultura à habilidade da fala ou da imitação, mas a natureza achou outros modos de se passar informações não geneticamente determinadas. Alguns deles não envolvem nenhum tipo de comportamento que consideraríamos como comunicativo. Sabemos que a cultura pode ser passada antes mesmo do nascimento de certos animais. Experimentos mostraram que coelhos já nascem com certa preferência alimentar baseada na dieta da sua mãe enquanto ela estava grávida. Informações nutricionais podem ser passadas também através do leite. Se for levado em consideração que um indivíduo que experimentou algum alimento, através do liquido amniótico ou do leite da mãe, vai provavelmente manter esta característica e passar para seus filhos, então temos a passagem de informação que não é nem genética, nem epigenética. Neste caso poderia, inclusive, influenciar na evolução e seleção dos genes, dado que há variação nas dietas e que umas dietas podem ser melhores do que as outras. Podem também existir outras maneiras de se passar informação sobre hábitos alimentares, como o odor, a saliva e as fezes. Todas desempenham igualmente o mesmo papel e são capazes de criar tradições alimentares familiares. Vemos neste caso uma forma de aprendizado que em nada se assemelha com o que costumamos chamar por tal nome. 308 Há também alguns casos interessantes de seres unicelulares, como o Protozoário conhecido como Stentor (Stentor polymorphus), que parecem ser capazes de aprender por tentativa e erro (cf. Bonner, 1980, p.112). Neste caso, foram borrifadas diferentes substâncias contra ele. Quando tal substância era nociva ele logo aprendia a fugir, quando não, ele permanecia. Já um caso bastante conhecido é o da comunicação de abelhas. A dança das abelhas indica a distância e o ângulo em relação ao Sol onde está o néctar: o formato da dança indica se está perto ou longe, a freqüência indica melhor a distância, e o ângulo da dança indica o ângulo em relação à posição do Sol. Isto está longe do que costumamos chamar de comunicação, pois é limitado, específico, preciso, rígido, mas mesmo assim é um processo que realmente passa informação não-genética sobre o mundo. Neste sentido ele já foi até considerado como “um exemplo legítimo de prática de ensino” (Bonner, 1980, p.123. Minha tradução). Com exceção dos chimpanzés, que veremos em seguida, um dos casos mais discutidos na memética é o caso dos pássaros. Talvez isso se dê porque até críticos da habilidade de imitar do chimpanzé, como Blackmore, admitem que certos pássaros são capazes de verdadeira imitação. Alguns pássaros, como o cuco, nascem já com uma habilidade inata de fazer o canto da sua espécie. Eles precisam disso, pois são chocados por “pais adotivos” que são incapazes de perceber que estão criando o filhote de outro animal. Deste modo, o cuco não pode aprender o seu canto com seu pai, pois ele não é da mesma espécie. Como o canto do cuco é usado para o acasalamento, é preciso que ele já nasça sendo capaz de cantá-lo. Já outros pássaros aprendem o modo de cantar com seus pais, como os pássaros canoros e o neozelandês saddleback (Philesturnus carunculatus). Estes são famosos por sua capacidade de verdadeira imitação. Seus cantos normalmente imitam o de seus pais, mas eventualmente pequenos erros podem acontecer em uma imitação, que dá origem a uma variação do canto original. Um pesquisador familiarizado com tais cantos é capaz de saber de que população um determinado pássaro veio só pela análise de seu canto. Um estudioso de tais pássaros foi Jenkins. Estudando a variação nos cantos, ele disse que elas “surgem de diversas maneiras: através da alteração do tom de uma nota, a repetição de uma nota, a alteração do tempo das notas e a combinação de partes de outras canções já existentes” (1978, p.76, in: Bonner, 1980, p.178. Minha tradução). Um processo 309 de mutação aleatória semelhante ao que esperamos na evolução memética. Tais pássaros são universalmente considerados como prova da transmissão cultural em animais não humanos. Além disso, diferentes músicas parecem funcionar como um mecanismo de isolamento entre duas espécies de tentilhões de Galápagos que, se não fosse pelas diferentes formas de canto, poderiam muito bem se reproduzir entre si (cf. Dugatkin, 2000, p.152). Assim temos duas espécies que foram separadas por um traço cultural. Mais uma vez, um pesquisador, neste caso, também é capaz de descobrir de que espécie veio um determinado animal apenas pelo seu canto. Curiosamente, papagaios não são muito citados em casos de estudos sobre imitação. O famoso papagaio cinza chamado Alex, que morreu recentemente, é considerado como uma prova de que eles não só são capazes de imitar alguns sons como também alguns comportamentos. Outro caso conhecido diz respeito a rota de migração de muitos pássaros. Embora o desejo de migrar seja inato, a exata rota de migração, bem como o exato local para onde se está migrando, é aprendido (cf. Bonner, 1980, p.173). Talvez o caso mais famoso justamente por não ser um caso de verdadeira imitação diz respeito a pequenos pássaros ingleses (Parus major) que aprenderam a abrir garrafas de leite colocadas pelo leiteiro nas portas das casas inglesas. Este comportamento se espalhou muito rápido e logo ficou conhecido como um caso de evolução cultural entre pássaros através da imitação. Mas depois foi descoberto que não estava havendo aí um processo de imitação verdadeiro, pois neste caso, um pássaro não aprende imitando o comportamento do outro. Ele apenas percebe que o outro foi capaz de obter leite e, por isso, é atraído para o mesmo tipo de garrafa. Lá ele aprende sozinho, por tentativa e erro, a abrir a garrafa. Deste modo, não foi um comportamento fielmente passado adiante. Um comportamento muito comum também em pássaros é a capacidade de aprender que tipo de predadores cada espécie de pássaro deve temer. Eles fazem isso normalmente observando o comportamento dos mais velhos. É um simples caso de “se o mais velho se protegeu daquele indivíduo, então devo me proteger também”. Foram feitos experimentos onde pássaros novos eram ensinados a temer animais que normalmente não temeriam, só por ver o mais velho da sua espécie ter uma reação de medo a ele. O mesmo experimento, com o mesmo resultado, foi feito com macacos rhesus (cf. Dugatkin, 2000, p.194). Ao que tudo indica, este 310 também não é um caso de imitação do comportamento. Mas não há dúvidas de que quando pensamos em cultura e imitação animal logo pensamos nos chimpanzés. Talvez seja uma surpresa quando se descobre que existe um debate se eles de fato são capazes de imitação na natureza. As pesquisas mais detalhadas feitas com chimpanzés foram realizadas em cativeiros. De tais pesquisas surgiram alguns chimpanzés famosos. Em 1960, Beatrice Gardner e seu marido treinaram um chimpanzé chamado Washoe para utilizar linguagem de sinais. Em 3 anos ele tinha aprendido 85 sinais (cf. Mithen, 2002, p.135). Sabe-se que “Bonobos inserido em um ambiente onde se usa a linguagem de sinais aprendem espontaneamente a usar os sinais” (Sterelny & Griffiths, 1999, p.315. Minha tradução). Outra chimpanzé, chamada Sarah, se mostrou capaz de compreender conceitos abstratos como “igual”, “diferente”, “a cor de”, “o nome de”. Outros experimentos mostraram que chimpanzés eram capazes de categorizar objetos em categorias semânticas como “fruta” ou “ferramenta” (cf. Mithen, 2002, p.133). “Chimpanzés parecem estar além de simples associações e saber o significado dos termos com os quais eles trabalham” (Ruse, 1995, p.179). Já Kanzi, outro chimpanzé, foi “educado” em um ambiente mais natural e com 6 anos se mostrava capaz de reconhecer 150 símbolos associados com palavras. Talvez mais impressionante era sua habilidade de compreender frases com palavras que ele não tinha aprendido e chegou a “inventar” sua própria gramática: tinha somente duas posições gramaticais, mas certas palavras tinham uma tendência maior de ficar na primeira posição e outras na segunda (cf. Mithen, 2002, p.134). Em um experimento, Kanzi foi testado e se saiu um pouco melhor que uma criança de dois anos e meio. Foram testadas 600 sentenças, a maioria com novas combinações de palavras para as quais ele não tinha sido treinado antes, e ele se mostrou capaz de compreendê-las. Jablonka nos dá alguns exemplos de sentenças que ele era capaz de compreender: Pegue uma coca-cola para Rose Faça cócegas em Rose com o coelho Pegue o cachorro no refrigerador Você pode fazer o coelho comer a batata doce? Leve a cenoura para fora Vá lá fora e ache as cenouras Coloque coca-cola na limonada 311 Coloque limonada na coca-cola (Jablonka & Lamb, 2005, p.350. Minha tradução). Para responder a pergunta de se esta capacidade de aprendizagem observada em cativeiro também está presente em situações naturais foram feitas várias observações de chimpanzés em seu ambiente. Nestas observações vários comportamentos foram descobertos, como o de preparar um instrumento feito de folha que é enfiado em cupinzeiros e formigueiros para retirar tais insetos e comêlos; abrir nozes colocando-as sobre uma pedra-bigorna e batendo nela com uma pedra-martelo; extrair medula de ossos utilizando gravetos; utilizar pedras e gravetos para se proteger; caçar em conjunto com uma estratégia onde alguns ficam no solo e outros nas árvores etc. Foram catalogadas cerca de 39 tradições culturais diferentes, uma delas, a de abrir nozes, já existe comprovadamente há pelo menos 400 anos na África Ocidental (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.183). Mithen nos fornece alguns exemplos de tais tradições: Somente os da floresta de Tai, na África Ocidental, extraem a medula de ossos com gravetos; os de Mahale, na Tanzânia, não usam gravetos para caçar formigas, apesar de se alimentarem deste inseto. Da mesma forma, os da floresta de Tai não ‘pescam’ formigas, embora as comam. Ao contrário dos Chimpanzés de Gombe, os de Mahale e Tai não usam utensílios para a sua higiene pessoal (Mithen, 2002, p.121). No entanto, a verdadeira discussão gira em torno de como se dá o aprendizado de tais tradições. A resposta comum de que era por imitação foi questionada. Muitas indicações mostram que, ao invés de imitação, temos algo semelhante ao que aconteceu com os pássaros que abriam garrafas para beber leite, ou seja, o comportamento dos mais velhos incentiva os mais jovens a tentar e descobrir por conta própria. No entanto, há casos observados de um processo de ensino e aprendizagem. Mais uma vez é Mithen quem nos diz: Os Boesch mencionam duas ocasiões em que mães observavam seus filhos tendo problemas em abrir castanhas e passaram a indicar como resolver a questão. Em um caso, demonstrou como posicionar corretamente a castanha na bigorna antes de golpeá-la, enquanto no outro, mostrou a um filhote a maneira de segurar uma pedra-martelo, e ele pareceu imediatamente repetir a ação com certo sucesso (Mithen, 2002,p.139). O mais surpreendente é o quão raro são estes casos. O ensino ativo corresponde a só 0,2% das quase mil intervenções maternas observadas. Muitas 312 são as indicações de que os chimpanzés têm uma baixíssima capacidade de imitar se comparados com os seres humanos. Talvez o exemplo mais famoso de transmissão cultural se deu com um macaco, mas não um chimpanzé. Uma macaca japonesa (Macaca fuscata) chamada Imo, da ilha de Koshima, foi observada desde 1950. Com um ano e meio Imo lavava as batatas para tirar a areia e a terra. Tal comportamento se espalhou entre os outros indivíduos do seu grupo e eles começaram a lavar batatas, principalmente no mar. Alguns anos depois, eles estavam sendo alimentados com trigo e, para separar o trigo da areia, Imo inventou uma técnica: ela jogou o trigo no mar que, boiando, se separou da areia e ela pôde, assim, catar e comer com mais facilidade sem ingerir areia. Tal hábito também se espalhou, principalmente entre os jovens. Talvez o mais interessante é que este hábito levou à outros hábitos pois, com o tempo, tais macacos aprenderam a brincar e tomar banho no mar, pulando, mergulhando e até nadando. Além disso, passaram a comer peixes deixados por pescadores. Agora há relatos até de coleta de peixes e polvos por eles70 (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.179). Mas, segundo Jablonka, estes podem muito bem não serem casos de imitação: Os jovens imitam adultos experientes? A resposta é que, na maioria dos casos em que foi estudado, a imitação não ocorre. Ainda assim, eles aprendem com os outros (Jablonka & Lamb, 2005, p.170. Minha tradução). A defesa de que a imitação é uma capacidade quase que só humana é comum. Os outros animais seriam capazes somente de outras formas de aprendizado social menos específicos do que a imitação e menos capazes de transmitir cultura. Na memética foi Susan Blackomre que trouxe esta discussão: Depois de quase um século de pesquisas, há muito pouca evidência de imitação verdadeira em animais não humanos. Uma exceção evidente é o canto dos pássaros, e pode ser que sejamos simplesmente ignorantes do mundo submarino da imitação dos golfinhos. Chimpanzés e gorilas criados em meio a famílias humanas ocasionalmente apresentam formas de imitação que não aparecem em suas contrapartes selvagens. Entretanto, quando os mesmos problemas são postos diante de macacos e crianças humanas, apenas as crianças imediatamente empregam a imitação para resolvê-los. Parece que estamos errados em usar o verbo “macaquear” no sentido de imitar. Os macacos raramente macaqueiam (Blackmore, 1999, p.50. Minha tradução). 70 Será que evoluirão para macacos aquáticos? 313 Na verdade, a gigantesca capacidade de imitar tem sido considerada por alguns como a nossa grande diferença com os animais. Blackmore deixa isso claro logo no começo do seu livro ao dizer que “a tese desse livro é que o que nos torna diferentes é nossa habilidade de imitar” (Blackmore, 1999, p.3. Minha tradução). Esta defesa já tem sido comum inclusive entre antropólogos, alguns acham que a imitação é tão própria dos seres humanos que acreditam ser esta uma cisão entre homens e bichos. Os homens, ao nascer, ainda seriam mais dominados pelo instinto do que pela cultura, mas logo a cultura se tornaria dominante através da imitação. “Muito cedo, tudo o que fizer não será mais determinado por instintos, mas sim pela imitação dos padrões culturais da sociedade em que vive” (Laraia, 2006, p.50). Como vimos, para se fazer tal separação radical é preciso fazer um corte entre a imitação e as outras formas de aprendizado social. No entanto, a primeira dificuldade em discutir imitação provém, justamente, da tentativa de categorizar as diferentes formas de aprendizados. Em primeiro lugar temos os comportamentos instintivos, que são razoavelmente simples de se entender, mas quando o comportamento começa a precisar da interação com o meio ou com os outros indivíduos para surgir vai ficando cada vez mais difícil distinguir tipos diferentes de aprendizagem social. Muitos foram sugeridos, dentre eles apenas alguns mais comuns serão apresentados. No processo chamado de cópia cega o comportamento também é inato, mas só surge quando um indivíduo se depara com uma determinada situação. Caso ele nunca se encontre em tal situação, não se comportará deste modo. Na chamada auto-aprendizagem, o indivíduo aprende um comportamento por pura tentativa e erro. Nenhuma informação é passada, pois não é uma aprendizagem social. Na facilitação social os indivíduos são atraídos para algo por ver um indivíduo, normalmente da mesma espécie, em determinado local e uma vez lá aprendem por tentativa e erro. Na aprendizagem por oportunidade um indivíduo mais velho, que age como instrutor, coloca o aprendiz em uma situação onde ele terá a oportunidade de aprender por conta própria. Já no treinamento, o professor altera diretamente o comportamento do aprendiz com punição ou encorajando. Há também o ensino, onde há um instrutor claramente definido e um aprendiz, e o instrutor ensina ao aprendiz algo que não terá benefício imediato. 314 Existem muitas versões destas divisões e também muitas outras categorizações possíveis, mas elas só foram apresentadas aqui para fazer o contraponto ao que Blackmore chamou de “verdadeira imitação”. Nesta há um processo muito mais complicado onde o que é aprendido é o padrão de comportamento. O instrutor realiza um determinado comportamento que o aprendiz deve imitar. Nas palavras de Blackmore: A imitação significa aprender algo a respeito da forma de comportamento através da observação dos outros, enquanto que o aprendizado social envolve aprender a respeito do ambiente através da observação dos outros (Blackmore, 1999, p.3. Minha tradução). Vemos então que de fato pode ser feita uma diferença entre imitação e as outras formas de aprendizagem social. Só na verdadeira imitação seria passado um padrão de comportamento, pois só ela visa este feito. As outras formas de aprendizagem social visam ensinar algo sobre o mundo. Por este motivo, Blackmore diz que só a imitação é capaz de passar memes, pois só com ela teríamos de fato uma cópia do comportamento que conta como uma hereditariedade cultural: Nesse sentido, então, não há hereditariedade real. Isso significa que não há replicador novo, nem evolução nova, e que, portanto, o processo não deveria ser considerado um processo memético (Blackmore, 1999, p.50. Minha tradução). Só a imitação de fato se daria por cópia, todas as outras formas de aprendizagem teriam, em algum momento, o individuo descobrindo o comportamento por tentativa e erro. Richerson e Boyd aparentemente concordam com Blackmore quando dizem que “apenas a imitação faz surgir a evolução cultural cumulativa de comportamentos e artefatos complexos” (Richerson & Boyd, 2006, p.109. Minha tradução). Assim, a verdadeira imitação necessitaria de: A imitação necessariamente envolve: (a) decisões sobre o que imitar, o que pode contar como ‘o mesmo’ ou ‘similar’, (b) transformações complexas de um ponto de vista para o outro, e (c) a produção de ações corporais correspondentes (Blackmore, 1999, p.52. Minha tradução). Embora não possa ser negado que em alguns casos ela se dê assim, de maneira nenhuma parece ser necessariamente assim. Como vimos nos neurôniosespelho, imitar pode ser um ato muito mais direto do que Blackmore assume, sem 315 a necessidade de grandes processos mentais. Ser complexo, ou não, não é o que de fato importa aqui, mas sim se os outros animais são capazes ou não de imitação e, principalmente, se outras formas de aprendizagem podem passar memes. Blackmore faz a separação entre imitação, aprendizagem social e contágio. As duas primeiras já foram abordadas, já o contágio é quando um comportamento inato se espalha por causa de outros comportamentos semelhantes, como bocejos, risadas e até emoções. Mais uma vez, neste caso também não haveria passagem de memes, pois nenhuma informação foi de fato passada. No entanto, vimos que repetir um comportamento inato ao observar outro é a primeira definição de imitação dada no início deste capítulo por Rizzolatti e Sinigaglia. Mas Balckmore só considera a segunda definição. Com este conceito mais restrito de imitação só alguns animais se enquadrariam: em “pássaros, golfinhos e baleias, um indivíduos ingênuos aprende não apenas o que fazer, mas também como fazer. Eles copiam a ação de outrem” (Jablonka & Lamb, 2005, p.172. Minha tradução). Podemos incluir também chimpanzés, elefantes e talvez ratos. Mas muitas espécies onde existe uma forma diferente de aprendizado estariam excluídos, até mesmo animais onde há uma forma rudimentar de ensino: leões, tigres, gatos domésticos e guepardos modificam seu comportamento de caça quando seus filhotes estão na idade para caçar. Já algumas espécies de babuínos espantam seus filhotes de objetos perigosos e algumas aves de rapina parecem ensinar suas crias a caçar (cf. Dugatkin, 2000, p.197). Mesmo assim, nenhum deles ensina por imitação fiel dos atos motores. Contra estes casos, Blackmore insiste que eles não são capazes de passar memes, pois não há informação passada. Quando um pássaro ensina outro a voar ele não explica que movimentos fazer, mas apenas o empurra do ninho e deixa que seus instintos ajam. O mesmo se daria nos pássaros capazes de abrir as garrafas de leite e poderia ter se dado em muitos casos. Imo pode não ter sido imitada, pode ter apenas incentivado outros animais a levar suas batatas para perto do mar e, uma vez lá, eles descobriram como lavá-las por conta própria. Do mesmo modo, chimpanzés filhotes já foram observados simplesmente batendo uma pedra na outra esperando que, de algum modo, sejam recompensados por uma noz. Se realmente imitassem teriam percebido que um dos passos mais importantes é ter uma noz na qual bater! 316 No entanto, este exemplo nos mostra o que precisamos entender aqui: mesmo que a ação deste pequeno chimpanzé seja completamente inútil, ela só pode ter surgido por algum tipo rudimentar de imitação. Pode não ser a nossa magnífica capacidade de imitar, mas já é um início. Exatamente como esperamos que se dê na evolução, pois a nossa capacidade de imitar tem que ter surgido de uma capacidade muito menor de fazer o mesmo. Tentar fazer como Blackmore e criar um limite rígido para a imitação é acreditar que tal habilidade pode ter surgido em um salto. Separar “verdadeira imitação” de “aparente imitação” só pode ser feito, como tudo mais na biologia, de maneira estatística. Talvez mais importante seja questionarmos se Blackmore, Richerson e Boyd estão certos em considerar a imitação como única forma de passar informação e única capaz de criar evolução cultural cumulativa. Aqui devemos notar que vale exatamente o mesmo que dissemos antes, ou seja, entre uma forma de comportamento capaz de passar fielmente a informação, como a imitação, e uma outra forma que não passa informação nenhuma, como a auto-aprendizagem, existirão formas capazes de passar informação com baixa fidelidade. Se levarmos o que nos diz Blackmore ao pé da letra, veremos que nem mesmo a própria teoria dela depende tanto do conceito de imitação quanto ela julga. O fato é que, para ela, memes são informações armazenadas em cérebros. Blackmore não é o que se convencionou chamar de “behaviorista memético”: que considera o próprio comportamento como sendo o meme (seção 10.8). Isso significa que para ela, ao contrário do que ela mesma diz, é possível que o meme seja passado, mesmo que o comportamento não seja o mesmo! A restrição que ela faz da imitação como uma forma de cópia exata do comportamento não é tão relevante quando se trata o meme como informação. Em seu último livro Dawkins percebeu isso muito bem, embora não pareça perceber que isso é uma crítica a esta restrição de Blackmore. Ele afirma que as críticas que dizem que os memes não se replicam com fidelidade são um problema “ilusório” (cf. Dawkins, 2007, p.255). Para explicar isso ele dá o exemplo do aprendiz que quer aprender a martelar com o mestre carpinteiro. Se imaginarmos que ele busca uma “verdadeira imitação”, no sentido que Blackmore parece dar, ele teria que copiar todos os movimentos do mestre. Como ele dificilmente será capaz de fazer isso, diríamos que o meme não passou com fidelidade. Mas o que acontece é que o que é imitado não é o comportamento, o 317 aprendiz entende o objetivo do mestre e a técnica e o imita neste sentido. Ele aprende algo do tipo “dar o número de marteladas necessárias para colocar o prego todo dentro da madeira”, mas não imita o número exato de martelada do mestre. Por isso Dawkins pode dizer: Os detalhes podem flutuar de formas idiossincráticas, mas a essência é transmitida imutada, e é só isso o necessário para que a analogia dos memes como os genes funcionem (Dawkins, 2007, p.255). Blackmore poderia responder a isso dizendo que seu conceito de imitação precisa, antes de tudo, de uma “decisão para o que conta como ‘o mesmo’”. Seria isso que o aprendiz estaria fazendo. Mas se este for o caso, podemos ver que o conceito de imitação de Blackmore pode ser tão relativizado que perde grande parte de seu sentido. Um chimpanzé filhote que pega um pedaço grosso de madeira e saí por aí batendo, na esperança que alguma noz apareça, também tomou uma clara decisão para o que conta como “o mesmo” e, neste sentido, estaria imitando. Vimos isso nos casos que já tratamos. É verdade que pássaros não imitam os outros no que diz respeito ao lugar para onde eles devem ir na hora de migrar. Não há uma exata passagem de informação comportamental sobre quais movimentos fazer para se chegar lá. Mas isso não quer dizer que não exista aqui uma informação que foi culturalmente passada. Informação inclusive que pode ser passada adiante por centenas de gerações e pode influenciar na sobrevivência de uma espécie. Um determinado lugar de escolha para passar o inverno pode ser melhor ou pior do que outros lugares. Populações que escolheram os melhores lugares muito provavelmente serão selecionadas. Além disso, erros podem acontecer aqui também. Um simples vento pode fazê-los pousar em uma outra localidade que, por ventura, pode ser melhor do que a anterior e esta nova informação será passada adiante. Já vimos também que tais transmissões culturais formam tradições capazes até de distinguir entre populações. Um pesquisador mais cauteloso pode saber de onde um chimpanzé veio observando a presença de um determinado comportamento cultural, ou saber a filiação de um determinado pássaro só pelo seu canto. Como vimos no caso de Imo, estas tradições podem se acumular e levar 318 a outras mudanças que nunca teriam surgido se não fosse alguma forma de aprendizagem social. Vemos aí um claro caso de acumulação cultural. Blackmore aceita que há uma forma de aprendizado na aprendizagem social, ela só ressalta que o que se aprende não é como executar um determinado padrão comportamental. Mas se há aprendizado e se ele pode ser repassado de uma maneira, teoricamente, infindável, então não há porque restringir a passagem de memes só a um determinado tipo de aprendizado. Por estes motivos podemos dizer que outras formas de aprendizado social podem também passar memes, mesmo que seja com menos fidelidade. Em concordância com isso Dugatkin diz que “há, certamente, muitos outros tipos de aprendizado social, e isso é realmente tudo que precisamos para que os memes estejam presentes nos animais” (Dugatkin, 2000, p.131. Minha tradução). Plotkin concorda que limitar a transmissão memética à “verdadeira imitação” é um erro, pois o importante é que exista a presença de um processo de cópia (cf. Plotkin, 1997, p.77). Talvez isso fique mais evidente ainda se tomarmos como medida o próprio ser humano. Aprender a dançar, por exemplo, é um típico aprendizado por imitação e, deste modo, pode ser considerado um meme fielmente passado. Mas o estilo de aprendizado que temos na escola, dificilmente seria classificado como um tipo complexo de imitação. Quando uma criança aprende quem descobriu o Brasil, ela não aprende a realizar os mesmos atos motores que o professor, mas aprende uma nova informação passada através do que se convencionou chamar de processo de ensino-aprendizagem. O mesmo se deu quando Susan Blackmore leu O Gene Egoísta e aprendeu o conceito de meme. Dawkins não lhe ensinou um padrão de comportamento, ele ensinou um conceito e pode ser que tal conceito instigue um mesmo comportamento em ambos. Mas mesmo se os comportamentos forem radicalmente diferentes, ainda assim houve uma clara transmissão cultural de informação sem ser por imitação. Em um artigo posterior, a própria Susan Blackmore admitiu que poderia ter que ampliar sua visão: A questão seria que tipos de aprendizado social podem reproduzir comportamentos com fidelidade suficiente para mantê-los intactos por diversas gerações de cópia, permitindo a seleção entre variantes e a alteração cumulativa. Pesquisas neste sentido podem revelar que, de fato, outros tipos de aprendizado social podem sustentar tal processo evolutivo e, nesse caso, eles deveriam ser incluídos como processos que replicam os memes (Blackmore, 2000, p.28. Minha tradução). 319 Como já foi dito, que os homens são extremamente capazes de imitar está fora de questão, o que é a “verdadeira imitação” também não é muito questionável. O problema se concentra mesmo em que formas de aprendizado social podem passar informação e quais animais são capazes disso. A resposta que for dada a este problema só vai ampliar ou diminuir o escopo da memética, por isso tal questão foi chamada de meramente tangencial. No entanto, é uma questão pragmaticamente relevante, pois quando se quer fazer pesquisas é sempre bom iniciar por casos simples, mas não controversos. O mais provável é que encontremos estes casos mais simples nos animais. Muitas pesquisas já foram feitas, por exemplo, na propagação cultural do canto de certos pássaros. Tais pesquisas devem ser consideradas um modelo para a memética. Mas sempre existirão casos onde a transmissão cultural não é clara ou é bastante falha, mas não significa que ela deixa de existir abruptamente. Como é largamente aceito, quanto mais imprevisível é o ambiente, mais precisamos da habilidade de aprender, pois menos podemos depender do comportamento geneticamente determinado, sendo que “ambiente” aqui muitas vezes indica os outros indivíduos da mesma espécie. Por isso o aparecimento de sociedades de animais foi considerado como uma forte pressão evolutiva para o surgimento de processos cada vez mais vigorosos de aprendizagem. Como sabemos que há uma gradação que abrange inumeráveis formas de relações sociais, é esperado que esta mesma gradação se reflita na capacidade de aprender. Podemos, é claro, arbitrariamente diferenciar entre “verdadeira transmissão cultural” e “pseudo-transmissão cultural”, mas só se mantivermos em mente que a primeira só passou a existir por intermédio da segunda. Isso significa que existem casos intermediários onde a transmissão cultural se dá parcialmente. Tais casos não serão contados como “verdadeira imitação”, mas cairão dentro de outras formas de aprendizado social. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um 'conhecer' perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso 'conceito' dela, nossa 'objetividade'. Nietzsche, III §12, 1998. 9 Filosofia da Ciência, um Sobrevôo Sobre o Labirinto: exceções, palaetiologia e comunidade Muito mais árduo do que fazer ciência é tentar definir o que é ciência. É uma tarefa que exige não só um grande conhecimento em epistemologia, mas um conhecimento ainda maior em ciência. Para facilitar tal processo, tem sido comum dividir a epistemologia71 por áreas científicas. Fala-se em filosofia da física, filosofia da química, filosofia da biologia etc. Neste sentido este capítulo poderia muito bem ser entendido como uma “epistemologia da memética” e, em parte, é exatamente isso que se pretende apresentar aqui. Entretanto, há algo pouco satisfatório nesta estratégia para quem quer levar o saber científico a sério. Ao dividir os diferentes ramos da ciência e nos concentrarmos somente na epistemologia de cada um destes, colocamos em jogo o próprio sentido do que é ser uma ciência. Se tal estratégia for aceita, podemos muito bem, e justamente, começar a apresentar uma epistemologia da astrologia, do tarot cigano, das viagens astrais, da leitura em borra de café etc. É claro que todas estas diferentes áreas tem as suas teorias sobre o que é conhecer, como o conhecimento pode ser verdadeiro, qual a diferença entre verdade e falsidade, qual o critério de verdade e qualquer outra questão de interesse epistemológico. Neste caso, é justo fazer uma epistemologia de todas elas. Mas quando todo este serviço for realizado, qual será o papel da epistemologia? A proliferação das mais variadas epistemologias com uma divisão de todas as suas áreas como se cada uma tivesse uma própria metodologia, forçosamente significaria que todas elas estão epistemologicamente fundamentadas. Teremos, 71 Embora seja possível fazer uma separação, epistemologia, filosofia da ciência e teoria do conhecimento serão tratados aqui como sinônimos. 321 por exemplo, a técnica da previsão do futuro na borra do café fundamentada na epistemologia da leitura em borra de café e pronto, tal técnica estará epistemologicamente justificada. E caso alguém não concorde com tal técnica e critique sua epistemologia, será considerada como uma tentativa de duas epistemologias incomensuráveis tentando se sobrepor uma a outra. E assim infinitamente, até que as pessoas possam se arrogar de ter uma, ou mais, epistemologias pessoais. Feito isso, qual seria o sentido de se fazer uma epistemologia? Seria um mero prazer intelectual de questionar as bases epistemológicas do que quer que seja? Se este for o caso, todo este trabalho apresentado aqui pode muito bem prescindir de uma epistemologia, que não passaria de uma perda de tempo, para começar logo a fazer memética. No entanto, tal abordagem não parece nem um pouco satisfatória para alguém que está interessado em um estudo sério e rigoroso do que quer que seja. Partindo do princípio, como já vimos, de que as diferenças genéticas entre os seres humanos são mínimas e de que os cérebros, embora possam ter adquirido uma grande diversidade de conhecimentos, são semelhantes em estrutura e funcionamento, podemos esperar que pelo menos a maioria das pessoas tenha capacidade semelhante de conhecimento. Só este pequeno ponto arquimediano, por mais bambo que seja, já é o suficiente para um naturalista se equilibrar em busca de um conceito humano de ciência. É necessário dar ênfase ao termo “humano” para deixar claro que não é um saber absoluto e inquestionável que se busca. Muito pelo contrário, o que torna tal conhecimento tão interessante é justamente, como mostrou Popper, o fato dele ser questionável, provisório, oportunista, ou seja, humano. Feito por seres humanos, para responder questões dos seres humanos, de um modo que os seres humanos possam resolver seus problemas. Não é a melhor epistemologia possível, e sim a melhor epistemologia humanamente possível. Onde o critério do que é “ser melhor” fica a cargo, é claro, dos seres humanos. De quem mais poderia ser? A única diferença da “epistemologia humanamente possível” e das “múltiplas epistemologias criadas ao prazer dos ventos” é o fato de que esta serve aos interesses pessoais, enquanto aquela busca aquilo que é humano, ou, pelo menos, estatisticamente humano. Neste sentido, pretende-se sim dar aqui o primeiro passo, um engatinhar, para uma epistemologia da memética. Mas o interesse em esboçar tal 322 epistemologia não é o simples prazer e curiosidade intelectual de desenvolver mais uma epistemologia entre outras tantas, mas sim a necessidade de mostrar que, dada a epistemologia da memética, ela é muito mais parecida com a epistemologia de áreas notoriamente consideradas como científicas do que com o resto. Para utilizar uma analogia que foi, e ainda será, utilizada durante todo este trabalho: a tentativa aqui é mostrar que se a memética fosse uma espécie animal, ela faria parte da mesma família da biologia, física, química, matemática etc. Teria como sua espécie irmã a biologia, mas também como espécies relacionadas, mas mais distantes do que a biologia, uma diversidade grande que incluiria a lingüística, a antropologia, a arqueologia, a cosmologia, a geologia etc. Já em uma outra família, separada da dela, é que deveria ser colocada a astrologia, o tarot, a quiromancia, a psicanálise e outra tantas. Assim, esta é uma epistemologia particular, foi feita não para separar e sim para unir. No entanto, não se pretende aqui resolver todos os problemas da filosofia da ciência, na verdade, até mesmo questionamos se é realmente preciso resolver algum problema epistemológico antes de se fazer ciência. Entrar nos imbricados labirintos da filosofia da ciência, com as suas dicotomias que parecem embocar em novas dicotomias e assim infinitamente, seria complicado, extenso e contraprodutivo. Seria sim possível criar um novo conceito de ciência só para a memética, mas aí cairíamos naquele jogo de múltiplas epistemologias particulares e inúteis do qual acabamos de falar. Por este motivo, não pretendemos criar aqui nenhum conceito novo de ciência para se contrapor aos que já existem. Até porque, por uma ironia cética, só é possível julgar se um conceito do que é o fazer científico se adequa propriamente a este fazer, se já soubermos de antemão o que é “fazer ciência”. De outro modo, tal conceito se adequará a quê? Também não se pretende defender um conceito já existente retirado de algum filósofo particular. Fazer isso seria justamente entrar no labirinto epistemológico que estamos tentando sair. Deste modo, o que se procura é somente um conceito epistemológico que dê conta da memética e, se houver sucesso, tal conceito a aproximará ainda mais do que ordinariamente chamamos de ciência. A fundamentação epistemológica da memética é, na verdade, um trabalho ainda por ser feito. O que é preciso fazer agora é só “acotovelar” as indagações epistemológicas para que se abra um espaço onde a memética possa respirar. 323 Mas antes mesmo de se iniciar neste sobrevôo do labirinto da epistemologia devemos questionar o motivo desta empreitada. Aparentemente a memética sofre de um mal só pela simples razão de ser filha de sua época. Ao contrário de ciências como a física, a química e a biologia, que tiveram tempo para se desenvolver, tentar, errar e tentar de novo, a memética foi cravejada de questões epistemológicas ao nascer. Ela teve a infelicidade de surgir em uma época em que a filosofia da ciência já existia, foi bem difundida e teve grandes nomes e muitas linhas de pensamento. A respeitabilidade, merecida, de tal área a fez achar que ela tem o direito de servir de “leão de chácara” do rol das ciências. Tudo isso tem um nome técnico provindo da própria epistemologia contemporânea: é a chamada normatividade. Ou seja, a filosofia da ciência seria capaz de ditar a norma, o critério, para decidir o que é e o que não é ciência, dando um critério de demarcação entre ciência e não-ciência. Deste modo, também seria capaz de ditar o modo correto de se fazer ciência. No entanto, felizmente a ciência até então pôde funcionar muito bem prescindindo de tal instância normativa, assim como uma criança, que cria as regras conforme joga o jogo. Por isso a resposta para a questão de se é possível haver ciência sem uma filosofia da ciência pré-estabelecida é um claro sim. Toda a ciência tem um fundo geral mais filosófico, e todo o fazer científico tem a sua epistemologia imanente, mas esta é uma situação muito diversa da que encontramos hoje, onde a filosofia da ciência está presente até mesmo antes do fazer científico, como algo externo, anterior e, porque não, superior. Uma possível solução para este problema seria ignorar a filosofia da ciência e simplesmente fazer memética. David Hull defende algo semelhante ao dizer que é preciso parar de discutir e fazer memética (cf. Hull, 1988). Quando a memética já estiver em pleno desenvolvimento, aí descobriremos qual epistemologia está por detrás dela. Não há nada de errado em seguir este caminho e, em parte, é o caminho defendido aqui. Mas há uma outra trilha que, se não for melhor, é, pelo menos, menos arrogante. Podemos encontrar dentro da própria filosofia da ciência grandes pensadores capazes de criar “bolsões de ar” no meio de toda a normatividade para permitir que uma nova ciência respire. Um destes filósofos foi Feyerabend. Não pretendemos aqui defender todos os pontos de vista de Feyerabend. A interpretação corriqueira que é dada a este filósofo implica que defendê-lo seria 324 acabar com qualquer possível limite de demarcação entre ciência e não-ciência. Seria estranho fazer isso quando justamente estamos tentando aproximar a memética da ciência. Seria como puxar as ciências para baixo, ao invés de empurrar a memética para cima72. Em oposição a isso, pretendemos ver Feyerabend de uma outra maneira, mas, é claro, ainda fazendo justiça ao seu anarquismo (ou dadaísmo) epistemológico. Ao ler Feyerabend é sempre importante buscar a plausibilidade escondida por detrás de seu radicalismo. É possível ler a obra de Feyerabend, especialmente seu Contra o Método, como um manifesto sobre a inutilidade normativa da filosofia da ciência. Antes de mais nada, é preciso entender as duas principais motivações de Feyerabend. Em primeiro lugar, a história da ciência está repleta de momentos onde metodologias que eram bem aceitas foram deixadas de lado em prol desta mesma ciência. Em segundo lugar, nós devemos admitir que o mundo é em grande parte desconhecido e, por isso, não podemos saber de antemão qual será a melhor metodologia para lidar com aquilo que ainda não conhecemos. A leitura cotidiana do pluralismo epistemológico feyerabendiano tende a achar em sua obra uma prescrição normativa do “tudo vale”. Como se ele estivesse incentivando que a ciência deva ser tomada por todas as formas estranhas de metodologia. Como se o método científico até então existente devesse ser ignorado. Uma leitura perfeitamente natural, dado que o título “Contra o Método” parece indicar que ele quer acabar com tal método científico. Seria como prescrever o método de não se usar métodos nunca! Mas isso ignora que ele mesmo disse que é correto que as profissões especiais, como as da ciência ou da prostituição, tenham o direito de exigir que seus afiliados e/ou praticantes se conformem a padrões que lhes parecem importantes e que possam verificar-lhes a competência (Feyerabend, 2007, p.223). Ao colocar o termo “prostituição” ao lado da ciência, provavelmente com uma tola atitude de querer chocar, ele acaba impedindo a compreensão de tal citação. No entanto, é possível fazer uma leitura menos radical. Defender, como ele defendeu claramente, que sendo o mundo desconhecido, então não sabemos de antemão como abordá-lo, está, na verdade, em franca oposição com a defesa atribuída a ele de que não devemos usar método nenhum nunca. Se o mundo é 72 “Baixo” e “cima” têm sim sentido valorativo aqui! 325 desconhecido, é perfeitamente possível que ele só possa ser futuramente compreendido através de alguma metodologia. O que não podemos saber é qual será esta metodologia. É por isso que ele diz que “só há um princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias e em todos os estágios do desenvolvimento humano. É o princípio: tudo vale” (Feyerabend, 2007, p.43). Visto deste modo, o “tudo vale” longe de ser um preceito epistemológico que incentive a proliferação inútil de metodologias, é a constatação de que não se deve ficar preso à normatividade prescritiva da filosofia da ciência. Não se deve deixar que a filosofia da ciência se transforme em uma amarra ao fazer científico. É preciso liberdade. É preciso, antes de tudo, tentar. Deste modo, só é possível dizer que não é possível, depois de tentar. Lida assim, a grande tese de Feyerabend é somente sobre a inutilidade normativa da epistemologia. Não é um “tudo vale” científico, é um “tudo vale” epistemológico. Ou seja, não se busca dizer que qualquer coisa pode ser chamada de científica, e sim que a ciência precisa ter liberdade para andar sozinha. Buscar conceitos que determinem de antemão o que é ou não é ciência impede o próprio fazer científico que se está buscando proteger. A melhor regra para tal fazer é deixá-lo livre, tudo vale! De maneira nenhuma isso significa que qualquer metodologia deve ser considerada científica. Vimos que o próprio Feyerabend admite que certas profissões, como a ciência, têm o direito de verificar a competência de seus afiliados. Buscar novas metodologias para tratar de novos objetos não pode significar abandonar a busca pelo rigor e pela objetividade, que são necessárias para que a ciência seja um fazer comunitário. “Novas metodologias” não significa “qualquer metodologia”. De antemão podemos saber que qualquer metodologia que impeça que o fazer científico seja publicamente entendido, “verificado”, repetido e refutável por outros deve ser rejeitada. Na leitura que estamos buscando aqui, Feyerabend não é contra qualquer tipo de método, ele é contrário somente ao estabelecimento prévio de um determinado método como sendo o único possível. Deste modo, o que se segue poderá ser interessante e fecundo, mas deve ser visto como pragmaticamente inútil. Buscar uma epistemologia da memética que a aproxime da ciência não é a mesma coisa do que tentar determinar um critério de demarcação e dizer que a memética faz parte da ciência. É fazer algo muito mais modesto: procura-se somente mostrar que se for feita uma “gradação das ciências”, a memética deve ficar próxima da biologia, que por sua vez, está 326 próxima da química e da física. Uma analogia que talvez ajude a compreender o que está sendo dito aqui: não procuramos um “espaço absoluto” onde a memética possa definir as suas coordenadas em relação a um sistema de referência universal, mas somente um “espaço relativo” onde para localizar a memética basta dizer quem está à sua esquerda e quem está à sua direita. É perfeitamente possível fazer isso sem se preocupar se existe ou não um limite de demarcação para chamar algo de científico. Com ou sem demarcação, o importante é que a memética encontre o seu lugar em relação aos outros saberes. Por isso é que foi dito que não será tentado aqui criar um novo conceito de ciência ou mesmo defender um já existente. Somente apresentar em que “família epistemológica” a memética futuramente deverá se enquadrar já será mais do que suficiente. 9.1 Demarcando o Território A primeira dificuldade com esta empreitada é descobrir onde, nesta gradação, se localiza a biologia. Esta, infelizmente, foi quase que ignorada pelos “grandes nomes” da Filosofia da Ciência tradicional ao propor suas teorias. É preciso destacar que o que trataremos aqui não é sobre a importância da filosofia da biologia, pode-se dizer que esta já se tornou até mais importante do que a própria filosofia da ciência. No que diz respeito ao seu lugar em relação às outras ciências, os biólogos não têm do que reclamar, a biologia é hoje uma das mais renomadas ciências e, com isso, a filosofia da biologia ganhou o seu merecido destaque. Mas a questão fundamental aqui é saber qual implicação teve este sucesso da biologia para o questionamento geral do que é fazer ciência como um todo. Talvez este seja um dos motivos que a disciplina “filosofia da biologia” surgiu separadamente dando início a compartimentalização da epistemologia que estávamos falando na seção anterior. Sabe-se, como já vimos nos primeiros capítulos, que no seu nível molecular o estudo da biologia mantém fortes relações com a física e com a química. As tão importantes proteínas têm grande parte de suas funções justamente por causa de suas propriedades estereoespecífica, ou seja, 327 devido a sua forma física tridimensional (seção 1.2). Funcionam como blocos de encaixe com propriedades químicas. Não há dúvidas de que a biologia está muito próxima destas duas ciências, assim como próxima da matemática, que se encontra desde o nível molecular até os estudos da macro-evolução, passando pela teoria dos jogos no comportamento social animal. Dada estas íntimas relações, e assumindo que a biologia é um estudo sério, rigoroso, utilizando modelos matemáticos e experimentos empíricos sempre que possível, é de se espantar com o pouco papel que ela tem não só na filosofia da ciência em geral, mas também na mentalidade cotidiana do fazer científico. É claro que, quando um leigo pensa em um cientista, ele logo pensa em alguém de jaleco branco com uma criação de ratos de laboratório. Mas, como veremos em breve, embora a imagem do que é um cientista possa ter mudado, pois já não é mais um senhor de cabelos desgrenhados e com a língua de fora, a imagem do que é a ciência não acompanhou tal mudança. Ao pensar em ciência, um leigo não consegue dissociar a sua imagem de conceitos tal como “lei”, “previsão”, “mecanicismo”, “reducionismo”, “matemática” “materialismo”, “tecnologia”, “experimentos” etc. Provavelmente ele não conhece os termos exatos, e nem as implicações filosóficas de tais termos, mas juntas elas formam uma “imagem de mundo” que é tipicamente unida ao fazer científico de uma maneira mais ou menos parecida com esta: “a ciência materialista estuda como as partes estão mecanicamente encadeadas para formar um todo e, baseada nas leis que ela descobre e na matemática, ela pode fazer previsões e construir tecnologia”. Como toda imagem de mundo, ela não é exatamente falsa, só mal direcionada e extremamente simplista. Mas o mais importante aqui é perceber que esta visão de mundo não só utiliza conceitos que não são todos igualmente relevantes para a biologia, como esquece conceitos que são extremamente importantes. Dentro desta visão, a biologia não é tão científica quanto a física ou a química. No entanto, não é dado ao leigo o dever de conhecer os meandros da prática científica. Por isso o que mais surpreende, na verdade, é o fato da própria filosofia da ciência seguir um caminho parecido. Como já foi dito, existe a filosofia da biologia que atualmente prospera, mas esta não é a questão. O problema é saber o que a biologia tem a dizer para a filosofia da ciência em geral. Ou seja, o que a biologia traz para a questão “o que é ciência?” Seria exagero dizer que a 328 epistemologia ignora a biologia como um todo. Muito pelo contrário, a epistemologia contemporânea tem sido dominada pela biologia. No entanto, ela não lhe dá o devido valor no que diz respeito aos seus questionamentos mais gerais do fazer científico. Pior ainda é se formos comparar o valor dado à biologia em relação ao valor dado à química e, principalmente, à física nestes questionamentos. Ficamos com a impressão de que, uma vez descoberta a importância da biologia, os filósofos da ciência perceberam suas diferenças e desistiram de falar de ciência como um todo. Iniciaram as discussões sobre a filosofia da biologia e esqueceram das discussões sobre filosofia da ciência. Como já foi mencionado, talvez seja justamente porque a biologia traz novas abordagens enquanto releva abordagens antigas para a prática científica que se criou esta compartimentalização da epistemologia. Um tradicional filósofo da ciência, quando entra em contato com uma novidade metodológica da biologia, ao invés de ter que mudar o seu conceito geral de ciência, simplesmente diz “isso aí é questão para a filosofia da biologia”. Mas esta é uma atitude simplista. Se não queremos abandonar o conceito de ciência devemos discutir o que estas novas abordagens da biologia nos dizem sobre a ciência em geral. É claro que há a possibilidade de se abandonar o conceito de ciência em geral e falarmos só da pluralidade das ciências. Mas esta estratégia foge do ponto central que é que aqueles que não abdicaram do conceito mais geral de ciência, e Popper é um deles, não podem mais continuar dando menos importância à biologia em suas análises. Mesmo aqueles que falam de ciências e metodologias no plural devem estar atentos que, para enquadrar a biologia no grupo das ciências (no plural) é preciso ter antes um conceito do que é ciência (no singular) para definir se uma metodologia entra ou não neste grupo restrito. Simplesmente dizer que existem vários tipos de ciências, com várias metodologias, não diminui a necessidade de se definir o que é “ser ciência”. Do mesmo modo, dizer que existem várias espécies muito diferentes de cetáceos não implica que não se deva definir o que é um cetáceo (um mamífero marinho). Já a última estratégia, que seria a de não definir conceito nenhum de ciência, pois não há absolutamente nada que a diferencie das demais áreas como a astrologia, a psicanálise e o tarot das fadas, não deveria dizer que faz filosofia da ciência. Por que não passar a chamála de filosofia do tarot? No final das contas, teria que dar no mesmo. Não é esta abordagem que se busca aqui. 329 Assumindo que mesmo que existam diversas metodologias científicas diferentes, que elas só são chamadas de científicas porque podem ser enquadradas no grande conjunto denominado Ciência, temos, então, que perceber que não foi dada à biologia o lugar que esta merece neste conjunto. Não há biólogo, ou filósofo da biologia, que não perceba, e não critique, o papel quase universal que a física ocupa na formulação da epistemologia. Dois dos principais filósofos da biologia são bem claros a este respeito: No início do século vinte, Bertrand Russell declarou que a teoria da evolução não possui implicações filosóficas maiores. As ciências que tinham algo a ensinar à filosofia eram a matemática (particularmente a lógica matemática) e a física. A física tinha que servir como um modelo para as outras ciências e, nos cinqüenta anos que se seguiram, os filósofos recriminaram continuamente a incapacidade da biologia de seguir esse exemplo. O conhecido filósofo da ciência e da mente J. J. C. Smart comparou o biólogo com um engenheiro de rádio. Os biólogos estudam o funcionamento de um grupo de sistemas físicos que foram produzidos em um único planeta. Smart achava que uma disciplina assim tão paroquial dificilmente contribuiria para nosso acervo de leis fundamentais da natureza (Sterelny & Griffiths, 1999, p.3 - 4. Minha tradução). E eles continuam logo em seguida dizendo que “a metafísica e a filosofia da ciência foram, com demasiada freqüência, dominadas por modelos retirados da física e da química” (Sterelny & Griffiths, 1999, p.6. Minha tradução). Ernst Mayr também ressaltava constantemente esta questão. É importante notar que mesmo que adotemos a visão de Smart, de que a biologia é o estudo de criaturas físicas e particulares deste planeta, ou seja, mesmo ignorando o darwinismo universal, ainda assim não há justificativa razoável para se colocar a biologia em segundo plano. Mesmo se ela não for tão universal quanto a física, ela ainda é uma nova ciência que, e isto é que é importante, traz uma nova forma de se fazer ciência. Se os próprios filósofos da ciência não foram capazes de reconhecer, admirar e estudar esta nova forma de se fazer ciência, é difícil saber quem será. Talvez o mais interessante nestas críticas seja justamente o fato de que elas estão inextrincavelmente ligadas à maneira de se fazer ciência da física. Pois se criticamos a particularidade da biologia é porque existe aí uma defesa de que a “verdadeira ciência” é a que estuda aqueles fenômenos que são invariáveis em todo o universo, aquela que estuda leis. Fenômenos particulares, singulares, não interessam à ciência. Mas a biologia mostrou claramente que este não é o único modo de fazermos ciência. Ela está sim voltada para questões gerais, e também para questões particulares, às vezes extremamente particulares. Se fosse 330 encontrado um fóssil, ou ser vivo, que fosse o único de seu tipo, e se seu tipo fosse diferente o suficiente para ele não ser considerado uma mera variação de outros tipos já conhecidos, então seria de extremo interesse científico, e filosófico, estudar este único indivíduo, sua anatomia, fisiologia, comportamento, história evolutiva e tudo mais que fosse possível estudar sobre ele. Seria uma gigantesca massa de estudos feitos sobre um indivíduo só, e alguém teria coragem de dizer que isso não seria ciência da melhor qualidade? Nem mesmo Aristóteles teria. Deste modo, fica claro que o conceito prévio de que todas as ciências devem se basear na física já foi ultrapassado pela biologia. Para aqueles que ainda insistem em tratar a questão da ciência como um todo, a física foi por muito tempo, e infelizmente ainda é, considerada como o critério de cientificidade. Quanto mais parecido algo for com a física, mais científico ele será. Ela é o modelo: a Rainha das ciências pode ser a matemática, mas o primeiro ministro é a física. No entanto, a biologia vai ocupando lugar nos departamentos e ganhando destaque não só na mídia, como também nos orçamentos institucionais. Algumas pesquisas já indicam que o orçamento da biologia é maior do que o da física em vários lugares. E em muitos departamentos de física, engenharia, matemática e ciências correlatas, a maior parte proporcional do financiamento está direcionado para áreas como a bio-física, bio-engenharia e bio-matemática. É um fenômeno mundial que ainda não teve as repercussões necessárias no que diz respeito ao conceito geral do que é fazer ciência. Os estudos sobre epistemologia têm sido praticamente dominados pela biologia. No entanto, tais estudos ainda não levaram a uma repercussão mais trabalhada do que os métodos usados na biologia podem nos dizer em relação à questão do que é ciência em geral. Quando tratamos especificamente do conceito de ciência ainda é comum esquecer a biologia e tratar este conceito do modo que a física e a química o entendem. Como não podia deixar de ser, não foram só os filósofos da biologia que perceberam esta omissão da epistemologia contemporânea. Muitos biólogos, ao procurarem sua fundamentação na filosofia, não ficaram satisfeitos com o que viram e se expressaram a este respeito. Dawkins é aberto a este respeito e nos dá um brilhante exemplo do que está sendo dito aqui: um dos principais oponentes de Darwin em sua época foi lorde Kelvin (William Thomson), talvez o maior físico da sua época, que dizia ter refutado Darwin ao provar que a Terra só tinha dezenas 331 de milhões de anos. Não interessa o fato de que ele estava brutalmente errado (a Terra tem cerca de 5 bilhões de anos, sendo que cerca de 90% destes ela foi povoada por vida!), o que interessa é o modo como ele refutou Darwin. O melhor é ler nas próprias palavras de Dawkins: Realmente imperdoável é o modo como ele descartou arrogantemente ‘como físico’, as provas biológicas darwinianas: a Terra não era suficientemente velha; não havia transcorrido tempo suficiente para que o processo darwiniano de evolução obtivesse os resultados que vemos à nossa volta; as provas biológicas devem estar simplesmente erradas, prevalecendo as provas superiores da física. Darwin por sua vez, poderia ter retrucado (coisa que não fez) e dito que as provas e evidências biológicas são claramente indicativas da evolução, portanto, deve ter transcorrido tempo suficiente para que a evolução ocorresse e, sendo assim, a evidência dos físicos é que deveria estar errada! (Dawkins, 1998, p.90) O mesmo problema que ocorreu então, ainda ocorreria hoje. Quem, até mesmo dentre os filósofos da ciência, tomaria o lado da biologia contra as “evidências superiores da física”? No entanto, era a biologia que estava correta. Nada melhor do que este exemplo para mostrar o que significa ser relegado ao “segundo escalão epistemológico”. Hoje a perspectiva parece ter mudado: a biologia ganhou uma gigantesca importância. Mas como os filósofos da biologia e os próprios biólogos insistem em dizer: somente “parece”. A importância acadêmica da biologia mascara o fato de que o reducionismo da física ainda lhe é considerado superior. Como a física trata de um nível inferior, ela ainda permanece com determinada superioridade epistemológica. Eventos biológicos, em última instância, não são nada mais que eventos físicos e químicos visto em um nível superior. Mas a realidade, a realidade mesma, seria física e química de modo que a biologia deve se adequar a esta realidade, como no caso do lorde Kelvin. Um rápido exemplo pode deixar esta questão mais intuitiva: é perfeitamente concebível que um físico desminta a existência de vida em outros planetas, apenas porque não encontra lá as substâncias químicas associadas à vida no nosso planeta. Mas como vimos na questão do darwinismo universal (seção 1.2 e 3.1), um biólogo pode muito bem dizer que a vida não precisa ter seguido o caminho que seguiu aqui e seu substrato físico pode ser completamente diferente. A questão que fica é a seguinte: o que nos fez pensar por algum momento que um físico poderia dizer o que quer que seja sobre os fatos da biologia? Podemos 332 lembrar também que não existe um prêmio Nobel de biologia, embora exista da física, da química, da paz, da literatura, da medicina e até mesmo da economia73. 9.2 Fazendo Ciência com o Enfoque em Biologia: o papel da exceção Apresentaremos aqui algumas diferenças entre o fazer cientifico da física e o fazer científico da biologia. De maneira nenhuma será uma análise exaustiva, na verdade é uma análise breve recolhida de alguns biólogos. Mas o que se deve ter em mente a seguir não é um foco nas diferenças que serão apresentadas, e sim na visão de mundo que elas trazem consigo, principalmente no que diz respeito ao que é fazer ciência. Não buscamos uma oposição entre física e a biologia. Isso seria absurdo, elas são claramente complementares. Desde que o élan vital foi abandonado, está claro que a biologia estuda o mundo físico. Se levadas ao pé da letra, muitas dessas diferenças que serão citadas não são realmente diferenças. Quase todos os métodos encontrados na biologia também são encontrados na física e vice-versa. A verdadeira questão está no enfoque que se dá em cada ponto. É a diferença de enfoque que cria a diferença entre as visões de mundo. Só para manter o exemplo já citado na seção anterior: assim como os biólogos, se um físico encontrasse um mísero grama de um novo tipo de material não relacionado com qualquer outro existente, ele também estudaria a fundo tal material. Neste sentido a física não é tão diferente da biologia. Mas o enfoque dado a este problema seria completamente diferente nestas duas ciências: a física não espera que tal evento aconteça, os físicos preferem que ele não aconteça, pois poderia abalar toda a sua estrutura. Nenhum químico quer fazer mudanças na tabela periódica! Veja o exemplo da chamada “matéria escura” e da “energia escura”, que causou nada menos do que um terremoto dentro da física, e cujo dano ainda não foi calculado, simplesmente porque ainda não se sabe o que elas 73 Economistas acreditam fazer “ciência econômica” porque utilizam dados numéricos e tentam fazer previsões testáveis. Até aí, segundo Popper (seção 9.4), estão fazendo ciência mesmo. Mas suas previsões raramente acertam, mesmo dentro de uma determinada margem de erro, além das previsões serem diferentes dependendo de quem as faz, algo típico de uma era pré-paradigmática segundo Kuhn. Eventualmente alguém acerta, algo perfeitamente esperado, pois até na mega-sena eventualmente alguém acerta. Mas isso não quer dizer que ele saiba mais do que os outros. Quando muitas tentativas diferentes são feitas, alguém acaba acertando! 333 são (cf. Greene, 2001, p.250). Já na biologia, o surgimento de novas espécies não é só esperado, é desejado. Como já vimos, talvez só conheçamos cerca de 10 % das espécies (seção 1.9). A todo momento surgem novas espécies e é comum que elas não se enquadrem bem nas filogenias existentes, exigindo, às vezes, uma reformulação completa da história evolutiva de uma família inteira. Nada disso espanta um biólogo, muito pelo contrário, é isso o que ele espera que aconteça. Deste modo, um evento similar acontecendo nestas duas ciências terá impacto completamente diferente. É justamente esta diferença “nos impactos” (enfoques) que se busca aqui, pois o mundo que o biólogo estuda é o mesmo do físico, ambos concordariam com isso, mas a visão de mundo dos dois, o enfoque que eles dão, é bastante diferente. É isso que deve ficar claro no que se segue. É difícil definir qual seria a diferença mais fundamental entre a abordagem da física e da biologia Talvez isso sequer exista, mas se existir ela provavelmente se dará na relação que ambas as ciências têm com a matemática. Seria impossível fazer uma análise destas relações aqui, mas um atalho para este problema pode ser seguido. Este atalho é ver o que cada uma das ciências pensa sobre as suas “exceções”. Em uma rápida, porém útil, definição, uma exceção é quando algo foge a regra geral. A física e a biologia têm que lidar com exceções, mas as tratam de maneira bem diferente. Um simples experimento pode mostrar isso: a citação a seguir, cujo autor foi retirado da referência, pode ter sido encontrada em um texto de física, química ou biologia: no mundo real, fora dos livros de lógica, conceitos simples tais como o de “necessidade” e “suficiência”, precisam ser substituídos por equivalentes estatísticos (…, 1999, p.195. Minha tradução). De fato, ela poderia estar em qualquer um destes textos. Nenhuma destas ciências acredita que o mundo funciona com uma regularidade matemática absoluta. Há sempre uma margem de erro, há sempre exceções. Mas em qual destas áreas tal citação mais provavelmente apareceria? E, mais importante ainda, em qual delas esta citação seria colocada em defesa de tal área, e não como “um problema com o qual temos que aprender a conviver”? Um bom palpite seria a física quântica, mas esta é só uma disciplina de uma área bem maior que é a física. Além de ser uma área com inúmeras interpretações, sendo que nem todas aceitam tão prontamente suas características probabilísticas (cf. Penrose, 1997). 334 Além disso, “Darwin introduziu os conceitos de probabilidade, acaso, e singularidade, no discurso científico” (Mayr, 2006, p.2). Foi inclusive intensamente questionado por isso, pois, na mentalidade da época, uma disciplina científica não poderia falar de acaso, pelo menos não como algo que constituísse uma parte fundamental da sua teoria. Já existia na época de Darwin um reconhecimento do papel do acaso, mas, como nos diz Futuyma, este reconhecimento era do tipo formal, como o “dado a um estranho em uma festa íntima” (Futuyma, 2002, p.463). A resposta mais provável é que esta citação é de um biólogo, no caso foi escrita por Dawkins. Mais importante ainda, ele não estava se lamentando por isso, muito pelo contrário, estava defendendo o papel da estatística. Neste caso em particular estava falando que a relação entre os genes e seu efeito fenotípico é estatística para, depois, poder refutar o determinismo genético74. Exceções fazem parte da vida. As aves de rapina, por exemplo, são carnívoras, mas isso não é verdade para um tipo de abutre africano que é vegetariano (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.258). Como veremos na próxima seção, o fato de que sempre há exceções é o próprio coração do pensamento biológico que está caracterizado no que foi chamado de Pensamento Populacional. Talvez tudo o que afirmamos aqui poderia resumir-se da seguinte maneira: a biologia não é uma ciência da regra, ela é uma ciência da exceção. Por isso a estatística e a probabilidade lhe são mais próximas do que em qualquer outra grande área científica. Todas as ciências usam estatística e probabilidade, mas em nenhuma ela é mais central75. Em nenhuma delas estas duas áreas da matemática são mais representativas do seu fazer científico. Este fato, como não podia deixar de ser, afeta diretamente o conceito de “lei” dentro da biologia. Leis, no sentido de regras universais e necessárias, simplesmente não são encontradas na biologia. “Hoje é comumente aceito que, neste sentido, não existem leis biológicas da natureza” (Sterelny & Griffiths, 1999, p.366. Minha tradução). Infelizmente, devido a uma cegueira causada pelo excesso de física, 74 Isso mesmo, Dawkins não é um determinista genético. Tal fato já foi mostrado no início desta Tese, mas é comum que seja esquecido! 75 Lembrando que a física quântica e a termodinâmica são só áreas da física. E ambas também têm problemas com o conceito de “lei”. 335 muitos ainda não conseguem conceber uma ciência sem leis 76. Mas a biologia é uma ciência e tem, no máximo, grandes regularidades. Seu procedimento é bem diferente do da física e da química, mas não menos rigoroso. Nas palavras de Gould: Quando um paleontólogo olha para um dente isolado e diz ‘Aha, um rinoceronte!’, ele não o está reconhecendo através das leis da física, mas simplesmente fazendo uma associação empírica: dentes com esta forma característica (...) nunca foram encontrados, a não ser em rinocerontes. Esse dente solitário implica um chifre e um couro espesso, só porque todos os rinocerontes têm esses atributos em comum e não porque as leis dedutivas da estrutura orgânica expressem a sua necessária conexão. (Gould, 1992, p.99) Um caso interessante é a relação entre os códons de DNA e os aminoácidos que eles codificam: esta é uma das relações mais estáveis que possuímos dentro da biologia, é perfeitamente possível que a relação entre cada códon e seu aminoácido seja universal, ou seja, que cada tipo de códon sempre codifique um mesmo aminoácido, sem exceção alguma (seção 1.7). Mas mesmo assim não temos uma lei da biologia, pois a relação entre cada códon e seu aminoácido pode ser só mais um caso, tão comum na biologia, de “acaso congelado”. Pode ser que outras combinações entre códons e aminoácidos existam, mas quando uma se estabeleceu, por acaso, passou a ser quase impossível que uma mudança ocorresse, pois ela seria muito mal-adaptativa77. Mesmo havendo universalidade, não significa que há lei. Deste modo, mesmo a regularidade mais fundamental da biologia não seria nem um pouco abalada se algum dia, em algum lugar, fosse descoberta uma exceção. Descobrir algo assim na física seria como descobrir um planeta onde objetos mais leves do que a água afundem quando colocados nesta! Aí está, talvez, a grande diferença entre a biologia e a física e a química. A biologia foge de leis e traz no seu lugar regras estatísticas e probabilísticas. Ela procura regularidades suficientemente permanentes para serem interessantes, nada mais. Nas palavras de Sterelny e Griffiths: “é possível trabalhar com a biologia sem 76 Segundo o modelo Nomológico-Dedutivo de Hempel, utilizado tanto pelos positivistas lógicos, quanto por Popper, e ainda defendido até hoje, só existe explicação científica quando temos leis. Além disso, explicar deveria ser o mesmo que prever, pois tudo o que podemos explicar, poderíamos ter previsto. Como veremos em seguida, leis e previsões não têm papel importante na biologia e, deste modo, segundo este modelo ela não seria capaz de explicar nada. Uma conclusão evidentemente absurda! 77 Vimos no segundo capítulo Dennett chama isso de “fenômeno qwerty”. 336 buscar leis gerais desprovidas de exceções, mas sim descobrindo mecanismos causais recorrentes” (Sterelny & Griffiths, 1999, p.368. Minha tradução). Exatamente por este motivo é que surgiu com a biologia um novo tipo de pensamento, apontado por Mayr como já tendo se originado em Darwin, que talvez seja a contribuição mais importante que a biologia possa dar para a filosofia da ciência. É o chamado Pensamento Populacional. Para explicar o que é o pensamento populacional será necessário fazer uma grande digressão, mas que se mostrará útil para compreender o que a biologia tem a oferecer à filosofia da ciência. 9.4 O Pensamento Populacional O pensamento populacional é o fim do essencialismo na biologia. “Pensamento Populacional” e “Essencialismo” são ambos termos tirados de Mayr e hoje largamente difundido entre biólogos e filósofos da biologia. Veremos que o termo “essencialismo” aqui não significa exatamente o mesmo que este termo significa dentro da filosofia. É importante deixar claro que ao utilizar este termo não estamos atacando a chamada “questão da essência” que encontramos dentro da filosofia, mas somente a questão de se a realidade biológica deve ser encontrada nas espécies ou nos indivíduos. Ou seja, não estamos afirmando que não existem essências, mas apenas que as espécies não são essências. Assim sendo, o essencialismo tenta dividir a natureza em grupos discretos de modo que você não pode fazer parte de dois tipos ou estar entre um tipo e outro. Ou você é um leão ou é uma zebra, ou está vivo ou está morto, ou tem consciência ou não tem. Mas isto está biologicamente errado, não há essências na natureza. É verdade que um leão não pode se reproduzir com uma zebra, mas isso é só uma questão factual que diz respeito aos mecanismos de isolamento. Não quer dizer que algo que é meio leão meio zebra seja uma espécie de contradição que não pode, em princípio, existir. Ser leão não é uma propriedade do tipo sim ou não, ou você é ou você não é, você pode sim ser semi-demi-hemi-pseudo-quase-proto78 leão. A 78 Termo tirado de Dennett, 2005. 337 diferença entre não-vivo e vivo também é ilusória, entre elas há sempre um semidemi-hemi-pseudo-proto-quase vivo 79, o mesmo se dá entre consciente e nãoconsciente e entre macho e fêmea. A separação entre reprodução sexuada a assexuada também é nebulosa (cf. Sterelny & Griffiths, 1999, p.71), muitos outros exemplos poderiam ser citados, pois o mesmo vale para praticamente toda classificação biológica. É Dawkins que nos diz: Se considerarmos todos os animais que já viveram em vez de apenas os animais modernos, palavras como ‘humano’ e ‘ave’ se tornam tão nebulosas e indistintas em suas fronteiras quanto termos como ‘alto’ e ‘gordo’. (...) Acontece que se ‘ave/não-ave’ é uma distinção mais clara do que ‘alto/baixo’, é tão somente porque no caso ave/não-ave os intermediários incômodos estão todos mortos (Dawkins, 2001, p.383). Se isso nos parece muito estranho é porque ainda estamos presos a um modo essencialista de pensar sobre a natureza. “Nossos procedimentos de nomenclatura estão programados de acordo com uma era pré-evolucionária na qual as divisas eram tudo e não esperávamos encontrar intermediários” (Dawkins, 1998, p.123 – 124 e Dawkins, 2005, p. 46). Já vimos, inclusive, que existem evidências de que possuímos um módulo mental inato específico para tratar do mundo vivo, e que este segue tais padrões essencialistas de classificação (seção 4.4). Nossa forma de classificar muitas vezes nos faz colocar arbitrariamente um indivíduo intermediário em uma espécie ou em outra80. No entanto, como a evolução não se dá aos saltos, indivíduos intermediários devem ser mais do que esperados. Nas palavras de Ridley: A idéia de que a natureza vem em grupos discretos, sem variação entre eles, é uma percepção ingênua. Se toda a gama de formas naturais, no tempo e no espaço, é estudada, todos os limites aparentes tornam-se fluidos (Ridley, 2006, p.76). Tais indivíduos intermediários não devem ser considerados exceções aberrantes, muito pelo contrário, eles são naturalmente esperados pelo 79 Cabe lembrar que há não muito tempo atrás a não separação entre vivo e não-vivo seria considerada absurda e incoerente! No entanto, depois dos experimentos de Friedrich Wöhler (1828) e do surgimento da bioquímica esta crítica gradativamente perdeu força. 80 Um caso paradigmático disso, como nos diz Dawkins, é a procura vã pelo “elo perdido”, pois quando um novo fóssil de um ancestral nosso é encontrado ele imediatamente é classificado ou como humano ou como primata. O que faz com que o “elo perdido”, por definição, nunca apareça! (cf. Dawkins, 1998, p.123) 338 pensamento populacional que trabalha com um conceito de espécie muito mais fluido do que o conceito utilizado pelo senso comum. Como Dennett nos mostra, a catalogação de animais em espécies dentro do pensamento populacional é muito mais parecida com a arrumação de livros em uma livraria do que com elementos em uma tabela periódica. Embora muitos casos não sejam controversos, sempre haverá aquele romance que não é ficção, mas também não é nem biografia e nem livro de história, ou aquele livro de filosofia que também ficaria confortável nas prateleiras de literatura etc (Dennett, 1998, p.39). A existência de intermediários entre as espécies faz parte da própria noção de evolução, pois uma espécie nova se forma através da soma de pequenas variações benéficas em uma espécie ancestral. Nas palavras de Darwin: de acordo com a teoria da seleção natural, a existência anterior de um conjunto inumerável de formas intermediárias deve ter existido, ligando todas as espécies em cada grupo por gradações tão delicadas como as nossas variedades existentes (Darwin, 2004, p.485). Se para resolver este “problema do intermediário” for criada uma nova espécie (ou sub-espécie) entre as duas espécies existentes, com isso só se multiplicará o número de indivíduos intermediários, pois agora teremos novos intermediários entre esta recém criada espécie e as duas que já existiam anteriormente. Continuando no mesmo raciocínio, teríamos que criar agora dois novos grupos de intermediários e assim sucessivamente até que cada indivíduo seja considerado como o exemplar único de sua própria espécie. Mas isso não é nada mais do que dizer que cada indivíduo é único, o que é a própria base do pensamento populacional! Ver os intermediários como problema é olhar para a biologia como se olha para a física, a química e a matemática, ou seja, é exatamente o que está sendo criticado aqui. A evolução é agora vista como a movimentação de indivíduos em um pano de fundo que é a população (cf. Mayr, 2005, p.104). Não é mais uma questão de espécies, e sim de indivíduos de uma população. Não é mais também uma questão de qualidade, cada espécie sendo uma qualidade diferente, e sim de quantidade de variação. A visão de mundo que ela dá é a de indivíduos quantitativamente diferentes entre si. Isto é muito diferente da visão de mundo antiga que tínhamos sobre a natureza, e que ainda persiste, não só no senso comum, mas também dentro do meio acadêmico. A visão antiga que tínhamos era de espécies 339 qualitativamente diferentes entre si. Na visão antiga as diferenças encontradas dentro das espécies eram irrelevantes, na visão nova elas são de extrema importância, são elas é que nos permitem quantificar a evolução. Na visão antiga a diferença entre as espécies era a única diferença que importava, pois era a única diferença essencial. A diferença dentro das espécies era considerada um mero desvio, uma exceção. Na visão nova a diferença entre as espécies é também uma diferença quantitativa (cf. Carroll, 2006, p.257. Seção 1.8), pois o que define as espécies são as freqüências gênicas de uma população. Nas palavras de Mayr: É essa variação entre os indivíduos peculiarmente diferentes que tem realidade, ao passo que o valor estatístico mediano calculado dessa variação é uma abstração (Mayr, 2005, p.104.). Um dos problemas do essencialismo é que ele está baseado na concepção errônea de que todos os indivíduos de uma mesma espécie são idênticos entre si, sendo as suas pequenas diferenças algo superficial. Mas, como já vimos no início do primeiro capítulo, uma das principais constatações de Darwin é justamente a da variabilidade intraespecífica (seção 1.1). Sem este tipo de variabilidade simplesmente não se pode falar em evolução por seleção, pois o que é selecionado são justamente estas variedades. Para deixar a terminologia mais clara, chamamos de diferenças qualitativas aquele tipo de diferença “incomensurável”, são diferenças do tipo “tudo-ou-nada”, “sim-ou-não”. Como quando dizemos, por exemplo, que uma pessoa está morta ou está viva, está grávida ou não está. Ou seja, quando não é possível algo entre dois estados, então estes estados são qualitativamente diferentes. Um conceito do tipo essencialista é o que define uma regra rígida do tipo: Água é H2O. Não há exceções a este conceito, não há meio termo, não há “semi-água” ou “pseudoH2O”. Antes de Darwin, as espécies eram consideradas conceitos deste tipo, seja criado por Deus ou não, elas definiam como o mundo qualitativamente era dividido81. 81 Podemos levantar a questão de se os isótopos da água seriam também “água” ou não. Deste modo a água pode não ser um bom exemplo. Podemos, então, seguir Dennett em um exemplo ainda mais radical, com o mero intuito de deixar a divisão entre o pensamento populacional e o essencialismo mais intuitiva: o pensamento populacional seria como dizer que o número 4 já foi impar, mas que através de pequenas mudanças ele se transformou em par. Embora tal exemplo 340 Já quando é possível algo entre dois estados, então eles são só quantitativamente diferentes. Cada estado tem uma quantidade diferente da mesma coisa. Isto quer dizer que se continuarmos seguindo um chegaremos naturalmente no outro. Eles estão ligados. Nesta nova visão não há dois tipos de diferença distintos: um dentro da espécie e outro entre uma espécie e outra. Só há um tipo de diferença e a diferença entre duas espécies distintas é só uma continuação das diferenças encontradas dentro de uma mesma espécie. No entanto, não está sendo dito aqui que não existem qualidades na natureza, e sim que tais qualidades não devem ser buscadas na separação entre as espécies. Independente do conceito usado, a separação entre as espécies não é mais uma separação qualitativa do tipo “tudo-ou-nada”. Como vimos, a visão de mundo que o pensamento populacional trouxe é a parte central do próprio evolucionismo. Para deixar mais clara a relação quantitativa entre as espécies, podemos lembrar do que já falamos sobre as espécies anel na seção 1.3.2. São dois tipos de gaivotas (Larus argentatus e Larus fuscus) que no Reino Unido claramente se diferenciam fenotipicamente e não se reproduzem entre si, mas se reproduzem com suas vizinhas em um anel que dá a volta ao mundo e liga estas duas espécies. Por este motivo elas são ao mesmo tempo de espécies distintas e da mesma espécie! É claro que uma separação arbitrária sempre pode ser feita, nas palavras de Ridley: Nenhum caráter fenético pode ser usado, exceto de forma arbitrária, para separar o anel em duas espécies. Tal divisão do anel também seria teoricamente sem sentido: existe um verdadeiro contínuo, e não espécies claramente separadas. Problemas desse tipo são exatamente o que devemos esperar, visto que as espécies se originaram por um processo evolutivo (Ridley, 2006, p.377 - 378) Estas espécies anel não são um tipo peculiar, uma exceção, na verdade, todos os seres vivos no planeta Terra estão ligados entre si da mesma maneira que estas duas gaivotas, o que acontece é que na maioria dos casos os indivíduos que seriam intermediários entre uma espécie e outra não sobreviveram ao processo de seleção natural ou se extinguiram por simples acaso Para deixar as implicações desta íntima relação entre as espécies mais intuitiva podemos ver as relações que se dão entre os seres humanos e seu parente pareça absurdo, antes do pensamento populacional a transformação entre as espécies era considerada tão absurda quanto! 341 mais próximo, o chimpanzé. Imagine a seguinte situação fictícia (cf. Dawkins, 2005, p.49): uma mulher está em pé, na beira da praia, posicionada perpendicularmente ao oceano. Ela está de mão dada com a sua mãe, que está de mão dada com a mãe dela, avó da primeira, que está de mão dada com a mãe dela, bisavó da primeira, e assim por diante. Elas estão formando uma fila de mão dada de modo que se distanciam do oceano geração por geração. Considere que cada geração, a filha, depois a mãe, a avó, a bisavó etc. ocupa 1 metro desta fila e considere que tais pessoas são imortais, deste modo a fila pode ser infinitamente longa, geração dando as mãos à sua geração anterior, 1 metro de cada vez. Pois bem, quando esta fila tiver 480 Km, ou seja, 480 mil gerações, teremos no final da fila o último ancestral comum entre o homem e o chimpanzé. Agora imagine que quando a fila chega neste ponto ela começa a voltar em direção ao oceano. Serão 480 Km de volta, ou seja, 480 mil gerações. O que vai acontecer é que no final da fila, junto novamente ao oceano, teremos um chimpanzé comum, destes que vemos no zoológico, de mãos dadas com aquela primeira mulher que começou a fila. Formamos, assim, um anel com 960 Km de circunferência que ligam duas espécies claramente distintas, no entanto, se você percorresse esta fila com os olhos você nunca saberia dizer onde termina o ser humano e começa o chimpanzé. A diferença entre uma pessoa e a outra do seu lado é sempre a diferença natural entre mãe e filha. Não há imagem mais clara para o fato de que não há saltos na natureza do que essa. A diferença entre duas espécies claramente distintas não é mais do que o acúmulo de diferenças entre mães e filhas. Não percebemos isso porque tais seres intermediários não mais existem, eles morreram seja por causa da seleção natural seja por causa da deriva genética. Não estamos negando a distinção entre homens e chimpanzés, é claro que são duas espécies separadas, mas a questão é entender melhor como se dá esta distinção, no que ela consiste verdadeiramente. Podemos aqui imaginar livremente que a história do pensamento ocidental seria muito diferente se todas as espécies intermediárias entre o homem e o chimpanzé tivessem sobrevivido. Algo parecido com isso quase aconteceu, pois os Neandertais, que eram possivelmente uma outra espécie de homem, desapareceram só recentemente (seção 5.4). O contrário também poderia 342 acontecer: talvez a relação do ser humano com a natureza fosse ainda hoje desconhecida se não existisse mais nenhum primata além do homem. O que as espécies-anel nos mostram é o cerne do pensamento populacional: a separação entre as espécies não é essencial, não é qualitativa e sim quantitativa. A separação se dá pela freqüência probabilística dos genes, ou seja, um gene determinado tem maior probabilidade de aparecer nesta do que naquela espécie. Já esta separação probabilística dos genes aparece por algo que é chamado de “mecanismo de isolamento”, que são o que mantém as espécies distintas, normalmente impedindo a reprodução, mas não serão tratados aqui. Espécies não têm limites rígidos, mas isso não significa que elas não existam. Mesmo sendo possível um intermediário entre um leão e um tigre, leões ainda são leões e tigres ainda são tigres. É possível estudar uma determinada espécie simplesmente porque, para todos os propósitos práticos82, seus intermediários mais “aberrantes” não são estatisticamente relevantes. Depois desta digressão deve ter ficado claro que a forma de se ver e de trabalhar o mundo na biologia é bem diferente da física e da química. O enfoque na variação individual, sendo o “geral” uma abstração estatística, esvazia muito o conceito de exceção. Mais importante é a relação que se tem com este conceito. Enquanto uma exceção é vista nas outras ciências como uma falha, um problema a ser resolvido, ou até uma possível refutação, na biologia ela é a variação que dá origem aos “tipos”. A separação entre uma variação e uma espécie é considerada como ilusória desde Darwin e se manteve assim. Pode haver dezenas de conceitos de espécie, e há, mas nenhum deles ignora que uma espécie é um acúmulo de variações. Não há limites rígidos que separem uma variação de uma espécie. Como vimos (seção 1.3.2), nem mesmo o popular conceito de impossibilidade de cruzamento entre as espécies as separa de maneira rígida. Muitas são as espécies que são perfeitamente distintas, mas ocasionalmente cruzam entre si. O segredo aqui está só na palavra “ocasionalmente”, ou seja, isso não acontece com freqüência suficiente para ser considerado estatisticamente relevante. Mas é filosoficamente relevante, pois nos 82 O filósofo Sergio Fernandes definia a ciência como sendo FAPP (For All Practical Purposes). Ou seja, somente é relevante aquilo que faz alguma diferença prática. Isso significa que uma mesma variável pode ser relevante em uma pesquisa científica, mas irrelevante em outra. 343 mostra que a separação entre as espécies é uma análise estatística. Ou seja, que exceções são esperadas, e até mesmo bem-vindas. 9.5 Falsificando Popper A má compreensão deste novo modo de se fazer ciência, e de ver o mundo, trazido pela biologia ainda permanece como um “espinho na garganta” de muitos que curiosamente, e absurdamente, a acusam de ser desde contraditória até tautológica! Tudo se passa como uma reencenação da disputa entre Darwin e o grande físico Lorde Kelvin. Uma destas reencenações se deu com o eminente filósofo sir. Karl Popper. Não será tratada aqui a epistemologia de Popper, mas apenas a sua análise da teoria da evolução será apresentada. Em pouquíssimas palavras, Popper pretendia fazer uma separação entre ciência e pseudo-ciência empírica e para isso usou o conceito de refutabilidade: a ciência funciona não por comprovações de teorias, mas por criações teóricas conjecturais que podem ser falsificáveis. Em outras palavras, só é científico aquilo que for capaz de ser refutado. “Todo cisne branco é branco”, por exemplo, não é uma afirmação falsificável, embora seja verificável, pois todo cisne branco que acharmos poderemos dizer que foi mais uma vez verificada a regra. Mas ela é claramente uma tautologia que não explica nada e, por isso, não é científica. Já “todo cisne é branco” pode ser falsificada simplesmente encontrando um cisne que tenha alguma outra cor. Deste modo, é uma afirmação científica e pode ser colocada a teste sendo considerada provisoriamente verdadeira enquanto não for falsificada. Não há teoria científica que não seja provisória. Dentre os muitos filósofos da ciência de relevância que surgiram nos últimos 100 anos e que tinham um critério de demarcação entre ciência e não ciência, Popper parece ter assumido uma forma de hegemonia entre os outros. O termo “hegemonia” aqui não se baseia em nenhum tipo de valorização do pensamento de Popper, é apenas uma constatação de que nos próprios textos escritos e estudados por biólogos se encontra um número muito maior de citações e referências à 344 Popper do que a qualquer outro filósofo da ciência. Normalmente em segundo lugar está Thomas Kuhn, e é possível encontrar uma ou outra referência à Feyerabend83. Não está sendo dito aqui que Popper é o principal ou o maior filósofo da ciência que já existiu. A questão é infinitamente mais simples: dentre os filósofos da ciência, Popper é o mais conhecido pelos biólogos que, quando não fazem menção direta a ele, fazem menção ao seu critério de refutabilidade. Isto de maneira nenhuma quer dizer que a biologia é popperiana, que ela segue por conjecturas e refutações. No seu fazer científico talvez eles usem outras metodologias, outras epistemologias que não a popperiana. Mas isso nos mostra que, quando um biólogo pensa em filosofia da ciência, ele normalmente pensa em Popper. Um apanhado de citações talvez clarifique o que afirmamos aqui: Por razões que não são inteiramente claras para mim, ‘refutação’ parece ser a palavra de ordem dos cientistas hoje em dia. A única verdadeira característica da Ciência – eles todos repetem – é que ela poderia, possivelmente, levantar implicações que seriam empiricamente falsas, implicando, logicamente, na falsidade da própria teoria (Ruse, 1983, p.129). Explicar, em lingüística, é relacionar fatos, infinitamente diversos, a um sistema coerente de hipóteses falsificáveis (Martin, 2003, p.55). Se uma afirmação não pode ser refutada, não pertence ao empreendimento da ciência (Gould, 2003, p.190). Dizem que os cientistas abandonam as teorias tão logo a experimentação as contradiz (Margulis, 2002, p.79). O filósofo da ciência Karl Popper (1968) propôs que uma teoria não é científica a menos que possa ser refutada se estiver errada. (Futuyma, 2002, p.17). Uma boa hipótese é a que prevê exatamente as características de um órgão e que faz previsões testáveis (Ridley, 2006, p.298). Há um problema de escala no que diz respeito ao teste de teorias ecológicas. De fato, esse é o problema conceitual que mais preocupa os ecologistas. Alguns de seus problemas parecem derivar de uma reverência excessiva a Karl Popper, mas há algumas questões reais, também (Sterelny & Griffiths, 1999, p.277. Minha tradução). É preciso ter em mente que isso não passa de um pequeno apanhado das referências a Popper e ao falsificacionismo que encontramos não só na filosofia da biologia, mas entre os próprios biólogos e, como vimos, até entre os lingüistas. 83 Nos meus estudos não encontrei nenhuma referência à Laudan, Koyré e outros. Tendo encontrado só uma referência à filosofia da ciência de Lakatos e algumas, sem muita relevância, à de Whewell. 345 Não há muita dúvida da hegemonia da visão popperiana entre os cientistas, principalmente biólogos. Mas não deixa de ser irônico que foi o próprio Popper que quase relegou a teoria da evolução como um “programa de pesquisa metafísico”, chegando a dizer sobre o princípio da evolução por seleção natural que “poderíamos explicá-lo como algo ‘quase tautológico’; ou descrevê-lo como lógica aplicada” (Popper, 1977, p.177). Antes mesmo de entrar nesta discussão seria interessante que Popper, ou algum defensor seu, pudesse explicar o que significa “quase tautológico”. Dado o rigor formalista da lógica, ser quase tautológico não parece ser uma propriedade muito relevante. Mas não seguiremos por este caminho aqui. De uma maneira ou de outra, o que ficou entendido é que Popper considerou a teoria da evolução, principalmente em sua formulação “sobrevivência dos mais aptos”, como uma tautologia. Nas palavras dele: Cheguei à conclusão de que o darwinismo não é uma teoria científica testável, mas um programa de pesquisa metafísico – um pano de fundo possível para teorias testáveis. (Popper, 1976, p.171. Minha tradução). Não entraremos em detalhes nesta discussão aqui, pois mais importante do que saber se Popper estava certo ou não é saber se, entre a teoria evolucionista de Darwin e o falsificacionismo de Popper, por que devemos escolher este e não aquela? Segundo Popper o real problema estava na definição de “mais aptos”, pois se o único modo de saber quem são os mais aptos é pela sobrevivência deles, então estaríamos nos baseando no princípio da “sobrevivência dos sobreviventes”. Do mesmo modo, se mais aptos significa um maior número de descendentes, e se ser selecionado também significa deixar um maior número de descendentes, então teríamos que “aqueles que deixam um maior número de descendentes deixam um maior número de descendentes”. No entanto, definir a aptidão como a capacidade de deixar um maior número de descendentes é de fato uma definição corriqueira, mas simplesmente por causa do seu valor heurístico. É mais simples e mais rápido defini-la assim, e cientistas não são conhecidos pelo seu rigor conceitual, e nem precisam ser! Definições rápidas só para abrir o terreno para o trabalho são praticamente universais nos trabalhos científicos. “Ter um maior número de descendentes” não é a definição de “mais apto”, é somente a sua conseqüência estatística, ou seja, normalmente os mais aptos terão um maior número de descendentes. A reprodução é de fato o 346 nosso melhor guia de aptidão, mas não é a definição de aptidão. Como já vimos exaustivamente, existem medidas de adaptação que não se baseiam no número de proles, os ecologistas comportamentais normalmente utilizam muitas destas medidas (seção 4.5). Além disso, efeitos como o da deriva genética, principalmente o efeito do fundador, mostram claramente que os mais aptos nem sempre são os sobreviventes (seção 1.1). Mooto Kimura, criador do neutralismo na biologia, chegou até a brincar definindo a evolução como “sobrevivência dos mais sortudos”. Talvez o mais engraçado aqui, quase patético, é a curiosidade histórica: Darwin não utilizou originalmente a expressão “sobrevivência dos mais aptos”, mas sim seu correlato que é “seleção natural”. No entanto, a idéia de uma “seleção” implica na idéia de um selecionador, e Darwin, querendo fazer um contraponto à teologia natural então existente, que poderia colocar deus como este selecionador, passou a usar a expressão “sobrevivência dos mais aptos” retirada de Herbert Spencer: Dei a este preceito, em virtude do qual uma variação, por mínima que seja, se conserva e se perpetua, se for útil, a denominação de seleção natural, para indicar as relações desta seleção com que o homem pode operar. Contudo, a expressão que o sr. Herbert Spencer emprega, ‘a persistência do mais apto’, é mais exata e algumas vezes mais cômoda (Darwin, 2004, p.76). Ou seja, não é de se espantar que se encontre aqui uma tautologia, pois a expressão “sobrevivência dos mais aptos” foi adotada justamente por ser um sinônimo mais rigoroso de “seleção natural”! Uma não explica a outra, elas são sinônimas e foi assim que as usaram. Por um acaso do destino, uma passou a ser considerada como a explicação da outra. Na verdade, tudo não passa de uma grande confusão quase cômica. Aptidão nunca foi definida como número de descendentes, a não ser em definições apressadas que são perfeitamente aceitáveis em ciência. Dawkins foi capaz de ver este problema quando disse: O que nem Wallace nem Darwin puderam prever, entretanto, foi que a “sobrevivência dos mais aptos” iria acabar gerando confusões ainda mais sérias do que a noção de “seleção natural”. Um exemplo familiar disso é a tentativa, redescoberta com avidez patética por sucessivas gerações de filósofos amadores, mas também profissionais (“de intelecto tão aguçado que são incapazes de entender o senso comum”?), de demonstrar que a teoria da seleção natural é uma tautologia sem valor (uma variante interessante dessa tentativa é a alegação de que se trata de uma teoria não-falsificável e, portanto, falsa!). De fato, a ilusão da tautologia deriva inteiramente da frase “sobrevivência dos mais aptos”, e não da teoria mesma. O 347 argumento é um exemplo marcante da elevação das palavras acima da sua devida posição (...) A adaptabilidade significa, em linhas gerais, a capacidade de sobreviver e de se reproduzir, mas ela não havia sido definida e medida como sendo um sinônimo exato do sucesso reprodutivo (Dawkins, 1999, p.180 – 181. Minha tradução). Hoje ninguém mais, a não ser, é claro, os criacionistas, defenderiam que a teoria da evolução por seleção natural não é científica. Nem mesmo que não é testável. Até Popper deu um passo atrás quando disse: Anteriormente, descrevi a teoria como ‘quase tautológica’, e tentei explicar como a teoria da seleção natural poderia ser intestável (como o é uma tautologia) mas, mesmo assim, de grande interesse científico. Minha solução foi que a doutrina da seleção natural é um programa de pesquisa metafísico de enorme sucesso. Ele coloca problemas detalhados para diversos campos, e tenta nos dizer que o que é que poderíamos esperar em termos de uma solução aceitável desses problemas. Ainda acredito que a seleção natural funciona assim, como um programa de pesquisa. Entretanto, mudei minha opinião a respeito da testabilidade do estatuto lógico da teoria da seleção natural; e estou feliz com a oportunidade de poder fazer uma reparação. Espero que essa minha retratação contribua um pouco para o entendimento do estatuto da seleção natural (Popper, 1978, p.344. Minha tradução). Mas nesta citação fica claro que ainda existe certo desconforto na retração de Popper. Como veremos, de fato a epistemologia popperiana não é o melhor modo de entender o darwinismo. Mas antes há um fato curioso, pois mesmo tendo quase banido a teoria da evolução para fora da ciência, Popper era definitivamente um de seus grandes admiradores, tendo elogiado esta teoria em inúmeros textos e, mais interessante ainda, tendo desenvolvido sua epistemologia como uma epistemologia evolucionária que em tudo se assemelha à memética. Nas palavras de Popper: (...) o crescimento de nosso conhecimento é o resultado de um processo estritamente semelhante ao que Darwin chamou de ‘seleção natural’; isto é, a seleção natural de hipóteses: nosso conhecimento consiste, a cada momento, daquelas hipóteses que mostraram sua aptidão (comparativa) para sobreviver até agora em sua luta pela existência, uma luta de competição que elimina aquelas hipóteses que são incapazes. Esta interpretação pode ser aplicada ao conhecimento animal, ao conhecimento précientífico e ao conhecimento científico (...) Esta enunciação da situação pretende descrever como cresce realmente o conhecimento. Não é para entender-se metaforicamente, embora sem dúvida faça uso de metáforas. A teoria do conhecimento que desejo propor é uma teoria amplamente darwiniana do crescimento do conhecimento. Desde a ameba até Einstein, o crescimento do conhecimento é sempre o mesmo: tentamos resolver nossos problemas e obter, por um processo de eliminação, algo que se aproxima da adequação em nossas soluções experimentais (Popper, 1975, p.238 - 239). 348 É uma questão se Popper realmente levava a sério esta analogia, ou se ela era só “metafórica”. Esta citação mostra bem que ele varia entre as duas. Campbell, o pai da epistemologia evolucionária, já era mais comprometido com o darwinismo. No entanto, isso não é relevante aqui, e nem mesmo a epistemologia evolucionária será estudada a fundo, pois ou ela é só uma mera metáfora que não interessará para o que se segue, ou então deve ser levada a sério e pode ser considerada como memética propriamente dita. Popper parece ter considerado algo como o que foi chamado posteriormente de darwinismo universal, mas ele chamou de lógica situacional e propôs que isso explicaria a semelhança de sua teoria com a evolução darwiniana: Se é aceitável a concepção da teoria darwiniana como lógica situacional, então poderemos explicar a estranha semelhança entre minha teoria acerca do crescimento do saber e o darwinismo: ambas seriam exemplos de lógica situacional (Popper, 1977, p.179) Ambas seriam, então, exemplos de uma estrutura lógica mais profunda. O curioso aqui é que se isto é verdade, as críticas que foram feitas a Darwin deveriam ter sido feitas à sua própria teoria, mas ele não considerava a sua epistemologia como uma “tautologia vazia de sentido”. Tendo visto que as críticas de Popper, dentro do próprio sistema deste, não se aplicam à teoria da evolução como ele mesmo considerava, é preciso passar para um tema muito mais delicado. Independentemente da teoria da evolução ser falsificável ou não, há ainda um problema de maior relevância que é se devemos realmente nos preocupar com isso, ou seja, se a epistemologia popperiana é adequada para entender o que acontece dentro da biologia. 9.6 Popper na Biologia Existem claros problemas quando se tenta aplicar Popper à biologia, principalmente à biologia evolutiva. O critério da refutação simplesmente não parece tão útil quando se está trabalhando com o pensamento populacional, e a sua visão sobre como a matemática deve ser usada, e o papel das exceções na biologia. Para permanecer no famoso exemplo de Popper, nenhum biólogo que 349 tivesse utilizado o caractere “ser branco” para classificar a espécie “cisne” se desesperaria ao encontrar um cisne negro. Cores, de fato, normalmente não são bons caracteres definidores, dado o fato de que o melanismo e o albinismo podem ser encontrados em muitos animais. Mas este não é o problema. A questão é que a classificação é feita de maneira estatística, então algo que foge a regra não é considerado como uma refutação imediata. Mayr expõe isso claramente: É por isso que o princípio da falseabilidade de Popper em geral não pode ser aplicado em biologia evolucionista, porque as exceções não falseiam a validade geral da maioria das regularidades (Mayr, 2005, p.109). É importante perceber que este não é bem um problema da biologia, pois sempre que um conjunto for definido como uma regularidade dentro de um método estatístico é esperado que ocorram exceções. Métodos estatísticos não dizem que “todo o x é y”, mas sim que “praticamente todos os x são suficientemente y para serem considerados y”. Vimos que as confusões provindas de não compreenderem isso não dizem respeito só aos lógicos e filósofos, mas até mesmo na antropologia, pois muitas vezes eles tentam criticar o universalismo da natureza humana, proposto por sociobiólogos e psicólogos evolucionários, com eventos singulares do tipo “não existe instinto de sobrevivência e a prova disso são os kamikazes japoneses” (capítulo 5). Tal problema nos coloca uma questão difícil que deve ser encarada de frente. Se um fato contrário não refuta uma regularidade estatística, o que a refutaria então? Em primeiro lugar é preciso rever o que está sendo chamado de “fato contrário”. A própria noção do que é um “fato biológico” deve ser entendida dentro deste contexto mais geral que é o pensamento populacional. “Em ciência ‘fato’ só pode significar ‘confirmado a tal ponto que seria perverso suprimir uma concordância provisória com ele” (Gould 1992, p.255). Se a regularidade proposta não é nada mais do que uma regularidade, então não faz muito sentido afirmar que um único fato seria contrário a ela, pois em momento nenhum foi dito que todos os fatos lhe apoiariam. Por isso, exceções não lhe são, a rigor, contrárias. Além disso, deve haver uma explicação para tais exceções que diga o porquê delas serem exceções. Se nasce um cisne negro em uma espécie que só tinha cisnes brancos, deve haver um motivo para isso, e tal motivo pode ser testado. Ele pode ter um único problema que lhe causou uma “deformidade” em relação aos 350 outros84. Inclusive, se for uma mutação recessiva, é bem provável que seus filhos sejam todos brancos e que só apareçam netos negros se os filhos se reproduzirem entre si. Não parece razoável considerar refutada uma regra que tem tamanho sucesso só por causa de um único indivíduo! Mas isso de maneira nenhuma faz de tal regra algo irrefutável. Ela pode sim estar errada por várias razões, sendo que a mais comum é que na verdade existam muitos outros cisnes negros. Desde que exista um número estatisticamente relevante de cisnes negros, então a regra é falsa. É importante notar que não se está seguindo aqui por um tipo de verificacionismo ou indução. Não é uma questão de quantos indivíduos precisamos para comprovar uma regra e sim de qual a percentagem em relação à população total que precisamos para refutar tal regra. Uma espécie de falibilismo estatístico. No entanto, para infelicidade de muitos, não existe um critério rígido que diga qual porcentagem de uma população é considerada “estatisticamente relevante” para se refutar uma regra. Não se deve sequer tentar buscar tal critério. Isso será sempre controverso. Vai variar pelo método estatístico, vai variar dependendo de quão importante um determinado caractere é considerado como definidor da espécie, vai variar se aquele caractere vai sumir ou vai se espalhar, e vai variar até mesmo em relação à capacidade de cada cientista de suportar exceções. A ciência, como já dissemos, é antes de mais nada uma empreitada humana. Casos como esses acontecem sempre na biologia quando se discute se duas espécies são só duas variações de uma mesma população ou são espécies irmãs já separadas. E o ponto principal é que não há absolutamente diferença alguma entre duas espécies irmãs bem próximas e duas variedades bem distantes de uma mesma espécie. Buscar tal critério, como já vimos, é buscar por algo que não existe, melhor é se acostumar com isso. Vemos que a visão apresentada aqui do evolucionismo é radicalmente diferente daquela apresentada por Popper. Ao considerá-la como uma “quase tautologia” Popper a coloca como algo praticamente sem relação nenhuma com o mundo empírico. A tautologia não afirma e nem nega absolutamente nada sobre o 84 Sempre lembrando que dentro do pensamento populacional não há, no sentido rigoroso do termo, “deformidades”, “erros” e coisa do tipo, somente variações e mutações. 351 mundo, não tem nem mesmo valor explicativo. Mas a biologia parece ser justamente oposta a isso, pois trata do mundo de uma maneira tão direta, tão próxima, que as categorias que estamos acostumados a usar simplesmente não dão conta. Nada representa melhor isso do que as espécies anel: há algo de incompreensível nelas, algo que simplesmente não é bem aceito pelo nosso modo de pensar. No entanto, somos como que empiricamente forçados a aceitar a sua existência, por mais “cognitivamente doloroso” que isso seja. Isso só parece acontecer de novo na física quântica e na relatividade, onde os resultados obtidos simplesmente não parecem se adequar bem com as nossas intuições (cf. Greene, 2001 & Einstein, 1999 & Heisenberg, 1962). Talvez o “problema” do pensamento populacional não seja a sua distância do mundo, mas sim a sua proximidade. O próprio fato de não existirem leis biológicas nos mostra que a biologia não está preocupada com asserções universais e necessárias, ela estuda este mundo, nosso mundo, contingente, particular, único. Ela não busca o universal, está preocupada com este mundo empírico particular. Está próxima dele. Se o darwinismo universal, que está sendo defendido neste trabalho, estiver errado, nada muda na biologia. Para a biologia, muito mais importante, e muito mais explicativo, do que leis são os conceitos. Nas palavras de Mayr: Devido à natureza probabilísticas da maioria das generalizações em biologia evolucionista, é impossível aplicar o método da falsificação de Popper para teste de teorias, porque o caso particular de uma aparente refutação de determinada lei pode não ser mais que uma exceção, como é comum em biologia. A maioria das teorias em biologia não se baseia em leis, mas em conceitos. (Mayr, 2005, p.44) Vários exemplos de tais conceitos já foram dados: gene egoísta, seleção sexual, isolamento geográfico, simbiose, seleção natural, filogenia, população, biodiversidade, ecossistema etc. E ao contrário de serem tautologias sem sentido, eles são todos extremamente explicativos. Na verdade, eles são as melhores explicações que temos até agora para uma diversidade enorme de eventos. Explicações sem a necessidade de leis. E o que mais é possível querer do que nossas “melhores explicações”? Tais conceitos são aceitos ou não pela comunidade científica justamente pelo seu poder explicativo, justamente por poder dar conta do maior número de fatos possível de uma maneira clara e direta. A biologia, mais do que qualquer outra, é uma ciência que constrói visões de mundo. Nas palavras de Dawkins: 352 O fenótipo estendido pode não constituir uma hipótese testável em si mesma, mas ele altera de tal forma a maneira como vemos os animais e as plantas, que pode nos fazer pensar em hipóteses testáveis com as quais, de outro modo, nunca teríamos sequer sonhado (...) D’Arcy Thompson sugeriu que se dissesse “e daí?” para qualquer um que fosse suficientemente fastidioso para sugerir que a ciência só avança através da falsificação de hipóteses específicas (...) é possível que valha a pena ler um livro teórico mesmo que ele não avance hipóteses testáveis mas procure, ao contrário, mudar nossa maneira de ver (Dawkins, 1999, p.2. Minha tradução). Não é uma questão de negar a testabilidade, mas sim de colocá-la em seu devido lugar. Experimentos são de extrema importância em todas as ciências e a biologia não é exceção. São realizados experimentos em todas as áreas da biologia, inclusive naquelas diretamente relacionadas com a evolução por seleção natural. Como já vimos anteriormente, já foi possível comprovar o poder da seleção natural tanto por observação quanto por testes em laboratório (seção 1.3). Cada vez mais também a modelagem matemática se une à biologia na criação de hipóteses mais rigorosas que possam ser testadas em laboratórios ou postas à prova na observação. A biologia é uma ciência empírica sem dúvida alguma. Mas ela vai mais além ao estudar aquilo que não pode ser diretamente testado, mas é indubitavelmente empírico, a saber, a história. 9.7 Ciências Históricas Como já vimos logo no primeiro capítulo desta Tese, Mayr separa a biologia entre funcional e histórica. Já Dobzhansky nos diz que toda a biologia só faz sentido à luz da evolução. Com isso ele não está querendo dizer que um anatomista precisa saber a história de cada órgão para realizar seu trabalho. No entanto, ele deve saber que cada órgão que ele estuda tem uma história particular e que só é do modo que é por causa desta história. Como já vimos, a teoria da evolução procede criando narrativas históricas, com base nos dados empíricos encontrados, que expliquem como os seres vivos e todas as suas estruturas chegaram a ser como são hoje. 353 Esta é uma das grandes diferenças entre o fazer científico da biologia e o da física e química. Pois ao invés de se preocupar com leis gerais e universais, que não são elas mesmas empíricas ou observáveis, somente os seus efeitos, a biologia evolutiva trata de eventos históricos, singulares, perfeitamente empíricos e que não podem ser observados agora, mas poderiam ser claramente observados quando estavam acontecendo. Mais uma mostra de como a biologia se relaciona de maneira bem próxima com o mundo empírico. No entanto, esta forma de discutir o mundo, ou melhor, estas novas questões sobre o mundo empírico, como Feyerabend muito bem previu, exigem um novo método, uma nova forma de se tratar a ciência. Tal método talvez seja a grande fuga realizada pela biologia do padrão que era considerado definidor das ciências exatas. A biologia teve que buscar o método histórico que era encontrado principalmente nas ciências humanas. Nas sábias palavras de Mayr: A metodologia de narrativas históricas é claramente uma metodologia de ciência histórica. Com efeito, a biologia evolutiva, como ciência, em muitos aspectos é mais similar às Geisteswissenschaften85 do que às ciências exatas. Se traçada a linha divisória entre as ciências exatas e as Geisteswissenschaften, tal linha cortaria a biologia bem ao meio e anexaria a biologia funcional às ciências exatas, ao mesmo tempo que classificaria a biologia evolucionista entre as Geisteswissenschaften. A propósito, isso revela a fraqueza da velha classificação das ciências, que foi feita por filósofos familiarizados com as ciências físicas e as humanidades, mas que ignoravam a biologia (Mayr, 2005, p.49). Tal citação de Mayr já fala praticamente tudo o que precisava ser dito: não só o evolucionismo é eminentemente histórico, como deixá-lo de considerar como uma ciência exata para considerá-lo como humana só poderia acontecer devido a uma ignorância com respeito à biologia. Ou melhor, com “falta de respeito” à biologia. Mais uma vez nos vemos na batalha com lorde Kelvin: ou mantemos as divisões com que estávamos acostumados e retiramos a parte mais fundamental da biologia das ciências exatas, ou percebemos que nossas antigas divisões já não fazem mais sentido algum e devem ser abandonadas. Dada tal “escolha de Sofia” será difícil encontrar algum filósofo com coragem de dizer que a teoria da evolução, como todos os seus grandes feitos, é menos exata do que, digamos, a fisiologia! O fato é que a biologia evolutiva deve ser considerada uma ciência exata e histórica. Esta divisão tradicional não pode mais ser considerada como 85 “Ciências do espírito” em oposição a Naturswissenschaften, ou “ciências da natureza”. Uma divisão que realmente só poderia ter sido feita quando o “espírito” não fazia parte da “natureza”! 354 excludente. Tratá-la exclusivamente como uma ciência exata ou exclusivamente como um ciência histórica seria desrespeitar a sua metodologia. Algo muito semelhante acontece com a cosmologia. Pensar na biologia como divida em duas é uma análise pobre, ela não está cortada ao meio por uma linha divisória entre as ciências físicas e as ciências históricas. Na verdade, ela trouxe a história para dentro das ciências exatas. Fazer narrativas históricas que se adequem bem aos dados existentes deve ser considerado tão científico quanto fazer um experimento. O modo como o mundo é hoje depende dos detalhes históricos. Quanto menor a população, maior o papel do acaso, por isso contingências históricas devem fazer parte de explicações científicas. A ciência deve trabalhar também com as particularidades de cada história. Nas palavras de Gould: A ciência das coisas historicamente complexas é uma empreitada diferente, e não menor. Procura explicar o passado e não se preocupa em predizer o futuro. Busca princípios e as regularidades subjacentes à singularidade de cada espécie e à interação, valorizando essa singularidade e descrevendo-a em toda a sua glória. As noções de ciência precisam dobrar-se (e expandir-se) para acomodar a vida (Gould, 1992, p.65). Logo de início fica claro que não é possível fazer experimentos históricos. O que aconteceu, já aconteceu e não vai acontecer de novo. Eles são irrepetíveis. Além disso, embora sejam fatos observáveis, normalmente eles não foram observados enquanto aconteciam e, a não ser que alguém tenha uma máquina do tempo, não serão observados nunca. Por não ser possível observar, fazer experimentos, repetir experimentos e testar, deveríamos, segundo o modelo padrão da epistemologia das ciências exatas, simplesmente desistir de tratar de tais fatos cientificamente. Mas ao invés de desistir a biologia amplia os horizontes da ciência e trabalha rigorosamente com os fatos históricos. Ela faz isso de maneira intrigante, pois lida com fatos históricos utilizando um conceito que já é um velho conhecido da física: a previsão. Só que no caso, não se prevê o futuro, mas sim o passado. São utilizadas leis (físicas e químicas), modelos (matemáticos) e regularidades (biológicas) não para descobrir o que vai acontecer, mas para descobrir o que já aconteceu. Por se tratar de uma ciência empírica, tais previsões têm que ser capazes de dar conta de todos, ou da maioria, dos dados empíricos que temos disponíveis atualmente. O surgimento de novos 355 dados podem sugerir novos modelos, assim como novos testes podem colocar em dúvida testes anteriores. Quanto às previsões que dizem respeito ao futuro, embora elas sejam possíveis em pequena escala, e com uma margem de erro aceitável, dificilmente será atingido o nível de previsão que a física tem. Podemos, por exemplo, saber que o uso do mesmo pesticida se tornará menos eficaz com o tempo, mas exatamente qual mutação ocorrerá para permitir a adaptação de um determinado inseto a um determinado pesticida é praticamente impossível prever. Em primeiro lugar, existem muitos fatores em jogo e, como já vimos, grandes evoluções podem ocorrer com uma pequena pressão seletiva se lhe for dado o tempo de agir. “Conseqüências substanciais têm origem em fatos absolutamente irrelevantes” (Gould, 2003, p.360). Isso significa que pequenas variáveis podem ocasionar grandes mudanças. Mesmo se forem utilizados modelos não-lineares ainda assim é muito difícil, quase impossível, saber quais são os fatores mais relevantes para aquele processo de mudança. A biologia mostrou que a ciência não deve tratar só do que é necessário, mas estudar também aquilo que é contingente. Ao trabalhar com contingências é esperado que não exista um papel muito grande para a predição. Os tipos mais comuns de previsões que podem ser feitas são exemplificadas por uma previsão que Darwin fez: ele viu o formato particular, fino e extremamente longo (até 45 cm), da orquídea Angraecum sesquipedale e previu que deveria haver um polinizador especializado com uma longa língua. Em 1997, Wasserthal confirmou que mariposas esfingídeas, com línguas muito longas, podiam polinizar tal orquídea (Ridley, 2006, p.637). Vimos também o caso dos ratos subterrâneos pelados que foi previsto por R. D. Alexander (seção 4.3). Todas estas previsões se apóiam basicamente na idéia de que se há um nicho, há algum ser vivo ocupando este nicho. Pode-se inclusive fazer testes baseados nestas previsões, mas sempre é necessário tratar de seres vivos que tem uma geração pequena e que, de preferência, estejam sujeitos a fortes pressões seletivas. Deste modo é possível prever e testar a seleção natural em ação em laboratórios e até na natureza, mas são poucos os casos em que isso pode ser feito. Além disso, estas previsões não podem nos falar exatamente como um determinado evento histórico de fato aconteceu. Deve-se lembrar que a questão aqui não é uma oposição entre os métodos da física e da biologia, e sim uma diferença de 356 enfoque: o conceito de previsão existe em ambas, mas não é tão essencial para a biologia quanto é para a física. O caso da medição do tamanho do bico de determinados pássaros, que vimos no início do primeiro capítulo como a forma de medir o coeficiente de seleção s (seção 1.1), de fato foi realizado com os tentilhões de galápagos, as mesmas espécies que tinham sido coletadas por Darwin. Foi possível ver a seleção agindo conforme o índice pluviométrico variava, causando uma variação nas sementes que, por sua vez, era a força seletiva que causava a variação nos bicos dos tentilhões. Com estes dados era possível fazer previsões e confirmá-las (cf. Weiner, 1995). No entanto, algo importante deve ser notado aqui: as previsões feitas foram confirmadas, mas era perfeitamente possível que os tentilhões não tivessem se adaptado e tivessem simplesmente se extinguido. Era também possível que ao invés de uma mudança no tamanho e formato dos bicos eles tivessem aprendido uma nova técnica de abrir as sementes, ou mudado a sua alimentação. Nestes casos, as previsões não teriam sido confirmadas. Mas ao contrário da física, previsões não confirmadas na biologia são tratadas como algo natural. Isto significa que mesmo em uma situação bem controlada, a previsão do futuro pode ser extremamente difícil. O motivo é simples, as mutações são aleatórias, elas podem surgir em qualquer lugar como também podem nunca acontecer. Não há como prever se uma mutação vai ocorrer ou não, nem qual mutação será e até mesmo qual será o exato efeito fenotípico dela. De uma maneira geral, estamos lidando com uma situação muito mais complexa do que na física, sem nenhuma lei que direcione a mudança, com infindáveis variáveis que podem ser significativas ou não, com o acaso no surgimento das mutações e, para piorar, o acaso de novo na própria história evolutiva. Afinal de contas, logo aquele inseto que nasceu com uma mutação que o tornará resistente ao pesticida pode muito bem cair na água, ou ser comido por um pássaro, um carro pode passar por cima dele ou, quem sabe, até mesmo um gigantesco meteoro pode transformar o inseto, a plantação, o pesticida e os cientistas em poeira. O que nos mostra mais uma vez que “sobreviver” e “ser mais apto” não é exatamente a mesma coisa. Sempre haverá contingências históricas: 357 Conhecido o resultado, a longa história evolutiva que precedeu qualquer adaptação complexa atual parecerá uma série improvável de acidentes: o mesmo ponto é tão verdadeiro para a história da humanidade quanto para a seleção (Ridley, 2006, p.291). Dada tamanha complexidade, e dada a força do acaso, não é de se espantar que previsões só raramente sejam feitas. Mas isso em nada diminui a sua cientificidade, pois o seu caráter explicativo permanece inalterado. Por isso, a maioria das previsões não são voltadas para o futuro, mas sim para o passado, que na verdade é tão desconhecido quanto o futuro. É sempre possível trabalhar com as evidências do passado com o mesmo empenho com que se trata as observações do futuro. Mais uma vez nas palavras de Mayr: Na biologia evolucionista o teste das narrativas históricas e a comparação de evidências variadas são os métodos mais importantes. Essa disciplina é empregada nas ciências fisicalistas apenas por algumas disciplinas históricas, como a geologia e a cosmologia (Mayr, 2005, p.49). Para remediar esta reconhecida falta que fazem os experimentos, a biologia utiliza o maior número de evidências remanescentes possíveis. A idéia por detrás disso é que quanto mais evidências apontam para um mesmo caminho histórico, mais podemos estar certo dele. Embora pareça indutivista, não é, pois tais evidências não comprovam nada, elas apenas auxiliam na construção de hipóteses. A ciência permanece, como Popper queria, provisória e conjectural, pois a qualquer momento um novo dado pode abalar toda a estrutura que tinha sido montada até então. Sabe-se que Haldane, por exemplo, gostava de falar que se encontrássemos um coelho pré-cambriano ele abdicaria da teoria da evolução. Ele faria isso porque todos os dados que temos dizem que não existiam mamíferos nesta época. Nem ele, nem ninguém, estava presente naquela época para ser capaz de fazer uma expedição em busca de coelhos pré-cambrianos, mas ele pode inferir tal ausência porque está baseado em todos os dados paleontológicos que temos até hoje. Todas as ciências históricas baseiam-se na inferência, e nesse aspecto a evolução não é diferente da geologia, da cosmologia ou da história dos humanos. Por princípio, não podemos observar processos que aconteceram no passado. Devemos inferi-los dos resultados que ainda nos rodeiam: organismos vivos e fósseis, para a evolução; documentos e artefatos, para a história humana; camadas e topografia, para a geologia (Gould, 1992, p.257 -258) 358 Esta citação de Gould é importante porque é ele o maior crítico do Panglossianismo na biologia, ou seja, crítico da construção de narrativas históricas sem fundamentação empírica. Mas mesmo o seu maior crítico não pode negar que, para o bem ou para o mal, não há biologia evolutiva sem narrativas históricas. É claro que devemos concordar com Gould que tais narrativas só têm valor científico se forem bem embasadas empiricamente. Mas a questão no momento é apenas perceber que a biologia evolutiva busca criar tais narrativas. 9.8 Quanto Mais, Melhor! Com o intuito de deixar tais narrativas históricas cada vez mais robustas e mais críveis, uma metodologia ampliada tem se tornado mais comum. Utilizam-se não só os dados da biologia na construção de tais histórias, mas também os da física, da química, da geologia e até mesmo da antropologia, neurociências, arqueologia, lingüística e tudo mais que for capaz de nos dizer qualquer coisa sobre o passado. Em um claro estilo de “quanto mais, melhor” defende-se que se diferentes áreas, com diferentes pressupostos, diferentes metodologias, trabalhando com diferentes dados empíricos, puderem chegar todas à mesma conclusão, ou puderem se auxiliar na construção coerente de uma só história evolutiva, então podemos ter mais segurança de que novos dados refutadores não irão aparecer. Embora seja óbvio de que não há garantias aqui, refutações sempre podem acontecer. Empreitadas como estas são talvez os mais trabalhados exemplos do que há de melhor que os seres humanos podem fazer em comunidades científicas. Uma verdadeira união de dezenas de áreas distintas, às vezes com centenas de pesquisadores, para tentar descobrir, por exemplo, quando um determinado dente surgiu em um marsupial. E, como já foi dito várias vezes aqui, não devemos esperar da ciência nada mais, e também nada menos, do que o melhor que os cientistas podem fazer. Os próprios biólogos já são versados em usar os mais variados tipos de pesquisas em sua área: 359 Os biólogos evolucionistas trabalham com materiais tão diversos como compostos químicos puros em tubos de ensaio, comportamento animal na selva ou fósseis coletados de rochas inóspitas e estéreis (Ridley, 2006, p.28). Mas se eles puderem se reunir com outras áreas da ciência, podem considerar suas pesquisas ainda melhor fundamentadas. Um exemplo já antigo de como isso funciona é a teoria da vicariância, que faz parte da biogeografia. Sabese que os continentes se separaram, e também já se uniram, como aconteceu na união das Américas. Sabe-se também que a separação geográfica tende a ocasionar a separação entre espécies, pois mutações que acontecem em uma população não acontecem na outra e, com o tempo, perde-se a possibilidade de intercruzamento. A teoria da vicariância estuda justamente esta relação entre teoria da evolução e geologia. Vários eventos são previstos pela teoria da vicariância. Por exemplo, se for feito um cladograma (filogenia) de uma espécie que vivia em um continente que se separou, é esperado que ela tenha se dividido em duas espécies logo depois da separação dos continentes. Métodos de datação de fósseis, assim como o método do relógio molecular podem nos dizer aproximadamente quando houve a tal separação das espécies. Este resultado pode ser contrastado com os resultados da geologia que indicam quando os continentes se separaram. Nas palavras de Ridley: Se as sucessivas divisões na filogenia fossem dirigidas por sucessivas fragmentações de terra, a filogenia estaria relacionada com uma seqüência definida de eventos tectônicos (Ridley, 2006, p.530). As análises até agora têm encontrado sucesso na congruência de tais filogenias, mostrando que podemos chegar ao mesmo resultado de duas maneiras completamente diferentes. O mesmo tem ocorrido com uma outra hipótese da vicariância que diz que espécies que viviam em um mesmo continente que se dividiu terão todas as mesmas divisões no seu cladograma que indicam que todas elas sofreram um evento de especiação logo após a divisão dos continentes. Grandes mudanças evolutivas também são esperadas quando continentes separados se encontram, e foi o que de fato aconteceu no Grande Intercâmbio Americano, quando as Américas se uniram. Mais uma prova de que os dados geológicos estão em perfeita sintonia com os dados evolutivos. 360 As relações entre a teoria da evolução e a geologia já é uma notícia antiga, inclusive Charles Lyell era um grande amigo de Darwin. Mas novas uniões entre diferentes áreas estão acontecendo, algumas vezes de forma surpreendente. O alce gigante irlandês (Megaloceros giganteus) que viveu entre 400 mil e 10 mil anos atrás, provavelmente tinha uma corcova. Sabemos disso não porque tais corcovas foram preservadas no registro fóssil, mas porque elas foram pintadas nas paredes das cavernas pelos nossos antepassados. Soma-se a isso algumas evidências anatômicas provenientes do estudo de alces modernos e temos parte da história evolutiva deste animal, com corcova e tudo (cf. Gould, 2003, p.221). Outros exemplos ainda poderiam ser dados. Uma discrepância na evolução dos pentastomídeos (parasitas que vivem em vertebrados), que indicava uma taxa exagerada de evolução, foi resolvida utilizando dados concordantes da biologia molecular e das evidências fósseis (cf. Gould, 1997, p.156). A hidrodinâmica é usada para compreender a forma dos peixes, enquanto a engenharia civil é usada para entender a espessura das conchas em moluscos (cf. Ridley, 2006, p.298). “Certos tipos de conchas são indicadores tão confiáveis da idade das rochas que estão entre os principais indicadores usados na prospecção de petróleo” (Dawkins 2001, p.332). A datação das rochas pode ser feita por métodos físicos e também pela simples observação de seus fósseis. O uso de múltiplas regularidades estatísticas no lugar de leis não deve ser visto como uma aceitação completa da indução. Não é a questão de que o acúmulo de fatos particulares nos leva ao “fato geral”, ou lei, mas é, na verdade, a aceitação de que nós nunca chegamos ao fato geral. Nunca passamos da probabilidade de que algo aconteça para a necessidade de que algo aconteça. Daí os fatos particulares serem o que de melhor podemos obter e, deste modo, nada melhor do que unir o máximo possível deles em uma explicação coerente. Obter o máximo possível de dados empíricos, das fontes mais diferentes possíveis, apontando todos, ou quase todos, para uma mesma explicação, é um método científico há muito aprovado e utilizado regularmente em diversas áreas científicas. Não é uma questão de que não conseguimos mais achar as leis, e sim que deixamos de procurá-las. Ou melhor, nem mais acreditamos que elas existam nestas áreas. Não há leis históricas86. 86 Para a infelicidade de Marx, Hegel e tantos outros. 361 Acaso, singularidade, probabilidade, estatística, conceitos, contingências, regularidade, indivíduo, história, multidisciplinaridade, todos estes conceitos simplesmente não podem mais estar ausentes de uma filosofia da ciência que pretenda dar conta do que chamamos de ciência no século XX e XXI. Eles têm que fazer parte do dia a dia de qualquer epistemólogo dentro de sua própria definição do que é ciência e de como ela procede. O filósofo que não aceitar isso deve ser considerado como fazendo filosofia da ciência do século XVIII. De maneira nenhuma ele precisa dispensar os conceitos como o de lei, universalidade, experimento etc. que usava anteriormente, mas precisa expandir sua abordagem se ainda quer falar de ciência. 9.9 Uma Mão Corrige a Outra: Willian Whewell e a Palaetiologia Ignorar a ciência como disciplina histórica que visa predizer o que aconteceu, e não o que vai acontecer no futuro, não é só ignorar a biologia evolutiva, é ignorar a geologia, a cosmologia, a paleontologia, a arqueologia, a antropologia e, porque não, a lingüística diacrônica, a filologia, a história, até mesmo a meteorologia etc. Ou seja, é simplesmente inaceitável. Até mesmo Popper, já aposentado e perto da morte, teve que reconhecer a importância das ciências históricas: Há quem acredite que eu tentei negar o caráter científico de ciências históricas tais como a paleontologia, ou a história da evolução da vida na Terra; ou, por exemplo, a história da literatura, da tecnologia, ou da ciência. É um engano. Desejo afirmar, aqui, que essas e outras ciências históricas possuem, em minha opinião, caráter científico; suas hipóteses podem, em muitos casos, ser testadas (Popper, 1980. Minha tradução). Mas nesta época o estrago já estava feito e ele não foi capaz de perceber que grande parte deste estrago tinha sido justamente por causa da sua visão do que é testar uma teoria e de qual o papel que tal teste deve tomar. No entanto, como sempre acontece, e como Feyerabend dizia, a ciência simplesmente seguiu seu curso muitas vezes ignorando os critérios normativos apresentados pelos epistemólogos. Uma nova era de estudos surgiu, uma era onde diferentes ciências 362 trabalham juntas, muitas vezes com o intuito de estudar o que aconteceu no passado. As pesquisas do antropogeneticista Cavalli-Sforza talvez sejam o melhor exemplo do tipo de pesquisa de ponta que está sendo realizada deste modo. Já apresentamos suas pesquisas e como ele une a genética aos dados provenientes principalmente da antropologia, da arqueologia e da lingüística (seção 4.9). Mas aqui mais importante do que isso é a perfeita consciência que ele tem sobre este novo método de se fazer ciência. Ele deixa claro sua metodologia logo no primeiro parágrafo de seu livro: Esse livro examina as pesquisas sobre evolução humana nas diferentes áreas de estudo que contribuem para o nosso conhecimento. É a história dos últimos 100 mil anos que recorre à arqueologia, à genética e à lingüística. É com alegria que vemos essas três disciplinas gerarem novos dados e novas percepções. Podemos esperar que todas convergirão em uma teoria comum, e subjacente a ela deve haver uma só história. Isoladamente, cada abordagem apresenta muitas lacunas, mas é de esperar que a síntese das três ajude a eliminá-las. Outras ciências – a antropologia cultural, a demografia, a economia, a ecologia, a sociologia – estão se unindo nesse esforço e, com justiça, se tornando pilares de interpretação (Cavalli-Sforza, 2003, p.7). Como ele bem sabe, no estudo da história não há repetição experimental, este é o motivo pelo qual Cavalli-Sforza privilegia a abordagem multidisciplinar, pois podemos estudar o mesmo fenômeno de vários ângulos, a partir de várias disciplinas, utilizando fatos independentes que, neste caso, “tem valor básico similar ao de uma repetição independente” (Cavalli-Sforza, 2003, p.8). Ao trabalhar deste modo chega até a reconhecer a “unidade das ciências e de seus procedimentos” (Cavalli-Sforza, 2003, p.53). Utilizando os dados e métodos da genética, da antropologia e da lingüística chega-se a um mesmo resultado sobre como a história do ser humano se deu. O que era esperado, pois só há uma história a ser contada, se houver divergência entre as várias análises deve haver algo de errado. E quanto mais disciplinas diferentes convergirem para uma mesma história, mais tranqüilidade podemos ter em aceitá-la. Não é possível fazer experimentos, mas trabalhando deste modo uma fonte checa a outra. Falamos que tal forma de fazer ciência é nova. Mas na verdade ela é pelo menos tão antiga quanto Darwin. Como já foi dito, antes de Darwin já existia biologia, mas ela estava separada, sem um princípio que a unificasse em um todo coeso dentro de um mesmo princípio explicativo. Pois talvez tão importante 363 quanto a descoberta da evolução por seleção natural tenha sido o poder desta teoria em unir as mais variadas disciplinas da biologia em torno dela. Darwin fez um uso extenso de várias disciplinas biológicas e mostrou como com a teoria da seleção natural todas elas contavam a mesma história. Ele mostrou que todas apontavam na mesma direção e que o que estava no alvo apontado era a teoria da seleção natural. Segundo Michael Ruse, ele pode ter procedido assim pela influência do então filosofo da ciência William Whewell (1794 – 1866): Whewell argumentou que a ciência, em sua melhor forma, se esforça por juntar sob um princípio unificado vários diferentes campos de inquirição. Essa integração, que Whewell chamou de uma ‘concordância de induções’, funciona de duas maneiras. Por um lado, o princípio unificador lança uma luz esclarecedora sobre as várias sub-áreas. Por outro, as sub-áreas se combinam para dar crédito ao princípio unificador. Realmente, argumenta Whewell, podemos assim confiar na verdade do princípio, mesmo que não haja prova sensorial direta. A semelhança do que ocorre no tribunal, quando a culpa é determinada indiretamente por meio de provas circunstanciais, também na ciência passamos além da especulação através, indiretamente, de suas provas circunstanciais (Ruse, 1995, p.18). Vemos como Whewell parece estar em maior acordo com a ciência contemporânea do que muitos contemporâneos. É claro que a crítica de Popper ao indutivismo deve ser levada em consideração se queremos “reviver” Whewell. No entanto, como já mostramos aqui, é perfeitamente possível entender esta concordância, ou melhor, consciliência de induções como uma forma de se fazer ciência. Nas palavras do próprio Whewell: Os casos nos quais as induções a partir de classes de fatos diferentes reúnem-se num salto pertencem apenas às melhores teorias estabelecidas que a história da ciência contém. Haverá ocasião para se fazer referência a esse traço peculiar de sua evidência, e tomarei a liberdade de descrevê-lo através de uma frase em particular: Consiliência de Induções (Whewell, 1968, p.153. Minha tradução). E. O. Wilson posteriormente usou o termo “Consciliência”, com um significado semelhante, para nomear um de seus livros, mas não trataremos dele aqui87. No caso específico de Whewell ele não estava falando exatamente de diferentes ciências se unindo, mas de um princípio se mostrando muito mais útil do que se esperava e sendo usado em lugares para o qual ele não tinha sido 87 A consciliência que defendemos aqui fala sobre a união de diversas áreas da ciência social dentro de um estudo amplo da cultura, mas, dada a sociobiologia de Wilson, este dá uma papel muito maior para as explicações genéticas da cultura. 364 desenvolvido. De qualquer modo, a idéia fundamental de que podemos usar várias fontes para fortalecer uma só história permanece. Mais interessante ainda é que Whewell conseguiu achar lugar para as ciências históricas. Em sua classificação das ciências, feita antes da publicação da “Origem das Espécies”, a biologia se encontra claramente divida: a botânica e a zoologia estavam junto com a mineralogia nas ciências classificatórias. Mas a biologia propriamente dita era uma ciência fisiológica e tratava de questões como a força vital e as causas finais. Mas o mais interessante é a classificação das ciências Palaetiológicas, que são aquelas ciências “nas quais o objeto ascende desde o presente estado de coisas até uma condição mais antiga, da qual o presente é derivado por causas inteligíveis” (Whewell, 1967, p.637. Minha tradução). Nas ciências Palaetiológicas ele coloca a geologia, a glossologia ou filologia comparativa e a arqueologia comparativa. De imediato pode-se reparar a ausência da teoria da evolução, pois Darwin não tinha publicado ainda. No entanto, Whewell fala que existem outras ciência que poderiam ser incluídas neste grupo, como parte da astronomia, da biologia e outras. O termo Palaetiológica é a junção de paleontologia com etiologia, que trata as causas “sem distinguir a causa histórica da causa mecânica” (Whewell, 1967, p.638. Minha tradução). Além disso, já em 1840 podemos ver que Whewell percebia a importância desta classificação científica, segundo ele: O procedimento de construir uma tal Classe de ciências não é nem arbitrário nem inútil. Pois, ainda que os assuntos de que essas ciências tratam sejam amplos e variados, verifica-se que todas possuem certos princípios, máximas e regras de procedimento em comum; e, assim, podem iluminar umas às outras sempre que tratadas conjuntamente. De fato, conforme creio, ficará evidente que, através de uma tal justaposição de diferentes especulações, podemos obter lições salutares. E certas questões que, quando enxergadas conforme aparecem pela primeira vez sob o aspecto de uma ciência especial, causam perturbação e alarme nas mentes dos homens, poderão, talvez, ser contempladas mais calmamente, e também mais claramente, quando consideradas como problemas gerais da palaetiologia (Whewell, 1967, p.640. Minha tradução). Depois de tudo o que foi apresentado neste capítulo é impossível ler esta citação sem um certo senso de “ironia histórica”, pois sobrou para um filósofo da ciência, que escreveu há cerca de 170 anos, explicar a ciência contemporânea sem 365 cair na armadilha de dividi-la entre ciências exatas e ciências históricas88. A classificação das ciências de Whewell sem dúvida deve ser atualizada, mas o fato de que ele segue por um caminho diferente do que a comum separação entre ciências físicas (naturais) e humanas, e neste outro caminho encontra as ciências históricas como parte natural de sua classificação, talvez indique que devamos voltar um pouco e explorar o esquecido caminho percorrido por ele. Vimos, então, que embora a filosofia da ciência contemporânea não tenha por costume dar o devido valor às ciências históricas e seus métodos, muito antes disso William Whewell já havia criado as bases epistemológicas capazes de compreender o fazer científico destas áreas. Além disso, e mais importante, é perceber que tais métodos multidisciplinares e históricos são capazes de nos dar uma ciência tão objetiva e rigorosa como qualquer outra. Negar isso seria tirar o caráter de cientificidade de muitas áreas onde ele já foi plenamente estabelecido como a cosmologia, a geologia, a biologia evolutiva etc. Talvez uma dificuldade em aceitar esta paridade das ciências físicas e das históricas seja fundada no fato de que as ciências físicas constituem realmente a base de todas elas. A não ser que defendamos alguma espécie, forte ou fraca, de dualismo matéria/ espírito, os fatos biológicos, lingüísticos, geológicos etc. são antes de tudo fatos químicos e físicos. Isto de maneira nenhuma deverá ser questionado aqui. Mas tentar realmente realizar tal redução seria abdicar do caráter preditivo, explicativo e também prático da ciência. Qualquer pessoa que pense que é capaz de explicar a biologia através da física deve se sentir livre para tentar fazer isso. Todos irão ansiosamente esperar por uma análise física do conceito de seleção natural. Mas, mais importante ainda, todos se perguntarão o que fazer com uma análise que precisará ser tão exaustivamente detalhista. Uma coisa nunca pode ser esquecida ao se fazer ciência, filosofia, matemática ou o que quer que seja: no final das contas são seres humanos que fazem isso, fazem para eles próprios e para outros humanos, fazem por interesses humanos e, talvez mais importante, só podem fazer o que é humanamente possível. Assim como em última instância os fatos biológicos são fatos físicos, a 88 Armadilha esta poderá ser preservada pelo governo brasileiro que está propondo uma reforma na divisão do conteúdo do ensino médio, onde as 12 disciplinas que estamos acostumados serão divididas em 5 “grupos temáticos”: línguas, matemática, humanas, exatas e biológicas. Embora a biologia esteja junto das exatas, ela é destacada desta, enquanto a história fica como sendo “humanas”. 366 ciência não está além da comunidade científica. É por isso que este novo modo de se fazer ciência, que envolve vários pesquisadores de várias disciplinas científicas diferentes, se mostra como substancialmente científico. Ele é o máximo do “saber comunitário” que atingimos até agora. E é justamente o fato dessa empreitada ser comunitária que nos faz entender muitos dos “atributos” das ciências, pois uma comunidade tem que se comunicar eficazmente entre si, é por isso que sempre haverá uma linguagem universal, seja o latim, a matemática ou o inglês. Mas só a linguagem não adianta para o mútuo entendimento, é preciso entender o conteúdo do que se está fazendo, e é preciso que este conteúdo possa ser checado por outros, por isso a necessidade de métodos, de não pular etapas, de explicações exaustivas, rigorosas, de simplicidade, de controle experimental. Tudo o que é feito por um deve ser comunitariamente avaliado, daí surge a objetividade, a clareza, a crítica e a refutação. Temos, então, o que Cavalli-Sforza estava chamando de a “fundamental unidade das ciências”. A unidade das ciências não é fundada na unidade dos métodos, mas na unidade dos homens, sendo o método uma conseqüência disso. Tudo isso visa impedir que cada cientista tenha a sua própria “ciência”, baseada nas suas vontades, desejos, crenças, opiniões políticas e religiosas etc. Mesmo quando é feita só por uma pessoa, a ciência nunca é solitária, pois esta pessoa tem que fazer ciência de modo que ela seja perfeitamente entendida, realizada e refutável pela comunidade científica, constituída por outras pessoas com outras crenças, desejos, religiões etc. Deste modo, não se deve buscar uma ciência perfeita, mas também não devemos nos contentar com menos do que a melhor ciência que os seres humanos, em comunidade, podem fazer. 10 Uma Análise Crítica das Críticas Neste último capítulo será desenvolvida uma tentativa mais direta de respostas às diferentes críticas contra a memética. Muitas destas críticas, junto com algumas possíveis respostas, já foram apresentadas e serão aqui retomadas dentro de um panorama mais amplo. Deste modo, há algo de aparentemente repetitivo aqui que se justifica por várias razões. A primeira delas é o fato de que tais críticas são também muito repetitivas e permanentes, mesmo já tendo sido respondidas por diversos autores em diversos artigos e livros, alguns com mais de 10 anos. Mas o mais importante é que as diferentes críticas muitas vezes podem ser unidas, uma crítica levando a outra. Deste modo, a resposta de uma determinada crítica pode ser também considerada como o fundamento da resposta de uma outra crítica que pareceria ser completamente diferente. É claro que não se pode responder todas as críticas ao mesmo tempo, há de se desenvolver uma seqüência. Por uma questão didática, o melhor é separar as críticas em vários tópicos diferentes de modo a permitir maior clareza. Esta separação é completamente artificial e há, como se espera em uma tese impregnada de pensamento populacional, um verdadeiro contínuo entre elas. Por este motivo, mesmo as críticas tendo sido aqui didaticamente separadas, é importante que estejam todas unidas dentro de um mesmo espaço para permitir uma visão mais completa delas e, principalmente, das respostas a elas. Neste sentido, aqui apresentaremos de novo estas velhas críticas, que serão melhor desenvolvidas e colocadas dentro de um panorama mais amplo. Também serão apresentadas novas críticas que ensejam novas respostas, e respostas novas para velhas críticas. Será interessante notar que muitas críticas, talvez todas, não têm apenas uma resposta e sim várias. O motivo é que várias linhas diferentes de respostas são possíveis. Dentre estas linhas duas se destacam: a primeira é perceber que a mesma crítica pode ser feita contra a biologia atual ou poderia ser feita contra a biologia do século passado. Neste sentido ao invés de tentar definir perfeitamente 368 cada conceito da memética, veremos que o mais sensato é perceber que uma ciência não trabalha com definições perfeitas. Como nos disse Hull: Queixas a respeito da falta de clareza conceitual na memética surgem, em parte, por causa de uma visão irreal de quão claros e não-complicados certos termos familiares na ciência são ou foram (Hull, 2000, p.47. Minha tradução). Já a segunda linha principal de resposta é perceber que houve uma má compreensão do que a memética propõe, algumas vezes porque os próprios críticos levaram a analogia longe demais. Dentre estas más compreensões, algumas se destacam porque simplesmente não são realmente críticas e sim sugestões que foram apresentadas como críticas, por exemplo, é comum a crítica de que falta à memética o conhecimento psicológico e neurológico que seria capaz de dizer quais memes têm uma melhor chance de se replicar. Longe de ser uma crítica, isso é a mais pura verdade e todo o defensor da memética admite que este é exatamente um dos primeiros estudos que deve fazer. Ou seja, a memética não tem tal base, mas só porque ainda não tem. Jablonka, embora crítica da memética, em muitos lugares parece mostrar que gosta de tal análise, inclusive tratando da evolução simbólica como sendo o quarto tipo de herança, mas ela considera que a memética deixa de lado algo importante e que é o suficiente para fundamentar uma crítica desta disciplina: É necessário perguntar não apenas quem se beneficia, ou o que é selecionado, mas também como e por que um novo comportamento ou idéia é gerado, como ele se desenvolve, e como é passado adiante (Jablonka & Lamb, 2005, p.222. Minha tradução). No entanto, já deve ter ficado claro até aqui que isso está muito longe de ser uma crítica. Ela está certa que a memética deve abordar tais questões e já foi mais do que mostrado que ela de fato o faz. A memética, é claro, não deve tratar só dos memes, mas também do ambiente dos memes que tem tal papel selecionador. Ao contrário do que Jablonka assume, a memética de maneira nenhuma ignora a psicologia, a antropologia e a sociologia na medida em que estas influenciam a passagem dos memes. Tal visão errada do que é a memética talvez se baseie excessivamente no trabalho de Blackmore. No que se segue, para evitar repetições, será necessária a compreensão do que foi apresentado nos capítulos anteriores, em particular nos dois primeiros capítulos que versavam sobre a biologia. Isso significa que muitas das possíveis 369 respostas serão apenas indicadas aqui, mas uma análise mais elaborada exigirá que se retorne ao tópico mencionado e, principalmente, à bibliografia apresentada nos capítulos anteriores. Logo ficará claro que a maioria das críticas é fruto de má compreensão, seja da biologia, seja da memética, seja das exigências normativas da epistemologia. Mas no meio de tantas críticas, uma se destaca: é a proposta pelo antropólogo francês Dan Sperber e também utilizada pelos antropólogos Richerson e Boyd. Estes três antropólogos foram sem dúvida os que propuseram as melhores críticas. Muitas críticas comuns parecem ter surgido ou de quem não leu ou que leu, mas não se deu o trabalho de entender. São críticas primárias e muito mal colocadas, em grande parte propostas por cientistas sociais, mas também por muitos biólogos. Mas estes três fogem da regra talvez porque, ao contrário dos outros, todos eles parecem se interessar por análises darwinistas da cultura. Isso significa que eles leram a memética sem preconceitos, e sim com interesse, mas chegaram à conclusão posterior de que ela estava errada. Inclusive todos os três deixaram o desejo de que a memética pudesse ser uma ciência registrado por escrito em diversas ocasiões, mas, segundo eles, infelizmente ela tem falhas importantes. São críticos com um real interesse no assunto e, deste modo, podem fazer uma crítica mais profunda e mais elaborada. São bons críticos, do tipo que dá gosto de responder. Neste caso em particular, as críticas deles se assemelham muito, vão ambas contra o conceito de unidade e de replicação dos memes, defendendo que o que realmente acontece é uma espécie de mistura recriada em cada mente e não uma transmissão por replicação de unidades discretas. Curiosamente, a despeito destas semelhanças, ambos se consideram críticos um do outro! Já vimos as críticas de Richerson e Boyd anteriormente, bem como a resposta a tais críticas. Basicamente eles acreditam que sua teoria, que também é uma análise darwinista da cultura, não precisa considerar que os memes, ou melhor, as variantes culturais, sejam discretas, podendo haver mistura entre elas. No entanto, embora eles digam que isso possa ser assim, eles não dizem que isso deva ser assim, mantendo em aberto o problema. Além disso, outras respostas ao tal “problema da mistura” serão analisadas aqui. Tudo isso junto reforçará o que foi dito anteriormente, a saber, que a teoria da co-evolução que eles desenvolveram, assim como a desenvolvida por Cavalli-Sforza e Feldman, podem 370 ser consideradas como análises perfeitamente meméticas (seção 4.9). Se retirados somente uma minoria dos parágrafos, onde eles fazem tais críticas, e lido todo o resto do texto onde eles desenvolvem positivamente suas análises da cultura e da relação desta com os genes, não há porque não considerar tais livros como livros de memética. Veremos que basicamente o mesmo se dá com Sperber, que embora seja considerado o crítico mais formidável da memética, ainda assim defende o que ele chamou de “epidemiologia das representações”, algo que tem memética escrito de cima a baixo. Na verdade, o que Sperber faz é a união de um conjunto de críticas que serão aqui apresentadas separadamente, mas como a crítica dele é a mais fundamental e importante merecerá ser destacada das outras e tratada inicialmente. Em seguida serão apresentadas breves considerações sobre o papel e os exageros da analogia em relação à memética para, só aí, darmos prosseguimento às críticas divididas em vários tópicos. 10.1 Dan Sperber e a Comunicação Talvez o mais famoso crítico dos memes seja Dan Sperber. Ao contrário das críticas comuns que encontramos frequentemente, Sperber faz uma crítica muito bem desenvolvida em um alvo inesperado: a comunicação. Normalmente damos por certo a nossa habilidade de nos comunicar com os outros, assumimos que quando falamos somos entendidos da maneira que falamos, pelo menos dentro de certos limites razoáveis. Mais importante ainda, assumimos que o entendimento originado foi causado pelo que falamos, ou seja, que foi possível passar uma informação de uma mente para a outra. Esta é a base para entendermos os memes como informações armazenadas em cérebros que são transmitidas, isto é, replicadas. Mas Sperber nos diz que o processo de transmissão de informação pode ser muito diferente de um comunicador ativo transmitindo algo para um receptador passivo. Em poucas palavras, o que ele diz é que o receptador, na verdade, não recebe a informação, melhor seria chamá-lo de criador, ou, pelo menos, de transformador. 371 Normalmente acreditamos que a informação foi passada porque ela é capaz de criar o mesmo comportamento em dois indivíduos diferentes. Se um professor diz para o aluno que “Cabral descobriu o Brasil”, isso faz com que o aluno também tenda a dizer que “Cabral descobriu o Brasil”. Por isso assumimos que a informação que estava na mente do professor foi passada para o aluno. Mas Sperber nos diz que “tipos muito diferentes de estados mentais podem fazer surgir comportamentos de crença idênticos” (Sperber, 1996, p.89. Minha tradução). Em outras palavras, a informação na mente do aluno pode ser consideravelmente diferente da que está na mente do professor, mas ainda assim produzir o mesmo comportamento. Bonner nos dá um exemplo que é bastante ilustrativo (Bonner, 1980, p.107): quando buzinamos, ou ouvimos uma buzina de um carro, podemos assumir muitas informações diferentes causando o mesmo comportamento. Pode ser “você passou o sinal vermelho” ou “ sua porta está aberta” ou “seu pneu está vazio” ou “obrigado por me deixar passar” ou “eu também sou de Carangola” ou “sai da frente seu...” etc. De agradecimentos a xingamentos, todos causam praticamente o mesmo comportamento. Só somos capazes de distinguir baseados no contexto. Mas se o contexto não mudar muito, seríamos praticamente incapazes de saber o que está sendo passado com determinado comportamento. Como no caso do professor e do aluno. O professor pode entender muito bem o que significa “Cabral descobriu o Brasil”, mas o aluno pode não entender nada, mas mesmo assim acertar a questão da prova simplesmente porque decorou a resposta. Deste modo, Sperber acredita que memes não seriam verdadeiramente replicadores, pois diferentes comportamentos podem ser ocasionados pela mesma regra. Concordando com isso Richerson e Boyd nos dizem: A informação é transmitida de um cérebro a outro apenas se a maioria das pessoas induzirem uma regra única a partir de uma dada performance fenotípica (Boyd & Richerson, 2000, p.155. Minha tradução). Uma pessoa tem uma regra mental que origina um determinado comportamento. Tal comportamento é imitado por outra pessoa, mas pode ser que seja a partir de uma regra mental completamente diferente. No caso que Blackmore e Dawkins nos deram, onde uma espécie de brincadeira de telefone sem fio é feita, mas com uma criança ensinando para a outra algum tipo de 372 origami, é bem possível que a regra mental de uma criança para realizar tal origami seja bem diferente da regra de outra criança. Assim, esta regra não seria replicada de indivíduo para indivíduo. Vemos aí um típico problema no qual é importante a resposta de se o que é copiado é o comportamento ou a informação cerebral, pois se for o comportamento então as críticas de Sperber não fazem sentido. O comportamento parece ser replicado sem absolutamente problema nenhum, é a regra mental que não é. Se tratarmos os memes como comportamentos, como fizeram alguns behavioristas meméticos, então não há problemas aqui (seção 10.8). Se os tratarmos também, como é bastante comum, como padrões de comportamentos, também não há grandes problemas no fato de que estes padrões sejam armazenados ou originados de formas diferentes no cérebro. Só a versão dos memes como informação guardada em cérebros precisa responder este desafio e, neste caso, a resposta pode ser que nenhum dos dois sabe bem como este armazenamento acontece. O problema verdadeiro é se cérebros diferentes de fato utilizam regras diferentes para um mesmo comportamento. Já vimos que Dennett, um defensor dos memes, concorda com Sperber nesta questão, pois não acredita em algo que seria como uma “linguagem cerebral universal” (seção 3.2). Mas já concluímos que esta é uma questão empírica, deve ser tratada futuramente por experimentos capazes de fazer tal análise em cérebros. Dada a grande semelhança entre a estrutura e funcionamento da maioria dos cérebros humanos, pode ser que exista uma única, ou talvez um número bem limitado, de regras para cada comportamento. Mas, na verdade, a própria idéia de regras cerebrais e linguagens cerebrais pode não fazer muito sentido. Vimos no caso dos neurônios-espelho que a imitação de um comportamento pode se dar de maneira bastante direta, sem nenhuma necessidade de se tratar tal processo como um tipo de regra interna (capítulo 7). A verdade é que, ao tratarmos dos memes como informação armazenada em cérebros, temos que admitir que conhecemos muito pouco sobre o funcionamento de tal órgão tanto para criticar a memética quanto para defendê-la. Em ambos os casos é preciso esperar, e qualquer crítica ou defesa feita agora neste sentido é apressada. Nem Blackmore, nem Sperber, nem ninguém sabe precisamente como a informação é armazenada em cérebros e como é transmitida. Mas, por sorte da 373 memética, ela não precisa saber disto para iniciar seus estudos. Ela pode muito bem tratar dos comportamentos e da transmissão do comportamento sem saber como este surge nos cérebros. Em um futuro, é claro que seria importante saber como se dá tal processo. Do mesmo modo, Mendel não sabia nada a respeito do DNA, mas pôde trabalhar e fazer grandes descobertas a respeito do modo de funcionamento dos genes sem isso. No entanto, ainda assim a crítica de Sperber parece atacar o próprio núcleo da memética como desenvolvida por Dawkins, Dennett e Blackmore, pois para os memes fazerem algum sentido eles têm que ser um replicador, mas, para Sperber, não há replicação no processo de transmissão da informação. Curiosamente, como veremos, ele ainda assim defende o que chamou de “epidemiologia das representações”, mas critica a memética no que diz respeito aos seus “micro-processos”, pois discorda que a transmissão se dê através de replicação, com mutações acidentais. Ele discorda da visão do processo comunicativo como um processo de codificação que é seguido de uma decodificação de maneira simétrica. Para ele, “a comunicação humana realiza em geral apenas algum grau de similitude entre os pensamentos do comunicador e aqueles da audiência” (Sperber, 1996, p.83. Minha tradução). A replicação, deste modo, seria só um caso limite onde existe uma máxima semelhança entre a mensagem enviada e a mensagem recebida. Deste modo, a comunicação não seria um processo de replicação, mas de transformação, tendo a replicação como um dos seus limites e a total perda de informação o outro. Não haveria replicação de informações, mas somente interpretação. Não vamos entrar aqui no que ele define por representação, pois o que interessa é esta visão como uma crítica à memética entendida como replicação de informação entre cérebros. O próprio Sperber não se oporia a chamarmos sua teoria de “epidemiologia dos memes”, se fizermos a ressalva que o “microprocesso” envolvido não é uma replicação dando origem a duas informações semelhantes em cérebros distintos. A crítica que ele faz é, na verdade, bem comum entre antropólogos. Eles dizem que quando um meme é transmitido entre pessoas ele é completamente modificado. O que ele significava na cultura passada é praticamente irrelevante para o que ele significa na cultura presente. “‘Macarrão’ para os italianos é, portanto, algo muito diferente do que é para os chineses.” (Bloch, 2000, p.198. Minha tradução). Memes não seriam como vírus 374 que são passados entre indivíduos. Eles seriam continuamente feitos, desfeitos e refeitos durante a comunicação. A única diferença da crítica de Sperber para a crítica comum dos outros antropólogos é o fato de que eles costumam falar de culturas no modo mais geral, enquanto Sperber está preocupado com os processos particulares de transmissão. Isso torna esta crítica muito mais forte, pois já deve ter ficado claro que, para o pensamento populacional, estas análises generalistas e tipológicas não têm realidade alguma. É muito simples entender que do mesmo modo que “macarrão” pode ter significados diferentes entre italianos e chineses, a mesma seqüência de nucleotídeos pode ter efeitos bem diversos em espécies diversas, simplesmente porque está atuando conjuntamente com outros genes em outro ambiente. Mas, voltando a Sperber, a cultura seria re-produzida, no sentido que é produzida de novo e de novo, mas não reproduzida no sentido de ser copiada de um para o outro (cf. Sperber, 2000, p.164). Para ele, três condições deveriam ser satisfeitas para haver uma “real replicação”. Para B ser uma replicação de A: B tem que ser causado por A, B tem que ser similar em aspectos relevantes à A, por último, o processo que gera B tem que obter de A as informações que fazem B ser similar a A. O problema com a memética seria esta última cláusula. Neste sentido, a passagem de memes seria semelhante a uma risada contagiosa, ou seja, o riso inicial causa os outros risos, os dois são semelhantes, mas não há realmente a passagem de nenhuma informação. É o que Blackmore chamou de contágio (seção 3.3). No entanto, se a informação que fez B ser similar a A não veio de A, de onde veio então? Sperber não está propondo uma grande coincidência cósmica, uma harmonia pré-estabelecida. Acabamos de ver que uma de suas propostas é o fato de que o mesmo comportamento pode surgir de regras diferentes. Mas é preciso muita pesquisa empírica para descobrir se isso é realmente possível e, mais importante, se é assim que o cérebro de fato age. Richerson e Boyd, embora concordem com Sperber de que a cultura não precisa ser necessariamente replicada para ser passada, sabem da necessidade de mais pesquisas: Não conseguimos entender detalhadamente como a cultura é armazenada e transmitida e, por isso, não sabemos se as idéias culturalmente transmitidas e crenças são ou não são replicadores (Boyd & Richerson, 2000, p.158. Minha tradução). 375 Mas há aqui ainda outras questões. Como B pode ser semelhante a A se a informação que o fez assim não veio do próprio A? De onde surge esta admirável coincidência? Uma possível resposta que Sperber chega a delinear é tratar a cultura não como replicada, mas como acionada ou evocada (evoked). Um comportamento iria acionar este mesmo comportamento em outra pessoa, mesmo que a regra cerebral para os dois comportamentos seja diferente. Neste caso, não há informações sendo passadas entre cérebros, um comportamento evoca um outro comportamento semelhante. Aconteceria, então, algo bastante similar ao que vimos acontecer em outros animais, onde não haveria real transmissão de informação (seção 8.1). Casos semelhantes a estes são, inclusive, muito comuns em comportamentos instintivos, onde este comportamento só surge se for acionado por algo externo, por exemplo, o comportamento de corte para acasalamento em certos macacos só surge se o macho antes observar o inchaço genital da fêmea, que significa que ela está pronta para acasalar. É um comportamento evocado. Mas a questão, na verdade, não foi respondida: se cérebros são tão diferentes a ponto de existirem uma infinidade de regras diferentes para um mesmo comportamento, como é possível que um comportamento acione outro semelhante? Deve haver alguma similaridade, algo que permita que cérebros diferentes de certo modo se compreendam. Pois para um mesmo comportamento surgir em dois indivíduos separados, deve existir algo no cérebro que seja capaz de identificar um determinado comportamento como sendo aquele comportamento particular. Voltemos ao caso da risada contagiosa: uma risada pode acionar outra risada em outra pessoa, mas por que o que foi acionado é justamente uma outra risada? Se cérebros funcionam com regras tão diferentes, uma risada poderia muito bem acionar um choro, ou bocejos, ou raiva, ou, por que não, cambalhotas no ar ou a produção de artigos científicos? Mas risadas normalmente só acionam outras risadas. O fato de que cérebros, de certa maneira desconhecida, se entendem, indica que o funcionamento deles talvez não seja tão diferente um do outro. Vimos isso de maneira bem clara ao tratar dos neurônios-espelho: o movimento de uma mão pode ser percebido e realizado praticamente pelo mesmo neurônio, e isso vale para quem está imitando e para quem está sendo imitado. As indicações são de que Sperber está errado em suas considerações sobre o funcionamento do cérebro 376 humano. Mas nada é conclusivo, muito há por fazer. Além disso, vimos também no capítulo 8 que uma das definições de imitação é a capacidade de acionar um comportamento já existente no repertório de outro indivíduo. Ou seja, a proposta de Sperber para a comunicação poderia ser simplesmente chamada de “imitação”. A questão central aqui é que a simples consideração de que cérebros podem funcionar de maneira semelhante é o suficiente para mostrar que não necessitamos da terceira cláusula de Sperber para falar de memética. A informação que fez B ser semelhante a A não precisa ter vindo de A, como Sperber defende, pois pode ter vindo do próprio ambiente, no caso, do cérebro humano, ou melhor, pode ter vindo do próprio processo de replicação. Acontece que, em um processo que leva de A a B, pode ser que as regras de tal processo sejam bastante restritivas, de modo que, dada a condição inicial A, tais regras levam a B. Tais regras, no caso da memética, seriam regras cognitivas para a interpretação do comportamento dos outros. “A causa da similaridade entre a informação nos cérebros de A e de B é o resultado da psicologia evolutiva, não da memética” (Aunger, 2000, p.216. Minha tradução). Acontece que se cérebros não se comunicam diretamente, como Sperber defende, isso não impede que as informações sejam passadas de um para o outro, pois através do próprio processo de reconstrução de Sperber podemos dizer que a informação foi relevantemente passada. Reconstruir pode significar o mesmo que reproduzir. Não é sem razão que “reprodução” vem de re-produção! Isso pode parecer um pouco confuso, mas é bem simples: se cérebros reconstroem as informações através da observação do comportamento de outro indivíduo, então eles não precisam receber esta informação diretamente. A informação não seria passada, mas reconstruída baseada em princípios que garantem sua semelhança durante todo o processo. Do mesmo modo, se cérebros têm um funcionamento parecido, a simples observação do comportamento de outro pode ser suficiente para inferir, ou seria melhor dizer acionar ou evocar, a mesma informação nos dois cérebros. Deste modo, houve transmissão de informação, mesmo que não seja da maneira mais direta que gostaríamos. Esta resposta, na verdade, pode ser considerada como uma versão da resposta dada a Blackmore anteriormente sobre o papel da imitação na passagem de memes (seção 8.1): não importa muito se foi por imitação ou não, importa que 377 o meme foi passado e sabemos que ele foi passado porque quem o recebeu é estatisticamente mais provável de apresentar tal meme do que a média da população. Sperber, assim como Blackmore, exige um conceito de replicação muito restrito, onde o meme passado tem que ser perfeitamente idêntico ao meme recebido, quando o importante é só que ele seja relevantemente idêntico. Do mesmo modo que Blackmore considera somente a imitação como forma de transmissão de informação memética, e se esquece que o que importa não é a imitação exata, mas sim que a informação tenha sido passada, Sperber se preocupa exageradamente com o que causa a similaridade entre as duas representações mentais, quando o que realmente importa é se tal similaridade existe ou não. Seja lá como ela foi causada. Podemos lembrar aqui que os micro-processos da transmissão memética que Sperber está criticando eram desconhecidos por Darwin em relação à transmissão genética. Este chegou a dizer na Origem das Espécies que “as leis que regulam a hereditariedade são geralmente desconhecidas” (Darwin, 2004, p.29). Na verdade, nem mesmo Mendel compreendia tal transmissão, mas fez seus estudos de reprodução e analisando os fenótipos ele pôde tratar dos genes sem nem mesmo saber o que eles eram. Hoje em dia não é muito diferente. Sabemos razoavelmente o que é um gene e como ele é transmitido, mas se vamos descobrir se algum caractere é herdável, não precisamos fazer uma análise molecular ou observar a fecundação. Ainda se trabalha com experimentos de reprodução e, principalmente, com o conceito de herdabilidade que nos diz que se os filhos têm uma chance maior do que a média da população de ter o mesmo caractere que seus pais têm, então não há motivos para não considerar que ele é um caractere herdável, mesmo que ainda não saibamos como ele é codificado em DNA (seção 1.1). Do mesmo modo, o padrão de comportamento daquele que recebeu a informação deve ser estatisticamente mais parecido com o padrão de comportamento daquele que enviou do que com a média da população. Isso é o suficiente para considerar que tal informação foi passada e, mais importante ainda, é o suficiente para se fazer memética. Podemos ver isso bem claramente no caso dos príons: uma proteína não passa nada para a outra, o que acontece é que a forma estereoespecífica, a forma tridimensional, de um príon faz com que uma proteína saudável assuma a mesma forma dele e, deste modo, se transforme em um príon também. O que é passado neste caso? A forma? Mas o que é uma 378 “forma”? Não importa, ao menos não inicialmente. Se as duas proteínas relacionadas em tal processo são relevantemente similares, então o processo é um processo de replicação. Resta ainda a dúvida de que, se Sperber acredita que o processo de transmissão de informação seja um processo de transformação, quase recriação, então como se dá a epidemiologia das representações que ele mesmo defende? Para haver tal epidemiologia é preciso que exista alguma semelhança entre as diferentes representações relacionadas, se esta semelhança não se dá através de um processo de transmissão com fidelidade, ela deve se dar de outro modo. A resposta dele é através do que ele chamou de “atratores”. Para deixar mais claro o que são tais atratores podemos analisar um exemplo que ele mesmo dá sobre a aquisição da linguagem. Sperber afirma que o significado das palavras não pode ser copiado ou observado, só pode ser inferido. Mas se o comportamento pode funcionar de maneira tão caótica quanto ele assume, poderíamos ter uma infinidade de significados para cada palavra, na verdade, cada pessoa poderia ter um significado diferente para a mesma palavra, o que é só um modo de dizer que não existiria significado algum. No entanto, se cérebros agem de maneira semelhante, é esperado que os significados sejam também semelhantes. Isso, é claro, se o significado for algo interno, como ele defende. Se for externo, não há problema algum aqui. Contra a visão de que a cultura é aprendida por imitação, Sperber nos dá o caso da linguagem: segundo ele, uma criança não aprende um idioma imitando sentenças que ouviu, na verdade, a maioria das sentenças nunca vai ser imitada. “Quando canta ‘Yankee Doodle’, você não está tentando reproduzir nenhuma performance passada da canção” (Sperber, 1996, p.104. Minha tradução). Ele diz, baseado em Chomsky, que usamos tais sentenças que ouvimos como evidências para “evocar” gramática inata que será, ela sim, fonte de novas sentenças. Mesmo crianças que ouviram sentenças completamente diferentes do mesmo idioma serão capazes de evocar a mesma gramática. Como tal gramática parece ser substancialmente a mesma nas diversas línguas conhecidas, Chomsky a chamou de gramática universal. Para Sperber isso seria explicado pela existência de uma capacidade genética de adquirir linguagem. Deste modo, ele cria o que chamou de teoria dos atratores: 379 A similitude entre itens culturais deve ser explicada, em grande parte, pelo fato de que as transformações tendem a ser predispostas na direção de atratores no espaço de possibilidades (Sperber, 1996, p.108. Minha tradução). O problema de Sperber é bem simples, ele considera errado explicar a transmissão cultural como um caso de replicação, haveria sempre transformação neste processo. Mas com isso ele cria o problema de que tal processo iria transformar a cultura em algo extremamente caótico, cada pessoa teria sua própria interpretação e não existiria verdadeira comunicação. Para ele isso não acontece porque a existência de atratores garante que, mesmo em um processo de transformação, algumas serão muito mais prováveis do que outras garantindo, assim, que praticamente a mesma informação possa ser obtida através de regras diferentes. Como vimos, tais atratores seriam em grande parte cognitivos: estruturas cerebrais biologicamente herdadas por praticamente todos os seres humanos e que “canalizariam” o processo de transformação. Para dar um exemplo de tais atratores ele utiliza o caso dos mitos: O conteúdo de um mito tende a flutuar (drift) ao longo do tempo de modo a manter uma memorabilidade máxima. (...) os mesmos temas e estruturas que ajudam uma pessoa a se lembrar de uma história parecem torná-la particularmente atraente. (...) Se as condições psicológicas da memorabilidade e da atratividade são realizadas, é possível que a história seja bem distribuída (Sperber, 1996, p.85. Minha tradução). Sperber chega a dizer que um mito parece ter uma vida própria, se espalhando e sobrevivendo por conta própria. Diferente de outras crenças, como crenças políticas ou matemáticas, que precisam mais de um determinado ambiente para sobreviver. Ele nos dá também o exemplo da prova de Gödel: para entendê-la é preciso muita educação, principalmente no que diz respeito à lógica matemática. No entanto, se tivermos a habilidade de entendê-la, podemos dizer que “a organização cognitiva humana é tal que não podemos entender tais crenças sem aceitá-las como nossas” (Sperber, 1996, p.97. Minha tradução). Assim, não seriam só as nossas estruturas cognitivas que serviriam de atratores, mas também as representações que já possuímos seriam determinantes em relação à possibilidade de sermos “infectados” por novas representações. “Representações culturais previamente internalizadas são um fator chave na susceptibilidade a novas representações” (Sperber, 1996, p.84. Minha tradução). 380 Para Sperber, então, as tradições mitológicas mais comuns seriam aquelas mais facilmente lembradas, as que fossem difíceis de serem lembradas seriam esquecidas ou tenderiam a ser atraídas em direção a formas mais memoráveis (cf. Sperber, 1985, p.86, in: Dennett, 1998, p.374). No entanto, é fácil perceber que o que ele chamou de atratores aqui, foi chamado de ambiente pela memética, e, assim como os atratores de Sperber, podemos dizer que o ambiente canaliza as variações, tanto meméticas quanto genéticas, por ser o que seleciona as variações. O ambiente de certa maneira direciona o desenvolvimento tanto genético quanto memético. É verdade que na genética e na memética ele não tem papel nenhum na criação de variações, mas é dele o papel na escolha de tais variações, direcionando a evolução. Voltando ao caso de Chomsky, podemos ver que este é um perfeito exemplo do que foi dito acima: a restrição das regras garante a transmissibilidade. Dado um número mínimo de sentenças que uma criança ouve, as regras do aprendizado da linguagem evocam a gramática universal. Do mesmo modo, B não precisa ter tirado de A as características que o faz semelhante a este, ele pode ter tirado do próprio processo. Se tivermos a constância de que este processo tende a produzir B a partir de A, não precisamos de mais nada! Deste modo, fica claro que o que ele está defendendo não é substancialmente diferente do que a memética defende, e ele mesmo admite que estas duas explicações para a semelhança cultural, a dos atratores e a selecionista, não são excludentes (cf. Sperber, 1996, p.108). A disputa aqui é só como se dá o micro-processo da passagem de informação, se ele é direto ou indireto. Mas o relevante é que tal passagem se dá. O macro-processo de Sperber não é diferente do da memética e não é sem motivo que os dois tratam a cultura através da epidemiologia. Mais uma vez vemos que, assim como aconteceu com Richerson e Boyd, ao menos inicialmente podemos desconsiderar as críticas e utilizar o trabalho positivo realizado por Sperber como um ótimo trabalho em memética. Se o que está sendo dito aqui está correto, estes três antropólogos poderão, no futuro, serem considerados em posições semelhantes a de de Vries e Bateson, que acreditavam estar desenvolvendo uma crítica a Darwin com a utilização dos genes mendelianos, mas na verdade mal sabiam estar dentro do próprio darwinismo (seção 1.6). Nada muito diferente do que aconteceu recentemente com Gould, que 381 é por muitos tratado como crítico do darwinismo, mas que, como vimos no capítulo 2, não defende nada extraordinariamente diferente da ortodoxia darwinista. 10.2 Até Onde Vai a Analogia? As críticas tratadas neste tópico são de relevância limitada, no entanto, elas têm que ser tratado de início até mesmo para possibilitar a compreensão do que vem a seguir. Acontece que a memética de fato surgiu de uma analogia criada por Dawkins. Ele próprio questionou se era uma boa ou má analogia. A questão é que, uma vez tendo surgido, a memética pode se livrar de tal analogia e seguir por conta própria. A má compreensão disso levanta muitos problemas. Ainda é comum falarmos da memética como uma analogia com a genética, mas é claro que esta analogia não precisa ser encontrada em todos os processos e produtos da genética. Ninguém, por exemplo, sequer se preocuparia em procurar as metilações da cultura, ou acredita em uma espécie de divisão celular da cultura. Dennett nos fala de uma espécie de meio-termo (cf. Dennett, 1998, p.360): não devemos nem procurar uma analogia completa e nem ignorar que há uma analogia. No entanto, o melhor é entender que a verdadeira analogia só diz respeito ao que foi chamado aqui de o “esqueleto da evolução” (seção 1.2), que são os processos mais fundamentais dos quais já tratamos inúmeras vezes: reprodução com herdabilidade, variação intraespecífica, possibilidade do surgimento de novas mutações, aptidão diferencial, falta de recurso para a reprodução, tempo para o processo ocorrer. Qualquer analogia que vá além disso pode ser bem vinda, mas não é essencial. Na verdade, o melhor é nem mesmo pensar na memética em termos de analogia, pois como muito bem falou o filósofo David Hull “A memética não envolve qualquer tipo de raciocínio analógico” (Hull, 2000, p.46. Minha tradução). Ele nos diz isso porque, na verdade, a memética não é um simples caso de analogia, ela é uma outra instância do processo mais geral e abstrato que é a evolução por seleção de variantes adaptadas ao meio. Tanto a memética quanto a 382 biologia evolutiva devem ser consideradas, separadamente, como duas instâncias deste mesmo processo abstrato. O próprio Dennett diz que “a evolução memética não deve ser considerada só análoga à evolução genética, ela é de fato uma evolução por conta própria” (Dennett, 1998, p.359). E se formos levar a sério o que Dawkins disse, ele mesmo falou algo semelhante: “O darwinismo é uma teoria grande demais para ser confinada ao contexto limitado do gene. O gene entrará em minha tese como uma analogia, nada mais” (Dawkins, 2001, p.213). Tanto o gene quanto o meme são analogias, ou melhor, exemplos de aplicação do darwinismo, isto é o darwinismo universal. A memética, deste modo, deve ser considerada tão análoga à genética como a genética é análoga a memética. E ambas podem se beneficiar de tais analogias. É errado pensar na memética como uma recebedora passiva de analogias que provém da genética e da biologia evolutiva. Se, por exemplo, Don Ross estiver certo e as pesquisas com a teoria dos jogos na macro-economia forem memética, então já temos aí um ótimo exemplo de uma analogia que, na verdade, saiu da memética e foi parar na biologia evolutiva. E se o darwinismo for mesmo uma adaptação de Adam Smith, então a teoria da evolução veio da memética! Mas, dado o fato de que a biologia já tem um grande sucesso, é apenas mais provável, mas não é necessário, que as analogias se originem nela. Deste modo, ela é o nosso melhor guia nestas questões, mas não devemos confundir o cego com o cão que o guia. Por este motivo, no que se segue, muitas questões da memética serão respondidas utilizando conceitos, e mesmo a história da biologia. Mas nada disso deve ser considerado como um raciocínio por analogia, apenas estamos seguindo o princípio de que não pode haver dois pesos e duas medidas. Não é uma questão de analogia, e sim de paridade: se uma ciência pode prosperar dando um certo tipo de resposta por que a outra não pode? Se a memética falha em algo que a biologia também falha, ou falhou, deve ser dado a ela, no que diz respeito a esta questão, o mesmo respeito dado à biologia por uma simples questão de honestidade intelectual. Por isso, ao levantar as relações entre os conceitos da memética e da biologia não se está simplesmente querendo descobrir analogias interessantes, mas sim mostrar que não julgar a memética pelos mesmos padrões que se julga a biologia, e qualquer outra ciência, é uma questão que só poderia ser chamada de “hipocrisia epistemológica”. É neste sentido que vimos que David 383 Hull considera que os críticos exigem mais clareza conceitual da memética do que de qualquer outra ciência em seu início. Com isso não estamos querendo dizer que a memética está tão bem fundamentada quanto a biologia. Esta com certeza tem muito mais embasamento empírico do que aquela, e foi assim desde seu início. Por isso dissemos na seção 6.2 que a memética ainda precisa do seu Darwin, ou seja, alguém com conhecimento suficiente em relação as mais diversas áreas que tratam da cultura e que seja capaz de reuni-las de modo que todas apontem para a mesma direção. Talvez o grande problema da memética ter se originado como uma analogia seja o fato de que muitos críticos ficam procurando algum ponto onde a analogia não procede e, com isso, acham que estão criticando a memética. Mas se ficou claro que a memética não é somente um pensamento analógico e passivo em relação à biologia, então podemos ver que esta estratégia de crítica simplesmente erra o alvo. Não há absolutamente necessidade alguma de que tudo o que vemos na biologia tenha um similar na memética e não devemos de modo algum ignorar as idiossincrasias da cultura, que é justamente o que faz o trabalho da memética ser interessante e necessário. As únicas idiossincrasias com as quais um defensor da memética deve tomar cuidado são aquelas que impedem o processo de evolução por seleção natural, seja em que substrato for. Por isso, como já foi dito na seção 5.3, uma “fórmula” interessante para se tratar as críticas à memética é tentar pensar se as críticas que foram feitas a esta refutariam a evolução darwinista por seleção natural se fossem feitas à biologia. Como estes dois processos são instâncias do processo mais geral de evolução, que Dennett chamou de algorítmico, então algo que seja um impedimento para um processo deve também impedir o outro. A busca por semelhanças entre estes dois processos rendeu analogias interessantes. Cavalli-Sofrza, por exemplo, nos fala da “deriva cultural”. Ele nos dá o exemplo da religiosidade norte-americana que pode ter se originado porque grande parte dos seus imigrantes iniciais buscava justamente um refúgio religioso no novo mundo (cf. Cavalli-Sforza, 2003, p.260). Seria um caso de uma população que apresenta um traço cultural porque os seus fundadores eram um pequeno grupo, um efeito do fundador cultural. No entanto, muitas analogias excessivas foram propostas, e pior, foram tratadas como críticas e aqui serão apresentados alguns exemplos. 384 O próprio Sperber, que conhece bem a memética, cometeu um engano similar a esse ao dizer que na cultura a informação pode vir de muitos para um, sendo que na biologia o máximo que teríamos é um casal dando origem a um indivíduo: “sua versão mental da canção foi o resultado das versões mentais de diversas pessoas” (Sperber, 1996, p.104. Minha tradução). Dennett nos convida a responder a esta crítica com um simples “e daí?” (Dennett, 2006, p.373). Que não existe a analogia, Sperber está certo, mas qual seria o problema? Este é um perfeito caso do que foi dito anteriormente: os críticos acham que a memética não passa de uma analogia e, por isso, ficam procurando diferenças entre os dois processos acreditando que elas mostram que a analogia não procede. Mas a memética não é um simples caso de analogia, é uma evolução por seleção por conta própria. É tão necessário que a memética tenha os mesmos processos que a biologia quanto é necessário que esta tenha os mesmo processos que aquela! Richerson e Boyd, outros grandes conhecedores, caem no mesmo problema quando nos falam que uma desanalogia entre memes e genes é que não existe na cultura algo que poderíamos chamar de “recessivo”, ou seja, que não causa comportamento nenhum, mas ainda assim é passado. Embora seja possível pensar que nem todo comportamento tem que ser conscientemente passado, pois o comportamento tácito é transmissível, mesmo sem ninguém perceber. Aprendemos, por exemplo, um sotaque regional sem a necessidade de alguém explicar o que quer que seja. Mas tais casos dificilmente seriam chamados de “recessivos”. No entanto, como já vimos no primeiro capítulo, estas classificações tipicamente mendelianas estão também sobre forte crítica na genética molecular. Além disso, casos como, por exemplo, da vantagem do heterozigoto, nos mostram que genes recessivos podem ser selecionados por serem recessivos (seção 1.9). No entanto, embora possamos dar inúmeras respostas, o mais importante é notar que esta é uma outra falha na analogia que não importa. É verdade que genes totalmente recessivos, que não alteram absolutamente nada, existem na biologia, mas eles não são necessários para a existência da evolução por seleção natural. Outro exemplo pode ser encontrado em Jablonka, quando está discutindo a imitação. Jablonka concorda que a imitação pode ser transmitida de maneira modular, unidade por unidade (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.174), mas, aparentemente contra a memética, ela quer deixar claro que a transmissão por imitação depende da função e do significado do que está sendo transmitido. O que 385 é aprendido é sensível à forma e à função da informação que está sendo passada. Já na replicação do DNA, este é igualmente replicado, seja lá qual for sua seqüência de bases (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.55). Teríamos, então mais uma falsa relação. Para ser mais exato, existe a possibilidade de que tal relação não seja tão falsa assim, pois há indicações que bases sinônimas podem influenciar a velocidade com que uma proteína é montada e, deste modo, causar pequenas variações na sua forma. Mas ignorando isso, teríamos que dizer que, na imitação, importa o conteúdo do que está sendo passado, alguns conteúdos serão passados mais facilmente do que outros. É o que ela chamou de um processo “sensível ao contexto e ao conteúdo” (Jablonka & Lamb, 2005, p.211. Minha tradução). Já na replicação do DNA isso não aconteceria. No entanto, ela não disse qual é o problema aqui, por que isso deveria atrapalhar em alguma coisa a memética? Na verdade, isso que ela disse faz parte da própria memética, ao contrário de ser uma crítica, é justamente o que permite a seleção de memes. A replicação dos memes depende do seu conteúdo assim como a replicação dos genes depende de sua adaptabilidade ao meio ambiente. Mas poucos artigos são tão cheios de falsas analogias quanto o de Paul Churchland. Talvez isso se dê por ele ser um filósofo da mente e estar muito mais preocupado com a teoria da consciência de Dennett do que com a memética. Uma das críticas mais curiosas é que ele nos diz que quando um vírus infecta uma célula ele se prolifera dentro desta, algo que não parece acontecer com os memes (cf. Churchland, 2002, p.67). No entanto, isso é só uma estratégia dos vírus e poderia muito bem não ser assim. Do mesmo modo que um salmão produz milhares de crias e depois morre, mas um elefante produz só uma cria a cada dois ou três anos, o vírus poderia produzir uma cópia só, desde que ele garantisse que tal cópia fosse passada. De qualquer modo, esta é uma questão irrelevante, pois ainda podemos falar em uma epidemiologia de memes sem que exista esta reprodução interna. Ainda tratando os memes como vírus, ele nos diz que uma célula pode não ter vírus nenhum, mas um cérebro maduro sem memes quase não é um cérebro (cf. Churchland, 2002, p.67). Mais uma vez fica difícil perceber em que sentido isso é uma crítica. Só quem acha que a analogia tem que ir até os mínimos detalhes vai perceber isso assim. Mas longe de ser uma crítica, este fato é 386 exatamente o que Dennett utiliza para defender que “ser” humano é ser um cérebro infectado de memes! Para sermos honesto com Churchland devemos ressaltar que embora ele pareça estar fazendo uma crítica enfática à memética, na verdade, sua crítica é contra a teoria da consciência de Dennett. Como esta é, para Dennett, um conjunto de memes, então ficaria restrita só aos animais que têm memes, principalmente aos humanos, mas Churchland defende que muitos outros animais têm consciência e que esta é muito mais antiga do que a habilidade de passar cultura. Para ele a consciência estaria no hardware cerebral e não no software cultural. Isso significa que muitos animais sem cultura teriam consciência (cf. Churchland, 2002, p.65). Mas no que diz respeito ao ser humano em particular, ele parece não discordar tão veementemente da memética: Não hesito em aceitar a sugestão de Dennett de que a evolução cultural – o desdobrar Hegeliano que ambos celebramos – obteve muito sucesso ao ‘erguer’ a consciência humana profundamente (Churchland, 2002, p.79. Minha tradução). Deste modo, os memes não teriam originado a consciência como Dennett propôs, mas teriam desenvolvido seu conteúdo. Como uma crítica à filosofia da mente de Dennett é realmente uma ótima crítica, tudo indica que é possível ter consciência sem ter memes. Mas como uma crítica à memética ele erra o alvo completamente. Vimos, então, só alguns exemplos do que acontece quando se leva a analogia longe demais. Isso acontece por causa de uma má compreensão da memética que considera essa como uma mera recebedora de analogias da biologia e como só podendo funcionar através destas analogias. Mas como Hull muito bem mostrou, a memética não é um raciocínio analógico. Memes precisam ser parecidos com genes só naquelas propriedades indispensáveis para que se dê um processo de evolução por seleção natural. Qualquer outra relação é uma coincidência de dois substratos diferentes que acabaram seguindo o mesmo caminho. Ou seja, um típico caso de analogia, agora com o sentido técnico que tal termo tem na biologia: duas histórias diferentes dando resultados semelhantes. 387 10.3 Problema da Unidade Esta talvez seja a crítica mais comum que se faz à memética e está diretamente relacionada ao que foi chamado aqui de problema ontológico e ao problema da mistura. Já vimos esta crítica várias vezes, pois ela é muito comum dentre os antropólogos que gostam de ressaltar que a cultura não pode ser compreendida como um conjunto de unidades discretas, mas como um todo que só pode ser tratado de maneira holística (seção 5.3). Veremos, no que se segue, que esta é talvez a grande má compreensão que os cientistas sociais têm com a biologia em particular e, talvez mais importante, com o fazer científico em geral. Esta crítica está muito bem representada na seguinte citação do antropólogo social Adam Kuper: Ao contrário dos genes, os traços culturais não são particulados. Uma idéia sobre Deus não pode ser separada de outras idéias com as quais está ligada de forma indissolúvel em uma religião particular (Kuper, 2000, p.180. Minha tradução). Também John Searle considera o conceito de meme pouco claro e William Seager concorda com Searle ao dizer que não sabemos de fato o que é um meme em particular. Não está claro qual é a unidade do meme (cf. Searle, 1998, p.124 e Seager, 2000, p.114). É o refrão de uma música um meme ou é a música inteira? Como exatamente poderíamos descobrir estas unidades e, mais importante ainda, pode a cultura ser separada em unidades discretas? Já vimos que mesmo os antropólogos que são tão avessos a esta discretização utilizam o conceito de “traço cultural”, que é uma unidade significativa de cultura (seção 5.3). Neste sentido, a separação entre antropologia e memética seria muito mais uma questão de abordagem do problema do que uma separação rígida. Os antropólogos preferem focar na relação da parte com o todo, enquanto os meméticos preferem tratar as partes separadamente. Mas em sua versão mais forte, tal crítica vai contra a própria existência de tais unidades de cultura, sejam elas memes ou traços culturais. Uma outra versão deste problema nos foi dada por Plotkin. Segundo ele um dos principais problemas da memética é considerar que todos os memes são semelhantes entre si e transmitidos somente através da imitação. Quanto à questão da imitação, já vimos anteriormente que ele está correto. Já na questão da unidade 388 dos memes ele nos diz que é errado considerar como o mesmo tipo de coisa traços culturais tão distintos como o tamanho de saias e o patriotismo (cf. Plotkin, 2004, p.155). São memes diversos, mas ele não especifica em qual aspecto exatamente a sua diversidade impediria uma ciência dos memes. Embora a transmissão deles possa se dar de maneira bem diferente, o importante é que eles são transmitidos culturalmente e que este processo garante que os descendentes se assemelharão mais a seus ascendentes do que à média da população. Inclusive, estes dois memes podem estar bem ligados entre si, e de fato estão, como quando vemos mulheres completamente cobertas em uma praia mulçumana e nos sentimos felizes e orgulhosos de viver em um país onde uma mulher pode decidir o comprimento de sua saia! Como não poderia deixar de ser, os críticos sempre fazem menção à biologia dizendo que não temos na memética unidades tão distintas como temos os genes na biologia. Tal análise mostra não só um desconhecimento quanto à biologia molecular, como também quanto ao próprio fazer científico. Acontece que, como Dawkins muito bem nos diz: O ‘gene’ foi definido não de maneira rígida absoluta, mas como uma unidade de conveniência, um pedaço de cromossomo com fidelidade de cópia suficiente para servir como unidade viável de seleção natural (Dawkins, 2001, p.217). Já vimos os problemas da biologia molecular em separar os íntros, partes que não codificam proteínas, dos éxons, partes que as codificam. E vimos também os problemas que surgem quando se assimila os genes aos éxons, pois os mesmos éxons, se unidos de maneira diferentes podem dar diferentes genes (seção 1.7). Além disso, éxons são estruturas físicas com uma duração limitada, enquanto genes têm vida ilimitada e podem, de certa maneira, estar em todas as células de um indivíduo ao mesmo tempo. Na verdade, um mesmo gene pode ser encontrado em vários indivíduos de várias espécies por milhões de anos. Por isso eles são melhor compreendidos, dentro da biologia evolutiva, em termos de informação. Mas a questão aqui não é exatamente esta, logo trataremos do problema ontológico dos genes, a questão aqui é que ser entendido desta maneira informacional implica em algumas conseqüências para a noção de unidade dos genes. Uma destas conseqüências é que a unidade passa a ser uma questão de conveniência: será considerado como um mesmo gene aquele conjunto de 389 nucleotídeos que tendem a ser passados juntos. Mas em muitos casos o que chamamos de um gene pode ser também entendido como um grupo de genes fortemente ligados O mesmo se daria com os memes: Se quase todas as pessoas que acreditam em A também acreditam em B – se os memes estiverem, usando o termo genético, fortemente ‘ligados’ – então será conveniente juntá-los como um só meme (Dawkins, 2001, p.218). Não há uma regra baseada em princípios para dizer quando algo é um gene ou um conjunto de genes fortemente ligados, tudo depende da probabilidade de que eles sejam passados juntos. Não há um limite inferior ou superior de número de códons, ou mesmo para número de efeitos fenotípicos, que determine a unidade dos genes. Como Dennett muito bem colocou: As unidades são os menores elementos que se replicam com confiabilidade e fecundidade. Podemos compará-las, quanto a isso, aos genes e seus componentes: C-G-A, um único códon de DNA, é ‘pequeno demais’ para ser um gene. (...) Uma frase de três nucleotídeos não conta como um gene pelo mesmo motivo pelo qual você não pode registrar os direitos autorais de uma frase musical com três notas: não é o bastante para fazer uma melodia. Mas não existe um limite mais baixo ‘baseado em princípios’ para a extensão de uma seqüência que possa vir a ser considerada um gene ou um meme. As primeiras quatro notas da Quinta sinfonia de Beethoven são nitidamente um meme, replicando-se sozinhas, destacadas do resto da sinfonia, mas mantendo intacta uma certa identidade de efeito (um efeito fenotípico) e, portanto, prosperando em contextos onde Beethoven e suas obras são desconhecidos (Dennett, 1998, p.359). Este critério pragmático é o único critério que temos tanto para descobrir a unidade dos memes quanto para descobrir a unidade dos genes. Um verso de uma música pode ser considerado um meme por conta própria se ele conseguir prosperar sozinho, sem a música. Caso a música só prospere unida, então ela toda é um só meme. E, mais importante, não há absolutamente problema nenhum se, por um acaso, de uma música que antes só prosperava unida, surgir um verso que se destaque e passe a prosperar sozinho. Deve ficar claro que tal discretização da cultura não é só uma análise memética, mas uma necessidade: Os antropólogos admitem que a cultura é distribuída. Se podemos admitir que grande parte do conhecimento cultural é socialmente aprendido, isso implica que tais conhecimentos necessariamente se difundem através das populações, de indivíduo para indivíduo. Todas as modalidades sensoriais exigem inputs sob a forma de fluxos temporais de informações – tais como palavras que formam frases, e frases que formam parágrafos. Nesse nível básico, os indivíduos, portanto, precisam adquirir informação em partes (que não precisam ser binárias). Assim, 390 algo parecido com uma unidade de transmissão precisa existir (Aunger, 2000, p.226. Minha tradução). Se a cultura fosse um todo indissociável (fortemente ligado) ela só poderia ser aprendida como tal, ou seja, toda de uma vez só. Mas como seríamos capazes de aprender tudo de uma vez só? Nossas limitações físicas e cognitivas não permitem isso, não conseguimos aprender tudo de uma vez só, a cultura deve ser aprendida aos poucos ou não será aprendida. Por mais holística que ela seja, ela é aprendida em partes e, na verdade, ninguém nunca conhece todas as suas partes. O tempo que gastamos aprendendo uma parte é um tempo que não gastamos aprendendo qualquer outra parte de cultura. Como certas partes terão maior probabilidade de serem aprendidas do que outras, temos os ingredientes necessários para uma evolução darwinista. Mas talvez a crítica mais importante que os antropólogos fazem não seja sobre a possibilidade de se tratar a cultura como unidade, mas sim se este é um bom modo de estudar a cultura. Em uma versão típica do argumento antireducionista, eles dizem que cada parte da cultura só pode ser verdadeiramente compreendida dentro do todo. Separadas elas não são nada, por isso, mesmo que existam tais unidades, é preciso estudar as partes a partir do todo e nunca o todo a partir das partes. Deve ser feito o que se convenciona chamar de estudo descendente, nunca ascendente. Mais um vez eles ignoram a genética. Pois o gene como unidade autônoma também não existe. É um erro pensar que um gene pode ser compreendido fora de seu ambiente, que é constituído dos outros genes mais o ambiente externo. Tal visão foi muito criticada como sendo “beanbag genetics”. Assim como um traço cultural só pode ser entendido em relação aos outros traços, o efeito de um gene só pode ser compreendido em relação aos efeitos de todos os outros. A mesma sequência de nucleotídios em diferentes espécies, com diferentes fundos gênicos, pode ter efeitos completamente diferentes. Deste modo, o que um gene “é para” em um determinado indivíduo pode ser radicalmente diferente do que ele “é para” em um outro indivíduo (capítulo 2). Por isso que a crítica de Bloch, já apresentada, de que “macarrão” significa algo para os italianos e algo diferente para os chineses, está errada (seção 10.1). Isso vale perfeitamente para a genética. Mas talvez a verdadeira má compreensão aqui não diga respeito ao pouco conhecimento em genética, mas sim ao pouco conhecimento do fazer científico. A 391 biologia se mostra mais frutífera para mostrar exemplos como esse, dada a sua semelhança com a memética, mas outros exemplos sem nenhuma analogia direta poderiam ser dados89. Mas de uma maneira ainda mais profunda, existe uma má compreensão do fazer científico em geral, pois qualquer cientista concorda que “é óbvio que, quanto mais complexo o campo, mais lentamente ele chega a um estágio em que pode fazer avanços rápidos através de métodos reducionistas” (Bonner, 1980, p.7. Minha tradução). Nenhum deles ignora que seus modelos e analises são simplificações, às vezes exageradas, do mundo. Mas elas são úteis justamente porque são simples. Trabalhar algo complexo de uma maneira também complexa só torna toda a empreitada algo impraticável. Como já vimos anteriormente, temos aqui uma decisão metodológica (seção 5.3). No entanto, a decisão pelo reducionismo metodológico de maneira nenhuma implica um reducionismo ontológico. É só uma questão de que sem esse reducionismo é impossível fazer um trabalho rigoroso: Ao nosso ver, os biólogos e cientistas humanos não serão capazes de entender a evolução da cultura a não ser que estejam preparados para quebrar o ‘todo complexo’ em unidades conceitualmente e analiticamente administráveis (Laland & Odling-Smee, 2000, p.121. Minha tradução). Os modelos são simples porque são modelos. É para isso que eles existem, se quiséssemos trabalhar com toda a complexidade não precisaríamos de modelos. Modelos existem para permitir uma análise mais simples da realidade. Mas qualquer cientista sabe que modelos não são a realidade. A simplificação, a separação em partes, é uma estratégia para tratar a complexidade, e não uma negação dela. Isso serve para a genética, para a memética e para praticamente qualquer área científica. Caso exista alguma propriedade que não pode de maneira nenhuma ser tratada a partir das suas partes, ela ficará por último e, quando todas as propriedades modeláveis forem tratadas, esta última propriedade estará destacada e poderá ser encarada de frente. Vemos que este método de se fazer ciência tem muito sucesso e é utilizado desde que esta surgiu até hoje. Não há ciência sem ele, pelos menos em seus estágios iniciais. Um ótimo exemplo são as pesquisas feitas sobre o cérebro, que talvez seja o caso de maior complexidade holística que temos hoje nas ciências. 89 Einstein mostrou através do movimento browniano que poderíamos inferir a existência dos átomos, não foi necessária a observação direta ou saber exatamente o que um átomo era. Mas é claro que isso só foi possível depois de um rigoroso tratamento matemático (cf. Einstein, 2001). 392 Mesmo assim muitos avanços empíricos foram realizados com métodos bastante rudimentares e até mesmo “toscos”, como análises de lesões cerebrais ou de pacientes drogados. Às vezes, o fato de que alguém levou uma flechada na cabeça pode nos trazer novas descobertas sobre o funcionamento do cérebro. Este talvez seja o melhor exemplo que até mesmo métodos rudimentares e brutos são capazes de tratar de objetos complexos, ao menos inicialmente. Às vezes o melhor modo de estudar uma coisa é dando um tiro nela90! Estudos como estes inclusive nos mostraram que a informação pode ser guardada em cérebros de maneira muito mais discreta do que normalmente suporíamos. Danos cerebrais indicam que o cérebro guarda informação de maneira bastante compartimentada (frutas e legumes, objetos médicos, nome de países, animais, etc.), pois determinadas lesões impedem o reconhecimento correto só destas categorias semânticas, mas mantém todo o resto funcionando normalmente (cf. Laland & Brown, 2002, p.275). Além disso, vimos no capítulo sobre as mudanças lingüísticas que estas podem se dar de maneira discreta, com a mudança em um termo não afetando os outros (seção 6.1). É possível até mesmo que uma mudança na pronúncia de uma palavra não afete a grafia desta mesma palavra! O que de fato acontece é que, como a tradição na antropologia é holística, e como é a antropologia que tradicionalmente estuda a cultura, temos poucos dados que poderiam dizer respeito às unidades culturais: O problema é que poucas pessoas estão realmente envolvidas no trabalho de contar, registrar e medir as variantes culturais, ou em rastrear como elas alteram em freqüência (Laland & Brown, 2002, p.279-280. Minha tradução). O mesmo problema surge para a memética e para a co-evolução. Até que seja feito um trabalho meticuloso neste assunto teremos que continuar trabalhando com as análises holísticas oriundas da antropologia. Mas o mais importante é entender que não há oposição entre o holismo ontológico da antropologia e o reducionismo metodológico das ciências, sendo que a genética é o melhor, mas não único, exemplo disso. 90 Um exemplo recente foi o estudo da composição química de um meteoro realizado através do lançamento de um objeto sólido contra ele e do estudo do impacto. 393 10.4 Problema Ontológico Esta questão também já foi abordada e é uma das que mais causa controvérsia. Os críticos dizem que, bem ou mal, sabemos que os genes são instanciados em tiras de DNA, mas em relação aos memes não temos sequer uma idéia de qual seria seu substrato físico. Esta questão se relaciona diretamente ao problema do fenótipo e genótipo dos memes que será tratado mais a frente (seção 10.8), pois discute se um meme escrito em um papel ou gravado em um disco rígido é um meme por conta própria. Paul Churchland acredita ter achado aqui mais um desanalogia em relação aos genes: [os memes] são, no melhor dos casos, padrões abstratos de algum tipo, impostos em estruturas físicas pré-existentes dentro do cérebro, e não coisas físicas que estão determinadas a criar outras coisas físicas com uma estrutura física comum (Churchland, 2002, p.67. Minha tradução). Algumas respostas a este problema já foram abordadas, como a visão de Dennett de que por poder transitar entre muitos substratos é melhor manter a visão informacional do que é um meme (seção 3.2). Até porque, a definição de gene utilizada na biologia evolutiva também é informacional. Neste sentido, genes e memes não seriam significativamente diferentes. Como vimos, isso nos leva ao problema da causação levantado por Sperber e que faz com que Dennett desista da memética. No entanto, ainda defendendo a semelhança entre memes e genes, poderíamos dizer que memes escritos em livros podem ser considerados memes tanto quanto genes escritos em livros podem ser considerados genes. O problema é que, mesmo genes sendo definidos como informação, ainda assim temos esta informação instanciada em uma tira de DNA que é fisicamente capaz de entrar em relações causais. Tais relações causais eminentemente físicas são o que permite com que o DNA codifique proteínas e também se reproduza. Deste modo fica mais evidente o dilema da memética, pois mesmo se memes foram definidos de maneira informacional, e eles devem ser definidos assim, ainda permanece o problema de qual é o seu substrato, ou, ao menos, o seu principal substrato. É por isso que Bloch considera que o problema ontológico deve ser respondido (cf. Bloch, 2000, p.193). Até mesmo Blackmore disse que “podemos assumir que, pelo menos em alguma fase de sua replicação, os memes 394 precisam ser fisicamente armazenados nos cérebros” (Blackmore, 1999, p.57. Minha tradução). Dificilmente se chegará a uma definição de um meme como algo físico, como uma “coisa”, o mais provável é, como muito bem viu Churchland, que ele seja entendido como um padrão, seja um padrão de comportamento ou um padrão cerebral. Neste sentido, foi apresentado aqui uma especulação que poderia ser desenvolvida no futuro de que o substrato físico dos memes estaria diretamente relacionado ao funcionamento dos neurônios-espelho (capítulo 7). Tais neurônios parecem estar na base de nossa habilidade de imitar, e possivelmente também na base de nossa linguagem e capacidade de compreender os outros. Eles podem ser a resposta empírica ao problema de Sperber de como dois cérebros podem ser capazes de recriar a mesma informação, mesmo ela não tendo sido diretamente passada. E, por fim, há indicações de que a área que inibe os neurônios-espelho é justamente a área que esperaríamos que fosse. No entanto, a descoberta dos neurônios-espelho tem menos de dez anos e qualquer conclusão a favor ou contra seria apressada. Por isso ela não pode ser considerada como uma verdadeira resposta ao problema ontológico, pelo menos não ainda. Assim, a linha de resposta aqui não será nem propor uma base ontológica para os memes em termo de neurônios-espelho, nem defender que definitivamente não precisamos de tal base, como Dennett defendeu, mas sim que apenas momentaneamente não precisamos de tal base. Quando Dobzahnsky falou em 1937 que a evolução era melhor descrita como uma mudança na composição genética das populações, ele estava tratando de entidades hipotéticas que eram indicadas pelos estudos de então, mas que ainda não tinham sido materialmente identificadas (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.29). Mais fundamental ainda, quando Darwin propôs sua teoria da evolução ele acreditava em uma teoria da hereditariedade completamente errada. No início do século XX, quando Mendel finalmente foi descoberto pela biologia, suas propostas foram largamente defendidas como anti-darwinistas (seção 1.6). Foi só em 1953 que Watson e Crick finalmente descobriram a estrutura do DNA, que era o transportador das informações genéticas. Ou seja, foram quase 100 anos desde a publicação de Darwin até a descoberta da codificação física dos genes, 100 anos de gigantescos avanços na biologia simplesmente baseados na esperança de que algum dia iriam encontrar o substrato dos genes. 395 E o mais curioso foi que quando finalmente tal substrato foi encontrado, a genética molecular achou suas descobertas estarrecedoras, os genes funcionavam de maneira tão diferente do esperado pelos estudos de reprodução mendelianos que até se cogita em simplesmente abandonar o conceito de gene (seção 1.7)! Embora seja improvável que ele seja abandonado, ele é ao menos muito mais confuso do que os críticos da memética gostariam que fosse e é reconhecido por praticamente qualquer biólogo que “genes são muito complexos e extremamente difíceis de serem definidos” (Futuyma, 2002, p.50). É claro que cada uma das diferentes áreas da biologia tem uma, ou até mais de uma, definição operacional de gene com a qual ela trabalha. Mas como todos estão convencidos de que estão falando da mesma coisa, e devem estar se essa coisa é algo físico no mundo, então há uma só definição do que de fato é um gene. Contamos hoje com 150 anos desde a publicação da Origem das Espécies e tal definição universal não existe ainda. Nem mesmo há um consenso se genes estão só no DNA, pois, como vimos nas teorias da evo-devo, estruturas diferentes podem ser construídas com os mesmos genes, dependendo de onde e quando eles são ligados durante o processo embrionário (seção 1.8). Fica a questão se os tais “interruptores” que ligam e desligam os genes seriam, eles mesmos, genes. Relacionado a esta questão, fica também o problema de qual é o papel da metilação. Pois se os “interruptores” foram considerados genes, a metilação, que muitas vezes tem um papel indispensável neste processo, tem que ser considerada como parte destes genes. Mas o importante aqui não é resolver a disputa sobre a definição de gene que existe na biologia, e sim a constatação de que há uma disputa. Disputa esta que nos mostra que, mesmo em sua vagueza, conceitos podem ser funcionais. A biologia pôde viver quase 100 anos sem saber qual era o substrato físico dos genes, e mesmo quando descobriu, não foi com o grau de clareza que gostaríamos que fosse. Este conhecimento era importante, mas não necessário: a simples constatação de que os filhos se pareciam com os pais era o suficiente. Constatação essa que temos na memética e que podemos usá-la para propor relações causais, mesmo sem saber os detalhes de como ela fisicamente se dá. Na verdade, cabe muito bem lembrar aqui que ainda hoje os estudos de genética das populações raramente conhecem os genes com os quais estão trabalhando, eles analisam os fenótipos (cf. Maynard-Smith, 1993, p.184). De maneira similar, a memética pode 396 também ignorar, ao menos inicialmente, este problema e tratar do fato de que há hereditariedade na cultura. Poder-se-ia objetar aqui que embora o conceito de gene tenha demorado quase 100 anos para fazer parte da biologia, desde seu começo a teoria da evolução teve grande sustentação empírica dada inicialmente por Darwin e depois por vários outros pesquisadores. Esta sim seria uma crítica mais sensata à memética e pode ser considerada correta. No entanto, é preciso lembrar que Darwin não só não tinha o conceito mais relevante para a sua teoria, como defendia um conceito errado que poderia servir como refutador desta teoria. Suas análises empíricas deveriam ser consideradas inconsistentes se tratadas em relação ao seu próprio conceito de hereditariedade. No entanto, é inegável que falta à memética algo que nunca faltou à biologia desde seu início: um trabalho empírico mais detalhado que faça uso dos mais diversos dados sobre a cultura coletados em várias disciplinas diferentes. O que está sendo defendido aqui é justamente que isto deve ser feito e que o resultado poderia ser favorável à memética. 10.5 Problema da Mistura Este outro problema também já foi exaustivamente tratado, pois também é uma crítica muito comum. Acontece que, segundo reza a crítica, os memes se misturam de maneira que os genes não fazem. Esta crítica normalmente vem em duas versões: ou trata das misturas particulares, quando uma idéia se une a outra para se transformar em uma terceira idéia, algo de fato bastante comum, ou trata mais de noções gerais, dizendo que espécies, quando separadas, não voltam a se unir. Entretanto, áreas distintas do saber se unem constantemente, como, por exemplo, na biofísica, bioquímica e em qualquer outro estudo interdisciplinar ou transdisciplinar. Uma das características comuns da cultura seriam as possibilidades já mencionadas de transculturação e de aculturação. A relação entre esta crítica e a crítica da unidade do meme é direta: não podemos falar em unidade do meme, pois os memes sempre estão se misturando. 397 Já vimos anteriormente que o processo de aculturação raramente se dá entre culturas mais especializadas e mais difundidas (seção 5.3). Já em culturas pouco especializadas e pouco difundidas este processo é mais comum, assim como entre uma cultura especializada “englobando” uma menos especializada. É claro que o conceito de “especializada” aqui levanta alguns problemas, mas são praticamente os mesmo problemas que são levantados na biologia. Se isso estiver correto, as condições para a aculturação e para a transculturação serão, na verdade, muito semelhantes ao mesmo fato na biologia. Pois, como já vimos, tais processos são relativamente comuns na biologia. Em primeiro lugar, podemos dar a mesma resposta aqui que foi dada anteriormente ao problema de que muitas vezes nossos memes são recebidos não de uma ou duas pessoas, mas de várias. Quando é o mesmo meme sendo recebido de várias pessoas, não há simplesmente problema nenhum. Não há regra que diga que ele tenha que vir de uma pessoa só, como no caso da reprodução assexuada, ou que venha de duas, como no caso da reprodução sexuada. O real problema só se dá quando memes completamente diferentes, do que poderia ser chamado de “espécies” diferentes, se unem, como no caso da física e da biologia, dando origem a biofísica. Devemos de imediato questionar o que quer dizer “espécies” na memética. Não está de maneira nenhuma claro que esta seja uma analogia útil e, inclusive, o conceito de espécies está, ele mesmo, sobre escrutínio na própria biologia, sendo que sua própria existência tem sido questionada por alguns pesquisadores (cf. Ereshefsky, 1999 & Mishler, 1999). Mas deixaremos este problema de lado para tratarmos de outro mais fundamental. Dawkins prefere que tratemos os memes como aquelas primeiras moléculas replicadoras ainda no “caldo primordial” (cf. Dawkins, 2001, p.218). Cabe lembrar que este “caldo primordial” não é só o breve início da vida, mas pode ter sido sua condição durante milhões de anos. Se for o caso de que memes devem ser tratados assim, perde-se qualquer noção de espécies fechadas em si mesmas por barreiras reprodutivas. Na verdade, até mesmo entre as bactérias, que não só dominaram a Terra por bilhões de anos, mas de certo modo ainda a dominam, o conceito de espécie é vagamente aplicável (seção 1.11). No entanto, os críticos não costumam dar ouvido a este argumento, até porque é comum entre os defensores da memética tratarem, por exemplo, línguas 398 diferentes como espécies culturais diferentes. Então o problema permanece, mas podemos ainda duvidar de sua existência: sabemos que Darwin propôs uma teoria da hereditariedade baseada na mistura. Vimos que tal teoria foi criticada por Fleeming Jenkin que mostrou, corretamente, que a mistura entre as gêmulas tenderia para a homogeneidade da população e a impossibilidade da evolução (cf. Dawkins, 2005, p.125). A crítica de Jenkin poderia ter sido só contra a teoria das gêmulas, mas, na verdade, era contra o darwinismo como um todo (seção 1.6). Isso significa que ele não questionou a teoria da mistura, e sim o fato de que com mistura não poderia haver evolução. A mistura não era questionada porque, na época, ela parecia ser um fato inquestionável, assim como hoje parece ser inquestionável que as culturas se misturam. Mas com o tempo, e principalmente com Mendel, foi provado que tal mistura era só aparente, e que uma mistura dos fenótipos, que de fato acontecia, não significava uma mistura dos genótipos. Sendo os exemplos mais comuns a cor da pele e a altura. Dito isso, deve ficar claro que enquanto não tivermos a resposta do que acabamos de chamar de problema ontológico, ou seja, qual a instanciação física da cultura, não teremos como saber se ela de fato se mistura ou não. A mistura aqui pode também ser somente aparente. Uma pessoa bilíngüe, por exemplo, pode falar na mesma frase duas línguas diferentes, mas ainda assim estas duas línguas podem ser armazenadas e tratadas de maneira completamente separada no cérebro, sendo a mistura só aparente. Na bio-física, por exemplo, o armazenamento cerebral dos memes da física e da biologia podem estar separados. Em outras palavras, todos concordam que esta mistura parece se dar, mas nem os defensores da memética, nem os seus críticos são capazes de dizer se ela de fato se dá. Mas vamos, para o benefício dos críticos, assumir que a mistura ocorra. Neste caso o problema seria que os memes se misturam de uma maneira que as espécies, ou os genes, não se misturam. Se alguém defende isso, vemos que mais uma vez há uma ignorância em relação aos processos biológicos. Os genes estão constantemente sendo invadidos por genes saltitantes, ou mesmo vírus externos. Algumas vezes tais invasores se estabelecem e passam a fazer parte do organismo, inclusive invadindo gametas e sendo passados por gerações: 399 Vírus e plasmídeos de bactérias também podem se incorporar ao material genético de células somáticas eucariotas (animais, vegetais, fungos, protozoários) e até mesmo em células sexuais. Incorporando seus genes de microrganismos no genoma de espécies ‘superiores’, saqueando o patrimônio genético desses seres e levandoos para além do limite do núcleo e da própria célula, essas minúsculas estruturas estão misturando genes de espécies as mais distintas (Waizbort, 2000, p.172). Vimos o caso da bactéria Wolbachia que pode ter tido praticamente todo o seu genoma inserido dentro da mosca-de-fruta Drosophila ananassae (seção 1.11). Vimos também um tipo de hemoglobina nas raízes de plantas que pode ter vindo de animais utilizando um vírus como intermediário (cf. Dawkins, 2001, p.259). Na verdade, a engenharia genética praticamente acabou com este problema de que certos genes são restritos a certas espécies. Através deste processo praticamente qualquer gene pode ser transferido para qualquer espécie. Um nível de mistura que assustaria os próprios antropólogos! Em relação à engenharia genética, pode-se questionar que este é um processo artificial, e que não aconteceria naturalmente. Ignorando o fato de que a separação entre natural e artificial não deve realmente ser feita, temos que a engenharia genética só é possível porque já existem na natureza seres vivos capazes de realizar tal processo. E, na verdade, ele é muito mais comum do que imaginam alguns, sendo conhecido como transferência horizontal, ou lateral, de genes (seção 1.11). Tal processo é bastante comum, principalmente entre bactérias. Inclusive, “a transferência de genes foi crucial na evolução da resistência a drogas” (Maynard-Smith, 1993, p.5. Minha tradução). Os estudos recentes de Margulis têm mostrado que este processo ainda é comum, sendo que não podemos mais dizer que os ramos da árvore filogenética, uma vez separados, não se unem mais (cf. Margulis, 2002, p.144). Na verdade, “é possível até que Archea, Bacteria e Eukarya nem tenham uma filogenia normal, em forma de árvore” (Ridley, 2006, p.479). Deve ficar claro que não se está tratando só de bactérias, mas também de eucariotos, que podem ter recebido genes de bactérias e até mesmo de outros eucariotos (cf. Ridley, 2006, p.585). Na verdade, é fato corriqueiro agora que as mitocôndrias, que estão no interior de nossas células, e os cloroplastos, que estão nas células das plantas, eram antigas bactérias que se uniram e agora fazem parte do que chamamos de “nós”. Inclusive alguns genes mitocondriais podem ter migrado para o núcleo: 400 alguns genes mitocondriais foram transferidos para o núcleo. O DNA nuclear dos seres humanos atuais contém genes que descendem dos dois incorporadores eucarióticos originais. É difícil estudar o processo de transferência de genes da mitocôndria para o núcleo em animais, porque o genoma mitocondrial é relativamente constante. Em plantas, entretanto, os genes parecem ser transferidos mais frequentemente (Ridley, 2006, p.584). Para piorar ainda mais a posição dos que defendem de que não há mistura na biologia, temos os casos dos híbridos. É comum pensar em tais híbridos como crias inférteis, quase um erro da natureza. Mas não precisa ser assim, híbridos podem ser perfeitamente férteis, embora normalmente sejam mal adaptados e por isso não sobrevivam, mas em um ambiente diferente eles poderiam ser selecionados e prosperar. O caso mais comentado é o dos híbridos entre leões e tigres, mas abordamos também um caso mais raro entre lobos e coiotes (seção 1.3.2). No entanto, tratamos também do caso do carvalho, onde a hibridização é bem mais comum do que nos casos anteriores. O fato é que as espécies não são tão distintas como costumamos assumir. Vimos isso claramente no caso das espécies-anel. Neste caso, um gene de uma espécie pode facilmente passar para a outra, se percorrer todo o anel. Como todas as espécies estão ligadas por tais anéis, que foram eventualmente rompidos, mas existiram, então perde-se a noção de que um determinado gene pertence a uma determinada espécie. Tal noção também foi perdida depois do surgimento da engenharia genética. Vemos, então, que a biologia está povoada por misturas que normalmente não conhecemos. Isso significa que esta capacidade de se misturar não impede a evolução por seleção natural como podemos supor inicialmente. É possível haver evolução darwinista mesmo com um alto grau de mistura, só não é possível se houver apenas mistura de modo que haja uma tendência generalizada para a homogeneização. A verdadeira questão não é se a mistura existe ou não, mas sim qual é o grau de mistura que é tolerável para a seleção natural. O valor suportável de mistura será inversamente proporcional ao valor da homogeneização. Mas isso levanta uma dúvida interessante: se na biologia vimos que a mistura leva a homogeneização, não se daria o mesmo na cultura? Pode a cultura evoluir em um modelo de herança por mistura? Neste tipo de herança a variação some. Dois indivíduos dão uma média e seus “netos” não conseguem retomar o que havia antes. Os netos serão a média da média e assim a tendência é a homogeneidade. Ainda mais levando em consideração o que falamos anteriormente sobre não 401 existir memes recessivos. Cabe aqui uma pergunta importante que não será respondida: a permanência da heterogeneidade na cultura não indicaria que ela também não é passada através de mistura? Ou pelo menos que esta mistura não é estatisticamente tão relevante? Richerson e Boyd, tratando deste problema, chegaram a uma consideração interessante: para eles a mistura entre variantes culturais pode existir justamente para diminuir o número de variantes e, deste modo, ainda permitiria uma análise darwinista. A questão é que quando há muitas mutações, como no caso da cultura, a variação pode crescer monstruosamente e não permitir qualquer seleção e consequentemente, evolução. Mas se estas variantes podem se misturar, isso diminuiria o número de variantes. Quando há muitas variantes, pode compensar fazer uma média, misturando um pouco de cada uma: “em um mundo muito cheio de ruído, tomar a média de diversos modelos pode ser necessário para descobrir uma aproximação razoável do valor verdadeiro de qualquer traço particular” (Richerson & Boyd, 2006, p.89. Minha tradução). Deste modo, podemos até imaginar que a existência da mistura entre memes, longe de ser uma crítica a eles, pode ser justamente uma solução adaptativa deles ao fato de que, por ser mais rápida, a cultura tende a ter uma taxa de mutação muito alta! Vimos no caso dos estudos da co-evolução que foi feito uma pesquisa sobre a herança cultural de opiniões políticas e religiosas nos Estados Unidos (seção 4.9). Isso poderia ser um bom exemplo do que Richerson e Boyd nos falam, pois embora possamos dizer que não há duas opiniões políticas idênticas e que cada opinião se dá através da mistura de várias outras, ainda assim, talvez por causa desta própria mistura, elas se diferenciem o suficiente para separá-las entre democratas, republicanos, independentes e apolíticos. Permitindo, assim, a sua análise discreta. O fato é que cópias analógicas tendem a se modificar exageradamente rápido, já as cópias digitais não sofrem tantas variações por causa de ruídos, e seus erros são mais fáceis de serem detectados e corrigidos. Deste modo, Richerson e Boyd nos mostram como a mistura, se é que ela existe, poderia contornar este problema fazendo a média entre várias cópias diferentes. Não seguiremos por esta linha aqui, embora seja algo que deva ser explorado. De qualquer modo, foi mostrado que é possível que tal mistura sequer exista, se existir ela pode não ser tão problemática assim e, como certeza, é um 402 característica bem menos diferente da encontrada na natureza quanto os críticos estão acostumados a propor. 10.6 Problema da Homologia Ao contrário das críticas anteriores, esta não é muito comum. Só se torna importante porque foi desenvolvida pelo próprio Dennett. Deve ficar claro, como já foi dito aqui e no capítulo que tratamos de Dennett (seção 3.2), que esta crítica faz mais sentido quando ignoramos as relações causais físicas envolvidas na herança cultural, mas como o próprio Dennett, respondendo a si mesmo, disse: Você pode continuar ignorando os desagradáveis detalhes mecânicos de como a informação foi de A até B, pelo menos temporariamente, e se concentrar apenas nas implicações do fato de que algumas informações chegaram lá – e outras não. (Dennett, 1998, p.375). No entanto, mesmo assim seria muito difícil saber distinguir cópia de criação independente, e este é o que chamamos aqui de problema da homologia. Isso impossibilitaria as explicações evolutivas dos processos culturais e, deste modo, impediria a existência da memética. Deve-se deixar claro que esta crítica de Dennett não é uma crítica contra os memes, mas só contra a ciência da memética. Isto quer dizer que Dennett não questiona que em cada caso particular haveria uma, e apenas uma, história evolutiva memética, o problema seria na nossa habilidade de descobrir esta história. Se esta história existe, mas não temos como descobri-la, a teoria dos memes permanece como uma explicação verdadeira, mas a ciência dos memes se torna impraticável. Uma possível resposta já foi desenvolvida através do conceito de herdabilidade: acontece que mesmo na biologia muitas vezes não sabemos qual é o gene de uma determinada característica fenotípica, e também podemos desconhecer como ele foi passado, mas se formos capazes de perceber que os filhos foram estatisticamente afetados pelos pais em relação a esta característica, temos já o necessário para estudar a evolução, pelo menos de um ponto de vista macro (cf. Dawkins 2005, p.243). Assim, o critério que utilizamos para montar as 403 filogenias e as narrativas históricas evolutivas não é a constatação molecular da hereditariedade, mas sim a constatação estatística da herdabilidade: Para que a seleção natural ocorra, em qualquer lugar do universo, deve haver linhagens de coisas que se assemelham mais aos seus ancestrais imediatos do que ao restante da população (Dawkins, 1998, p.103). É deste modo que podemos contornar a crítica de Sperber, pois não precisamos de um conhecimento preciso do que ele mesmo chamou de “microprocesso” para tratar em um nível mais elevado as questões evolutivas. Um exemplo bem simples pode ser esclarecedor: se encontramos uma família de seres humanos onde a incidência de uma determinada doença é muito mais alta do que na média da população, então podemos praticamente assumir que esta doença tem um forte fator genético, mesmo sem conhecer nada sobre como ela é instanciada no DNA. Se, por um acaso, esta família não for pequena e limitada a uma só região do mundo, mas for uma família grande, presente em muitos lugares e muitas culturas, podemos praticamente eliminar os fatores ambientais e afirmar que é uma doença genética. Podemos ainda ser mais específicos, pois se só os homens, por exemplo, tiverem esta doença, então é quase certo que ela está diretamente relacionada aos gametas, podendo ser um gene do cromossomo X, passado pela mãe, ou dominante do Y, passado pelo pai. Fica claro que muito pode ser dito mesmo sem o menor conhecimento de como esta doença se dá no nível molecular e qual gene é responsável por ela. Simplesmente a chance dela não ser uma doença genética é estatisticamente irrelevante e deve ser tratada só se tudo mais falhar. Podemos, então, ir muito longe sem conhecer nada do micro-processo. No entanto, é inegável que o melhor, tanto na biologia quanto na memética, é conhecer tais processos. Dentro da biologia quem trata da construção de tais filogenias é o cladismo (seção 1.10). Já vimos que eles seguem buscando grupos monofiléticos através da descoberta de homologias derivadas, ou seja, descobrir quais espécies são irmãs descobrindo quais caracteres são compartilhados por elas e só por elas. Baseado nestas distinções o cladismo pode separar os grupos e montar árvores genealógicas. As técnicas cladísticas se desenvolveram muito e hoje são consideradas muito poderosas, mas estão longe de serem infalíveis: 404 Infelizmente a elegância conceitual não assegura uma fácil aplicação. A dificuldade, nesse caso, está em determinar o que precisamente é ou não é um caráter derivado compartilhado (Gould, 1992, p.357). Já vimos que mesmo a nossa melhor ferramenta para descobrir filogenias deve se basear na probabilidade dada pelo princípio da parcimônia. É claro que não há nada de errado com princípios probabilísticos, mas o fato de que eles estão sendo utilizados significa que não se sabe realmente a história filogenética que está sendo estudada, apenas é possível deduzir qual história é mais provável. O exemplo que foi dado na seção 1.10 tratava de pássaros com ecolocalização. Não se sabe ao certo se morcegos e certos pássaros foram os únicos a reter tal caractere do seu descendente comum, mas é mais provável que eles tenham desenvolvido a mesma capacidade separadamente. Ou seja, os detalhes, o que foi chamado de micro-processo, não é conhecido verdadeiramente para se inferir uma filogenia. Tanto isso é verdade que, embora só exista uma história filogenética verdadeira, os métodos cladísticos muitas vezes nos deixam com o que foi chamado de árvores sem raiz, ou seja, conhece-se a relação entre as espécies, mas não se sabe como montar esta árvore em uma escala temporal, de modo que diferentes árvores são possíveis (cf. Futuyma, 2002, p.318). Os métodos para se resolver este problema são igualmente falíveis, sendo que o mais comum, como vimos, é procurar este caractere em um grupo externo, mas “como todas as técnicas de inferência filogenética, a comparação com o grupo externo é falível” (Ridley, 2006, p.458). Acontece que, além desta suposição ser probabilística e ser perfeitamente possível que uma árvore com mais trocas genéticas seja a verdadeira, ainda há o fato de que quando se estuda um grupo grande de espécies o número de árvores possíveis pode ser grande demais para ser humanamente computável. Ficamos, então, com o nosso melhor método cladístico ainda totalmente dependente de um grupo de suposições, diferentes métodos estatísticos, e capacidade computacional limitada. Tudo isso porque não é possível tratar de todas as relações físicas envolvidas neste processo para se descobrir a verdadeira e única história filogenética. Não há dúvidas de que os métodos desenvolvidos na biologia são significativamente mais poderosos do que os desenvolvidos na cultura, embora, como vimos na análise para se descobrir as relações históricas de um manuscrito 405 do séc. VII (fore thae neidfaerae – seção 4.9), a filologia pode utilizar praticamente o mesmo método. No entanto, o nosso desconhecimento sobre os processos ligados à evolução cultural torna mais difícil estudar a cultura do que os seres vivos. Mas tais análises cladísticas, principalmente as que usam evidências moleculares, são bastante recentes na biologia, e esta funcionou muito bem por mais de um século sem ela. Se a memética será capaz de desenvolver métodos tão poderosos é uma questão em aberto. Métodos mais simples já existem na lingüística histórica e na filologia, e não diferem muito dos métodos mais antigos que existiam na biologia (seção 6.1). Eles existem também na história e na antropologia, como vimos no caso da invenção do zero (seção 3.2). Ficamos, então, como uma citação de Franz Boas, escrita antes do desenvolvimento da cladística: Do mesmo modo que nas investigações biológicas, os problemas de desenvolvimento paralelo independente de formas homólogas obscurecem as relações genéticas, o mesmo ocorre na investigação da cultura (Boas, in: Castro, 2006, p.100). 10.7 Problema da Velocidade e da Fidelidade Esta crítica diz que a transmissão do meme é rápida demais e com muito pouca fidelidade para permitir um processo evolutivo. É uma crítica diretamente ligada ao já mencionado problema da unidade e também ao problema da mistura, de modo que, se estes dois problemas forem resolvidos, este aqui também o será. Deste modo, as respostas dadas a estes problemas valem aqui, mas é possível ver que também esta crítica é baseada em um desconhecimento da biologia e dos processos da evolução. Os problemas da velocidade e da fidelidade estão unidos pelo problema da unidade e da mistura, pois, segundo os críticos, a transmissão de informação cultural se faz através de misturas, o que torna esta mudança evolutiva muito mais rápida do que a mudança biológica. Em praticamente cada replicação temos um novo meme. Na verdade, este problema é só uma forma mal desenvolvida da crítica de Sperber de que a regra mental do comunicador raramente é a mesma que a regra mental da platéia. 406 Embora durante esta crítica o problema da velocidade normalmente esteja unido ao da fidelidade, eles têm um enfoque diferente. Cientistas sociais gostam de ressaltar a questão da fidelidade, já biólogos costumam ressaltar o problema da velocidade. Acontece que os biólogos sabem que para haver seleção deve haver retenção, o que significa que a evolução não pode ser rápida demais: Outra exigência da seleção cumulativa é uma taxa baixa de mutação. Se a taxa de mutação é muito alta em relação à força da seleção, então os mecanismos que geram a variação soterrarão os efeitos das seleções (Sterelny & Griffiths, 1999, p.36. Minha tradução). Para que a seleção fixe um gene, este deve se tornar visível para ela, de modo que se mostre melhor adaptado do que seus alelos. O problema é que ele só pode fazer isso se ambos estiverem em um mesmo fundo, trabalhando com os mesmo genes. Só assim ele se destacará dos seus alelos e será selecionado ou não. Um gene deve proliferar mais depressa do que se modifica. No entanto, na própria citação acima vemos a chave para resolver este problema, pois a questão não é verdadeiramente a velocidade, mas sim que a taxa de mutação não pode ser muito alta em comparação com a força da seleção. Onde houver uma forte pressão seletiva pode existir também uma alta taxa de mutação. É claro que se esta taxa for exageradamente alta, ela acabará aniquilando os efeitos da seleção, pois tenderá a mudar o próprio gene que estaria sendo selecionado. Tal problema é grave o suficiente para deixar Dawkins preocupado: Aqui devo admitir que estou inseguro. À primeira vista parece que os memes não são, de forma alguma, replicadores de alta fidelidade (...) Parece que a transmissão dos memes está sujeita à mutação contínua e também à mistura (Dawkins, 2001, p.213) A questão da mistura já foi devidamente respondida e com ela já se responde boa parte da questão da fidelidade. Vimos que o próprio Dawkins não defende mais este ponto (seção 3.1), mas outras respostas podem ser levantadas. No entanto, antes é preciso destacar este problema de outro semelhante com o qual pode ser confundido: segundo Cavalli-Sforza, em um estudo sobre a evolução das línguas, a taxa de mutação varia muito de palavra para palavra em comparação com a taxa de variação dos diferentes genes. Mas, do mesmo modo que genes muito variáveis possuem muitos alelos, palavras muito variáveis possuem muitos sinônimos. A grande diferença aqui é que os diferentes sinônimos podem ter 407 grafias muito diferentes, enquanto os diferentes alelos são muito parecidos entre si (cf. Cavalli-Sforza, 2003, p.256). Só que ele mesmo deixa claro que isso dificulta, mas não impede o estudo da evolução das línguas. É mais uma daquelas diferenças que, na verdade, não importam muito. Quanto ao fato de que os alelos normalmente são semelhantes entre si, mas os sinônimos variam muito em sua grafia, isso só é um problema se acreditarmos que a mutação da linguagem deve se dar por troca de letras como acontece na mutação genética. Além disso, uma mínima diferença em um nucleotídeo pode se transformar em uma gigantesca diferença fenotípica, como é tal fenótipo que deve estar adaptado ao meio, podemos dizer que diferentes alelos podem ser muito diferentes fenotipicamente. Mas talvez o mais interessante aqui seja o fato de que esta alta variabilidade na mutação das palavras, sendo que umas mudam muito mais do que outras, indica que há sim um processo discreto na evolução da cultura, ao contrário do que os críticos supõem. No entanto, este não é o nosso problema aqui. A questão é que a velocidade da mudança seria tamanha que impediria a fidelidade dos memes e, deste modo, sua seleção. Em primeiro lugar, não só Bonner e Wilson, mas até mesmo os defensores da memética admitem que, ao menos originalmente, a cultura surgiu por ser adaptativa para os genes. Ou seja, no início ela estava de fato atada por uma coleira. O que a tornou adaptativa foi justamente a sua capacidade de se adequar a um ambiente mais rapidamente do que os genes. Ou seja, a cultura só existe porque é mais rápida! De outro modo seria inútil. Por isso, em princípio, não é de se espantar que ela seja mais rápida. Um dos motivos desta velocidade pode ser, como vimos com Richerson e Boyd, que a cultura não é bem entendida como diferentes alelos disputando o mesmo lócus (seção 4.9). Há uma disputa generalizada pela atenção, espaço na memória e comando do comportamento. Praticamente cada meme compete com todos os outros. Há, então, a possibilidade de que esta competição difusa implique em uma enorme pressão seletiva em níveis desconhecidos pela biologia. Talvez o mais perto deste nível de competição que aconteceria no mundo vivo seja a competição entre um vírus e o sistema imune de seu hospedeiro o que, como veremos em breve, também causa uma grande taxa de mutação. Se o que foi dito está correto, uma alta pressão seletiva implicaria em uma igualmente alta taxa de mutação, pois em ambientes assim uma taxa de mutação 408 baixa implica no rápido fim da variabilidade. Deve ficar bem claro que o problema não é a velocidade da variação, mas sim a sua relação com a pressão seletiva. Em outras palavras, a velocidade não importa, desde que os processos necessários para a evolução estejam todos presentes. Do mesmo modo que um filme visto em velocidade rápida não perde o nexo causal da história só porque está mais rápido, pois a sucessão dos eventos continua sendo exatamente a mesma. É o mesmo filme, só que em velocidade acelerada. Se o aumento da velocidade da evolução cultural significar um aumento da velocidade de todos os seus processos, não há problema algum91. Como há indicações de que a pressão seletiva na evolução cultural é muito maior do que na evolução biológica, então tal problema, se não for resolvido, é ao menos deflacionado. Como vimos, para haver seleção deve haver retenção, esta retenção permite que um gene se destaque de seus alelos em relação ao mesmo fundo gênico, de modo que ele possa ser selecionado pelos seus efeitos. Mas se não há alelos culturais, se a competição é generalizada, a necessidade de que um determinado meme seja retido tempo suficiente para ser comparado a outros memes semelhantes em relação ao mesmo fundo mêmico simplesmente não existe. Tal meme é selecionado largamente por conta própria em relação a sua adaptabilidade ao seu ambiente, lembrando que o ambiente dos memes não são só as estruturas cognitivas humanas, mas também os outros memes que lá estão e que competem diretamente com ele. Cabe aqui lembrar algo que é comumente esquecido: o tempo que mede a velocidade da evolução não é contado em horas ou anos, mas em gerações. Espécies como o ser humano que tem uma geração de cerca de 25 anos terão uma mudança evolutiva bem mais lenta do que espécies com geração de 1 ano. Mas gerações podem ser ainda menores, ratos são capazes de procriar com cerca de 3 meses de idade e, depois disso, podem ter uma nova cria praticamente cada mês. Mas isso não é nada comparado com a capacidade de replicação dos vírus. Cabe, então, indagar: quando um meme é recebido, quanto tempo depois ele pode ser passado? A resposta muitas vezes será: imediatamente. Na verdade, dependerá do meme, aprender e passar um verso de uma música popular é muito mais rápido do que aprender e passar física quântica. Em uma brincadeira de 91 Imagine que deus pode apertar a tecla fast forward de seu controle remoto e ver a evolução biológica indo muito mais rápido do que nós poderíamos entender. 409 telefone sem fio, por exemplo, cada criança é uma nova geração, o que explica porque quanto maior o número de crianças maior será a variação. Deste modo, pode-se prever que a velocidade da mudança de memes que são rapidamente passados deve ser proporcionalmente maior do que daqueles que são só vagarosamente passados. Que em linhas gerais isso é verdadeiro está fora de dúvida, memes mais complexos são transmitidos mais lentamente e mudam mais devagar. No entanto, como há pouca pesquisa empírica sobre estas taxas, o problema permanece em aberto. Mas, de qualquer modo, deve ficar claro que quando se fala em velocidade da evolução é em relação ao número de gerações que se está falando. Uma vez tratado este problema de forma conceitual, podemos voltar à biologia e ver que a visão comum da pouca variabilidade, implicando em alta fidelidade, e da baixa velocidade da evolução biológica está errada. De modo que podemos concordar com David Hull quando este disse que a evolução memética pode até ser mais lenta do que a genética ao dizer que “os vírus e bactérias reproduzem-se muito mais rápido do que a vasta maioria dos memes” (Hull, 2000, p.55. Minha tradução). Antes de entrarmos nos vírus é importante ressaltar que muitas vezes existe uma visão errada de que existe pouca variabilidade na natureza, principalmente entre não biólogos. Já vimos que este erro é o erro fundamental refutado por Darwin e que é a base do pensamento populacional que, por sua vez, é a base da teoria da evolução (seção 1.2 e seção 9.3). Sabemos que o número de espécies deve ser algo entre 10 e 100 milhões, mas esta variabilidade entre as espécies é irrisória se comparada com a variabilidade dentro das espécies que, segundo o darwinismo, e o que está na origem da própria existência das espécies: uma população é um conjunto imensamente diverso de genótipos e não existe algo como o genótipo do tipo selvagem ou normal; ao invés disso, a norma é a diversidade (Futuyma, 2002, p.100 - 101) Não há dois genótipos absolutamente iguais, nem mesmo gêmeos. Já vimos que, no caso do ser humano, a quantidade de mutações por reprodução é de aproximadamente 200 mutações (cf. Ridley, 2006, p.207) e que existem pelo menos 3 milhões de diferenças entre o DNA de um espermatozóide ou óvulo e o 410 DNA de outro. Vimos também que a variabilidade é tamanha que não se encontra só dentro das espécies, mas até dentro dos próprios organismos: duas moléculas de DNA humanas, selecionadas aleatoriamente (incluindo duas dentro de qualquer corpo humano), diferem em cerca de 1.000 sítios. O DNA humano pode ser menos diverso do que o de muitas outras espécies (...). O DNA de Drosophila possui uma diversidade nucleotídica quase 10 vezes maior do que o do DNA humano (Ridley, 2006, p.191). O caso da Drosophila melanogaster é um dos mais interessantes, pois as estimativas são de que há pelo menos uma mutação por mosca, por geração, afetando sua viabilidade (cf. Futuyma, 2002, p.78). Cada mosca é uma mosca nova. Isso fica ainda mais evidente se tratarmos dos vírus e, principalmente, dos retro-vírus como é o caso do HIV. Este tem se mostrado extremamente difícil de ser curado justamente por causa de sua alta taxa de mutações, que é cerca de 10-4, mas como ele tem 104 nucleotídeos e como 1012 vírus novos são gerados diariamente em cada indivíduo médio com AIDS, então: podemos estar certos de que cada posição ao longo da extensão de 104 nucleotídeos do vírus sofrerá mutação a cada dia em um paciente com AIDS. Na realidade, cada mutação nucleotídica individual possível ocorrerá muitas vezes, juntamente com a maioria das combinações possíveis de mutação em dois nucleotídeos (Ridley, 2006, p.118). É uma taxa de variação absurda e só não implica em uma variabilidade também absurda por causa das pressões seletivas. No entanto, podemos dizer que cada indivíduo tem o seu, na verdade, os seus próprios vírus da AIDS. O tratamento só é possível porque nem todos os lócus variam com taxa igual, aqueles mais permanentes são o alvo do tratamento. Dawkins nos diz que a duplicação feita pela mente poderia ser tão fiel quanto de um vírus de RNA (cf. Dawkins, 2005, p.241). Mas não são só os vírus e as bactérias que sofrem com a alta variabilidade. Nos últimos 15 mil anos houve poucas mudanças evolutivas nos seres humanos, mas enquanto isso foi possível transformar um magnífico lobo em um patético chiuaua. Experimentos de seleção feitos nos últimos 20 anos na natureza mostraram que a evolução pode ser bastante rápida, como Gould queria, tendo fortes mudanças genéticas em apenas algumas poucas gerações (cf. Laland & Brown, 2002, p.190). Na verdade, como vimos no caso da poliploidia, uma nova espécie pode surgir da noite para o dia: 411 Normalmente, é preciso cerca de 10.000 anos para que uma nova espécie seja produzida, embora haja casos mais raros, porém bem conhecidos – tais como aqueles envolvendo hibridização – em que novas espécies são formadas, ou começam, em uma geração (Bonner, 1980, p.55. Minha tradução). Esta alta variabilidade só não é mais alta por causa dos inúmeros instrumentos de revisão que o DNA tem. Tais revisores é que garantem a alta fidelidade na replicação do DNA, sem eles teríamos cerca de 5.000 letras de DNA degeneradas por dia em cada célula humana (cf. Dawkins, 2001, p.190). Jablonka nos diz que a taxa de mutação poderia ser de até 1 para cada 100 (cf. Jablonka & Lamb, 2005, p.86). Vemos, então, que ao contrário do que é normalmente dito, a taxa de mutação do DNA é muito alta, só que é corrigida. Mas antes de existirem estes instrumentos de revisão, tal taxa deveria ser absurdamente alta, e mesmo assim foi possível a evolução! Cabe notar que temos dentro da memética algo semelhante a este mecanismo de correção, nas palavras de Balckmore: O telégrafo e o telefone, o rádio e a televisão, são todos passos em direção à difusão mais eficiente dos memes. (...) As mensagens de correio eletrônico proporcionam alta fecundidade, baixa fidelidade e baixa longevidade (as pessoas as enviam aos montes, não se preocupam em escrever cuidadosamente ou corrigir os erros, e as jogam foram logo). As cartas estão marcadas por baixa fecundidade, alta fidelidade e alta longevidade (as pessoas escrevem menos cartas, constroem-nas cuidadosa e educadamente e, muitas vezes, guardam-nas). Os livros mostram altos índices de todos os três fatores (Blackmore, 1999, p.212. Minha tradução). Podemos inclusive ver que a baixa fidelidade das mensagens eletrônicas está criando uma nova grafia para o português, baseada principalmente na simplificação na assimilação da grafia com o som e, talvez mais inovador, na tonalidade emotiva de textos escritos. Milhares de exemplos poderiam ser dados: “fim de semana” passou a ser escrito fds, “fique” agora se escreve fik, assim como “vem cá” se escreve vem k, “beijos” pode ser escrito como bjoos, bsuss, bjicas, ou até mesmo um simples asterisco. Isso sem contar com as expressões para risos (rs, hahah, ahauhaua etc.), expressões para tristeza (chiuf, snif etc.), expressões faciais ( :), :p, 8), etc.), a multiplicação de letras para dar expressão a uma palavra (lindooooo), o exagero nos pontos de exclamação ou interrogação, a utilização de maiúsculas para dar enfoque em uma palavra, a utilização de sinais e letras que não são do português, e por último a utilização de letras maiúsculas e minúsculas 412 alternadas só por motivos estéticos (MuitO leGaL), assim como a utilização de cores diferentes. Tudo isso pode ter surgido porque o texto escrito perde o seu lado gestual e, com ele, a tonalidade emotiva da fala (capítulo 8). Não temos como saber qual será o futuro, mas é possível que ao menos parte destas mudanças se unam à língua canônica92. Mas, como já vimos, a língua escrita tende a mudar mais lentamente, justamente por conter processos de revisão. No entanto, qualquer professor de português costuma não gostar destas mudanças e tende a funcionar, ele mesmo, como um instrumento de correção. Instrumento esse que ganhou grande força com a invenção da gramática, de dicionários e de tesauros. A própria invenção da escrita foi, como vimos, uma passo para a maior fidelidade se comparada com a fala. Tal fidelidade aumentou ainda mais com os sistemas de correção de erros encontrados, por exemplo, no programa Word93. Uma vez visto que existem replicações com baixa fidelidade e alta velocidade na biologia, podemos passar para o outro lado da moeda e percebermos que há na cultura replicações com alta fidelidade e baixa velocidade. Iniciamos mostrando a preocupação de Dawkins com este problema, mas ele mesmo parece ter se despreocupado, no prefácio do livro de Blackmore, ao lembrar que a linguagem, a religião e as tradições são replicadores de alta fidelidade (cf. Dawkins, in Blackmore, 1999, p.x). É verdade que a religião do pai nunca é exatamente a mesma do filho, mas costuma ser suficientemente a mesma para ser tratada ainda pelo mesmo nome. Do mesmo modo que os filhos são sempre geneticamente diferentes dos pais, mas só raramente eles são diferentes o suficiente para serem de outra espécie. Por isso Richerson e Boyd puderam constatar a alta fidelidade ao dizer que a teoria da co-evolução “precisa explicar porque os fazendeiros alemães de Freiburg possuem crenças a respeito da vida diferentes das de seus vizinhos Yankees quase 150 anos depois de deixar a Europa” (Boyd e Richerson, 2000, p.146. Minha tradução). Do mesmo modo, Eagleton nos diz que “Muitos fenômenos culturais se mostram mais 92 Devo admitir que algumas destas mudanças me irritam, mas outras me fascinam, principalmente as responsáveis por colocar tonalidades emotivas em textos. Admito ter me segurado para não colocar vários pontos de exclamação para enfatizar algo, ou uma carinha sorridente depois de um comentário irônico. 93 Se bem que ele podia conhecer melhor a regra para a utilização das crases... :) 413 obstinadamente persistentes do que uma floresta tropical” (Eagleton, 2005, p.136). A impressão que temos de uma altíssima variabilidade da cultura talvez seja, na verdade, bastante ilusória justamente porque, como querem os antropólogos, costumamos tratar “a cultura” como um bloco monolítico. Deste modo, a variação em qualquer uma de suas partes conta como uma variação “na cultura”. No entanto, não tratamos “o mundo vivo” como tal bloco, pois discutimos a variação só dentro de cada espécie ou de cada população. Se tratarmos “a natureza” como um todo unido, deveríamos também dizer que a variabilidade “da natureza” é extraordinária. Do mesmo modo, se tratamos a cultura como dividida em unidades, mesmo que sejam unidades de alto nível, como espécies culturais, veremos que a variabilidade dentro de cada grupo deste não é tão alta como se supõe e, principalmente, que grupos diferentes têm taxas diferentes de mudança. Por isso que Laraia disse que “sociedades indígenas isoladas têm um ritmo de mudança menos acelerado do que o de uma sociedade complexa, atingida por sucessivas inovações tecnológicas” (Laraia, 2006, p.95). Vemos que ele está claramente tratando a cultura como sendo um todo indissociável. Mas se essa “sociedade complexa” for complexa justamente porque é formada de partes mais simples, então cabe discutir o ritmo de mudança de cada parte desta, e não o ritmo de mudança do todo. Veremos que, ao tratá-la assim, tal ritmo diminui consideravelmente. Mas, é claro, resta ao crítico dizer que no caso da cultura há mistura entre as partes simples. No entanto, já tratamos deste problema na seção 10.5. 10.8 Problema do Genótipo e Fenótipo do Meme Este talvez seja um dos problemas mais irrelevantes para a memética, o único verdadeiro motivo para que ele seja tratado é para facilitar a compreensão de outro problema que será em breve abordado, a saber, o problema do lamarckismo. A questão aqui é que não se sabe bem onde está a demarcação entre o fenótipo e o genótipo dos memes. Talvez este problema tenha surgido porque no 414 livro que deu origem aos memes deu também origem a famosa abordagem de Dawkins do fenótipo como sendo o veículo dos genes. Deste modo, inicialmente parecia não haver grandes problemas aqui, os memes seriam informações e seus veículos seriam livros, quadros, cds, etc (cf. Dennett, 1998, p.362). Por isso Dawkins disse que “palavras, músicas imagens visuais, estilos de roupas, gestos faciais seriam efeitos fenotípicos de memes residindo em cérebros” (Dawkins, 1999, p.109). Já vemos aí uma discordância que tratamos anteriormente, pois Dennett se recusa a tratar os memes como exclusivamente cerebrais. O problema fica mais evidente se o que estiver em jogo forem os comportamentos. Ao aprender a dar cambalhota, por exemplo, é a regra mental de como realizar este ato o “genótipo” do meme e o ato da cambalhota seu fenótipo, ou é a própria cambalhota o genótipo? A resposta mais imediata é que o meme é a regra para o ato guardada no cérebro, mas se o que acontece durante o ato de aprendizagem é a imitação do comportamento, então é este que é replicado e, deste modo, ele é que deve contar como genótipo do meme. Talvez isso possa ser resolvido ignorando a distinção entre replicador e veículo de Dawkins e utilizando a distinção entre replicador e interagente de Hull, pois para Hull um replicador pode ser, ele mesmo, um interagente. Mas não seguiremos por esta via aqui. Esta distinção elogiada por Dawkins entre fenótipo e genótipo fez Blackmore propor a famosa distinção entre copiar o produto e copiar a regra. Podemos pensar, como fez Blackmore, em uma brincadeira de telefone sem fio onde o que é passado é um desenho qualquer que deve ser copiado e depois passado para o outro que irá copiar e assim sucessivamente. Neste caso, o que será copiado é o próprio rabisco no papel e, deste modo, seria copiado o produto. Isso significa que se alguém fizer um desenho errado, este erro será copiado. Tal tipo de hereditariedade é, segundo Blackmore, Lamarckista. Mas se ao invés de um desenho, ensinássemos a uma criança a regra de fazer um boneco de origami e pedíssemos que ela passasse esta regra adiante, teríamos um caso de copiar a regra. Dawkins prevê que neste caso erros seriam muito menos comuns. Este seria um tipo de herança darwinista. Para Blackmore, ambos os tipos seriam possíveis para os memes. Vemos que neste caso o que está sendo copiado não é o comportamento e sim a regra mental que origina o comportamento e, como foi 415 apresentado no início deste capítulo, é justamente contra esta visão de que regras são passadas que Sperber faz as suas críticas (seção 10.1). Como vimos na resposta às críticas de Sperber, elas só são válidas se tratarmos memes como informações (regras) para o comportamento armazenados em cérebros, mas se os memes forem os próprios comportamentos, então fica claro que eles são fielmente copiados através do processo de imitação. Isso deu origem ao que poderíamos chamar de behavioristas meméticos: Os behavioristas sugerem que atividades tais como a fabricação de panelas são equivalentes meméticas dos genótipos, enquanto que os mentalistas diriam que tais comportamentos são manifestações fenotípicas de memes-dentro-dos-cérebros (Aunger, 2000, p.6. Minha tradução). Aunger nos dá Gatherer e Marsden como exemplos de behavioristas meméticos. No entanto, eles têm que solucionar o difícil problema de que em outros processos de aprendizagem não há uma verdadeira cópia do comportamento. Um professor ao explicar um conceito a um aluno está tentando passar um meme, mas não quer que o aluno copie o seu comportamento, apenas que ele aprenda aquele meme. Blackmore não é uma behaviorista memética, mas acaba caindo no mesmo problema ao insistir que memes só podem ser passadas por “verdadeira imitação” (seção 3.3 e seção 8.1). Richerson e Boyd apresentam este problema de uma maneira um pouco diferente, mas muito interessante. Eles nos falam de duas versões: uma trata a cultura como parte do comportamento determinado pelas instituições sociais: dirigimos do lado direito porque esta é a lei de nosso país. A cultura, desta forma, estaria armazenada nas instituições. Já a segunda versão nos diz que a cultura está armazenada em cérebros: dirigimos do lado direito porque aprendemos a dirigir assim. No entanto, eles, assim como a grande parte dos defensores da memética, preferem a segunda versão e chegam a definir a cultura como sendo, na maior parte, informação armazenada em cérebros (cf. Richerson & Boyd, 2006, p.61) . Na verdade, toda esta confusão se originou da pergunta de qual seria o fenótipo e o genótipo dos memes, mas a verdadeira pergunta deveria ser “existe a distinção entre fenótipo e genótipo em memes?” Para o darwinismo estar certo, diz o dogma central da biologia, deve haver uma seta causal saindo do genótipo em direção ao fenótipo, mas não pode haver uma seta saindo do fenótipo em direção ao genótipo. No entanto, vimos que Jablonka levanta algumas questões 416 em relação a isso mostrando que é possível que existam seres onde as mudanças genéticas, embora ainda se dêem ao acaso, ocorram mais especificamente na área do genótipo em que são necessárias (seção 1.5). No entanto, melhor do que seguir pela linha de raciocínio de Jablonka, que tenta achar um resquício do lamarckismo, podemos ficar com a ortodoxia darwinista e lembrar que esta diferenciação weismanista entre germe e soma só corresponde a um grupo seleto de espécies. Mas mesmo nestas espécies, Jablonka mostrou muito claramente que existem heranças epigenéticas, ou seja, informações herdadas que não vêm diretamente do genótipo. Mais importante do que isso é o fato de que em organismos unicelulares e organismos com reprodução assexuada, não há nenhuma diferença substancial entre genótipo e fenótipo. Mesmo uma célula eucariota tendo um núcleo bem distinto, a reprodução não é só de seu núcleo, mas da célula toda. Na verdade, seguindo ainda Jablonka, até na reprodução sexuada o que é passado não é só o material genético, mas toda uma estrutura celular bem formada e necessária para a replicação do DNA. Isso não significa que Weismann estava errado, apenas que a separação entre fenótipo e genótipo é restrita. Organismos que têm esta diferença normalmente passam por um processo de reprodução que é indireto, com as células somáticas formando gametas com metade de seus cromossomos através da meiose e os gametas posteriormente se unindo, normalmente através do sexo. Já a reprodução assexuada é mais direta, um organismo somente se divide em dois, ou então um outro organismo simplesmente brota do antigo. Neste caso não há distinção clara entre fenótipo e genótipo. Vimos no caso dos neurônios-espelho, e principalmente no caso de pacientes incapazes de inibir tais estruturas, que um comportamento pode ser observado e realizado praticamente pelo mesmo neurônio, sem a necessidade de se falar, como queria Blackmore e Sperber, em criação de algum tipo de regra mental, que será posteriormente implementada (capítulo 8). Mas isso não significa que o comportamento não teve que se transformar em informação cerebral para ser copiado. A diferença é que tal informação não teve que ser processada ou guardada na memória como um meme distinto. É um processo de cópia muito mais direto e muito mais simples, sem nenhuma indicação de que algo pode ser separado como sendo o fenótipo. 417 Já nos casos de aprendizagem sem ser por imitação direta, que Blackmore tenta deixar fora da memética, mas que foram aqui incluídos, como o caso de um professor ensinando ao aluno, talvez seja possível fazer tal distinção, embora não pareça ser necessário. No entanto, nestes casos parece ser bem menos problemático a aplicação do que Blackmore chamou de copiar a regra e que seria um processo darwinista. Vimos que um professor não quer que um aluno imite seu comportamento, e sim que entenda o que está sendo passado. Nestes casos, se for feita tal separação, ela não parece ser muito problemática, pois é somente nos casos de “verdadeira imitação” onde fica indistinto se o que é copiado é o comportamento ou a regra para tal comportamento. Podemos, assim, entender através da memética a velha história, que todos ouvimos dos nossos professores, que não devemos decorar e sim aprender. O que nossos professores estavam falando é que é melhor uma herança memética do tipo darwinista do que uma lamarckista! 10.9 Lamarckismo: ser ou não ser, eis a questão Uma vez visto que a memética não precisa de uma clara distinção entre fenótipo e genótipo, fica claro que chamá-la de lamarckista, como muitos críticos fazem, não é correto. Acabamos de ver que a própria Susan Blackmore faz a diferenciação entre copiar o produto e copiar as instruções. Um exemplo seria se você aprende uma música ouvindo-a várias vezes e imitando, ou através da partitura. No primeiro caso seria uma transmissão lamarckista e no segundo seria darwinista (cf. Blackmore, 1999, p.61). Para ela a memética seria, a princípio, lamarckista e darwinista, no entanto, ela levanta a questão do que exatamente seria o fenótipo e do que seria o genótipo e, neste caso, esta questão deveria ser respondida antes de chamar o que quer que seja de lamarckista. Mas na verdade, memes, se são alguma coisa, são o genótipo e não o fenótipo. Isto significa que mudanças nos memes, seja lá que mudanças forem, são mudanças no genótipo. Se o ato de copiar o produto for visto como um ato de replicação, então as mudanças ocorridas durante este ato são mudanças durante a 418 replicação e, deste modo, darwinistas. Só estaria ocorrendo aqui um processo lamarckista se as mudanças no produto tivessem ocorrido depois de sua criação e copiadas deste modo. Um disco gravado e depois arranhado, se fosse depois regravado de modo que o arranhão se replicasse, seria mais propriamente uma herança lamarckista94. Na verdade, há muita confusão no que diz respeito a chamar a memética de lamarckista, provinda do próprio fato de que há muita confusão na própria definição do que é lamarckismo. Com certeza não se está falando do uso e desuso, mas o lamarckismo não é só isso, a crítica pode dizer respeito a teleologia do lamarckismo, ou a herança dos caracteres adquiridos, ou ao instrucionismo, ou mesmo ao progressismo. Os críticos raramente distinguem entre estes processos ao dizerem que a memética é lamarckista, e talvez mais importante ainda, raramente dizem qual é o problema em ser lamarckista! Em relação à teleologia e ao progressismo, que diz que temos um melhoramento das espécies, tal discussão de se há progresso ou não é praticamente idêntica na biologia e na cultura. Particularmente encontramos uma versão desta discussão na filosofia da ciência, com a criação do conceito de incomensurabilidade em Kuhn. Tal discussão não será abordada aqui. Basta perceber que esta é mais uma desanalogia que acabou se mostrando uma interessante analogia. Já o instrucionismo diria que as mudanças evolutivas não se dão ao acaso, mas são instruídas, direcionadas pelo ambiente. Este direcionamento se daria pela intencionalidade do sujeito que quer resolver um problema em particular e que, deste modo, direcionaria a evolução. Trataremos com mais detalhe a questão do sujeito do meme na próxima e última sessão. Por hora basta levantar a questão de que ver a evolução cultural como sendo um processo de resolução de problemas direcionados pela razão humana pode até fazer sentido para a evolução tecnológica e científica, mas não faz sentido algum para a evolução artística95. Além disso, acreditar que tecnologias e argumentos científicos são aceitos baseados só em argumentos racionais é também uma 94 Muitos argumentos que serão apresentados aqui foram muito melhor trabalhados em uma dissertação de mestrado sobre evolução tecnológica recém defendida por Marcos Toscano, na UNB, com a orientação do professor Paulo Abrantes, de modo que a presente discussão se mostra dispensável. Recomendo inclusive a leitura da dissertação, principalmente da análise feita por ele do processo evolutivo dos motores de carro a álcool, um estudo de caso que ocupa boa parte de sua dissertação (Brito, 2009). 95 Devo essa constatação a Marcos Toscano. 419 posição sobre forte crítica dentro da filosofia da ciência, como Kuhn e Feyerabend muito bem mostraram. De qualquer modo, fica ainda a questão de que mutações genéticas são cegas em relação ao ambiente, ou seja, pode haver um problema que uma simples mutação pode resolver, mas isso não a torna nem um pouco mais provável de surgir do que qualquer outra. Ao contrário disso, as mutações culturais parecem ser específicas para cada problema. Um cientista que está tentando resolver um determinado problema não acaba criando uma música sem querer, embora algumas vezes algo completamente inesperado possa acontecer. Isso implicaria em um determinado instrucionismo lamarckista na evolução cultural, instrucionismo esse que Jablonka diz que também pode existir na biologia e, como vimos, se isso não significa a refutação do darwinismo lá, então não deve significar isso aqui (seção 1.5). No entanto, tal instrucionismo deve ser visto com mais detalhe. Veremos a seguir que a visão da mudança cultural como sendo oriunda de um sujeito criativo capaz de decidir o que vai mudar e como vai mudar é muito provavelmente errada. O mais razoável é dizer que o sujeito é capaz de, no máximo, restringir as possíveis variações que possam surgir, mas não é capaz de decidir qual variação surgirá ou de criar variações por conta própria. Exatamente como Jablonka mostrou que certos organismos podem fazer! Mas mesmo neste caso de mutação restrita, ela ainda é aleatória e cega e pode surgir ou não. Por isso é que a proposta de Jablonka não é verdadeiramente lamarckista. Do mesmo modo, um sujeito pode até restringir qual é o problema que ele está trabalhando, mas não pode fazer a solução aparecer. Ela pode muito bem nunca aparecer ou pode ser uma solução ruim96. Cabe aqui uma última questão em relação à “crítica” de que a memética é lamarckista, esta questão seria “qual é o problema em ser lamarckista?” Vimos no primeiro capítulo que a oposição entre Darwin e Lamarck, no que diz respeito ao instrucionismo do ambiente na criação e herança de caracteres adquiridos, é muito mais uma oposição criada com fins explicativos do que uma verdadeira oposição entre teorias (seção 1.4). A diferença aqui é somente que Darwin acreditava que as 96 Em resposta a esta crítica, Toscano nos lembra que um caso típico de restrição às mutações na biologia é o processo conhecido como canalização (seção 1.3.4), que faz com que algumas mutações sejam muito mais prováveis do que outras de modo a criar uma tendência a adaptatividade, pois suprime variações deletérias. 420 mutações eram cegas e Lamarck acreditava que elas eram instruídas pelo ambiente. Como não conhecemos nenhum ser vivo que seja capaz de transcrever mudanças fenotípicas em mudanças genéticas, e também como Dawkins gosta de dizer, os genes são uma receita e não uma planta baixa dos organismos, então podemos dizer que não há neste mundo nenhum organismo lamarckista, mas isso não quer dizer que não possa existir um e que, se ele surgir através de um processo darwinista, poderia muito bem ser selecionado pela seleção natural. Em seu artigo sobre o darwinismo universal, Dawkins deixa bem claro que um organismo com um genótipo tipo planta baixa poderia existir e poderia ter a capacidade de herdar caracteres adquiridos, mas mesmo tal organismo precisaria estar sobre forte pressão darwinista da seleção natural (cf. Dawkins, 1983, p.415). Acontece que se ele herdasse todas as suas mudanças fenotípicas, ele herdaria características mal-adaptativas como cicatrizes, mutilações, seqüelas de doenças, problemas de velhice etc. Seus descendentes seriam pior adaptados do que ele próprio. Para que existam mudanças que melhorem a adaptação, deve haver um mecanismo de seleção que garanta que só os caracteres benéficos sejam herdados. Tal processo de seleção não seria nada além da seleção natural darwinista. A única diferença entre este processo e o darwinismo está na causa das mutações. Causa esta que era completamente desconhecida por Darwin quando ele propôs sua teoria. Não é sem razão que podemos até mesmo dizer que Darwin era lamarckista. 10.10 Problema do Sujeito do Meme e da Criatividade Este é outro problema que já foi abordado, pois é uma crítica muito comum. A chamada perspectiva do meme trata este como um agente de sua própria replicação, enquanto as pessoas seriam receptores passivos. São os memes que querem ser passados e nós somos controlados por eles. É a origem da imagem do meme como um vírus que invade nossa mente. Vimos que Dennett, para resolver isso, fala que esta idéia de um vírus que nos invade não está correta, pois o meme está na própria fundação do que chamamos de “pessoa”: esta seria um cérebro 421 povoada de memes, dentre eles existiria um meme bastante forte conhecido como “eu” (seção 3.2). Para muitos esta visão do sujeito como sendo um conjunto de memes é inaceitável. Deve haver um sujeito já pré-existente que não só escolha os memes que vai receber, como também que cria novos memes. Talvez o que destaque este problema dos outros é o fato de que até mesmo entre os defensores da memética há forte controvérsia. Cavalli-Sforza, por exemplo, fala que a mutação cultural é direcionada, querendo dizer que ela é intencional e voltada para metas escolhidas por um sujeito. Já Rosaria Conte, uma defensora da memética, acredita no agente memético autônomo (cf. Conte, 2000, p.90), assim como Kate Distin (2005), que escreveu um dos últimos livros sobre memes. Jablonka deixa bem claro sua discordância quando diz que “o problema com o tipo de autonomia afirmada pelo discurso sobre os memes é que o agente biológico-psicológico-cultural ativo desaparece” (Jablonka & Lamb, 2005, p.224. Minha tradução). Curiosamente até Pinker parece seguir por esta linha ao dizer que não há lugar para a criatividade humana na memética, mas logo veremos que ele mesmo nos ajudará na resposta. Uma possível resposta já foi detalhadamente exposta (seção 3.3): é o fato de que memes devem se adaptar ao seu ambiente e este pode muito bem ser o sujeito humano. Falar em perspectiva do meme não é ignorar o sujeito, mas sim tratá-lo como parte do ambiente, assim como as escolhas alimentares de um macaco são parte do ambiente ao qual as frutas se adaptam. Se esta questão for compreendida, todo o problema do sujeito do meme simplesmente desaparece, pois fica claro que defender a memética não significa negar a existência de tal sujeito! Esta resposta já é suficientemente satisfatória. No entanto, é possível dar uma segunda resposta, que vimos dentro da teoria da consciência de Dennett, que seria ainda mais profunda, pois diz que tal sujeito sequer precisa existir (seção 3.2). Dennett nos apresenta uma teoria da mente e da consciência que prescinde completamente de qualquer coisa semelhante a um sujeito autônomo capaz de livre escolha. Dentro da filosofia da mente são várias as teorias sobre a mente e a consciência, muitas radicalmente discordantes em relação à Dennett, mas são poucas, se é que existe alguma, que sentem a necessidade de postular alguma espécie de “eu” que estaria no controle do comportamento. Até mesmo teorias dualistas, como a de David Chalmers (1996), que nos fala do caráter especial e único da consciência, não menciona qualquer tipo de controlador central por onde 422 toda a experiência passa e de onde as ordens provêm. Segundo Dennett, o que de fato acontece em nossa mente é uma luta de múltiplos esboços pelo controle do comportamento. O que chamamos de “eu” é só o esboço que está no comando no momento. Baseado em Dennnett, Dawkins pode dizer que: Quando anunciamos ao mundo uma boa idéia, quem sabe que seleção subconsciente, quase darwiniana, não se passou nos bastidores dentro de nossa cabeça (Dawkins, 2000, p.389). Para deixar esta questão mais intuitiva, Dennett nos fala dos diferentes tipos de mente através de diferentes “criaturas” (Dennett, 1998, p.390 - 394). As criaturas Darwinianas seriam organismos sem capacidade de aprender, elas seriam cegamente geradas e testadas em campo de modo que só os melhores sobrevivem. Já as criatura Skinnerianas teriam uma certa plasticidade, tentariam às cegas várias respostas ao ambiente, até que uma seria selecionada e retida por reforço. As criaturas Popperianas seriam capazes de simular o ambiente externo em um “ambiente interior” que seria relevantemente parecido com o ambiente externo. Neste ambiente interno elas tentariam várias respostas que teriam sucesso por tentativa e erro, fazendo uma espécie de pré-seleção. Só depois deste processo interno, que ficou conhecido com o nome de “pensamento”, é que elas agiriam baseadas naquela tentativa que teve sucesso internamente. Em outras palavras, elas seriam capazes de planejar antes de agir. Por último teríamos os seres humanos que seriam criaturas Gregorianas, estas seriam capazes de incorporar instrumentos desenvolvidos por elas próprias ao seu ambiente interno, sendo que o principal instrumento seria a linguagem, de modo que poderiam manipular suas representações do meio ambiente mais diretamente. Deste modo, o que chamamos de projeto e de criatividade seria um processo de simulação interna do ambiente externo de onde só a melhor resposta sairia, dando a impressão de que somos capazes de criar tal resposta quando, na verdade, ela surgiu por um processo interno que é em tudo parecido com um processo seletivo de tentativa e erro. A questão aqui não é defender a teoria de Dennett, e sim explicitar que uma posição na filosofia da mente, ainda mais uma posição tão forte quanto a que diz que existe um sujeito autônomo, não pode ser simplesmente assumida. Deve haver uma argumentação mais forte dando suporte para tal posição, em especial uma argumentação que diga como tal sujeito surgiu durante a evolução, para que 423 propósito ele serve e qual é o lugar dele no cérebro. Quando colocados de frente a estas questões fica muito mais difícil defender a existência de tal sujeito. A idéia de um centro controlador parece não se adequar à idéia de um cérebro com funcionamento paralelo. As indicações científicas mais atuais são de que não há espaço nenhum para um centro controlador no cérebro. Pinker, embora tenha criticado a memética pela falta de um sujeito criativo, é que nos diz: Os neurocientistas cognitivos não só exorcizaram o fantasma [o eu], mas também mostraram que o cérebro nem sequer possui uma parte que faz exatamente o que se supõe que o fantasma faça: examinar todos os fatos e tomar decisão para o resto do cérebro implementar. Cada um de nós sente que existe um ‘eu’ único no controle. Mas essa é uma ilusão que o cérebro se esforça arduamente para produzir” (Pinker, 2004, p.69 - 70) Pinker nos fala de conhecidos experimentos realizados por Michael Gazzaniga e Roger Sperry, que utilizaram pacientes que tiveram o corpo caloso cortado. Tal parte do cérebro é o que liga os dois hemisférios e é normalmente cortado em cirurgias para impedir ataques epiléticos. Nestes pacientes os dois hemisférios passam a funcionar praticamente como duas pessoas distintas! Sendo que um hemisfério só recebe informação do outro interpretando o comportamento da própria pessoa. Experimentos são feitos mostrando algo só para um hemisfério e depois vendo o que o outro hemisfério acha que está acontecendo. Por exemplo, mostra-se uma placa dizendo “ande” para o hemisfério direito, o paciente levanta e começa a andar. Então é feito a pergunta para o hemisfério esquerdo de por que ele se levantou e começou a andar. As respostas são as mais estranhas, mas sempre com algum sentido do tipo “porque fui pegar água” ou “minhas pernas estavam dormentes” e coisas do tipo. Nunca são respostas mais razoáveis do tipo “não sei” ou “desde que fiz a cirurgia vocês fazem experimentos comigo e me fazem fazer coisas que eu mesmo não entendo”. Tais experimentos e tais respostas não são exclusivos de pacientes que sofreram este tipo de procedimento, muito pelo contrário, são extremamente comuns nos mais diversos tipos de problemas neurológicos. Só para dar mais um exemplo, existem pacientes que juram ser capazes de enxergar, mas obviamente estão completamente cegos, sendo que ao andar tropeçam em praticamente tudo, mas criam as mais absurdas justificativas para seus tropeços. Exemplos como este poderiam ser dados ilimitadamente. 424 Muitos outros experimentos semelhantes a estes indicam que o que chamamos de “eu” ou de “mente consciente” é uma forjadora alucinada de interpretações e explicações (cf. Ramachandran & Blakeslee, 2002). Enquanto o corpo faz o que tem que fazer, ela fica simplesmente inventando motivos para isso e, pior, acreditando realmente que o corpo funciona por causa dos motivos que ela inventa97! Infelizmente, não é tema do presente trabalho as discussões sobre o “eu”, mas em praticamente toda a bibliografia da filosofia da mente e das neurociências podemos encontrar trabalhos sobre este assunto. Em praticamente todas elas o consenso é que, como disse Pinker, este fantasma foi exorcizado. Mas é comum acreditar na existência de tal centro. Em especial, é comum dar a ele o crédito de todas as invenções e idéias novas através de um processo que é chamado de criatividade. Tal centro seria capaz de criar novidades de modo que elas seriam dele. A própria base das patentes é provar quem é dono de qual idéia nova, e as teses de doutorado devem ser idéias novas criadas por um doutorando, algo que normalmente lhes causa muito sofrimento. No entanto, o que é “criatividade” é um gigantesco problema que não pode ser simplesmente assumido. Acreditar que temos a capacidade de comandar nossas “forças criativas”, como se o próprio “eu” fosse criativo e tivesse a capacidade de comandar esta criatividade não é uma idéia razoável. Qualquer pessoa que já tentou criar o que quer que seja sabe que não é tão simples assim. Não temos total poder e comando sobre nossa criatividade. Podemos esperar dias, meses, anos ou mesmo uma vida inteira por uma idéia que nunca vem. E, mais importante ainda, quando vem nunca sabemos direito de onde ela veio. Simplesmente um belo dia acordamos e lá está ela para o nosso deslumbre. Mesmo quando queremos criar algo e somos bem sucedidos neste processo, não entendemos exatamente como ele se deu. O processo que a nossa mente usa para criar é desconhecido até por nós mesmos. Isso não significa que uma idéia nova já chega pronta e acabada, 97 Schopenhauer ficaria feliz com tais experimentos, pois dizia que a razão é “um anão sentado nos ombros de um gigante que é a vontade”. Mais recentemente, o filósofo brasileiro Sergio Fernandes também gostava de deixar claro, inclusive no seu dia-a-dia, que não tinha acesso aos motivos que levavam seu corpo a fazer o que quer que seja (cf. Fernandes, 1995). E ele estava correto! Devo admitir que isso que muitas pessoas consideram como uma crítica à memética é, para mim, um de seus maiores atrativos. Um dos motivos que ela se mostrou tão adaptada à minha mente é justamente o fato prévio de eu acreditar que eu não existo. Esta tese, por exemplo, eu não sei de onde ela veio. Com certeza eu não pensei previamente e só depois escrevi, o processo é completamente outro: primeiro escrevo depois leio para saber o que penso. Longe de ser uma crítica, o fato de que a memética não depende de um agente para explicar o desenvolvimento da cultura é um de seus maiores benefícios em relação a grande parte das ciências sociais. 425 tirando o caso especial de alguns gênios, normalmente ela deve ser trabalhada exaustivamente até que fique pronta. Mas a questão aqui é que podemos ter feito muito esforço mental para chegar até ela, mas este esforço não é um caminho, um método ou uma regra, para se chegar nela. Vimos que processos considerados com criatividade em direção ao progresso, como o desenvolvimento da ciência e o desenvolvimento tecnológico, podem ser muito mais um processo de tentativa e erro do que gostamos de imaginar (seção 3.1). Não sabemos como controlar nossa criatividade, sabemos só tirar proveito dela. Uma nova idéia pode vir ou não vir aparentemente por escolha própria. Não é sem razão que os gregos antigos falavam em musas que nos inspiravam, assim como falam os artistas contemporâneos. Infelizmente não temos controle nenhum sobre o que gostamos de chamar, talvez por puro orgulho, de nossa criatividade. Parece muito mais correto dizer que é ela que tem controle sobre nós. Se pudéssemos criar por nossa livre escolha qualquer pessoa deveria poder, por exemplo, compor um poema. Se tivéssemos controle sobre nossas forças criativas isso não seria dificuldade para ninguém. Ela poderia ser acionada quando quiséssemos e para que quiséssemos. Mas quem já tentou fazer isso sabe que é algo extremamente difícil e que quanto mais se tenta pior sai. Até que, de repente, ele vem à nossa mente e o processo se torna mais fácil. No entanto, algumas outras pessoas parecem produzir poemas quase que contra a sua própria vontade. É comum que um poeta, um músico, um romancista, um pintor, etc. diga que sua arte parece ter vida própria, que ele não é capaz de controlá-la e nem de decidir quando ela vai surgir e qual será o resultado final. Na verdade, é comum que eles digam ser “assombrados” por suas idéias de uma maneira que lhe causa dor e angústia que só passa quando eles as “colocam para fora”. Enquanto alguns batalham para compor uma música medíocre, outros acordam com uma nova sinfonia. Estes foram chamados de “gênios criativos” o que, na verdade, não explica absolutamente nada (cf. Lewens, 2005, p.160)! Dizer que alguém é criativo não diz absolutamente nada sobre como ele é capaz de criar o que quer que seja. E as chances são que, se você perguntar, ele também não saberá responder como é capaz de criar. Mas como é possível que o “eu”, que deveria ser o centro de comando da criatividade, não sabe como ele mesmo faz para criar? Se soubéssemos como se dá o tal processo criativo poderíamos 426 controlá-lo, mas o fato é que não sabemos, no máximo podemos nos deter em outros processos como, por exemplo, estudar muito, e torcer para que algo novo surja, sabe-se lá de onde. “Nem mesmo os grandes criadores conhecem a trajetória direta e segura para a beleza ou a verdade” (Simonton, 2002, p.216). É importante ressaltar que não estamos tratando aqui só dos grandes gênios da humanidade. Casos como o de Mozart, por exemplo, talvez sejam melhor explicados pela biologia do que pela evolução cultural. Embora não existam provas disso, podemos levantar esta hipótese porque ele conseguia ter um output gigantesco com um input mínimo. Sabemos também que os denominados savants são portadores de habilidades mentais gigantescas, mas diretamente relacionados a problemas neurológicos. Mas a questão aqui não são os grandes gênios ou os savants, e sim aquela criatividade cotidiana que todos compartilhamos, alguns mais do que outros. Nestes casos é comum dizer que “criatividade é 99% transpiração e 1% inspiração”. Com isso estaríamos dizendo que o momento criativo diz respeito a só este 1% inicial que seria seguido de 99% de trabalho árduo. Um poeta, por exemplo, poderia ter uma idéia genial para uma poesia, mas depois talvez tenha que trabalhar por anos até esta poesia estar pronta. No entanto, até mesmo este trabalho árduo que se segue ao momento de inspiração não deve ser entendido como um trabalho controlado por um “sujeito”. Ele normalmente é feito de pequenas escolhas e em cada escolha destas não é necessário que exista um sujeito no controle capaz de decidir que caminho seguir. Tal poeta, por exemplo, pode demorar semanas até descobrir qual é a melhor palavra para colocar no final de uma determinada estrofe. Mas até mesmo este processo de “transpiração lenta e gradual” pode ser entendido como um processo criativo que funciona mais por tentativa e erro em busca de uma palavra que se adeque melhor, do que ser entendido como um processo criativamente direcionado por um sujeito consciente que sabe exatamente o que está fazendo e como obter o resultado necessário. Deste modo, os “99% de transpiração” também podem ser entendidos como um processo criativo que se dá lentamente a em pequenos passos, mas sem o comando de um sujeito capaz de dirigir tal processo. Mas talvez o mais interessante nisso tudo é que o argumento que deveria ser uma das principais críticas à memética, pode ser, na verdade, uma de suas forças. Acontece que não temos uma boa explicação da criatividade, mas a memética pode nos auxiliar com tal explicação. A evolução por seleção natural é um 427 processo largamente considerado como criativo. A simples observação de todas as infinitas estratégias evolutivas desenvolvidas pela gigantesca gama de seres vivos, existentes ou extintos, deveria ser o suficiente para mostrar, como disse Blackmore, que os “processos evolutivos são criativos – talvez os únicos processos criativos no planeta” (Blackmore, 2000, p.29. Minha tradução). Vemos isso na chamada de lei de Orgell: a natureza é mais esperta do que você! Chamar a natureza de criativa sempre soa um pouco estranho porque estamos acostumados a tratar só de sujeitos como sendo criativos, e não há um sujeito, uma mãe natureza ou deus, que teria o dom da criatividade. Mas negar a criatividade da natureza não parece ser nem um pouco sensato. O próprio processo da evolução por seleção natural é criativo. Na verdade, foi justamente esta criatividade que serviu por muito tempo como prova da existência de deus! A idéia era que se existia criatividade, se existia projeto, deveria haver um projetista criativo, um sujeito capaz de criar tudo o que vemos na natureza. Mas a grande descoberta de Darwin foi justamente que o projeto, a criatividade, não precisa de um projetista criativo, o próprio processo é capaz de criar projeto, o próprio processo é criativo. Novos projetos surgem na natureza literalmente todo o dia. Talvez a todo segundo. Tudo isso sem a necessidade de nenhum sujeito capaz de criar novos projetos. Do mesmo modo, a criatividade da mente humana pode não está na existência de um sujeito criativo, alguém que seria capaz de comandar a sua própria criatividade, mas sim no próprio processo de evolução cultural que seria, ele mesmo, criativo. Este é provavelmente o principal problema em aceitar a memética. Não gostamos de pensar em nós mesmos como não tendo controle algum sobre aquilo que somos e que criamos. A principal crítica contra Darwin, não só quando ele estava vivo, mas até hoje, 150 anos depois, é o fato de que ele tirou deus da biologia. Talvez o principal problema da memética seja o fato de que ela faz exatamente o mesmo com a evolução cultural. Tudo isso que gostávamos de chamar de nossa cultura, nossas idéias, nossas invenções, não é nossa, e sim fruto de um processo de evolução cultural onde a variação se dá ao acaso. O próprio sujeito não tem mais papel nenhum para representar, ele se tornou inútil. Darwin mostrou a inutilidade do sujeito universal e a memética poderá mostrar a inutilidade do sujeito individual. Por isso, o grande feito da memética pode ter sido destronar o sujeito assim como Darwin destronou deus. Conclusão Percorremos um longo caminho que nos possibilitou fazer uma considerável análise da memética, tanto em suas questões internas e mais específicas, quanto em suas questões externas, como a sua posição em relação às ciências em geral. Tal caminho teve a pretensão de analisar uma parte relevante das questões que a memética levanta, tratando das críticas dirigidas a ela, e analisando uma série de estudos e pesquisas empíricas que no futuro devem fazer parte do corpo de estudos desta disciplina. Fundamentalmente a questão que se buscou é se é possível uma ciência dos memes. Mas esta questão foi perseguida indiretamente, até porque ela só poderá ser devidamente respondida quando a memética iniciar suas pesquisas empíricas. No entanto, nos últimos 20 anos esta questão conceitual foi diluída em muitas outras e simplesmente não há como tratá-la de modo independente. Na verdade, tal questão mais geral e abstrata pode ser perfeitamente reduzida às várias questões particulares e específicas que foram aqui tratadas. Só podemos discutir se é possível uma ciência dos memes analisando cada uma destas questões individualmente. Mas além da resposta a estas questões, o objetivo foi apresentar a memética da forma mais simples e plausível possível, fugindo de inúmeras complicações e más interpretações que são tão comuns nesta área. É preciso antes de qualquer coisa ver a memética pelo que ela é, dentro de sua própria simplicidade. Deve ser notado que é bastante óbvio que a cultura passa de pessoa para pessoa, de geração para geração. Também não é nada questionável que a cultura muda, tendo partes dela desaparecido e outras partes se desenvolvido. Mas o real problema é como esta cultura passa e como ela muda e é isto que a memética tentará resolver através de um processo darwiniano. Do mesmo modo, Darwin percebeu na natureza a existência da variação, adicionou a isso o fato de que tal variação é herdada e de que algumas variações terão mais sucesso do que as outras. Tendo como fato de que novas variações podem surgir e que nem todas as variações podem sobreviver, ele não precisava de mais absolutamente nada. Já estava aí todo o princípio da evolução por seleção 429 natural em toda a sua nua simplicidade. Tudo o que causa grande confusão, mesmo 150 depois da sua publicação, pode ser resumido simplesmente dizendo que quanto mais descendentes você deixa em comparação com o resto da população mais comum você vai ser. Isso é a seleção natural! Já as variações que aumentam o número de descendentes se tornarão mais comuns e serão retidas. Isso é a evolução! Uma das maiores teorias de todos os tempos é de uma simplicidade assombrosa. Com esta simples teoria o único trabalho que lhe restava era acumular uma série de dados empíricos que lhe dessem sustentação. Trabalho que ele fez brilhantemente. Mas é preciso antes de tudo entender na memética a mesma simplicidade que Darwin percebeu em sua teoria. Darwin não falou em DNA, transpossons, retro-vírus, príons, co-evolução, Homo sapiens, exaptação, genes, equilíbrio pontuado, falsificacionismo, evo-devo, canalização, paisagem adaptativa, panglossinismo, fenótipo, genótipo, fenótipo estendido e tudo mais que faz com que este assunto pareça tão complicado. No entanto, Darwin deu para sua teoria um fundamento empírico que até hoje impressiona. Fundamento esse que a memética ainda não tem. Não devemos esperar nada menos da memética, e principalmente, não devemos esperar nada mais! É preciso primeiro percebê-la em toda a sua simplicidade para só depois tentar desenvolvê-la empiricamente. Sabemos claramente que há variação cultural e que tal variação pode ser passada de pessoa para pessoa. Além disso, nem todas as variações têm a mesma probabilidade de serem passadas. Como novas variações podem surgir e nem todas as variações podem sobreviver, temos todo o substrato fundamental para uma evolução cultural por seleção natural. No final das contas é preciso entender, assim como Darwin, que o que está sendo dito aqui não passa da seguinte constatação: as idéias, os comportamentos, os conceitos que tiverem mais sucesso em serem passados se tornarão mais comuns. A memética é isso e só isso, ao menos inicialmente. Mas a memética ainda precisa do seu Darwin: alguém com conhecimento suficiente nas mais diversas áreas que tratam da cultura e que seja capaz de reuni-los em um todo coerente. Muitos críticos, quase todos, se deixam confundir por sua simplicidade. Muitos se embrenham por uma série de discussões conceituais e esquecem de olhar o óbvio. Discutem, criticam, gritam, fogem e vaiam, mas se colocados de frente a tamanha simplicidade são incapazes de negá-la. Assim como o 430 darwinismo, a memética é tão óbvia que chega ao limite da tautologia: a variação que aumentar o número de descendentes de um determinado meme em relação aos outros se tornará mais comum. Isso é a memética nua e crua. O que vai fazer com que um meme se torne mais comum ou não é o quanto ele é adequado ao nosso aparato cognitivo, ou seja, o quanto estamos dispostos a aprendê-lo e posteriormente ensiná-lo. Quando bem entendida, a única crítica que resta à memética é que ela é óbvia demais, simples demais, não diz nada de novo. Mas como algo tão óbvio pode causar tanta controvérsia? O darwinismo também já foi chamado de quase tautológico, simples demais, não dizendo nada sobre nada. Crítica que se mostrou completamente infundada. Curiosamente, a memética terá ainda que se difundir muito até ser chamada de tautológica. No momento ela está afogada em pequenos problemas que visam obscurecer a sua simplicidade e impedir o seu trabalho empírico. Muitos destes problemas também afogaram o darwinismo, e por décadas ele teve que responder a eles. Na verdade, ainda responde. Mas o seu tempo era outro, a visão do que era fazer ciência era outra, a relação entre a visão do público e o financiamento científico era outra. Na verdade, muitas vezes o financiamento para trabalhar vinha do próprio bolso do cientista ou de algum amigo ou admirador mais abastado, quase um mecenas. Um outro ambiente onde a relação entre um saber científico e seus rígidos fundamentos filosóficos e metodológicos era bem mais solta. Não tínhamos positivistas lógicos ou falsificacionistas dizendo o que um cientista deveria fazer e o que era boa ciência. Nem precisávamos de dadaístas metodológicos dizendo que “tudo vale”. Cabe lembrar aqui, como vimos no início do primeiro capítulo, que muitos cientistas discordaram de Darwin, inclusive muitos de seus amigos, tanto é que Mayr divide o darwinismo em cinco teorias e mostra que a única coisa que unia todos os darwinistas não era a evolução e nem a seleção natural, mas sim uma visão naturalista do mundo. Até mesmo o “buldogue de Darwin” tinha sérias discordâncias em relação à seleção natural (cf. Mayr, 2006, p.37). Já seu grande amigo, Charles Lyell, tinha dúvidas sobre a quantidade de variação dentro das espécies. O que possibilitou que o darwinismo continuasse seguindo seu rumo foi que todas estas discordâncias internas foram silenciadas devido ao fato de todos terem um inimigo em comum: a visão religiosa de uma natureza criada e comandada por leis transcendentes. Contra este inimigo eles se uniram, contra 431 este inimigo Huxley defendeu Darwin. Eram os naturalistas contra os skyhooks. É claro que esta união nunca teria acontecido se Darwin não tivesse coletado tantas evidências empíricas para defender a sua teoria. No entanto, mesmo com tantas evidências ela não foi plenamente aceita nem pelos seus mais íntimos colaboradores. Foi isso que permitiu com que o darwinismo, mesmo sem uma boa explicação sobre a origem das espécies, mesmo sem uma boa teoria da herança, mesmo sem explicar de onde vinha a variedade etc., mesmo assim ele teve tempo para respirar e se desenvolver. Quando o foco do debate deixou de ser contra a visão religiosa de mundo e o debate interno começou a tomar lugar, por volta de 1900 com os mendelianos fazendo oposição a Darwin, August Weismann já tinha deixado de acreditar na herança de caracteres adquiridos e começava a desenvolver sua divisão entre soma e germe (cf. Mayr, 2006, p.110). Mais e mais evidências empíricas surgiam. Não muito tempo depois viria Fisher e aí o caminho já estava pavimentado para a nova síntese e o problema praticamente resolvido. Se o darwinismo tivesse que passar por todo o escrutínio que a memética está passando, tendo todos os seus mínimos detalhes analisados, todas as suas falhas colocadas em estandartes, toda a sua metodologia dissecada, ele nunca teria tido sucesso. Mesmo com toda a base empírica que Darwin tinha dado a sua teoria, tais problemas, se surgissem hoje, seriam considerados como tendo refutado a teoria da evolução por seleção natural. Se tratado com rigor, o darwinismo com a teoria da hereditariedade das gêmulas estava errado. Jenkin mostrou muito bem que é impossível evolução por seleção natural com uma hereditariedade por mistura. Mas isso não impediu o sucesso do darwinismo porque simplesmente não era exigida dos cientistas a correção nos mínimos detalhes. Soma-se a isso que os naturalistas esqueceram de suas diferenças para se defender de um inimigo comum, então a seleção natural teve o tempo necessário para tentar vários caminhos até achar o seu. Teve também tempo de acumular mais e mais evidências empíricas. O problema com a memética é que ela não teve a mesma sorte. Seu surgimento foi mais espontâneo, menos fundamentado. Dawkins não tinha pretensões de criar uma nova ciência. Ele não passou anos coletando dados empíricos das mais diversas áreas para provar a existência da evolução memética. 432 Ao contrário do darwinismo, ela nasceu nua, somente uma análise conceitual interessante sem absolutamente nenhuma fundamentação empírica. Algo que não seria um grande problema se lhe fosse dado tempo, e dinheiro, para se desenvolver. Mas não foi isso que aconteceu. Antes mesmo que ela pudesse tentar se desenvolver, antes mesmo de descobrir seu substrato empírico, ela teve todos os seus mínimos detalhes analisados e criticados, de modo que só poderia ganhar a respeitabilidade necessária para se desenvolver se respondesse a todas estas questões. Exigem dela as respostas para todos os seus mínimos detalhes antes mesmo que seja possível fazer memética. Algo que nenhuma ciência poderia suportar98. “Os críticos da memética assumem padrões tão altos de conhecimento científico que talvez nenhuma área da ciência, ou apenas algumas poucas, podem possivelmente realizá-los” (Hull, 2000, p.48. Minha tradução). Críticos dizem que a memética nunca será uma ciência e com isso constroem uma profecia autorealizável. De fato ela nunca será uma ciência se tiver que responder a todos os críticos sempre antes de desenvolver algum trabalho. Os críticos estão corretos ao dizer que faltam evidências empíricas à memética, mas o problema é que tais evidências só surgirão se for possível fazer memética! Se tudo o que dissemos aqui foi compreendido corretamente, deve ter ficado claro que o argumento que expomos aqui almeja ser um argumento “fraco”. Não buscamos refutar ou provar nada definitivamente. É por isso que o objetivo era realizar uma “análise crítica das críticas” e “não uma resposta definitiva das críticas”. Não buscamos fundamentar nada além da simples possibilidade de tentar. Se não tentarmos construir uma memética nunca saberemos se ela é possível ou não. Provar a priori que a memética é uma ciência e que terá sucesso seria tão enganoso quanto refutá-la a priori. Precisamos limpar o terreno conceitual de todas as más compreensões, mas só na medida em que elas impedem a tentativa. Querer resolver definitivamente todas as dificuldades seria dar importância demais a elas, mas este é exatamente o problema! A estagnação da memética não é porque ela tem problemas, todas as ciências têm problemas. A estagnação da memética é porque ela se preocupa demais com eles. 98 Imaginem se exigissem da física newtoniana a resolução para o problema da gravitação entre 3 corpos antes dela se estabelecer como ciência! 433 A normatividade dentro da epistemologia pode até ser saudável na medida em que visa fazer uma separação entre ciência e não ciência, mesmo que esta separação não tenha limites bem definidos. O fato é que certas áreas como a física, a química e a biologia são indubitavelmente ciências da melhor qualidade. Qualquer conceito de ciência que tirasse qualquer uma destas do rol das ciências deveria ser descartado. No entanto, vimos que a biologia muitas vezes não é tratada em pé de igualdade com as outras duas. Grande parte de suas inovações metodológicas e toda a sua nova visão de mundo, oriunda do pensamento populacional, parecem ser apenas relevantes para a filosofia da biologia, ou seja, não entram em grande parte das considerações epistemológicas sobre o que é a ciência em geral. Por isso, na falta de princípios epistemológicos melhores e mais inclusivos, podemos tratar desta questão com o que poderia ser ludicamente chamado de “princípio da zebra”: zebras vivem em grandes bandos e quando são atacadas por leões fogem correndo. Pode-se imaginar que exista uma pressão seletiva para que cada zebra corra mais rápido do que o leão. Mas o fato é que ela não precisa correr mais do que um leão, ela só precisa correr mais do que alguma outra zebra. Aquela que correr menos será capturada e devorada. Do mesmo modo, a memética, e qualquer outra nova ciência, não precisa se preocupar em responder a todos os princípios normativos e todas as questões conceituais que lhe são impostas. A memética só precisa responder tanto quanto alguma outra publicamente reconhecida ciência para mostrar que ela tem solidez o suficiente para merecer ao menos algumas boas tentativas. Só depois destas tentativas é que ela poderá ser julgada pelo que conseguiu ou não fazer. Tem que haver paridade nestas questões. Na podemos deduzir do sucesso da biologia o sucesso da memética, mas podemos concluir que deve ser dado a ela o mesmo respeito que é dado a qualquer ciência em seu início. Isso não significa que a memética está certa, que ela é uma ciência e basta começar a fazer e não teremos problema algum. Este não é o ponto. A questão é que, para descobrir se a memética será uma ciência ou não é preciso antes de tudo tentar! “A memética deveria ser avaliada apenas quando um número razoável de pessoas começasse a desenvolvê-la” (Hull, 2000, p.51. Minha tradução). Talvez no futuro ela encontre uma barreira intransponível e fracasse. Talvez memes sejam amorfos, se misturando de todos os modos, sem unidade alguma, sem fidelidade alguma, instanciados das mais diferentes formas e não transmitidos 434 entre cérebros. Talvez. Mas ela deve ser tratada como inocente até que a provem culpada. Até chegarmos neste ponto, já foi mais do que mostrado que a memética é sólida o suficiente para que ao menos se tente. A questão é que dificilmente será possível fugir de modelos darwinistas da cultura. Tais modelos são os melhores exemplos que temos até hoje para conectar as mudanças macro com as mudanças micro. Falando exatamente que estes modelos darwinistas da cultura são úteis, Richerson e Boyd nos dizem: Eles servem para conectar os ricos modelos de comportamento baseados na ação individual desenvolvidos na economia, na psicologia e na biologia evolutiva com os dados e insights sobre das ciências culturais, antropologia, arqueologia e sociologia (Boyd & Richerson, 2000, p.145. Minha tradução). Nenhum outro modelo é capaz de fazer esta ligação entre o indivíduo e o todo com tanta maestria. Tanto é que se passaram quase 100 anos até que a nova síntese fosse capaz de ligar a micro-evolução com a macro-evolução. Afinal de contas, quem suspeitaria que mudanças ao acaso no DNA poderiam ser a base da diferença entre brontossauros e amebas? É esta capacidade dos modelos selecionistas que é perfeita para a cultura. Não há modelo melhor para explicar como pequenas variações entre indivíduos são a base das grandes diferenças culturais. O simples fato de que a cultura se defronta com problemas de escala semelhantes aos enfrentados pela evolução, e que não devemos tratar destes problemas com modelos genéticos, deveria ser o suficiente para ao menos tentar tratá-los com modelos meméticos. Felizmente a história tem o seu modo de levar os homens para onde eles se recusam a ir. A memética propriamente dita pode estar estagnada e ficar assim por muito tempo. No entanto, ela conseguiu dar a volta nas críticas e reaparecer em outros lugares, com outros nomes e outras caras. Embora nenhuma delas seja memética propriamente dita, elas estão pavimentando o caminho pelo qual a memética algum dia poderá seguir. É assim com as teorias da co-evolução entre gene e cultura. Todos os dois ramos desta teoria têm críticas à memética, mais especificamente, Cavalli-Sforza e Feldman ressaltam o papel do sujeito na mudança cultural, e Richerson e Boyd ressaltam que as variantes culturais podem se misturar. Com o tempo e os estudos nas ciências cognitivas, pode acontecer tanto deste sujeito desaparecer quanto desta mistura ser explicada de outra forma. 435 Além disso, vimos que a ecologia comportamental está realizando os primeiros experimentos sobre a força da cultura no comando do comportamento e, melhor ainda, utilizando o termo “meme” em suas pesquisas. Vimos também que algo semelhante acontece na lingüística histórica com Fitch e outros, e na economia com Don Ross. Ambos estão levando o meme do meme para as suas áreas. O termo meme também já vem sendo utilizado no Design, na publicidade e propaganda. Vimos que modelos de epidemiologia cultural são estudados, inclusive na antropologia por Dan Sperber, e estão dando resultados matemáticos e resultados empíricos99. E o toque final é dado pelos estudos do sistema espelho que, ao que tudo indica, será o destaque dentro das neurociências nas próximas décadas. A necessidade de unir estas mais diversas áreas surge no horizonte, e lentamente o conceito de meme aparece dentro de cada uma delas. Se tal termo realmente se espalhar nestas áreas ele poderá ser o ponto em comum que permitirá entender a união de todas elas. Aos poucos a memética desponta justamente nos lugares onde ela deveria despontar. Lá, longe de tantas críticas, ela pode começar a engatinhar e algum dia tais trabalhos podem se unir e formar a memética propriamente dita, embora nada garanta que será sobre esta alcunha. Talvez surja um outro nome para o que será basicamente a mesma coisa. A memética não está completamente por fazer, ela está sendo feita por caminhos tortuosos. Desmembrada, mas crescendo aos poucos e aguardando a sua união. Se todas estas áreas perceberem as semelhanças entre o que estão fazendo como sendo mais importante do que suas diferenças, pois sempre há diferenças, a memética terá encontrado o aparato metodológico que precisa para se unir e se desenvolver. O próprio fato que o conceito de meme começa a ser usado por todas estas disciplinas pode indicar e permitir esta união. A memética poderia ser usada como uma linguagem em comum entre todas elas. O primeiro passo será, então, rever o que já foi tratado nestas áreas que estudam a cultura há muito tempo, como a antropologia, a lingüística, a sociologia, a história 99 Aqui no Brasil temos o recém criado doutorado, multi-institucional e multidisciplinar, em difusão do conhecimento, na UFBA, que tem a pretensão de criar e analisar modelos matemáticos para explicar este processo. Embora sua origem tenha sido com uma interessante análise da difusão do conhecimento como semelhante à difusão do calor em uma barra (cf. Bevilacqua, Galeão & Bulnes, 2005), os trabalhos recentes começam a mostrar a necessidade de procurar modelos dentro da biologia e da epidemiologia. Eu mesmo tive o prazer de apresentar um trabalho sobre memética no 2° Workshop de Modelagem Computacional da Difusão do Conhecimento, em 2008 no LNCC, e um outro trabalho analisando a transmissão cultural através de um modelo de epidemiologia de tuberculose junto com Regina Célia Leal. 436 etc. Lá a memética encontrará novos métodos, novos estudos, em uma base empírica muito mais sólida com a qual trabalhar. Tais áreas deverão se unir a outras que também tratam da cultura, mas indiretamente, como o design, a psicologia, a pedagogia, as ciências cognitivas, a publicidade e propaganda. Criada esta base empírica e experimental a memética poderá utilizar modelos das teorias da co-evolução, da ecologia comportamental, da epidemiologia, da genética de populações e da própria biologia evolutiva para criar uma metodologia rigorosa de pesquisa empírica. Deste modo, a memética nunca deverá ser vista como mais uma tentativa de biologização da cultura. Este é um grande erro e é imperdoável. A memética visa estudar a cultura nela mesma e, como vimos, é até mais importante para a memética que a cultura seja em larga medida autônoma do que para a própria antropologia cultural, pois esta poderia continuar estudando a cultura se ela fosse geneticamente determinada. O fato é que se a memética faz algo é justamente o oposto do que normalmente dizem: ela desbiologiza a biologia! Faz isso mostrando que aquelas características que pareciam ser tão particulares do mundo vivo, na verdade se mostram como universais. Ao colocar a evolução por seleção natural na cultura, ela não coloca a biologia na cultura, muito pelo contrário, ela tira a evolução por seleção natural da biologia, pois mostra que este não é somente um processo biológico. Ele é geral e, por um acaso, foi descoberto na biologia primeiro, mas poderia muito bem ter sido descoberto antes na cultura e só depois transferido para a biologia. É precisamente por ser geral que tal princípio tem um poder unificador tão forte. Ecologia comportamental, teorias da co-evolução gene-cultura, lingüística, antropologia, sociologia, história, economia, neurociências, design, modelos dinâmicos de epidemiologia, pedagogia, publicidade e propaganda, psicologia etc. Tudo isso deverá ser estudado pela memética. Há, com certeza, muito trabalho a ser feito. Trabalho em tudo semelhante ao que Darwin fez, na Origem das Espécies, quando juntou evidências de várias áreas distintas da biologia e mostrou como elas, juntas, contavam exatamente a mesma história: a teoria da evolução por seleção natural. A união da biologia foi o grande feito de Darwin. “Sem a evolução a biologia se resume a uma miscelânea de fatos heterogêneos” (Dawkins, 2005, p.109). Mas uma “miscelânea de fatos heterogêneos” é exatamente o que temos nas ciências sociais, e é exatamente a união dos estudos 437 sobre a cultura que poderá ser o grande feito da memética. Toda aquela simplicidade, toda aquela quase tautologia, toda aquela obviedade conceitual, se mostra extremamente poderosa quando vemos que ela pode criar esta união. A união de vários saberes em busca de uma mesma resposta não é só uma curiosidade ou um evento contingente, deve ser entendida como um novo método de fazer ciência que ultrapassa as considerações normativas e restritivas de parte da epistemologia contemporânea. A ciência falsificacionista, a ciência baseada em leis e em testes reprodutíveis, deve ser tratada como só um dos modos de se fazer ciência. Mas, principalmente, deve admitir a sua incapacidade em tratar de questões históricas, que por isso precisam de uma nova metodologia, e uma nova epistemologia baseada na união de diversas metodologias para a construção da mesma narrativa histórica. Desse modo, todas as ciências históricas, incluindo aí a memética, são melhor palaetiológicas de entendidas Whewell, feito, dentro da é claro, classificação as devidas de ciência modificações, principalmente no caráter finalista e indutivista de Whewell. É claro que isso não significa abandonar o trabalho empírico, abandoná-lo seria abandonar a própria ciência. É apenas uma questão de tratar tais dados de uma outra maneira que possibilite a criação de narrativas históricas empiricamente fundamentadas. Dentro desta nova classificação, as ciências palaetiológicas devem ser entendidas através da sua própria metodologia que não deixa absolutamente nada a dever para as ciências naturais, como são normalmente classificadas. Ao contrário da epistemologia contemporânea, que entende as ciências através do termo “redução”, as ciências palaetiológicas são melhor compreendidas através do termo “união”. Ao contrário da visão comum de que o ápice da ciência seria a redução total de todas as diferentes áreas à física, a visão trazida pela palaetiologia é a de que o ápice da ciência será a união de todas elas na construção de uma, e só uma, narrativa histórica do universo. Construir uma única narrativa histórica do universo empiricamente fundamentada. O tamanho da empreitada assusta a muitos, e com razão. Mas, desde a cosmologia até a história das civilizações, deve haver uma, e só uma, história do universo. Respondendo “de onde viemos” saberemos também “quem somos”. Com certeza deve haver pouco, se é que há algo, que interesse mais a ciência do que descobrir essa história. É só uma ciência histórica será capaz de responder isso. No que diz respeito ao ser humano, não acharemos estas respostas 438 na física, na cosmologia ou na biologia. Precisaremos de uma ciência histórica eminentemente cultural capaz de unir as várias abordagens que já existem para tratar a cultura. A capacidade de entender as macro-mudanças através das micro-mudanças dos modelos evolutivos e a impressionante capacidade da memética de unir as mais diferentes áreas do saber dentro de uma única abordagem, onde todas falam a mesma língua, a torna uma forte candidata para um estudo amplo da cultura. Todos os pequenos problemas que se encontravam no caminho podem não ter sido definitivamente respondidos, mas já foram suficientemente resolvidos. Só falta tentar. Tendo sempre certo que sua principal tentativa se dará através da sua capacidade de unir diversas áreas que, de outro modo, não conseguiriam perceber a sua união fundamental e talvez não percebessem a necessidade de trabalharem juntas para montar a análise mais completa da cultura que já foi idealizada pelo ser humano. Bibliografia ANDRESKI, S. Herbert Spencer. London: Thomas Nelson and Sons, 1972. AUNGER, R. What’s the Matter with Memes? In: GRAFEN, A. & RIDLEY, M. (eds). Richar