Comentário das respostas da pergunta “os memes existem?”, parte

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Comentário das respostas da pergunta “os memes existem?”, parte da série
"Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del
Debbio e o cético Kentaro Mori responderam a 7 perguntas sobre o tema. Para
saber mais, leia a premissa da série.
[Raph] Muito já foi dito em meu blog sobre os memes de Dawkins (ver, por
exemplo, a série Onde estarão os memes?), e, do ponto de vista espiritualista,
eu tenho sempre me indagado se os memes diferem tanto assim dos
muwakkals dos sufis, ou das teorias ocultistas acerca do “nascimento, vida e
morte dos pensamentos”, ou seja: seriam os memes os genes místicos ou
metafísicos?
Para não me repetir sobre assuntos já abordados no blog, eu gostaria aqui de
falar exatamente sobre a natureza do pensamento. Sabemos que o
pensamento sem dúvida passa pela mente, independentemente de ter se
originado apenas no cérebro, ou de ter vindo de algum outro centro oculto, de
alguma usina espiritual. Isto pois, com os eletroencéfalogramas (EEGs) e
outras tecnologias de observação objetiva das fagulhas elétricas a navegar
pelo espaço neuronal do cérebro, tudo o que vemos é o resultado da vontade
de agir, dos comandos cerebrais; Ou pelo menos nada que temos visto na
neurociência de ponta indica que tal fagulha se originou apenas no cérebro, e
não está somente trafegando por ele, ativando as teclas do piano que controla
nosso corpo. Observamos, portanto, luzes a passar por extensos e intrincados
postes de luz, que iluminam toda a metrópole cerebral, e fazem a cidade
funcionar – porém, jamais encontramos algo no cérebro que possamos indicar,
com boa convicção, como sendo a usina elétrica dessas luzes, o centro da
vontade.
Portanto, ainda que hoje saibamos que a consciência é um processo que
simula e elabora realidades para que nosso eu possa decidir o que fazer a
seguir; E ainda que a atividade consciente na verdade seja apenas reflexo de
inputs de informação sensorial e decisões muitas vezes inconscientes que
ocorreram a até meio segundo atrás, antes de terem sido percebidas
conscientemente [1]; Ainda assim, a despeito de todo o ceticismo envolvido
com as questões espirituais, podemos dizer pelo menos isto aqui: enquanto
vivos, encarnados, todos nós concordamos que somos um ser que tem uma
mente e é capaz de elaborar e interagir com pensamentos, ainda que tão
somente dentro de nossa própria mente [2].
Ora, se postulamos que memes são as unidades fundamentais do registro de
informações de nossas ideias e pensamentos, e que da interação entre
pensamentos, eles podem se desenvolver e replicar, conforme os mecanismos
de evolução e seleção natural da teoria da Darwin-Wallace, ainda que eles
jamais tenham sido detectados em experimentos, podemos os considerar
também como uma teoria puramente lógica e filosófica de eventos observados
na natureza. Dessa forma, conforme os antigos filósofos naturalistas, que não
estavam tão distantes dos sufis (que conceberam os muwakkals), poderemos
examinar de que forma, exatamente, tais memes adentram em nossa mente,
e se desenvolvem, até que se repliquem para outras mentes, geralmente
através da linguagem [3].
Conforme vínhamos dizendo no comentário da segunda pergunta (que é,
afinal, a vida?), John Wheeler e outras físicos postulam que as unidades
fundamentais da realidade, tanto quanto ocorre com os memes, também são
puramente informação, bits de informação: “0s” ou “1s” que, repetidos ad
infinitum, estruturam tudo o que há no Cosmos, do neutrino aos maiores
agrupamentos de galáxias. Crendo ou não nessa teoria científica, muitos
neurocientistas, ainda assim, creem que o registro de informações no cérebro
é computacional e que, em essência, somos mais como uma máquina celular.
Ainda que fosse este o caso, não sabemos exatamente como o cérebro gera a
subjetividade, como nos permite interpretar – e não apenas computar –
informações, de modo que falamos em “vermelhidão” do vermelho, e podemos
apreciar as mais belas metáforas poéticas.
Sir Charles Scott Sherrington, neurofisiologista britânico, talvez tenha sido um
dos pensadores que mais profundamente adentrou neste problema do registro
de informações subjetivas em nossa mente, ao compará-la, metaforicamente
[4], a um tear encantado, sempre tecendo padrões de sentido, através da
simbologia: “Esses padrões de sentido transcenderiam programas ou padrões
puramente formais ou computistas e dariam margem à qualidade
essencialmente pessoal que é inerente a reminiscência, inerente a toda
mnesis, gnosis e práxis. [...] Padrões pessoais, padrões para o indivíduo,
teriam de possuir a forma de scripts ou partituras – assim como padrões
abstratos, padrões para computador, têm de estar na forma de esquemas ou
programas. Portanto, acima do nível de programas cerebrais, precisamos
conceber um nível de scripts e partituras cerebrais. [...] A experiência não é
possível antes de ser organizada iconicamente; a ação não é possível se não
for organizada iconicamente. ‘O registro cerebral’ de tudo – tudo o que é vivo
– tem de ser icônico. Essa é a forma final do registro cerebral, muito embora o
feitio preliminar possa ser moldado como cômputo ou programa. A forma final
de representação cerebral tem de ser, ou admitir, a ‘arte’ – o cenário e a
melodia artística da experiência e da ação [5]”.
Dessa forma, surpreendentemente, quando falamos em pensamento, embora
o conceito de “informação” ainda faça sentido (pois no fundo tudo é
informação, até mesmo o próprio pensamento [4]), provavelmente o conceito
de “símbolo” traga um sentido mais prático se queremos abordar a questão de
forma lógica. Ora, apesar de mesmo os símbolos não serem de todo capazes
de encerrar o que se dá na experiência subjetiva, na sensação, na intuição, no
sentimento, eles pelo menos são as melhores cascas de sentimento que
encontramos até hoje, as melhores palavras e imagens capazes de indicar o
que é exatamente um pensamento: não somente um conjunto “frio” de “0s” e
“1s”, mas toda uma rede intrincada de sentidos que, efetivamente, podem ter
seu nascimento, sua vida, e sua morte. E, mais do que isso: podem se
replicar, se desenvolver, tal qual a teia da vida.
Portanto, se pensamentos nada mais são do que informações vivas a trafegar
pelas mentes, ainda que antigamente fosse difícil crer que alguém poderia
influenciar o pensamento de outro alguém a distância, através de algum plano
mental, hoje nem é preciso considerarmos se isto é ou não uma possibilidade
real. Pois que hoje a transmissão de pensamentos se dá também quase a
velocidade da luz, através do hipertexto da internet, das redes sociais, e de um
mundo cada vez mais globalizado. Estamos sim, cada vez mais, formando uma
teia de pensamento através do mundo todo. Cuidado, portanto, como a
informação, com os símbolos que saem, e também com os que entram: eles
serão a sua realidade.
***
[1] Exceto em ações puramente reflexivas, como proteger os olhos com as
mãos de algum objeto arremessado em sua direção, que não passam por esse
intervalo de meio segundo, e são efetivamente “automáticas”, ou pelo menos
na grande maioria dos casos não teremos escolha entre proteger os olhos ou
não: nós os protegeremos.
[2] Bem, os materialistas eliminativos (dentre os quais, ironicamente talvez
pudéssemos incluir o próprio Dawkins) não creem que exista uma mente, pois
eles tampouco creem que exista uma subjetividade, ou a liberdade, mesmo
uma liberdade parcial e limitada, da vontade. A subjetividade seria uma ilusão
persistente do cérebro, e todas as nossas escolhas (veja bem: todas) na
verdade se reduziriam ao tilintar neuronal de partículas já descobertas pela
ciência (veja bem: apenas 4% da matéria e energia do universo, segundo a
teoria da Matéria Escura).
[3] Ou seja, da interação humana, também conhecida como fofoca, notícia,
moda, etc. Muitos espiritualistas postulam que o pensamento pode, por si só,
se projetar e habitar um plano mental, um inconsciente coletivo, etc., mas
nem será preciso considerarmos esta hipótese aqui.
[4] Ah, a ironia...
[5] Trecho de Man on his nature, conforme citado num dos livros de Oliver
Sacks.
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