XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 Descentralização e accountability: os alcances do orçamento participativo do Recife Marco Antonio Carvalho Teixeira Introdução Muitos autores puderam constatar que a política local e o grau de autonomia da administração pública municipal dependeram essencialmente do perfil doregime políticoque esteve em vigor nos diferentes períodos históricos no Brasil. Entre tais autores, analisando esta complexa relação, Neves (2000) observou que, desde a sua independência, o país conheceu uma grande alternância de regimes que ora tenderam a centralizar o poder político e administrativo no plano Federal e ora o descentralizaram. Estas oscilações, obviamente, têm sido determinantes para a vida cívica dos municípios. Para Neves, os períodos do Império (1827 a 1889), Estado Novo (1930 a 1954) e Governo Militar (1964 a 1984) foram marcados pela forte hegemonia da União, decorrente das diversas faces dos regimes autoritários levados a cabo no país, com a submissão da política dos estados e dos municípios aos desígnios do poder central. Por outro lado, durante a primeira República (1889-1930), os municípios se viram compelidos por outro domínio político, aquele das oligarquias estaduais que se revezaram no comando do país e governavam com base em interesses econômicos regionais. Para Gleise Neves, mesmo no decorrer da curta experiência democrática, entre o final Estado Novo e o Golpe de Estado de 1964, os governos municipais foram pouco fortalecidos na medida em que não gozavam de autonomia administrativa, legislativa e financeira. Abordando a mesma questão pela ótica da cultura política, Souza (1996) destaca três conjuntos de estudos que buscam compreender o grau de importância política dos governos municipais brasileiros ao longo do século XX. No primeiro conjunto se situam os estudos clássicos de Victor Nunes Leal, Oliveira Viana e Gilberto Freire que apontaram para a “hegemonia da política local e dos grupos privados” na estrutura de poder do Brasil na virada do século XIX e primeiras décadas do século XX. No segundo, em que Raymundo Faoro é colocado como maior expoente, Souza enfatiza a presença histórica do governo central como o principal ator político do país. Reunindo elementos presentes no primeiro e no segundo conjuntos de estudos, Andrade (2007) põe em destaque o conceito síntese do “coronelismo”, emprestado de Nunes Leal, e que para ele melhor define o resultado da adoção da democracia representativa numa ordem patrimonial. O conceito serve muito bem para simbolizar também o atraso político em pleno processo de modernização econômica. Esta dinâmica política destaca o papel do Coronel como intermediário dos governos estaduais e federal, afirmando que os pequenos municípios eram extremamente frágeis e dependiam desta figura política para obter recursosdas instâncias superiores. Para ele “a autonomia municipal era precária e virtualmente inexistente. Do arranjo coronelista “escapavam apenas os médios e grandes centros urbanos” onde, evidentemente, já se manifestavam os primeiros sinais de organização social em função da nova dinâmica econômica provocada pelo processo de industrialização. No terceiro conjunto, em que estão presentes estudiosos como Barry Ames e Simon Schwartzman, os trabalhos indicam o surgimento de uma relação de interdependência entre as três esferas de governo como consequência do processo de redemocratização dos anos 1980. Neste período, os grandes centros urbanos brasileiros já haviam passado por um significativo nível de mobilização social de contestação 1 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 ao Regime Militar e as organizações sociais, cujas origens eram recentes, na medida em que presenciavam o processo de redemocratização, canalizaram seus esforços de mobilização em prol da abertura novos canais participação social na administração pública e reivindicando a descentralização de políticas públicas do poder central para estados e municípios (Sader, 1988). A descentralização das políticas públicas propiciou a construção de relações de interdependência entre os governos e deu maior consistência à democracia como uma derivação das dinâmicas de distribuição do poder entre os mesmos. Isso se deu graças ao fortalecimento da posição governadores dos estados e dos prefeitos das capitais que conquistaram maiores espaços de manobra na relação com o Governo Federal. Além do tradicional papel de executores de políticas públicas com recursos da União, prefeitos e governadores passaram a ter peso político próprio em razão da importância dos estados e municípios que governam. Em outras palavras, no cenário político atual é importante para o Governo Federal que as políticas públicas alcancem seus objetivos, assim como é importante para prefeitos e governadores que tais iniciativas melhorem a qualidade de vida dos cidadãos beneficiários de seus governos. Estes resultados podem ser traduzidos em apoio político nas urnas nas eleições majoritárias que ocorrem a cada dois anos, alternando-se os pleitos para prefeitos e as corridas para presidência da república e para os governos estaduais. Desse modo, a chamada governabilidade passou a depender de um processo de negociação mais intenso, incluindo um leque maior de atores políticos. A democracia brasileira envolve um amplo conjunto de instituições, entre outras, os partidos políticos, os órgãos de representação empresarial e sindical, as corporações financeiras, a grande mídia e uma miríade de organizações e movimentos sociais. Os dois últimos grupos ganharam espaço privilegiado na nova ordem constitucional na medida em que as políticas públicas executadas localmente com recursos federais estão condicionadas à criação de conselhos de gestão e fiscalização com representação social. Os conselhos são um avanço para democracia participativa e dada a sua novidade estão ainda passando por um processo de amadurecimento institucional. Na busca de uma identidade clara estão em jogo várias questões entre elas: sua composição; seu caráter consultivo ou deliberativo; os mecanismos de articulação intersetorial e de aproximação de conselhos; composição e renovação de quadros; regime de remuneração ou voluntariado; relação com as Câmaras de Vereadores; participação do setor público e privado; aparelhamento partidário; representação regional, entre outras. É inegável que as mudanças consolidadas ou em processo de consolidação dos institutos políticos criados pela Constituição Federal de 1988 fortaleceram a posição dos municípios. Porém, é necessário reconhecer que são poucos os municípios que possuem capacidade de arrecadação própria para usufruir de uma verdadeira autonomia política e administrativa. Como diz Souza (1996) “As profundas desigualdades regionais do Brasil desnudam uma das principais limitações da descentralização, qual seja, a de reduzir o papel do governo federal de transferir recursos das regiões mais desenvolvidas para as menos desenvolvidas”. Vemos ai duas ordens de problema: as desigualdades regionais e o papel que a União atribuiu a si mesma como única instância de equalização econômica e social. As duas faces deste problema merecem ser abordadas e soluções devem ser buscadas para que não se permaneça no erro da chamada “indústria da pobreza” que por décadas se arrasta no país. A responsabilização gradativa dos cidadãos por sua própria economia e pelas políticas de seu interesse é a única via para torná-las auto-sustentadas. Este tipo de dilema socioeconômico não é novo nem se restringe ao Brasil. Ele está presente em várias nações emergentes. Sabe-se que para superar estas situações é necessária coragem política e espírito de serviço das autoridades nacionais. Elas são chamadas a deixar seu papel paternalista e centralizador de poder tomando a iniciativa de romper as relações de dependência de modo responsável e planejado. 2 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 Nesse contexto, as experiências de Orçamento Participativo (OP) despontam como uma estratégia de protagonismo social na definição dos investimentos de interesse público e de empoderamento da sociedade. Para tanto, a descentralização intramunicipal do debate até se chegar a construção de um consenso baseado no interesse geral é fator preponderante para se garantir que o conjunto dos interesses locais (econômicos, sociais, culturais, etc) estejam efetivamente representados. Discutir o OP do Recife enfatizando a importância da descentralização da discussão orçamentária como um instrumento de adensamento democrático é o que será feito nesse artigo. Orçamento Participativo: breve conceito e notas sobre a experiência no Brasil O que seria Orçamento Participativo? Quais são suas implicações para o adensamento da democracia? No que ele contribui para o processo de descentralização? Avritzer (2001, págs. 3 e 4) considera que “o OP é uma forma de rebalancear a articulação entre democracia representativa e participativa baseada em quatro elementos". Tais elementos seriam: 1) a divisão da soberania em relação ao processo decisório entre o governo e sociedade local; 2) a construção de instrumentos regionais e sub-regionais de participação e deliberação como assembleias e plenárias locais; 3) autorregulação soberana, onde as regras são definidas e repensadas a cada processo pelo conjunto dos atores envolvidos e 4)princípio redistributivo, nesse caso o OP opera numa linha de priorização de demandas dos setores mais carentes. De acordo com as características destacadas por Avritzer (2001) é possível afirmar que o Orçamento Participativo contribui de maneira contundente para o adensamento democrático por se constituir num espaço de participação e deliberação em que a sociedade local discute e constrói junto com o governo as prioridades de alocação dos recursos orçamentários municipais. Isso ocorre de maneira descentralizada, onde as diferenças geográficas, sociais e econômicas são incorporadas durante todo o processo que vai desembocar na proposta de orçamento final.Além disso, contribui para maximizar a eficiência da aplicação dos recursos públicos justamente por captar as carências mais urgentes das comunidades. Por isso, o OP nasce num contexto de democratização e se desenvolve em administrações municipais cujos gestores valorizavam o processo participativo como estratégia para captar as demandas mais urgentes da sociedade e melhorar o grau de accountability e eficiência de seus governos. É lugar comum quando se discute Orçamento Participativo (OP) articulado com as ideias de participação, democracia e descentralização no Brasil identificar Porto Alegre como o local em que nasceu a primeira experiência de Orçamento Participativo em municípios brasileiros ainda no final da década de 1980 com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo da cidade. Entretanto, como faz boa parte da literatura sobre o tema (JACOBI e TEIXEIRA, 1996; SOUZA, 2001; AVRITZER, 2002; FEDOZZI, 2009 e RENNÓ, 2012), é preciso considerar que as diferentes práticas de OP desenvolvidas desde a iniciativa pioneira da capital gaúcha tiveram como fonte de inspiração um conjunto de práticas de mobilização e participação social que as antecederam. Estaspor um lado buscavam contestar o Regime Militar e reivindicar o retorno da democracia e, por outro, pressionavam pela abertura de canais de participação social junto à estrutura de governo para assim interferir na discussão e definição da alocação dos recursos públicos. Desse modo, experiências pioneiras de participação social com ênfase no debate sobre a priorização das ações de governo, ainda nas décadas de 1970 e 1980, como as que ocorreram em: Lages (Santa Catarina), Piracicaba e Diadema (SP) Boa Esperança e Vila Velha (Espírito Santo) e Icapuí (CE), dentre outras, influenciaramno desenho das iniciativas OP que passaram a ocorrer ambiente 3 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 democrático, assim como toda a discussão sobre descentralização que se consubstanciou na ampliação de atribuições de municípios e estados com a Constituição de 1988. A experiência de Recife (PE) Contextualização socioeconômica Capital do estado de Pernambuco, acidade do Recife é um dos principais centrosde atividade econômica e intelectual do país e da região nordeste brasileira.Com uma população de cerca de 1.5milhõesde habitantes, integra junto com outros 13 municípios a Região Metropolitana do Recife cuja população é formada por cerca 3,7 milhões de moradores (IBGE, 2010). Muitas vezes descritacomo a Venezabrasileira, devido a muitos canaise rios que cortamacidade, tal comparaçãodeixa de existir quando se observa que nas planíciesbaixasde inundaçãoe em margens de riosforam os únicoslocaisque a população mais pobre encontrou para construir suas moradias, na maioria das vezesde forma extremamente precária empalafitase plataformasinstáveis, sem quaisquer serviços de energia elétrica, água ou esgoto e com alto risco de desmoronamento. A desigualdade renda, de acesso a direitos e a serviços públicos se manifesta de diversas formas. Dados publicados pelo Observatório do Recife1 tendo como base o Censo 2010 do IBGE revelam Em 13,03% dos domicílios vivem pessoas com per-capita menor ou igual a ¼ do salário mínimo, o que se considera da linha da miséria. Em 39,77% dos domicílios encontram-se famílias com renda per-capita igual ou inferior a um salário mínimo. Ou seja, Em mais de 52% dos domicílios na capital pernambucana a renda per-capita é igual ou inferior a ½ Salário mínimo. Dos trabalhadores com registro carteira 56,07% ganham até dois salários mínimos e apenas 3,05% ganham acima de 15. Em 38,60% dos domicílios não há ligação com a rede formal de coleta de esgoto. A moralidade infantil entre crianças nascidas vivas com até um ano de idade está na relação 12,94 por mil e o analfabetismo absoluto atinge 7,19% dos moradores. Recifetem umafortehistóriade mobilização social e, devido à sua tradição intelectual, foi tambémum local de onde surgiram pensadores progressistas, como o educador PauloFreire. Hoje,movimentos sociais ativoseONGs têmestimuladoimportantes avançosem termos de planejamento urbano por intermédio de mobilização e pressão junto aos governos, visando responder, sobretudo, os desafios revelados pelos indicadores socioeconômicos que aqui foram destacados. E nesse contexto em que a sociedade, por meio de diferentes formas de mobilização social, acumulou um histórico de reivindicação que foi primordial para o desenvolvimento da experiência de orçamento participativo. OP do Recife: antecedentes e experiência Antecedentes – de 1940 a 2000 Uma das principais características da história recente do Recife é o forte engajamento da sociedade civil. Desde 1940 já se registrava a existência de grupos que se organizaram para a criação dos Comitês populares democráticos com objetivo de discutir políticas públicas e qualidade de vida para os seus bairros. Esse foi um contexto de apropriação da realidade local e de pensar alternativas de solução problemas, para assim pressionar o governo por meio de audiências públicas que já começavam a existir como prática na relação governo e sociedade. 1 Ver www.observatoriodorecife.org.br/cartilha2011/i0402.html Acesso em 25/07/2012. 4 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 O desenvolvimento dessa forma de participação com características descentralizada vai perdurar até final dos anos 1960 com a eclosão do Regime Militar. Nesse período é criada a Federação das Associações de Bairro do estado de Pernambuco que acabou por congregar as diferentes organizações locais num tipo de ação mais articulada. Em tal período, tais organizações também se tornam um espaço de resistência ao autoritarismo e de reivindicação de democracia. A figura 1, em anexo, mostra na linha do tempo como o processo de participação foi se desenvolvendo no Recife. O período entre 1960 e 1980 representou um momento de estagnação no processo de construção de espaços de participação no Recife. O ambiente autoritário propiciado pelo período militar explica essa questão. Além disso, a crítica ao regime e a luta pela redemocratização ocupava espaço central na agenda das ONGs e movimentos sociais. Entretanto, ainda com o regime militar em vigência, durante a gestão do prefeito Gustavo Krause (1978-1982) foram criados os Núcleos de Planejamento Comunitário (NPC), também conhecidos como “barracões”. Eram equipamentos públicos de caráter assistencial que prestavam serviços básicos como: regularização e emissão de documentos, balcão de empregos e assistência odontológica. Com isso, a prefeitura tinha um instrumento que permitia conhecer a realidade da comunidade, apesar de não se registrar, ainda a participação da comunidade como sujeitos políticos. A prefeitura estimulava a criação de organizações e viabilizava infraestrutura (como sede) para as mesmas. No relato de trabalhos que exploraram esse período, essa era uma estratégia de cooptação e controle das comunidades, o que não ocorria sem conflitos e disputas. Durante o governo Krause o número de associações comunitárias saltou de 17 para 57.Tal situação pouco se alterou durante o governo que sucedeu cujo prefeito (Joaquim Cavalcanti) ainda foi indicado pelos apoiadores. Todavia, já em ambiente democrático com retorno das eleições o período do prefeito Jarbas Vasconcelos (1985-1988) vai representar um adensamento no estímulo ao processo participativo que vau partir do próprio governo. Eleito sob a bandeira da descentralização e da democratização, a prefeitura implantou o Projeto Prefeitura nos Bairros (PPB) cujo objetivo foi à participação da comunidade na eleição de prioridades do governo. Como resultado da pressão popular é criado o Fórum do programa de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (PREZEIS). Com o segundo governo Governo Jarbas Vasconcelos (19931996), foi criado a partir de 1995 um Orçamento Participativo com a denominação de Programa Prefeitura nos Bairros (PPB/OP), inspirado na experiência de Porto Alegre. A experiência era só de indicação das demandas, não contemplando o controle social da execução das obras e ações aprovadas. Foi instituído o Fórum da Cidade do Recife, espaço de consulta sobre a LDO e Plano Plurianual, onde os delegados do OP tinham assento. Durante a Gestão Roberto Magalhães(1997-2000) PFL)essa versão do OP pouco avançou. A relação entre o governo e as organizações da sociedade foi marcada por tensão com o fato de as demandas sociais não estarem sendo contempladas e inclusive não se considerando as ações encaminhadas pelo PREZEIS. O novo OP Com as eleições de 2000, o candidato do partido dos trabalhadores, João Paulo Silva, colocou em seu programa de governo a implantação do Orçamento Participativo como um aspecto central de sua plataforma de governo para que se pudesse chegar a uma concepção de gestão democrática na prática. 5 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 Vitorioso nas eleições, o novo governo municipal fez a opção de introduzir o "OP" por meio de decreto do prefeito ao invés de fazer tramitar uma proposta de legislação. Assim, o sucesso do OP dependeria fundamentalmente do nível do engajameto da sociedade em torno dessa experiênciaEm termos formais, foi instituído o Conselho Municipal para a Gestão Democrática do Orçamento Público que ganhou poderes para tratar do orçamento como um todo, incluindo a política fiscal, bem como acompanhar a execução do orçamento e fiscalizar o investimento que foi amplamente discutido pela sociedade. Além disso, tal Conselho também teve a atribuição de avaliar todas as obras públicas que haviam sido contratadas e exigir que os secretários municipais entregassemos documentos necessários para o bom andamento dos trabalhos. Foram criados foruns de discussões temáticos voltados para discutir investimento público em áreas específicas: mulheres, LGBT, juventude,afrodescendentes, cultura, desenvolvimento econômico e turismo; e direitos humanos. No âmbito geográfico, o município foi dividido em seis regiões de acordo com o Mapa 1 em anexo nesse texto, e dezoito microrregiões, o que perfaz três microrregiões em cada região. Tal divisão foi fundamental para garantir o processo ascendente da definição de prioridades. Primeiro se discute no âmbito das microrregiões, depois nas regiões e posteriormente no âmbito da cidade levando em consideração os interesses nos diferentes distritos e o que isso significa enquanto impacto para o conjunto da cidade. Com a definição de como as discussões ocorreriam no âmbito do território do município, é importante conhecer o método que orienta todo o processo de desenvolvimento do OP no Recife. No quadro 1, em anexo, serão apresentadas as instâncias de participativas e de controle e acompanhamento no interior do OP durante todo o seu processo, o meio de participação existente internamente a cada uma das instancias, o que se faz e quem compõe. O OP do Recife foi pensado para incorporar o conjunto dos envolvidos em todo o seu processo, da apresentação, passando pelas discussões microrregionais e regionais, pelo debate nos fóruns, até a formação de comissões de fiscalização de obras no âmbito microrregional e de acompanhamento da execução de programas temáticos. Ou seja, o OP não se esgota na indicação de obras, mas investe também na construção de espaços onde o controle social alcança o projeto de licitação, contratação e entrega do empreendimento. Deste modo, é importante destacar o papel da Comissão de fiscalização de obras e programas. As Comissões de fiscalização de obras e programas As comissões de fiscalização e acompanhamento de obras e programas são formadas por no mínimo três e no máximo sete pessoas para tratar da fiscalização e acompanhamento da contratação e execução das obras, definidas no Plano de Investimento de cada região. Ela pode ser criada para fiscalizar uma obra específica ou várias ações dentro de uma mesma região. No âmbito de suas atividades, o funcionamento dessas comissões tem promovido um debate muito salutar entre os técnicos e os beneficiários das obras, assim como, também, tem colocado a relação das construtoras com a prefeitura e as comunidades numa nova perspectiva orientada por relações horizontais. No âmbito dos técnicos da prefeitura o depoimento de um engenheiro da Empresa Municipal de Urbanização (URB) é bastante revelador. Segundo ele antes não se levava em consideração a opinião da população beneficiária simplesmente pelo fato de os engenheiros considerarem que “tinham conhecimento técnico e, por isso, sabiam o que é melhor para a comunidade”. A opinião do cidadão era vista como invasão a sua área de conhecimento. 6 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 A relação entre os engenheiros e técnicos da prefeitura com a comunidade se inicia no momento da apresentação do projeto. Segundo o engenheiro entrevistado esse diálogo propicia evitar muitos problemas que normalmente ocorriam numa obra quando pensada apenas tecnicamente: dificuldade na acessibilidade, não articulação com outros setores como saneamento e água. Membros de uma comissão de fiscalização que representam os moradores relatam que a própria comunidade chama a atenção para que numa obra de pavimentação sejam avaliadas as condições de acesso das pessoas a suas residências, sobretudo os deficientes físicos, bem como destacam a necessidade de uma ação articulada com o setor de água e esgoto para garantir a totalidade do serviço. Antes quando acabava a pavimentação de uma rua era comum ela novamente ser quebrada para a instalação de equipamentos de saneamento e abastecimento de água. A visão de que O trabalho com a comunidade (comissão) permite responsabilizar imediatamente a construtora com relação a danos demoraria de ser percebido. O trabalho da comunidade (comissão) garante a utilização do material previsto em contrato, antes não era incomum a utilização de material de qualidade inferioraquele que foi previsto no momento da contratação. A prefeitura possui um membro fixo da URB em cada obra que faz o acompanhamento da mesma junto a comunidade e que responsabiliza a construtora imediatamente quando necessário. A contração de uma obra e a relação com a comunidade segue o seguinte caminho: 1. Projeto é detalhado pela equipe técnica municipal; 2. A concorrência é aberta para os construtores e supervisionada pela Comissão de Fiscalização do OP; 3. Análise de todas as queixas sobre a concorrência e os contratos pela prefeitura e comissão do OP; 4. Os contratos são elaborados e assinados; 5. Encontro com a comunidade para explicar os detalhes do projeto; eleger a comissão de supervisão, fiscalização e monitoramento; garantir a contratação de mão de obra local através de um processo aberto, com o empreiteiro escolhido; 6. Assinatura formal do contrato de serviço após a eleição da comissão local; 7. Obras de construção começam com reuniões semanais entre o empreiteiro, a comissão e aprefeitura; 8. Inspeção, conclusão e cerimonia de entrega da obra envolvendo comunidade, prefeitura e construtora. Com relação aoimpacto na relação e postura das construtoras em cada obra do OP durante as reuniões com a Comissão, a construtora se faz representar por um engenheiro ou técnico e por uma assistente social. O papel do engenheiro é esclarecer acerca do andamento da obra e de eventuais fatos não previstos, alémde corrigir situações apresentadas pelos moradores. A assistente social tem a função de atender os moradores em situações resultantes do andamento da obra (reparação de dano a alguma casa, desapropriação temporária em razão da obra e outras situações não prevista que requeiram algum tipo de ação da construtora no próprio local). Durante a visita a uma obra de Pavimentação, contenção e drenagem de 1,5 km de uma rua o Bairro Jordão, (comunidade extremamente carente do Recife), que envolveu a desapropriação de diversas casas, foi possível acompanhar uma reunião da Comissão local em que se fizeram presentes dois engenheiros e uma assistente social da URB, uma assistente social e um técnico da construtora e treze 7 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 componentes da Comissão, em talreuniãofoi possível presenciar momentos tensos que trouxeram a tona as seguintes questões: 1. Os moradores chamaram a atenção que a obra não estava respeitando os padrões de acessibilidade e que em muitos casos as casas iriam ficar muito abaixo do nível da rua o que seria um risco muito grande para o acesso de deficientes e para o período chuva (a área é uma região de morro), além disso, alertaram para o problema da localização de fossas e de que as mesmas poderiam sofrer danos; 2. Os moradores criticaram de maneira veemente a pouca atenção dada pelo técnico da prefeitura responsável pelo andamento da obra e que ele se portava como dono da verdade ao ignorar as preocupações dos moradores. A assistente social disse que já havia solicitado a substituição do técnico da prefeitura junto a URB; 3. Os moradores questionaram a construtora sobre os transtornos resultantes de pedras e terras não removidas das portas de suas residências, o que resultou em danos a algumas residenciais por ocasião de fortes chuvas. Ficou acertado que a construtora iniciaria imediatamente a reparação desses danos; 4. Tratou-se da substituição de parte da mão-de-obra local por pessoas de fora. A construtora alegou problemas de ordem profissional e que o pessoal substituído havia acumulado várias faltas ao trabalho e tinham baixa produtividade. A comissão ponderou, mas acabou aceitando a justificativa da construtora. 5. Ao final foi analisado o cronograma da obra no que se refere ao prazo de entrega da mesma e os custos envolvidos. Até aquele momento tudo estava dentro do previsto. Segundo uma enfermeira do posto de saúde local e membro da Comissão de Acompanhamento e Fiscalização da obra, o papel da Comissão tem sido fundamental paragarantir o respeito a condições dignas dos moradores e tem sido também pedagógico na medida em que os moradores percebem que as melhorias em suas vidas dependem fundamentalmente da mobilização da população. Delegada do OP, a enfermeira relata que por mais de 20 anos se esperou por essa intervenção pública e que em período eleitoral candidatos a prefeitos e vereadores sempre passavam por lá dizendo que resolveria tal problema, mas que o mesmo só foi efetivamente resolvido com a reivindicação feita junto às plenárias do OP. Também foi visitada uma obra concluída: a pavimentação e drenagem deoutra rua na comunidade do Jordão. Um morador e membro da Comissão fez o relato que a obra era um velho sonho e que tinha sido objeto de promessas de campanha de muitos candidatos a prefeito e vereador e que durante muito tempo a comunidade não se mobilizou esperando por ela. Afirma ainda que no OP do governo Jarbas as lideranças Comunitárias não discutiam abertamente as prioridades com a população. Na nova versão do OP ficou claro que a mobilização seria fundamental e foi o que eles fizeram e depois iniciaram a campanha para que a obra fosse considerada prioritária na eleição de prioridades locais. Sobre o trabalho da Comissão ele afirma ter sido fundamental na medida em que muitas coisas não previstas no projeto foram corrigidas no diálogo com a prefeitura e a construtora. Dentre elas: a canalização de um córrego e a acessibilidade (também uma rua localiza em morro). Segundo os representantes da Construtoraa existência da Comissão de Fiscalização obrigou que a empresa criasse um departamento de assistência social cuja finalidade é organizar e conduzir a relação com as comunidades no que se refere exclusivamente com obras do OP. Ressalta-seque isso é uma exigência do OP e que rodas as construtoras seguiram o mesmo caminho. 8 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 Considerações finais Verificou-se neste texto que a implantação da experiência de Orçamento Participativo ocorreu a partir de um processo de mobilização que primeiro se organizou para pedir resposta da prefeitura a problemas existentes nas comunidades, sem envolvê-las diretamente como protagonistas não apenas na reivindicação, mas também na construção e no acompanhamento das medidas que viram a ser tomadas para solucionar os problemas apresentados. As comunidades eram tratadas de maneira passiva e não como sujeitos políticos. Ou seja, a descentralização ocorria apenas como forma de escuta da reivindicação e não como instrumento de discussão local dos problemas que levassem a pensa-los enquanto conjunto. O surgimento do chamado novo OP em 2000 possibilitou um processo organizado de descentralização que fez com que a comunidade pensasse seus problemas localmente e discutisse não apenas no sentido de hierarquiza-lo, mas também para compreender o significado da demanda para a comunidade e no contexto da cidade. É importante destacar que o desenho do OP da capital pernambucana abre espaço para o cidadão não organizado em ONGs ou associações e este tem voz para defender suas preocupações. No modelo anterior (o PPB), a conversa era com as ONGs e associações. Quem não se fizesse representado teria dificuldade para participar do processo. A divisão do município em microrregiões, regiões e a discussão nos fóruns permite uma boa articulação entre interesse local e interesse da cidade. Ou seja, é um processo de construção ascendente onde a negociação publica é o instrumento para se chegar a um consenso político. Destaca-se o papel importante as Comissões de fiscalização de obras e programas enquanto instrumento de controle social e de empoderamento da sociedade em âmbito microrregional. Por intermédio delas é possível não apenas garantir um maior grau de fiscalização sobre as obras do OP na medida em que reúnem representantes dos beneficiados pelo empreendimento, da prefeitura e da construtora em torno da fiscalização, como também questiona o mero saber técnico como instrumento absoluto e ao questionar tal saber valoriza o conhecimento local e indaga as tradicionais relações de poder mantidas pelo status do cargo e pelo saber técnico. As experiências de OP enquanto espaços democráticos podem ser explicadas pelo que chamamos no início desse texto de terceiro conjunto de autores que ao analisar a relação entre os entes federativos e o processo de autonomia, descentralização e participação, identificaram que o significativo nível de mobilização social para a contestação ao Regime Militar nos anos 1970 e 1980 que foi empenhado pelas diferentes formas de contestação pública, por meio de ONGs, Associações, partidos e movimentos sociais, acabou, com a redemocratização, canalizando seus esforços de mobilização em prol da abertura novos canais participação social na administração pública e reivindicando a descentralização de políticas públicas do poder central para estados e municípios e destes uma maior articulação com a sociedade local. Nesse contexto o OP acaba sendo decorrência desse processo onde a relação entre estado, sociedade e setor privado assume uma característica mais horizontal onde a negociação emerge com a principal estratégia de formulação de consensos. Por fim, o OP do Recife não é apenas uma forma de adensamento democrático e de ação descentralizada voltada para a definição das prioridades de ação do governo à partir da percepção local. Com as comissões de fiscalização passou a ser também uma forma descentralizada de a própria comunidade acompanhar a realização da obra por ela demandada em aspectos como qualidade e adequação ao padrão de qualidade de vida dos cidadãos e de promoção da accountability na medida em que o monitoramento do processo permite responsabilização imediata do poder público ou da construtora caso se identifique algum tipo de irregularidade. Uma pesquisa que verificasse como comissões dessa natureza estão atuando em outras experiências de OP será uma boa contribuição ao 9 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 conjunto de estudos sobre Orçamento Participativo que começaram a se desenvolver com o sucesso da experiência de Porto Alegre. Bibliografia AVRITZER, Leonardo (org.) (2002). A inovação democrática no Brasil. São Paulo: editora Cortez, 2003. FEDOZZI, Luciano (2009). Orçamento Participativo de Porto Alegre Gênese, avanços a limites de uma idéia que se globaliza. Revista Cidades- Comunidades e Territórios. Jun. 2009, n.0 18, pp. 41-57. Disponível em http://repositorio-iul.iscte.pt/bitstream/10071/3328/1/Cidades200918_Fedozzi.pdf acesso em 25.07.2012. IBGE. Censo, 2010. JACOBI, Pedro; TEIXEIRA, Marco Antonio. (1996). "Orçamento participativo: co-responsabilidade na gestão das cidades". São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.10, n.13, 1996, p.119-128. PIRES, Dayana de Oliveira; PIMENTEL, Lucas Jacometti .(2009). Relatório de pesquisa “Orçamento Partcipativo”. Projeto Conexão Local, FGV-EAESP. Disponível em http://gvpesquisa.fgv.br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/orcamento_participativo.pdf. Acesso em 25/07/2012 RENNÓ, Lúcio and Souza, Aílton. (2012) A metamorfose do orçamento participativo: mudança de governo e seus efeitos em Porto Alegre. Rev. Sociol. Polit.,Fev, vol.20, no.41. SILVA, Evanildo Barbosa da (2003). Das tensões às intenções: gestão do planejamento urbano, OP e participaçãopopular no Recife (1997 a 2002). UFPE,Programa de pós-graduação em desenvolvimento urbano e regional. Recife, 2003. SILVA, Evanildo Barbosa da; TEIXEIRA, Ana Cláudia Chaves (2007). A experiência do OrçamentoParticipativo do Recife. In: Olhar crítico sobre participação e cidadania: a construção de umagovernança democrática e participativa a partir do local. Coleção Olhar crítico v. 1. SP, 2007. SOUZA, Celina (2001). Construção e consolidação de instituições democráticas: papel do orçamento participativo. São Paulo Perspec., Dez 2001, vol.15, no.4, p.84-97. Resenha Biográfica Marco Antonio Carvalho Teixeira é sociólogo com mestrado em Ciências Sociais (1999) e doutorado em Ciências Sociais (2004) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É professor e pesquisador do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, onde leciona nos cursos de graduação em Administração Pública e Administração de Empresas, bem como no Mestrado e Doutorado em Administração Pública e Governo e, também, no Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas. Desenvolve pesquisas relacionadas aos seguintes temas: accountability e controle da administração pública com foco no papel dos órgãos de controle e no controle social, desenvolvimento local, arranjos cooperativos subnacionais, política brasileira e comportamento eleitoral. 10 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 Figura 1. Síntese histórica da participação popular no Recife Fonte: Transcrito do Relatório “Orçamento Participativo”, p. 7. Disponível em http://gvpesquisa.fgv.br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/orcamento_participativo.pdf acesso em 25.07.2012. Mapa 1. Divisão territorial do processo de discussão no OP em Recife Fonte:transcrito do Relatório “Orçamento Participativo”, p.5. Disponível em http://gvpesquisa.fgv.br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/orcamento_participativo.pdf acesso em 25.07.2012. 11 XVII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Cartagena, Colombia, 30 oct. - 2 Nov. 2012 Quadro 1. Método e processo de participação no OP do Recife Fonte: Transcrito do relatório “Orçamento Participativo”. Disponível em http://gvpesquisa.fgv.br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/orcamento_participativo_pdf .acesso em 25/07/2012. 12