DO ACORDO DE COOPERAÇÂO CAMBIAL (ACC) À ZONA EURO E À PARCERIA PRIVILEGIADA COM A UNIÃO EUROPEIA (UE) Palestra de Paulo S. Monteiro Jr. Trigésimo aniversário do Banco de Cabo Verde Praia,20 de Julho de 2005 1. Introdução Minhas Senhoras e meus Senhores, É uma grande honra e um prazer para mim ser convidado pelo Banco de Cabo Verde (BCV) para proferir uma palestra na comemoração desta data histórica do trigésimo aniversário da Independência de Cabo Verde e do BCV. Nesta minha intervenção, tratarei de um assunto com uma importância estratégica para Cabo Verde: O aprofundamento do ACC e o estabelecimento de uma Parceria Privilegiada com a UE. Em 1995 as Autoridades Cabo-verdianas solicitaram ao Banco de Portugal a elaboração em conjunto de um estudo sobre a possibilidade de uma ligação do escudo cabo-verdiano (ECV) ao escudo português. Este interesse dos decisores políticos cabo-verdianos na análise de um eventual peg do ECV ao escudo português surgiu numas circunstâncias em que o estado da economia do país se caracterizava por desequilíbrios macroeconómicos preocupantes. O défice da balança de transacções correntes de Cabo Verde aproximava dos 15% do produto interno bruto (PIB) nos anos 1994 – 95, uma situação obviamente insustentável, ainda mais para um país com um alto rácio da dívida em relação ao PIB. No biénio precedente à assinatura do ACC, o défice da balança de transacções correntes atingia o valor de 8.7% do PIB e o saldo das contas públicas atingia um valor ligeiramente acima dos –12% do PIB. 1 O défice das contas externas de Cabo Verde é a contrapartida do valor historicamente muito baixo das exportações líquidas conjugada com défices orçamentais elevados. O interesse das Autoridades cabo-verdianas no estudo dum peg do ECV ao escudo português aparece assim num contexto de interrogação da política cambial vigente no país à luz de desequilíbrios macroeconómicos insustentáveis e sobretudo da diminuição preocupante dos Activos Externos Líquidos do País. De notar que a existência do regime de controles cambiais proporcionava um isolamento da economia cabo-verdiana da economia global. A existência dos controles cambiais determina a inconvertibilidade da moeda. 2. O Acordo de Cooperação Cambial (ACC) O ACC foi assinado em Março de 1998. O seu artigo primeiro diz que a moeda nacional da Parte cabo-verdiana passa a estar ligada à moeda nacional da Parte portuguesa por uma relação de paridade fixa. Associado ao ACC está uma facilidade de crédito para reforço das reservas cambiais de Cabo Verde no montante de 5.5 mil milhões de escudos portugueses. Este montante poderá ser elevado para 9 mil milhões de escudos portugueses (cerca de 44 891 810 Euros)1. A Parte cabo-verdiana adopta os critérios do Tratado de Maastricht, comprometendo-se, por conseguinte, a implementar medidas de política económica compatíveis com a salvaguarda da paridade cambial entre as moedas nacionais das duas Partes e com a criação de condições propiciadoras a uma gestão rigorosa da facilidade de crédito. Um mecanismo de surveillance (COMACC), composto por representantes dos Governos de ambas as Partes, assegura a definição das condições necessárias ao cumprimento das obrigações estipuladas no ACC bem como à sua gestão. 1 Assumindo o valor de referência de 3% do rácio entre o défice e o PIB português estabelecido pelo Tratado de Maastricht, o valor total da linha de crédito equivale,em 1998, a 0.01 do défice estabelecido no Tratado. 2 O artigo 6º do Protocolo relativo à facilidade de crédito diz que o ACC é ajustado em conformidade com as disposições legais aplicáveis que viessem a ser estabelecidas para a substituição do escudo português pelo Euro. 2 A experiência dos últimos sete anos pode ser considerada globalmente positiva. Em primeiro lugar, o aumento da transparência do peg fixo a uma moeda e a redução na volatilidade da inflação em comparação com o pré-ACC. Segundo, a paridade fixa ao Euro, constitui uma âncora melhor para as expectativas de inflação. The last but not the least, a paridade fixa ao euro constitui um passo na boa direcção. Deve-se todavia sublinhar que a derrapagem das contas públicas em 2000, revela que o mecanismo de surveillance foi parcialmente eficaz na orientação do comportamento e no respeito pelo Governo de Cabo Verde da restricção orçamental inter-temporal. Como consequência, as Autoridades portuguesas, com base no artigo 5º do Protocolo relativo à facilidade de crédito, suspenderam a linha de crédito. A suspensão foi devido a falta de reembolso, como previsto, de três saques efectuados no valor total de cerca de 15 milhões de Euros. Tal incumprimento foi essencialmente determinado pela forte deterioração das contas públicas cabo-verdianas, resultante de política orçamental que se traduziu no aumento substancial da despesa corrente, nomeadamente os subsídios aos preços dos combustíveis e às bolsas para estudos superiores no estrangeiro. Para reestabelecer a estabilidade macroeconómica o Governo de Cabo Verde teve de negociar um programa de ajustamento com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Este programa chamado Poverty Reduction and Growth Facility (PRGF) jogou um papel decisivo na contenção do nível dos défices gémeos orçamental e da balança corrente. O défice orçamental caiu do equivalente a 9.3% do PIB em 2000 para 5.2% em 2001 e aproximando de 1.4% em 2004. Quanto ao saldo da conta corrente passou de -11.3% do PIB em 2000 para -6.0% em 2004. 2 Em 1999, com a entrada do Euro, a paridade fixa passou a ser definida em termos do Euro. A partir de 2002, com a entrada em circulação do Euro, a fixação da paridade fixa foi de 1Euro = 110.265 ECV. 3 O referido programa determinou necessariamente um abrandamento da actividade económica, tendo o crescimento económico, em termos reais, sido de 5.5% em 2002 e de 4.5% em 2004. Deve-se, todavia, ter em consideração que é necessário pôr essa redução dos défices gémeos de Cabo Verde num contexto adequado. Focalizar apenas no valor do ano de 2004 dos défices orçamental e corrente não nos dá muita informação. Assim, a questão da credibilidade do regime cambial de paridade fixa que se revela através, inter alia – de taxas de inflação, de juro e de “ bond spreads” mais baixas bem como pelos défices orçamental e corrente razoáveis e sustentáveis – continua fortemente condicionada pela situação dos Activos Externos Líquidos do Banco de Cabo Verde. 3 Para melhorar a situação dos Activos externos líquidos Cabo Verde tem de aumentar as suas exportações líquidas de bens e serviços. 4 3. O Aprofundamento do ACC : A two handed approach Com base na experiência dos primeiros sete anos do ACC, na teoria de integração (e.g.teoria moderna da Zona Monetária Óptima) e no argumento téorico da “ Corner solution”, recomendo, nesta minha reflexão, o aprofundamento do ACC segundo “a two handed approach” de forma a desatar o nó que tem criado contradições entre estabilidade macroecónomica e desenvolvimento económico. O “two handed approach” consiste na multilaterização do ACC na Zona Euro e numa melhor integração com a União Europeia através de um Acordo de Associação. 3.1 A multilaterização do ACC na Zona Euro O primeiro passo deve ser dado partindo da decisão do Conselho Europeu de 1998 de reconhecer o ACC. 3 Os Activos externos líquidos nos últimos seis anos foram equivalentes a cerca de dois meses de importação. Em 2004, atingem 2.3 meses de importação. 4 A estrutura económica de Cabo Verde ( e.g. a importância dos bens e serviços transacionáveis internacionalmente) faz com que a taxa de cobertura das importações pelas exportações não ultrapassa os 4% em 2004 (3.6% em 2003). 4 A negociação da multilaterização do ACC na Zona Euro é uma negociação extremamente complexa, em que o sucesso dependerá da nossa situação económica e institucional e da nossa capacidade de compreender e de actuar sobre o quadro negocial. No plano institucional teve lugar uma mudança importante em 2002 respeitante à envolvente institucional na qual o Banco de Cabo Verde está a operar. A possibilidade de financiamento directo do défice orçamental pelo BCV foi eliminada. Saúdo esta mudança. Isto está conforme com as disposições do Tratado de Maastricht. Parecer-me-ia impossível para Cabo Verde aprofundar o ACC sem esta mudança na lei que governa as operações do BCV. Como sabemos, no longo prazo a inflação é um fenómeno monetário: não pode acontecer sem (pelo menos) uma expansão acomodatícia da oferta monetária e, sabemos da experiência histórica que, na maior parte das vezes, a fonte principal de qualquer aumento inflacionista na oferta monetária tem sido o financiamento directo do Governo pelo Banco Central. Ora, uma vez instalada a inflação, as taxas de juro sobem. A multilaterização do ACC na Zona do Euro far-se-á nas duas dimensões seguintes: - a que está relacionada com o mecanismo de surveillance; - a que concerne à facilidade de crédito. Mecanismo de surveillance: Os critérios de enquadramento macroecómico – o valor de 3% de referência do rácio entre o défice e o PIB e de 60% para o rácio entre a dívida e o PIB – provaram o seu valor e continuariam a estar no centro de uma “surveillance” multilateral: a comissão multilateral de surveillance. Esta Comissão de surveillance da Zona Euro tem como funções: - assegurar a gestão e o funcionamento da facilidade de crédito; - monitorizar a compatibilidade das políticas macroeconómicas com o engajamento da convertibilidade plena do ECV e assegurar que políticas de rigor macroeconómico sejam praticadas. Haverá também um conselho consultivo constituído por representantes da Parte cabo-verdiana e por representantes do Banco Central Europeu (BCE), da Comissão Europeia (CE) e do FMI. Caberá ao Conselho Consultivo conduzir a surveillance numa base permanente, visando detectar a emergência de desequilíbrios externos e lançar acções de 5 correcção apropriadas. Basear-se-á nos ajustamentos necessários através das cláusulas relacionadas com a condicionalidade previstas numa facilidade de convertibilidade de “stand by” (como veremos mais à frente). Facilidade de crédito: A facilidade de crédito, concedida pela Comunidade Europeia terá como finalidade o reforço das reservas cambiais da República de Cabo Verde. Sugere-se que, Cabo Verde coloque uma parte das suas reservas externas para serem utilizadas como “colateral”. À semelhança da Zona da União Económica e Monetária Oeste Africana (UEMOA) o “benchmark”seria de pelo menos 65%. A facilidade de crédito consiste em três parcelas : 1. uma facilidade de financiamento de muito curto prazo de valor ilimitado por um período de 45 dias, renovável uma vez ; 2. um apoio monetário de curto prazo, ilimitado, por um período de 180 dias, renovável uma vez, sujeito à condicionalidade da comissão de “surveillance”da Zona Euro ; 3. uma assistência financeira de médio prazo sujeito à condicionalidade da comissão de “surveillance” da Zona Euro. O sistema de facilidade de “ stand by “ destina-se a financiar no muito curto prazo as necessidades da balança de pagamentos, assegurando assim a credibilidade da convertibilidade. Sendo créditos de “stand by” com duração limitada, têm de ser reembolsados numa data fixada de comum acordo. Apesar da sua natureza multilateral, este mecanismo deverá funcionar de maneira mais flexível que o previsto no protocolo relativo à facilidade de crédito do ACC entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde. No que diz respeito ao regime cambial, a sua natureza manter-se-ia como está mas o “peg” tornar-se-ia bilateral (i.e., intervenções do BCV e do SEBC). Alguma correcção da paridade inicial poderia parecer inevitável face ao diferencial de inflação e sobretudo ao “crowding in” da produção de bens e serviços transaccionáveis internacionalmente (produção virada para a exportação). 6 A acumulação de reservas externas daí resultante contribuíra para a melhoria da credibilidade e da reputação da política monetária, facilitanto assim a remoção das barreiras aos fluxos de capitais e a criação de um mercado financeiro no país. A fim de defender o “peg” fixo, as intervenções necessárias utilizarão as reservas depositadas no Banco Central Europeu (BCE) e a facilidade de convertibilidade de “stand by”. Este sistema de facilidade é essencial para a consolidação da confiança no ECV e para a sua convertibilidade em “hard currencies”. De realçar que o aumento da credibilidade é uma maneira de encorajar os afluxos de capitais privados. É, por conseguinte, possível que a facilidade de convertibilidade de “stand by” possa mesmo não ser utilizada. O simples facto de existir pode ser suficiente para a melhoria da estabilidade interna. 2.2 A Parceria Privilegiada com a UE A multilaterização do ACC na Zona Euro deve ir em tandem (hand in hand ) com um choque permanente do lado da oferta (desenvolvimentos de productividade) e com o aumento de produção de bens e serviços transaccionáveis internacionalmente a fim de colocar Cabo Verde em melhores condições para corrigir os desequilíbrios estruturais e fazer face aos choques externos. Doutro modo, os ganhos serão, na melhor das hipóteses, temporários e poderão fazer priorar os problemas estruturais. Daí a necessidade de um “two handed approach”. Alguns factos económicos mostram que o centro económico pertinente ou “âncora” para a economia cabo-verdiana é a Zona Euro. Assim, em 2004, mais de 4 / 5 das exportações de bens de Cabo Verde são destinadas à Zona Euro e, pelo menos 3/4 das importações são provenientes da Zona Euro; pelo menos 2/3 das remessas dos emigrantes em divisas têm origem na Zona Euro e as transferências públicas provêm maioritariamente desta Zona. Cerca de 4/5 das receitas do turismo (sector económico importatante) têm origem nos países da Zona Euro. Por último, o investimento directo estrangeiro (IDE) é quase totalmente proveniente da União Europeia. As trocas comerciais com a Zona Euro ultrapassam mesmo o que o “Gravity model standard” do comércio poderia prever. 7 Estes factos e a teoria moderna da Zona Monetaria Óptima (Modern theory of optimum currency area) fundamentam o estabelecimento de uma Parceria Privilegiada (PP) com a União Europeia. Se, estrategicamente sempre asseguramos uma relação com a UE através dos Acordos de Lomé e Cotonou, o estabelecimento de uma PP deverá ser feito através de um Acordo de Associação. Cabo Verde deve investir o seu escasso capital político e a sua posição geográfica na negociação do Acordo de Associação (AA), na linha dos Acordos de Associação existentes entre a UE e os países do Maghreb (e.g., os AA assinados com Marrocos e Tunísia). Trata-se de uma negociação extremamente complexa e coloca o país perante a questão de redefinir uma estratégia de relacionamento com a UE. O Acordo de Associação deverá ter em consideração os seguintes eixos centrais: - As iniciativas estratégicas da Comissão da UE destinadas a reduzir a insularidade das Regiões Ultraperiféricas da UE (RUP). Estas iniciativas conduzem a programas especiais (Poseican: Canárias; Poseima: Madeira e Açores ) que têm por objectivo, inter alia, ajudar a cooperação com os Estados e territórios vizinhos. Cabo Verde partilha desta característica de se localizar na vizinhança geográfica da “economia âncora”. Estes programas deverão ser aproveitados de forma activa por Cabo Verde para criar margens para investimentos públicos que reforcem o nível potencial em áreas como a educação, a formação, a investigação que poderão colocar o país numa melhor posição para a transição para um modelo de crescimento baseado na exportação de bens e serviços transacionáveis internacionalmente e no conhecimento (Knowledge based economy). - Um outro eixo a ter em consideração na negociação de um AA com a UE diz respeito às negociações com a Organização Mundial do Comércio (OMC) que fixarão em breve um quadro que organizará as relações com a UE criando um contexto concurrencial substancialmente diferente para um país com as características económicas de Cabo Verde. - A negociação do AA com a UE deverá comportar as vertentes principais dos Acordos de Associação assinados com os países do Maghreb bem como um Protocolo relativo às questões de emigração. É particularmente 8 importante ter objectivos políticos claros respeitantes à emigração caboverdiana para a UE, um mecanismo de ajustamento chave que contribuíra para a sustentabilidade da balança de pagamentos e para um maior crescimento. 4. Considerações finais Minhas senhoras e meus senhores, Deixa-me resumir as principais mensagens desta minha intervenção. Em primeiro lugar, o grau elevado de integração real e financeira com a Zona Euro fundamenta, para além doutras razões, a escolha estratégica da UE como a “âncora” da economia de Cabo Verde. E finalmente, a recomendação de um “two handed approach” no aprofundamento do ACC (i.e., o AA em tandem com a multilaterização do ACC) terá um papel chave na sustentabilidade do peg fixo ao Euro ou mesmo da euroização. Esta será uma maneira possível de atingir a estabilidade macroeconómica e o desenvolvimento económico. Muito obrigado pela vossa atenção. 9