Cabo Verde e a crise da Zona Euro Apontamento do Governador do Banco de Cabo Verde, Carlos Burgo, a propósito da crise da Zona Euro A Zona Euro atravessa uma profunda crise financeira cujo término não se vislumbra e cujo desfecho é ainda incerto. A crise financeira, e as medidas adoptadas para a debelar, ameaçam mergulhar em recessão as economias da Zona Euro e afectar seriamente o crescimento da economia mundial. A economia cabo‐verdiana é muito dependente dos fluxos externos e, por conseguinte, muito sensível à evolução da economia internacional, particularmente à da Zona Euro. As trocas comerciais efectuam‐se principalmente com os países europeus. Os donativos, as remessas de emigrantes, o investimento estrangeiro bem como o financiamento tanto público como privado são provenientes sobretudo da Europa e, particularmente, da Zona Euro. Ademais, Cabo Verde tem a sua moeda ancorada ao Euro. É, assim, natural que os cabo‐verdianos se inquietem com a crise europeia. As causas profundas da crise na Zona Euro estão na própria concepção da união monetária, considerada por muitos como imperfeita. Inegavelmente, porém, as suas razões mais próximas prendem‐se com a gestão económica e financeira levada a cabo, individualmente, pelas autoridades nacionais em vários países integrantes da Zona Euro. Neste último aspecto, o que está a ocorrer na Zona Euro é da maior relevância para a gestão do nosso regime económico baseado na paridade fixa com o Euro e com um grau elevado de convertibilidade, sobretudo se considerarmos a prática de gestão cambial. Julgo inquestionável que, além da evidente necessidade de se garantir a estabilidade do sistema financeiro, mesmo quando se promove o seu desenvolvimento, dois grandes ensinamentos nos estão a ser proporcionados. O primeiro é o papel crucial de uma gestão macroeconómica prudente e o segundo é a importância decisiva da competitividade externa e da capacidade de ajustamento da economia. Com efeito, sem estas duas condições basilares, mais tarde ou mais cedo, emergem problemas susceptíveis de pôr em causa o próprio regime económico adoptado. Gestão macroeconómica prudente Gestão macroeconómica prudente significa antes de mais garantir a sustentabilidade das finanças públicas. Para isso, os gastos públicos, designadamente as despesas de funcionamento e com a política social do Estado, devem ser consentâneos com a capacidade de geração de recursos da economia. Os ajustamentos em curso em vários países, nomeadamente Portugal, mostram o quão difícil e custoso, não só a nível social e económico, mas também a nível político, é corrigir as situações em que o nível de 1 despesas se revela excessivo. Em economia, os processos de ajustamento são sempre muito penosos. Porém, em situações em que não se dispõe do instrumento cambial nem do monetário e se tem de implementar políticas de austeridade orçamental e fazer uma desvalorização interna, eles são particularmente dolorosos por causa do seu efeito marcadamente recessivo. A nível da política orçamental, o controle das despesas públicas e do défice requer que a gestão se faça num quadro de médio prazo, não bastando procurar juntar anualmente as pontas. As despesas, por categorias e sectores, devem ser seguidas e revistas em permanência, com vista à identificação das tendências estruturais e implementação de medidas de política necessárias à sua contenção e à melhoria da sua eficiência e eficácia. Em Cabo Verde, com a introdução do IVA e o consequente alargamento da base da tributação da despesa, as receitas do Estado ganharam forte dinâmica de crescimento. Não se pode contudo ignorar, que paralelamente cresceu o potencial de volatilidade das receitas. Por conseguinte, é imperioso evitar que todo o crescimento das receitas se traduza num igual crescimento de despesas não discricionárias. Isto, tanto a nível central como local. Se essas despesas acompanharem o crescimento das receitas em períodos de rápido crescimento económico, é evidente que será mais difícil controlar o défice orçamental nos períodos de desaceleração do crescimento, tanto mais que o orçamento pouco a pouco tende a ter mais mecanismos de estabilização automática, que nesses períodos se traduzem no aumento de despesas destinadas a proteger o consumo das famílias. Conclui‐se daí que deve haver muita prudência relativamente à estrutura de despesas, devendo‐se evitar a cristalização de excessiva rigidez orçamental e criar, na medida do possível, um espaço orçamental nos períodos de maior dinamismo da actividade económica. O reforço da disciplina na gestão das finanças públicas pode ser favorecido pela adopção de regras orçamentais ajustadas às exigências actuais. Revelou‐se já que os pseudo critérios de Maastricht, constantes da lei de enquadramento do orçamento em vigor, são insatisfatórios. De todo o modo, para que as regras fiscais tenham a eficácia pretendida, indispensável se torna que seja evitada toda e qualquer desorçamentação de despesas e de riscos do Estado. É inegável a existência de vários riscos que devem ser acautelados. Em especial, o controlo das despesas com o pessoal (a parte mais volumosa das despesas ordinárias) e da evolução das pensões exigirá reformas estruturais. Tem‐se consciência que a nível das empresas públicas, dos municípios e provavelmente dos institutos públicos existirão responsabilidades contingenciais cuja materialização é susceptível de agravar significativamente as contas públicas. Impõem‐se, assim, medidas para a mitigação desses riscos e, ao mesmo tempo, é fundamental que eles sejam tidos em conta na determinação do nível desejável da dívida pública. 2 Tendo em conta o volume da dívida pública, o seu grau de concessionalidade e a capacidade institucional do país, Cabo Verde é considerado um país de baixo risco, embora já se esteja a aproximar do limiar de risco moderado. Em todo o caso, já com este nível de dívida pública, a política de endividamento e de investimento público tem de ser consentânea com o nível acrescido de risco, sob pena de o serviço futuro da dívida vir a comprometer a absorção da economia e particularmente o consumo das famílias. As decisões de investimento público devem ser bem equacionadas e devem levar em consideração a equidade geracional. É, assim, bom de ver que importantes factores militam a favor de um nível prudente de endividamento público. Avultam entre eles os riscos orçamentais acima identificados, o facto de estarem ainda por realizar algumas reformas estruturais importantes, bem como as responsabilidades contingenciais referidas. Uma outra razão não despicienda decorre da natureza profundamente pro‐cíclica do regime económico e da vulnerabilidade da economia face a choques externos, pois, no nosso contexto, qualquer intervenção anti‐cíclica ou para mitigar os efeitos de choques externos negativos requer margem de endividamento e a correspondente contrapartida em termos de reservas internacionais. Competitividade externa e capacidade de ajustamento da economia A sustentabilidade das finanças públicas é sumamente importante mas não é, porém, suficiente para impulsionar o crescimento económico e do emprego bem como a contínua melhoria do bem‐estar dos cidadãos, numa economia com as características da cabo‐verdiana. A gestão da competitividade externa é igualmente crucial. Neste aspecto, a flexibilidade da economia é decisiva, considerando que não se dispõe da possibilidade de fazer ou deixar variar a taxa de câmbio como instrumento de gestão da competitividade externa. Julgo não laborar em erro ao defender que dos dois desafios que enfrentamos, sustentabilidade das finanças públicas e competitividade externa, é no referente a este último que temos ainda caminho mais longo a percorrer. Isto porque, parcialmente, as exigências não estão colocadas na agenda e nem foram ainda comunicadas aos cabo‐ verdianos com vista à obtenção dos necessários consensos. Um factor determinante da competitividade de uma economia são os seus recursos humanos. Neste domínio, partindo embora de uma posição avançada em que nos coloca o alto nível de escolarização do país, temos ainda de adequar o sistema de educação e formação às necessidades (e possibilidades) decorrentes da estratégia de desenvolvimento do país. Na Administração Pública, a utilização das modernas plataformas tecnológicas faculta‐ nos a possibilidade de ultrapassar ineficiências que se prendem com a escala e a insularidade do país mas deve ser complementada com reformas organizacionais, de 3 estruturas e do sistema de incentivos, para que à economia e aos cidadãos possam ser disponibilizados com qualidade e eficiência os serviços necessários. Para o crescimento económico, o funcionamento dos serviços de cadastro, do registo e do notariado bem como dos tribunais é particularmente relevante. É ainda visível o nosso atraso em termos de serviços de infra‐estruturas, nomeadamente energia, água, comunicações, transportes e saneamento. A materialização da estratégia de desenvolvimento de uma economia serviços orientada requer avanços significativos na disponibilidade, qualidade e tarifas desses serviços. Estes avanços, além de exigirem investimentos em muitos casos avultados, dependem da criação de uma capacidade efectiva de regulação independente e de uma gestão eficiente. Uma das áreas mais críticas e ao mesmo tempo mais importantes é a regulação do mercado de trabalho. A legislação laboral, inspirada num modelo europeu já em grande parte abandonado, carece de adaptação à realidade de uma economia em busca de competitividade para a sua integração na economia mundial. Na área laboral, a rigidez da economia só não é maior porque uma parte significativa da economia se encontra na informalidade. Um forte incentivo para a informalização das actividades económicas decorre igualmente da onerosidade do regime de previdência social. Essa informalidade e a privatização de importantes empresas anteriormente públicas conferem à economia alguma capacidade de ajustamento. Neste aspecto, um efeito positivo digno de realce é a contribuição para a moderação no crescimento dos salários, tão essencial à competitividade da economia e à sustentabilidade do regime cambial. Reconheça‐se igualmente como positiva a política de moderação salarial praticada pelo Governo. Contudo, não podem ser ignorados os efeitos negativos desta dualização da economia. Os custos da flexibilidade são suportados desproporcionalmente pelos trabalhadores do sector informal que sofrem os efeitos da precariedade do vínculo laboral e da falta de cobertura da previdência social. A informalidade constitui um dos mais sérios obstáculos no acesso ao financiamento, limitando o investimento privado e o crescimento da economia. A rigidez da regulamentação laboral desincentiva a criação de empregos, o que penaliza grandemente a integração dos jovens no mundo do trabalho. Atentando nesses aspectos, resulta evidente a necessidade de reformar tanto a legislação laboral como o regime de previdência social, à luz da necessidade de garantir a competitividade externa e diminuir, ao mesmo tempo, os incentivos para a informalização das actividades económicas. Reformas nesse sentido favoreceriam a redução da desigualdade na distribuição do rendimento e a integração social, criando ao mesmo tempo condições mais favoráveis para a implementação da estratégia de desenvolvimento. Uma dimensão importante para a eficiência da economia e, por conseguinte, para a sua competitividade externa tem a ver com a estrutura territorial. A distribuição da 4 população pelo território resulta ainda em grande medida de uma economia baseada na agricultura de subsistência, inviável nos dias de hoje e nas condições naturais do país. Espontaneamente, esta estrutura está‐se alterando com uma forte tendência para a urbanização. Mais de metade da população vive já em centros urbanos. Ora, um dos nossos grandes défices reside precisamente na planificação do crescimento dos centros urbanos, o que é particularmente gravoso na Praia, capital do país, onde é notória a omissão na criação de condições para a expansão ordenada da cidade e é bem visível a precariedade de infra‐estruturas e serviços urbanos, com todos os efeitos sociais e económicos nefastos. Esses efeitos nefastos são potenciados pelo carácter informal das actividades económicas que sustentam grande parte da população. No processo de criação de infra‐estruturas não podemos correr o risco de contribuir para a reprodução duma estrutura territorial ineficiente, mas antes procurar a sua progressiva alteração, tendo em vista a criação de condições que favoreçam a realização da estratégia de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, devem ser maximizados os ganhos de eficiência no quadro das restrições financeiras do Estado. Se os ensinamentos que estamos a colher do actual momento por que passa a Zona Euro não constituem propriamente novidade para os economistas, a actual crise nessa união monetária revela aos decisores políticos, pelos custos que estão sendo suportados, a importância de que se reveste a observância dos princípios da boa gestão económica. Praia, 20 de Outubro de 2011 5