UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I PEDAGOGIA - ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL DENISE LEAL DE JESUS A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE DA CRIANÇA NEGRA NO COTIDIANO ESCOLAR: UM ESTUDO DA APLICAÇÃO DA LEI 10.639/03 NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL NO COLÉGIO ESTADUAL ADROALDO RIBEIRO COSTA Salvador 2009 DENISE LEAL DE JESUS A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE DA CRIANÇA NEGRA NO COTIDIANO ESCOLAR: UM ESTUDO DA APLICAÇÃO DA LEI 10.639/03 NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL NO COLÉGIO ESTADUAL ADROALDO RIBEIRO COSTA Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, Campus I, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado em Pedagogia, sob orientação do Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho. Salvador 2009 DENISE LEAL DE JESUS A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE DA CRIANÇA NEGRA NO COTIDIANO ESCOLAR: UM ESTUDO DA APLICAÇÃO DA LEI 10.639/03 NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL NO COLÉGIO ESTADUAL ADROALDO RIBEIRO COSTA Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção da graduação em Pedagogia com Habilitação em Anos Iniciais do Ensino Fundamental, do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, Campus I, sob orientação do Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho. Salvador ______de _______________ de 2009. Banca examinadora: _________________________________________ Professor Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho Departamento de Educação – UNEB – Campus I ________________________________________ _______________________________________ Dedico este trabalho a todas as crianças afrobrasileiras que florescem este país com sua beleza e existencialidade singular, fazendo com que a escolha da nossa profissão não seja apenas uma opção entre tantas outras, mas uma paixão revivida cotidianamente. AGRADECIMENTOS A Deus, pela vida, força e paixão para as escolhas que faço em minha vida. À família, sempre ao lado nos momentos em que não há nada a fazer, e nada tão importante a ser feito, senão apenas amar. Às amigas Jaíze de Santana, Catiana Nascimento, Mariana Leal e Fernanda Gomes, pelo cuidado, força e solidariedade fraterna. Ao amigo Raimundo Sales, pelo apoio incondicional para a concretização deste trabalho. À Maria Amélia Matos, funcionária da Universidade do Estado da Bahia, Salvador,BA, pela amizade, carinho e apoio durante todos esses anos. Ao meu orientador, Professor Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho, pela paciência e carinho na orientação deste trabalho. Aos professores (as): Khátia Marise Borges Salles Maria Helena B. M. Amorim Sandra Regina Soares Valdélio Santos Silva Otoniel Vitor C. Rocha Jaciete Barbosa dos Santos Jaqueline M. Leal Silva Walter Von C. Garrido Maurício Mogilka Narcimária C. do Patrocínio Luz Sandra Regina M. de Araújo Pela participação positiva na passagem de uma fase importante do meu caminho. À Universidade do Estado da Bahia – UNEB pelas experiências proporcionadas. Ao Colégio Estadual Adroaldo Ribeiro Costa e toda a sua comunidade, pelo acolhimento, respeito e boa vontade na cooperação para a realização deste trabalho. Trabalhar na construção e na consolidação de uma identidade que se exprimirá através de uma nova linguagem, que se nutrirá da seiva da herança africana, será a melhor forma de desmascarar a visão estereotipada que se tem do negro. (BERND, 1984, p. 56) RESUMO A formação cultural da sociedade brasileira traz em seu bojo diversos elementos provenientes dos diferentes povos que aqui viveram ao longo dos anos. Entre eles estão os povos africanos que, mesmo contra a sua vontade, foram trazidos para o Brasil, a fim de servirem aos interesses colonialistas. Mesmo desprovida de seu espaço de ser e acontecer, a cultura africana resistiu às inúmeras investidas de desculturação, prevalecendo através de diferentes estratégias diante das dificuldades de conservação de identidade enquanto modo de viver particular de um povo. Essa opressão da cultura afro-descendente encontrou no espaço escolar mais um lugar de despersonalização e desencontro da pluralidade étnica e cultural característica do povo brasileiro. Nas muitas lutas travadas, no sentido de desconstruir essas práticas deliberadas de perdas de referências culturais do negro, algumas ações afirmativas já foram concretizadas com o objetivo de fortalecer a legitimidade do espaço da cultura negra, inclusive no cotidiano escolar. Entre elas está a Lei 10.639/03 que instituiu o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos escolares. Nesse novo contexto, o presente estudo investiga a afirmação e (re)construção da identidade das crianças afrodescendentes no espaço escolar mediante a aplicação da referida lei, nas turmas dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental do Colégio Estadual Adroaldo Ribeiro Costa, situada à Rua Nossa Senhora do Resgate, s/n, no município de Salvador, Estado da Bahia. A proposta aponta para uma investigação dos processos pedagógicos existentes na referida instituição, da natureza das relações étnico-raciais que ali se produzem, além de outras reflexões acerca das representações socioculturais atribuídas aos temas afins pelos alunos. Tais representações foram evidenciadas através de técnicas de coletas de dados como observação, questionários e entrevistas coletivas baseadas no grupo focal, respeitando e considerando as subjetividades dos sujeitos envolvidos como denota a natureza da pesquisa. Reafirmando a importância do resgate da memória africano-brasileira na reeducação das relações étnico-raciais no ambiente escolar, são observadas as possíveis influências dos trabalhos pedagógicos relacionados à História e Cultura Africana e Afro-brasileira, bem como da sua incipiência na formação da identidade cultural das crianças negras. Nesse contexto, constatou-se em grande parte destas crianças, uma convivência com características próprias da cultura negra sem, muitas vezes, se sentir como parte dela. Finalmente, são evidenciadas algumas questões a respeito da prática educativa existente neste segmento de ensino na escola e a contribuição docente no ensino da História e Cultura Afro-brasileira na sala de aula, reconhecendo a sua relevância no processo de construção e valorização da identidade. Palavras-chave: Cultura afro-brasileira. Identidade. Cotidiano escolar. Prática educativa ABSTRACT The cultural formation of Brazilian society in itself brings several elements from the various peoples who lived here over the years. Among them are the African peoples, even against their will, were brought to Brazil to serve the colonial interests. Even devoid of its space to be happening and the African culture resisted the many attacks by desculturação, prevailing through different strategies in the face of difficulties for the conservation of identity as a particular way of life of people. This oppression of culture african-descendant found in school one more place of depersonalization and mismatch of ethnic and cultural diversity characteristic of the Brazilian people. In many battles fought, to deconstruct such practices deliberate loss of the black cultural references, some affirmative actions have been implemented with the objective of strengthening the legitimacy of the area's black culture, even in everyday school life. Among them is the Law 10639/03 which established the Teaching of History and Afro-Brazilian culture and African in school. In this new context, this study investigates the claim and (re) construction of identity of children africandescendants at school through the application of that law in the early years of classes in elementary school in State College Adroaldo Costa Ribeiro, located at Rua Our Lady of Redemption, s / n, in the city of Salvador, Bahia State. The proposal points to a study of educational processes in the said institution, the nature of ethnic-racial relations that are producing, and other thoughts about the social representations related to the topics assigned by the students. Such representations were evidenced through data collection techniques such as observation, questionnaires and group interviews based on focus group, respecting and considering the subjectivity of the subjects involved and the nature of the research shows. Reaffirming the importance of recovery of memory in African-Brazilian education of ethnicracial relations in the school environment, are considering the possible influence of work related to teaching History and Culture African and Afro-Brazilian, and their incipiência the formation of cultural identity of black children. In this context, it is largely these children, one living with characteristics of black culture not often feel like part of it. Finally, it highlighted some issues regarding the educational practice in this segment of education in school and teaching contribution in the teaching of history and Afro-Brazilian culture in the classroom, recognizing its importance in the construction and development of identity. Keywords: african-Brazilian culture. Identity. Everyday school life. Educational practice SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO............................................................................................10 2 A IMPORTÂNCIA DA LEI 10.639/03 NO CONTEXTO ESCOLAR... 18 3 CONHECENDO O COLÉGIO ESTADUAL ADROALDO RIBEIRO COSTA.............................................................................................................25 4 A PRÁTICA DOCENTE NA APLICAÇÃO DA LEI E SUAS DIFICULDADES............................................................................................ 29 5 AUTO-ESTIMA, IDENTIDADE E RELAÇÕES SOCIAIS DAS CRIANÇAS NEGRAS DO CEARC: IMPLICAÇÕES FRENTE À APLICAÇÃO DA LEI 10.639/03 NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL........................................................................................... 39 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 54 REFERÊNCIAS.......................................................................................... 57 10 1 INTRODUÇÃO Durante muito tempo, as relações humanas se desenvolveram mediadas por concepções normativas de convivência social que tinham como função, distinguir os papéis e lugares que os indivíduos deveriam ocupar na sociedade de classes. Dada a força ideológica que movia essas concepções na direção dos interesses das culturas dominantes, a dinâmica dos movimentos sociais peculiares às histórias dos diferentes grupos humanos, acontecia dentro de uma gama de conceitos históricos oficiais que dificilmente poderiam ser mudados. Ainda assim, mudanças significativas aconteciam, demonstrando incontestavelmente que a diversidade humana, visualizada através dos inúmeros interesses das diferentes comunidades, bem como os modos de vida, as necessidades e escolhas inerentes a cada grupo social coexistentes em territórios iguais ou diferentes, exigia ser respeitada e considerada. Característica peculiar do ser humano, a diferença é tema de uma infinidade de estudos que buscam compreender em cada momento histórico como ela se constitui e se reconstitui em seus contextos específicos. A intolerância à sua natureza é também um ponto nevrálgico a ser tocado, causadora de fatos sociais que marcaram a convivência humana ao longo dos séculos, e mais especificamente em nosso país, suas conseqüências se fazem presente em distintos aspectos que compõem o cotidiano dos cidadãos da sociedade brasileira. Esse ponto delicado da nossa história, causador de conflitos constantes, foi e ainda é, embora com menos força, objeto de camuflagem de relações étnico-racias pautadas em um paternalismo excludente que tem como objetivo essencial a manutenção da ordem sociocultural vigente. Nesse contexto, as concepções ideológicas das culturas hegemônicas que permeiam as relações humanas, se adaptam constantemente às diferentes mudanças e conquistas das culturas discriminadas socialmente, inclusive a cultura negra, a fim de manterem uma visão dissimulada da realidade, mais conhecida como o mito da democracia racial que, em sua essência, [...] apregoa a igualdade de oportunidades para brancos, negros e mestiços. Ele contribui para camuflar a desigualdade racial, a discriminação praticada no acesso ao emprego e conseqüente falta de oportunidade de adquirir a formação geral e profissional da maioria do povo negro, bem como a manutenção do “seu lugar” nas atividades consideradas inferiores e, por isso, mal remuneradas. (SILVA, 1989, p. 59) Como se constata na prática, as mudanças sociais pertinentes ao fluxo das ações humanas são inevitáveis, e, acrescentando-se a isso as contradições evidenciadas pela modernidade, muitos “dos lugares” dos quais Silva (1989) refere-se já foram, há muito, 11 “desocupados”. Porém, essas contradições cada vez mais se manifestam no desrespeito às diferenças entre as culturas e suas conseqüências nas relações sociais, ao mesmo tempo em que são mais questionadas pelas classes menos favorecidas, considerando logicamente nessas discussões a problemática racial, intrinsecamente envolvida nessas questões. As reflexões aqui contempladas abrangem, naturalmente, essas dinâmicas sociais, mais especificamente as que resultaram em mudanças substanciais que se referem às práticas educativas e às relações escolares. Tais reflexões se desenvolvem evidenciando a relevante conquista de uma política educacional que visa desconstruir preconceitos arraigados e concepções discriminatórias históricas para com os afro-descendentes. A existência da Lei 10.639/03 afirma-se dentro do entendimento da formação humana que inclui o respeito à alteridade e a apropriação das raízes étnico-culturais de sua ancestralidade, contribuindo para a afirmação de identidades culturais, anteriormente fragmentadas pela desculturação colonialista e dominadora. O presente estudo originou-se da nossa participação no trabalho de pesquisa do SubPrograma de Iniciação Científica do “Programa AfroUneb – Ações Afirmativas, Igualdade Racial e Compromisso Social na construção de uma nova cultura universitária”, UNEB/MECSESU-SECAD, desenvolvido no período de novembro de 2007 a novembro de 2008, quando no início da pesquisa a Lei 10.639/03 ainda não havia sido modificada para a 11.6345/08. Por esse motivo as explanações aqui encontradas utilizam a nomenclatura legal daquele período. Com o objetivo de contribuir na socialização/ampliação dos conhecimentos que produzam ações na direção da igualdade étnico-racial, e ao mesmo tempo, que respeite a diversidade cultural formadora da nação brasileira, o programa AfroUneb constitui-se como uma forma de efetivação do compromisso da Universidade do Estado da Bahia na contemplação concreta destes pressupostos. O desenvolvimento do Programa inclui produção de material didático resultante das pesquisas, atividades metodológicas voltadas para a capacitação de professores e inclusão de estudantes cotistas através do Sub-Programa de Iniciação Científica. Este, formado a partir da seleção de 10 (dez) projetos de pesquisa em áreas temáticas afins, com o objetivo de serem desenvolvidos no período de 12 (doze) meses, sob a orientação de profissionais específicos. O princípio básico de existência do Sub-Programa visa à permanência dos estudantes inseridos na universidade por meio do sistema de reserva de vagas, apoiando sua manutenção econômica nesse processo através de bolsas-auxílio percebidas no período da pesquisa. Além disso, contribui significativamente para o desenvolvimento acadêmico do aluno, finalizando a produção das investigações por meio de um artigo. A realização dos estudos previstos no 12 projeto em questão desdobra-se entre as inúmeras problemáticas pertinentes à efetivação do ensino da história e cultura africana, considerando a importância das interações sociais neste processo, bem como das práticas docentes que inconscientemente reforçam a visão hierárquica entre as diferentes culturas. Partindo das concepções mencionadas, as observações em torno da aplicação da Lei 10.639/03 nas suas diversas propostas buscam compreender a realidade encontrada nas escolas públicas, mais especificamente no segmento dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental do Colégio Estadual Adroaldo Ribeiro Costa (CEARC), escolhido aqui para o desenvolvimento das pesquisas de campo, análises e reflexões. A escolha fez parte de relações anteriores desenvolvidas com a escola que davam conta de atividades acadêmicas extra-sala de aula, referentes a algumas disciplinas do curso de Pedagogia do Departamento de Educação – Campus I do qual faço parte. Fatores socioculturais também concorreram para a pesquisa no CEARC, pois sendo uma escola pública localizada em um bairro relativamente bem estruturado de Salvador, atende em pouca quantidade aos moradores do bairro, ao mesmo tempo em que abrange diversas comunidades do entorno com predominância afro-descendente. A partir das abordagens contempladas pela política educacional que trata das relações étnico-raciais no ambiente escolar, buscamos investigar a realidade que se configura para as crianças negras por meio das interações culturais e humanas que ali se produzem. Nesse sentido, nosso olhar esteve sempre direcionado para a possível existência de posturas discriminatórias entre os alunos, reforçadas por atitudes conformadoras e silenciadoras dessas práticas através de identidades fragmentadas e de eventuais ausências de intervenções pedagógicas. Ainda no campo de abrangência das propostas pedagógicas constantes das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2005), buscamos analisar em quais condições essas propostas estão efetivamente se desenvolvendo, uma vez que seus conteúdos necessitam não somente de inclusão curricular, mas também de formação docente e estrutura didática que atendam às suas expectativas. Assim, ampliamos as reflexões para as estratégias e medidas adotadas pela escola em apoio à concretização da referida lei, como também à existência de projetos e ações desenvolvidas nesse sentido, a fim de promoverem um avanço substancial nos objetivos pretendidos, considerando o tempo de vigência e as condições curriculares em que estão sendo aplicadas. 13 Apesar do CEARC não estar entre as instituições que realizavam atividades pedagógicas afirmadoras da cultura negra antes dos processos de implantação da lei nos segmentos de ensino regulares, é sabido que algumas organizações sociais e escolares já trabalhavam na abordagem da questão racial nesse período. Além disso, outras práticas sociais nesse sentido, realizadas a partir de movimentos políticos e comunitários, contribuíram consideravelmente para as visíveis mudanças na postura de diferentes instâncias da nossa sociedade. Essas mudanças apontam para uma reflexão crítica acerca da realidade atual dos afrobrasileiros, conhecendo os impactos construídos pela transformação constante dessa realidade, uma vez que muitas das ideologias existentes para a manutenção do status quo de algumas culturas estão em processo de desconstrução. Nesse contexto, se inclui a realidade escolar que, por natureza, reflete as representações culturais e suas mudanças, presentes nas interações que permeiam a sociedade em que se insere. Estas, eventualmente já visíveis neste tempo presente, através de gestos, atitudes, posturas, e outras ricas linguagens simbólicas, se constituem como objeto de investigação dos resultados já vivenciados pelos alunos negros no que tange às questões étnico-raciais, identidade e auto-estima destes na convivência escolar. Nestas elucidações se incluem, indubitavelmente, as relações professor-aluno, aluno-aluno, comunidade escolar - comunidade local, entre outros aspectos. A abordagem qualitativa constitui-se como norteadora da pesquisa na medida em que caminha pela realidade investigada a partir do olhar dos sujeitos que nela interagem. Um olhar que expressa sentimentos, concepções e experiências de vida que, em muitos casos, não são considerados nos currículos oficiais e se perdem ou se esvaziam de sentido no percurso escolar mediante as relações estereotipadas que se formam no ambiente educativo. Dessa forma, a observação e organização dos estudos realizados consideram as atitudes e os reflexos do comportamento dialético dos indivíduos para consigo mesmo e para com os outros, analisando questionamentos, negações, esclarecimentos e indagações das questões que envolvem as dimensões da identidade humana em sua complexidade e subjetividade. A partir das concepções norteadoras da pesquisa, busca-se considerar na prática educativa os aspectos inerentes aos comportamentos dos indivíduos em seu meio social e o que os influencia. As discussões que envolvem o tema das relações étnico-raciais na educação, perpassam por questões subjetivas, reelaboradas constantemente pelas dinâmicas experienciais dos sujeitos envolvidos que se refletem nas práticas sociais, nas reações para com os seus pares e nas concepções que constroem sobre si mesmos. 14 A partir da natureza do tema escolhido envolvendo questões relacionadas aos sujeitos sociais e suas práticas objetivas/subjetivas, esta pesquisa fundamenta-se na abordagem qualitativa de natureza subjetiva, considerando os diferentes significados que podem ser atribuídos nas relações humanas, dada a complexidade de seu caráter e as influências nelas contidas. Nessa perspectiva, a discussão teórica desenvolvida em torno do espaço escolar “[...] entende o fenômeno educacional como situado dentro de um contexto social, por sua vez inserido em uma realidade histórica, que sofre toda uma série de determinações [...].” (LUDKE; ANDRÉ, 1986, p. 5) A metodologia utilizada baseia-se na lógica dialética que segundo Kopnin (1978), possibilita a construção do conhecimento através da análise crítica dos fatos reais. Dessa forma, auxilia a observação e organização dos estudos realizados, investigando as atitudes e os reflexos do comportamento dialógico dos indivíduos, no processo de formação da identidade e da imagem positiva de si e de seus pares. As investigações, por sua vez, se desdobram em questionamentos, observações e reflexões das questões que envolvem as representações expressas pelos sujeitos, bem como o contexto em que estes se encontram, considerando que “[...] os fatos sociais não podem ser entendidos quando considerados isoladamente, abstraídos de suas influências políticas, econômicas, culturais [...]” (GIL, 1999, 32) que os influenciam. Os pressupostos teóricos da Lei 10.639/03 estão associados à revisão bibliográfica orientadora dos aspectos a serem observados. Como instrumentos de pesquisa foram utilizados questionários distribuídos entre as 6 (seis) professoras do segmento escolar do foco da pesquisa, ao que 4 (quatro) foram respondidos efetivamente, além de 1(um) direcionado à coordenação pedagógica. Também foram realizadas entrevistas coletivas com base em técnicas de grupo focal, resultado do diálogo temático de dois grupos integrantes dos turnos matutino e vespertino, compostos por dois alunos de cada turma, sendo um total de 7 (sete) turmas. As observações diárias buscando uma apreensão significativa e analítica das diferentes linguagens expressas através de gestos, atitudes, escolhas, entre outras, produzidas no cotidiano da sala de aula, bem como das representações culturais implícitas nas relações entre as crianças, foram parte investigativa neste processo, considerando também as interações dialógicas livres nos espaços de convivência escolar, em suas dimensões individuais e sociais. Em um total de quatro turmas no matutino e três no vespertino, foram observadas duas turmas de cada turno em um período de três dias contínuos cada uma. Para as já referidas interações dialógicas livres foram considerados nas observações os momentos de recreação, merenda e atividades afins. 15 As análises dos processos pedagógicos incluíram desde o projeto-político-pedagógico e suas concepções até os planos de aula, diários de classe, trabalhos/cartazes produzidos pelas turmas e eventuais atividades pertinentes à temática a ser estudada, a fim de perceber como estaria sendo processada a efetivação do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana nos espaços escolares de um modo geral, mas observando na proposta pedagógica da escola a existência de práticas educativas destinadas ao cumprimento da referida lei para os alunos do Ensino Fundamental I. No primeiro capítulo, propõe-se uma breve reflexão acerca da relevância dos conteúdos que tratam da valorização da cultura negra na formação da sociedade brasileira, a partir do resgate histórico das matrizes africano-brasileiras que expressam tradições, valores, simbologias, filosofias e aspectos da nossa ancestralidade, ocultados durante muito tempo pelas políticas colonialistas etnocêntricas. Nessas reflexões, é possível compreender que em uma sociedade caracterizada pela pluralidade cultural, ainda se percebem nitidamente reflexos de uma convivência mediada por hierarquizações étnicas que degradam os processos civilizatórios dos povos africanos que tanto contribuíram para a consolidação da nação brasileira. Considerando a instituição escolar e seus aspectos curriculares como um instrumento eficaz na difusão de concepções ideológicas preconceituosas que visam conformar os cidadãos a um lugar destinado pelas culturas dominantes na sociedade, as relações humanas que ali acontecem estão, paradoxalmente, reproduzindo e enfrentando essas problemáticas. Dentro do contexto destes possíveis enfrentamentos, a apropriação dos conhecimentos da história e cultura africana e afro-brasileira pelos alunos afro-descendentes, vem suprir um espaço na construção de suas identidades negras que foram silenciadas e recalcadas por práticas educacionais hegemônicas reprodutoras das relações de poder existentes na sociedade. Nessa perspectiva, concordamos que: [...] a escola, é, também, e ao mesmo tempo, um local de lutas, onde emergem constantemente múltiplas forças contraditórias. Trata-se de um terreno de luta entre opressor e oprimido, onde se defrontam forças progressistas e conservadoras, onde se refletem também a exploração e a luta contra a exploração. (LUZ, 1989, p. 48) O segundo capítulo traz considerações resultantes das análises realizadas em torno das contribuições docentes para a reeducação das relações étnico-raciais. Os aspectos concernentes à estrutura didático-pedagógica são objetos de indagações e questionamentos no que tange à necessidade da existência de recursos educacionais específicos para a 16 concretização dos pressupostos contemplados pela ação afirmativa aqui abordada, evidenciando a contribuição/responsabilidade dos administradores do sistema educacional, uma vez que: Sem a intervenção do Estado, os postos à margem, entre eles os afrobrasileiros, dificilmente, e as estatísticas o mostram sem deixar dúvidas, romperão o sistema meritocrático que agrava desigualdades e gera injustiça, ao reger-se por critérios de exclusão, fundados em preconceitos e manutenção de privilégios para os sempre privilegiados. (BRASIL, 2005, p. 11) Entre os diferentes obstáculos enfrentados pela escola, a formação das professoras do CEARC voltadas para as orientações metodológicas que abrangem a diversidade cultural e seus processos, se configura como um dos mais relevantes quando se compreende que as ações educativas são mediadas mais diretamente por esses profissionais. Sob a ótica histórica das práticas sociais que legitimaram preconceitos e discriminações, a participação docente no contexto escolar se revestia de ratificação social e institucional dessas representações. Portanto, evidenciando essa importante mediação que caracteriza o trabalho docente, faz-se relevante uma maior sensibilização para o quanto a relação professor-aluno contribui para a desmistificação de visões caricaturadas da cultura negra, considerando os processos pedagógicos transmissores dessas posturas. Finalmente, salientamos a motivação própria do professor no trato da questão racial como um fator decisivo para a formação de atitudes favoráveis à diversidade cultural, ao compreender cada vez mais o quanto “[...] sua ação pedagógica, sua ação profissional pode fazer diferença na vida dos (as) estudantes (as) com os (as) quais entre em contato.” (ROCHA; TRINDADE, 2006, p. 69) O terceiro e último capítulo toca em um ponto subjetivo da temática étnico-racial. As interações que se produzem dentro do cotidiano escolar são reflexos fiéis de uma sociedade ainda muito excludente, que estigmatizou das mais diferentes formas a imagem do negro brasileiro. A invisibilidade da cultura negra nos espaços valorizados socialmente provoca nas crianças afro-brasileiras uma fragmentação identitária, na medida em que estas se percebem pertencentes a uma cultura repetidamente negada em seu meio social, ao mesmo tempo em que se sentem desprovidas de suas raízes étnico-culturais para lidar com estes conflitos que geram situações de hostilidade e inferiorização entre muitas pessoas com as quais convive. Muitas das construções ideológicas reforçadoras de ideais de beleza modelados pela cultura eurocêntrica fazem parte do convívio social e das escolhas pessoais destas crianças. Algumas dessas escolhas, porém, apesar de já se conceberem em meio a pensamentos 17 contemporâneos que criticam os padrões pré-estabelecidos, ainda não se mostram alicerçadas em uma concepção positiva a respeito da ancestralidade afro-brasileira. O olhar para si, provocado nos alunos em alguns momentos dos estudos refletiu-se em receios e oscilações de uma identidade negra que, apesar de ser recalcada em grande parte, não silencia de todo diante dos conflitos que vivencia. Eventualmente busca, questiona e percebe de alguma forma que: Somente destapando o reprimido em nós, poderemos avançar para assumir a nossa real identidade, ultrapassando o complexo de inferioridade, os efeitos da desculturação, do europocentrismo, enfim, do neo-colonialismo. (LUZ, 2000, p. 18) Apesar de ainda serem identificados os efeitos das históricas desculturações de que trata Luz (2000), os alunos já se concebem a partir de uma postura política consciente em construção, utilizando-se dos elementos culturais de sua ancestralidade os quais são apropriados por eles nas diferentes experiências que vivenciam. Reelaborando a cada momento o olhar que possui sobre si mesmo e sobre o outro igual/diferente, demonstram através de gestos, palavras, atitudes e escolhas pessoais que sua auto-estima está, gradativamente, sendo reafirmada. As considerações finais, que finalizam as análises realizadas neste trabalho, não pretendem, em hipótese alguma, finalizar as discussões sobre a realidade escolar observada na Escola Estadual Adroaldo Ribeiro Costa. No entanto, trazem percepções significativas no que tange aos reflexos da necessidade de perspectivas pedagógicas anti-racistas para a concretização de uma educação que dialoga com as diferenças de maneira saudável e respeitosa, desvelando situações de conflitos e revisitando numa postura positiva, espaços subjetivos desvalorizados historicamente pela história oficial. 18 2 A IMPORTÂNCIA DA LEI 10.639/03 NO CONTEXTO ESCOLAR A construção da identidade do ser humano acontece mediada por inúmeras representações sociais com as quais entra em contato ao longo de seu desenvolvimento como pessoa. Essas representações são constituídas de elementos heterogêneos provenientes das mais distintas esferas sociais que, por sua vez, não se fazem neutras nesse processo. As situações vivenciadas diariamente pelos sujeitos, por mais simples que pareçam, trazem uma variedade de mensagens simbólicas que expressam modelos e orientações aceitas ou negadas na sociedade. Podemos entender essas mensagens dentro de “[...] conjuntos dinâmicos que se produzem num fluxo contínuo, como teorias coletivas destinadas à interpretação e elaboração do real.” (ITANI, 1998, p. 127) Entre essas instâncias construtoras da subjetividade humana está a experiência escolar. É através dela, principalmente, que o indivíduo pode se descobrir e se perceber enquanto sujeito de sua própria história, através da interação com os seus pares e com elementos legítimos e valorizados de sua ancestralidade. O inverso, porém, pode acontecer com conseqüências logicamente opostas, se consideramos que as ações humanas que se interligam continuamente nas relações étnicoculturais, tendem a direcionar posturas e atitudes que são, na maioria das vezes, referenciadas por ideologias criadas para recalcar identidades culturais específicas em formação. Nesse sentido, o sistema de ensino se constituiu por muito tempo, como um instrumento eficaz de desvalorização de culturas pouco privilegiadas na sociedade, na medida em que direcionou a sua prática para os interesses de determinada etnia ou classe social em detrimento das demais. Com o objetivo de fortalecer o aparelho ideológico do Estado, as concepções etnocêntricas que permearam esses processos geraram uma falsa idéia de igualdade, tendo como pano de fundo conceitos de superioridade cultural e racial que, por conseguinte, resultaram numa grande perda ou supressão das referências culturais próprias das comunidades africanas que aqui viveram, bem como de seus descendentes. A inexistência do enfoque da construção da nação brasileira fortemente perpassada pelas referências patrimoniais civilizatórias da cultura negra há muito é projetada claramente nas práticas de ensino, como afirma Luz (1989): Evidentemente que há muita diferença entre os conteúdos que formam a visão de mundo negra e a projeção ideológica neocolonialista da escola oficial, caracterizada especificamente pelo recalcamento da presença dos processos civilizatórios constituintes da Nação, elegendo como universal o processo civilizatório europeu. (LUZ, 1989, p.13) 19 Em países como o Brasil, a pluralidade cultural está arraigada a uma história de lutas e resistência às não poucas tentativas de desculturação dos povos africanos oprimidos que habitaram seu território e posteriormente seus descendentes. Mesmo diante de todas as dificuldades de manterem suas histórias de vida, após terem sido retirados de suas comunidades de origem, milhares de cidadãos africanos contribuíram para a formação da sociedade brasileira, associando às práticas de outros povos aqui encontrados, seus costumes, ritos e formas de ver o mundo, incluindo elementos e saberes que ajudaram no progresso do país. Apesar disso, as dimensões milenares das sociedades africano-brasileiras, ricas de saberes, filosofias e simbologias que se refazem continuamente através de existencialidades significantes dos seus ancestrais, foram simplificadas na história oficial. Muitas práticas culturais que aparentemente mostravam a realidade social, acabavam por naturalizar preconceitos e situações forjadas com o objetivo de homogeneizar culturalmente a tradições da afro-descendência brasileira. Assim, elementos importantes, para a afirmação das identidades negras, foram reduzidos às concepções vazias e caricaturadas de um povo que foi lembrado ao longo da história da educação brasileira, apenas quando citada nos livros didáticos a questão da escravidão. Naturalmente, o resultado desse processo empobrecedor e omisso em relação à realidade histórica dos negros no Brasil, acabou por estigmatizá-los em uma visão negativa de si mesmo, na tentativa constante de ocultação e nulidade de sua identificação étnica constituída, por excelência, de elementos históricos reais e legitimados nas sociedades negroafricanas. Nesse sentido, as instituições sociais – principalmente a escola – tiveram e têm uma influência significativa na medida em que se constituem como um reflexo da sociedade na qual estão inseridas, refletindo suas práticas e reafirmando sutilmente suas representações sociais discriminatórias sedimentadas ao longo da história. Sendo as atitudes dos sujeitos sociais, mediadas continuadamente por idéias legitimadoras de modelos sociais que negam a alteridade humana “[...] é comum que os preconceitos e as atitudes de diferença façam parte do nosso cotidiano escolar, na medida em que se absorve para dentro do processo educativo aquilo que somos.” (ITANI, 1998, p.127) Portanto, a importância de uma prática educativa voltada para a convivência e a aprendizagem com as diferenças, mediadas pelo respeito ao outro em toda a sua complexidade, torna-se importante para que a criança negra possa elaborar na sua identidade em formação, um sentimento de pertencimento étnico-racial positivo, portando elementos que 20 a possibilitem enfrentar de frente possíveis desvalorizações de sua cultura nessas instituições, pois: Embora [...] as identidades também possam ser formadas a partir de instituições dominantes, somente assumem tal condição quando e se os atores sociais as internalizam, construindo seu significado com base nessa internalização [...] (CASTELLS, 2000, p. 23) Nesse aspecto, a construção da identidade positiva de uma criança afro-descendente está intrinsecamente vinculada à forma como as instituições que freqüenta propaga a imagem de suas origens culturais, e ainda, se não existem dentro dessas instituições atividades que possam auxiliá-la no questionamento de uma possível imagem negativa de si mesma já existente em suas representações. Ainda nesse raciocínio, é relevante atentar para o fato de que as desigualdades sociais, que são cada vez mais patentes na sociedade brasileira, são o reflexo de uma estrutura socioeconômica construída sobre uma história de escravização e opressão das culturas que dela fizeram parte. Ainda no contexto pós-abolição, as práticas racistas continuaram e se valeram de teorias e leis que apregoavam a superioridade das raças, o embranquecimento “natural” gradativo através da mistura de raças, a desvalorização e perseguição das práticas culturais afro-brasileiras, entre outras. Nesse processo, as concepções encontradas no sistema de ensino relacionadas à história afro-brasileira, caminharam durante muitos anos no sentido de se desenvolverem relações sociais pautadas no etnocentrismo, a fim de que pudessem atender aos interesses das minorias sociais que controlavam o sistema sócio-econômico-cultural. No entanto, não se pode desconsiderar que a educação foi e ainda é, em grande parte, utilizada como mecanismo principal de legitimação desses interesses prevalecentes na nossa sociedade. Por causa disso, analisando o quadro social que se apresentou na sociedade brasileira, em todos os aspectos do desenvolvimento dos cidadãos afro-brasileiros, não seria incoerente afirmar que o “[...] universo escolar parece estranho e alheio aos negros, porque repete, reforça, prolonga e valoriza as condições de existência do mundo branco.” (LUZ, 1989, p. 44) Logo, a postura do ensino brasileiro pautada em ideologias normatizadoras das culturas de origem não-européias, atingiu nas suas formas mais sutis, altos níveis de opressão cultural e humana que ultrapassaram o cotidiano escolar. Na verdade, a escola reproduzia as regras sociais que se confirmavam institucionalmente nas outras instâncias. Acerca desses processos normatizadores das culturas não-brancas que se expandiam no século XIX, Luz (2001) observa que: 21 [...] para o africano-brasileiro tornar-se cidadão teria que se submeter a classificações e/ou hierarquizações antagônicas da “normalidade” que prima pela inércia, quietude e existência asséptica: africano, escravo, liberto, livre, mulato, cidadão. (LUZ, 2001, p. 27) Tais classificações normativas nos espaços sociais dessa época bloqueavam as expressões culturais e humanas e logicamente se fizeram presentes nas interações sociais dentro da escola. Assim, a cultura dos povos negros, fortemente envolvida no universo de pluralidade étnica brasileira, não encontrou espaço para sua identificação e expressão, ficando reduzida às datas e fatos históricos associados a temas como escravidão ou pobreza, desvalorizando assim a presença das expressões existenciais das identidades negras e suas tradições milenares. Diante dessas reflexões, é possível considerar que o sistema de ensino se configura como uma das instâncias mais importantes na construção de uma sociedade, pois a escola faz parte dela, está nela envolvida e inevitavelmente refletirá as práticas construídas entre os indivíduos que ali convivem. Essas práticas, naturalmente, não são neutras, ao contrário, fazem parte de um conjunto de formas de pensar e viver o espaço social e os resultados das relações humanas que nele acontecem. Na conjuntura brasileira calcada em uma lógica de dominação cultural em nome de interesses econômicos e políticos, a escola foi e pode continuar sendo um aparelho ideológico difusor desses interesses. Em uma análise mais acurada das conseqüências dos processos de desculturação dos povos africanos e seus descendentes na sociedade brasileira, são encontradas, entre outros aspectos, identidades construídas em quase total desconhecimento e valorização de sua história, além da enorme injustiça social que se alimenta da idéia da igualdade de direitos e ‘mesmos pontos de partida para todos os cidadãos’ no sentido escolar e profissional. Nesse contexto, a prática educativa alienada cultural e politicamente, por meio de suas atividades aparentemente inofensivas tem sido uma entrada principal para a manutenção do sistema desigual que coloniza possibilidades de questionamentos dos sujeitos, através do enfraquecimento de muitos valores africanos e ocultação de tantos outros. Nela, a ideologia racista e discriminatória encontra o espaço mais fértil para semear suas idéias iniciais: a subjetividade da criança que lentamente constituirá sua identidade. Desde cedo, em uma sociedade etnocêntrica como a nossa, as crianças convivem com elementos culturais que ainda não lhes são familiares, isto é, traços e formas de ser, pensar e ver o mundo os quais ela ainda desconhece, porém, lhes serão apresentados como corretos e a serem adotados por ela a partir daquele aprendizado. Esses elementos estão distribuídos nas mais diversas formas de ensinar, desde os conteúdos e mensagens dos livros didáticos até as 22 relações sociais no cotidiano escolar, suas festas, comemorações e representações culturais. Não há dúvidas que “[...] trata-se de uma escola montada, maquinada para confortar e fortalecer aqueles que se submetam à visão eurocêntrica do mundo.” (LUZ, 1989, p. 44) A convivência freqüente com aspectos negativos à sua cultura, naturalmente se consolida por meio da negação de si mesmo. Nesse processo, o sentimento de inferioridade se sobressai na visão do outro com características físicas e culturais aceitas na sociedade como o superior, o belo, o melhor, e recai em um dos conceitos instrumentais da ideologia racista de que é o próprio negro quem se discrimina. Como é possível a criança, com seus elementos de personalidade em formação conceber positivamente valores de sua cultura, se os mesmos são repetidamente depreciados e colocados em último lugar na escala de valores sociais? Mais fácil, para ser aceito, para não sofrer, “tentar ser o outro”, pelo menos no seu imaginário e no recalque de sua aparência étnica. É esse o quadro percebido em muitas escolas e nos olhares de uma grande quantidade de alunos afro-descendentes de que se tem notícia. Identidades fragmentadas, desprovidas dos princípios inaugurais de sua cultura, alheios aos saberes oriundos de sua ancestralidade e das vivências milenares dos povos africanos que ajudaram a formar a nação brasileira. Desconhecedores da sua importância existencial e das contribuições de seus antepassados na formação da cultura brasileira, aliado à ausência e estigmatização desses valores na história oficial estudada nas escolas, os alunos formam suas concepções de sujeito imbuídas de idéias redutoras sobre si mesmos, sobre suas capacidades pessoais e suas origens étnicas e são reconhecidos subjetivamente, em sua maioria, apenas como descendentes de escravos e nada mais. Entretanto, a existência da Lei 10.639/03 vem justamente de encontro a essas circunstâncias que reforçam a visão negativa do afro-descendente, através da proposta de ações que evidenciam as inúmeras possibilidades pedagógicas que objetivam a legitimação social da nossa africanidade. Estas possibilidades podem tornar visíveis os valores existenciais dos povos africanos, suas contribuições históricas, sua diversidade de línguas, de costumes, de relações de pertencimento expressas nas simbologias que ultrapassaram os limites do continente africano e ainda hoje estão presentes em nosso cotidiano, principalmente nos estados em que os negros formam a maioria da população, como é o caso da Bahia. Essas constatações apontam para as ricas alternativas de práticas educativas que contemplam tais temas, pois perpassam valores étnicos de vários grupos humanos e formam uma grande rede de vivências culturais formadoras da sociedade brasileira. 23 As contribuições da cultura negra na nação brasileira estão distribuídas em todas as áreas de conhecimento humano, como por exemplo, a arte e suas várias formas, a medicina, a matemática, a língua portuguesa, a culinária, entre outras. A partir do contato com esses elementos e sua importância no nosso dia a dia, a criança começa a adquirir outra perspectiva sobre sua cultura, compreendendo que faz parte desse contexto, deixando de se ver como excluída por natureza e a procurar sua identidade em culturas sem significados reais para si mesma. Apesar dos evidentes aspectos silenciosos, mas conflitantes, nas relações sociais e escolares, a resistência negra às práticas racistas do sistema opressor sempre se fez presente enfrentando a toda a forma de violência a que foi submetida sua cultura. Isso permite compreender que, ao mesmo tempo em que a escola se faz um instrumento de supressão cultural, se configura também nessa dinâmica, como espaço de transgressão, de luta e de liberdade, na medida em que as atividades educativas que primem pela livre expressão da coexistência das diferentes matrizes étnicas se façam presentes em seu cotidiano. Nesse sentido, a luta pela valorização da identidade negra tem seu caminho iniciado mais especificamente no currículo, um importante elemento da estrutura de ensino, reforçando a concepção de que as “[...] bases curriculares não devem transformar tão importante assunto simplesmente em ‘temas transversais’.” (ATAIDE; MORAIS, 2003, p. 83) Através da inclusão de elementos expressivos da história e cultura africana no currículo escolar, aos poucos, será possível desconstruir a imagem distorcida que o negro tem de si e de suas origens, através do acesso ao conhecimento de sua ancestralidade cultural e histórica. Pautada nos conceitos de valorização da diversidade cultural brasileira e conhecimento de suas origens, os pressupostos da lei visam com este ensino o fortalecimento da identidade étnico-cultural, a consciência política e formação cidadã ativa na sociedade, além de combater de forma incisiva ao racismo e às discriminações que perpassam os espaços sociais, entre eles, a escola. A compreensão da necessidade do reconhecimento dos elementos tradicionais que formam uma sociedade pluricultural é uma via fundamental para o caminho que leve à igualdade de oportunidades e de direitos. Durante muitos anos, as idéias discriminatórias difundidas nas relações sociais, contribuíram para a disparidade de situações econômicas entre as diferentes classes sociais que compõem a sociedade brasileira. Portanto, é através deste mesmo espaço, propagador dos conceitos embutidos nas relações sociais que se dará também o processo libertador, por meio dos questionamentos e dos diálogos que serão 24 provocados na construção do conhecimento dos diferentes modos de vida dos grupos étnicos componentes de nossa existencialidade. 25 3 CONHECENDO O COLÉGIO ESTADUAL ADROALDO RIBEIRO COSTA O Colégio Estadual Adroaldo Ribeiro Costa (CEARC) é um espaço escolar que apesar de localizar-se no final de linha do bairro do Resgate, atende muito mais aos moradores dos bairros adjacentes do que precisamente aos moradores do bairro onde está situado. Entre as outras comunidades atendidas, estão as do bairro de Pernambués, Sussuarana, Engomadeira, Cabula, Retiro, além de outras comunidades menores não especificadas como bairro pelo cadastro da prefeitura. Estas últimas têm seu acesso principal para a escola através dos arredores do terreno, sendo este um dos principais problemas enfrentados pelos alunos, causando, inclusive, uma evasão que cresce a cada ano. Esses caminhos alternativos que dão acesso à escola e que, naturalmente, as crianças passam a pé, se caracterizam por ruas com pouca qualidade para os transeuntes nos aspectos da iluminação e policiamento que culminam evidentemente na insegurança dos alunos. Apesar dos esforços da escola no sentido de minimizar essas dificuldades, sempre solicitando o apoio de policiamento no entorno da escola, a tímida presença do Estado no quesito segurança nestes espaços tende a colaborar efetivamente para o aumento da insegurança por parte dos pais dos alunos. No ano de 2008 em que a pesquisa foi realizada, a escola oferecia cursos de 1ª a 8ª série do Ensino Fundamental no turno matutino; de 2ª a 8ª série do Ensino Fundamental no turno vespertino; e EJA I, II e III no turno noturno. Possuía um total de 1130 (mil cento e trinta) alunos matriculados, sendo o Ensino Fundamental I no turno matutino composto por 4 (quatro) turmas de 1ª a 4ª séries, que correspondiam à seqüência respectiva do 2º ao 5º ano pela nova legislação. Essas turmas totalizavam 120 (cento e vinte) alunos, distribuídos entre 3 (três) professoras com formação em Magistério e (1) uma em Licenciatura. No turno vespertino, por sua vez, o Ensino Fundamental I oferecia 3 (três) turmas que iam da 2ª à 4ª série, seqüência atual do 3º ao 5º ano, sendo distribuídas entre 97 (noventa e sete) alunos em seus respectivos anos escolares, mediadas por 02 (duas) professoras com formação em Magistério e (1) uma em Licenciatura. O período noturno também engloba os Anos Iniciais e é composto pela comunidade com uma faixa etária diferenciada correspondente à Educação de Jovens e Adultos. Com turmas denominadas por EJA I, II e III correspondentes à antiga nomenclatura que vai da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental I. A comunidade do turno da noite distribuída em 03 (três) turmas totalizava 106 (cento e seis) 26 alunos sob o trabalho conjunto de 2 (duas) professoras Licenciadas e 1 (uma) com Formação em Magistério. O trabalho na administração escolar, incluindo o Ensino Fundamental II, realizou-se neste ano letivo por meio de uma equipe composta por 01 (uma) diretora, 03 (três) vicediretoras, 03 (três) coordenadoras pedagógicas, 06 (seis) seguranças patrimoniais, 03 (três) porteiros, 02 (duas) merendeiras, 15 (quinze) agentes administrativos, 10 (dez) auxiliares de serviços gerais e 48 (quarenta e oito) professores, totalizando 91 (noventa e um) funcionários. É importante salientar que no período da pesquisa a escola só dispunha de apenas uma coordenadora pedagógica. Em relação à estrutura física a escola divide-se em 15 (quinze) salas de aula, 01 (uma) sala de vídeo, 01 (uma) biblioteca (que não funciona por falta de bibliotecário), 01 (uma) quadra de esportes, 01 (uma) sala de ginástica rítmica, 01 (um) laboratório de informática (em processo de renovação de equipamentos), 01 (uma) sala de professores, 01 (uma) sala de coordenação pedagógica, 01 (uma) sala de direção, 01 (uma) sala de vice-direção, 01 (uma) cantina, 04 (quatro) banheiros, 01 (um) bebedouro com 04 (quatro) torneiras e 01 (um) almoxarifado. Dispõe de equipamentos eletrônicos como aparelho de som, aparelho de dvd, retroprojetor, computadores, além de instrumentos utilizáveis nas técnicas de aprendizagem como mídias de dvd’s, cd’s, globo, atlas, bonecos e mapas do corpo humano. A comunidade escolar que compõe o quadro discente da escola caracteriza-se, como já citado, por crianças provenientes de bairros populares, compondo um quadro de alunos predominantemente negros que não passa despercebido ao olhar de qualquer observador. Naturalmente, esse aspecto foi substancialmente considerado em todo o contexto da presente pesquisa. Apesar da maioria desses alunos compartilharem relativamente de uma mesma cultura, no sentido dos códigos lingüísticos e existenciais que, em tese, devem fazer parte das vivências da cultura negro-africana, compreendemos que, na prática, muitas outras influências colaboram para a construção do reconhecimento identitário de cada um deles. O acesso a diferentes elementos que falam ou negam a diversidade cultural também faz parte do território conhecido de algumas crianças que pertencem a classes sociais distintas da maioria dos alunos. Logicamente, a predominância afro-brasileira não impede que existam crianças mais ou menos favorecidas economicamente, convivendo em um mesmo espaço escolar, trocando experiências e compartilhando saberes que emanam dos universos culturais provenientes das diferentes classes. Percebe-se que essas diferenças se evidenciam de forma discreta nas 27 turmas do Ensino Fundamental I e talvez possam ser mais nítidas nos reflexos da aprendizagem dos alunos, quando efetivamente se fazem presentes elementos importantes na construção do conhecimento e na formação cultural e humana da criança ao que a ausência destes, compete para o já conhecido e enfrentado fracasso escolar. Em tempo, as problemáticas em torno da aprendizagem e suas relações com as diferentes condições socioeconômicas e culturais destes alunos não cabem na abordagem deste breve estudo, tal qual seja a sua complexidade que de nenhuma maneira seriam abrangidas nos parâmetros deste trabalho. Segundo informações da diretora da escola, apesar das origens étnico-culturais afrodescendentes hoje facilmente visualizadas no cotidiano destas crianças através de gestos, atitudes, brincadeiras, códigos lingüísticos, estéticos e corpóreos, presentes nas interações entre elas, observou-se que nem sempre essa atitude era assumida com tanta facilidade. Em outros tempos, talvez não tão recentes, os alunos apresentavam dificuldades significativas, principalmente no auto-reconhecimento de sua ascendência negra. Muitas delas, com características fenotípicas da etnia negra, se auto declaravam brancas e buscavam se aproximar ao máximo da imagem percebida por elas como aceitável e, por isso, a ser seguida nos espaços sociais. Sabemos que: A inculcação de uma imagem negativa do negro e de uma imagem positiva do branco tende a fazer com que aquele se rejeite, não se estime e procure aproximar-se em tudo deste e dos seus valores, tidos como bons e perfeitos. Esse processo de fuga de si próprio e dos seus valores, é conseqüência da política de branqueamento característica do Estado e das suas instituições oficiais. (SILVA, 1989, 57) As conseqüências desse processo ideológico construído a partir de interesses das culturas dominantes em manter a sua hegemonia, sem dúvida, perduraram por muito tempo nas relações humanas em nossa sociedade. Mas muitas dessas posturas já se configuram de forma diferente, com atitudes políticas conscientes entre os seus pares, alcançadas naturalmente pelas mudanças sócio-político-culturais assistidas na história da sociedade brasileira. O uso de tranças ou do cabelo black por algumas alunas são exemplos incontestáveis dessas modificações nos conscientes individuais e coletivos, pois, por mais que muitas crianças tenham aderido a essa estética mais por tendências aliadas à moda e menos pela conscientização de seu significado simbólico, apenas o fato de aceitarem em seu corpo traços 28 pertinentes a uma cultura dantes rejeitada, denota certa identificação/valorização dessa memória ancestral tão expressiva em nossa referência de humanidade. Evidentemente, ainda existem inúmeros casos de auto-negação das origens étnicoculturais das crianças negras do CEARC, bem como uma infinidade de conflitos que se constroem no campo visível e invisível das relações humanas existentes em seus espaços, mas certamente já existe um lugar dentro do processo de formação da identidade desses alunos, que se move constantemente na busca de referências ancestrais de sua humanidade e já não mais se contentam com a realidade desigual historicamente naturalizada, que se desenha diante dos seus olhos. 29 4 A PRÁTICA DOCENTE NA APLICAÇÃO DA LEI E SUAS DIFICULDADES O contexto escolar para a realização de ações educativas que perpassem pelas questões da temática racial é, por natureza, diverso como a própria sociedade na qual está inserido. A idéia de uma sala de aula homogênea onde todos se relacionam harmonicamente já não se sustenta nos cursos de formação docente como em outras épocas. Apesar disso, o percurso de estudos que se faz dentro dessa formação, no sentido de uma capacitação profissional sintonizada com a construção de novas relações étnico-raciais caminha de forma discreta em relação aos conflitos reais que o professor se depara em seu cotidiano profissional. Nele, os desafios lançados pela existência de estereótipos já construídos socialmente, bem como as atitudes de auto-rejeição e rejeição do outro igual, desafiam o professor, a todo instante, a uma intervenção para a criação de outros olhares que desconstruam representações preconceituosas sobre a cultura negra ou a se omitir perante essa realidade por razões relacionadas à formação, recursos didáticos e outras questões. Ao observar as questões que estão implicadas no preparo docente para a temática, incluídas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (2005), encontramos que: [...] há necessidade, como já vimos, de professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimento e, além disso, sensíveis e capazes de direcionar positivamente as relações entre pessoas de diferentes pertencimento étnico-racial, no sentido do respeito e da correção de posturas, atitudes, palavras preconceituosas. (BRASIL, 2005, p.17) Considerando a complexidade da prática educativa e as relações que a permeiam, apresenta-se ao professor, enquanto mediador dessas relações, a necessidade de compreender em qual contexto se insere sua prática, ou seja, de que maneira as atitudes dos alunos frente às situações que vivenciam na escola ou fora dela, influenciam na constituição de sua identidade e da visão que constrói de si mesmo em relação ao outro. Mesmo diante de inúmeras evidências da importância do educar para a diversidade étnico-cultural, em eventos diversos1, alguns dos quais já participamos, em que são abordadas as questões relacionadas à prática docente no sentido da aceitação do professor em relação ao ensino da história e cultura afro-descendentes, ainda se ouvem vozes de professores que esbarram em dificuldades na integração pedagógica, causadas por colegas que resistem e 1 Fora do CEARC 30 acreditam não ser exatamente esse o papel da escola, ou que talvez se trate apenas de um problema socioeconômico. Demonstra-se visivelmente, certo desinteresse pelo tema que se alterna com a idéia de que essa parte cabe aos militantes da causa negra ou a outras organizações sociais, e que em sua sala não entram assuntos que, em sua concepção eurocêntrica, não abordem os conteúdos curriculares sedimentados ao longo dos anos para um ensino-transmissão do saber. Tais atitudes comprovam categoricamente que a “[...] escola que formou os(as) profissionais da educação que atuam hoje se baseou numa perspectiva curricular eurocêntrica, excludente e, por vezes preconceituosa.” (MONTEIRO, 2006, p.125) Quando se fala em aplicação das propostas incluídas na Lei 10.639/03, torna-se necessário levar em conta a questão acerca de quem são os profissionais a quem essas propostas estão sendo direcionadas para serem desenvolvidas, ou seja, de que lugar eles falam, como se sentem ou se vêem em relação aos aspectos da diversidade afro-brasileira, a fim de que se conheçam e se reconheçam no trabalho com as africanidades brasileiras. Assim como a criança negra encontra dificuldades para se afirmar como ser humano em todas as dimensões de sua ancestralidade, pelo fato de desconhecer os processos civilizatórios africano e afro-brasileiro que compõem a sua origem étnica, os professores também se vêem em conflitos, ou mesmo despreparados para a mediação de uma abordagem que eles mesmos não se reconhecem, desconhecem ou não se vêem inseridos e familiarizados com os seus aspectos principais. Por causa disso, [...] é preciso que os(as) educadores(a) compreendam que o processo educacional também é formado por dimensões como a ética, as diferentes identidades, a diversidade, a sexualidade, a cultura, as relações raciais, entre outras. E trabalhar com essas dimensões não significa transformá-las em conteúdos escolares ou temas transversais, mas ter a sensibilidade para perceber como esses processos constituintes da nossa formação humana se manifestam na nossa vida e no nosso próprio cotidiano escolar. (GOMES, 2005, p. 147) Nesse contexto, o papel do Estado torna-se fundamental não somente sancionando a lei, mas apoiando de maneira prática a operacionalização do trabalho em questão, uma vez que o mesmo passa a existir em um espaço-tempo em que já se haviam consolidado outras práticas educativas invisibilizadoras e redutoras dos valores afro-brasileiros e africanos das quais os atuais professores fizeram parte enquanto alunos. A história da prática pedagógica é marcada em suas diferentes dimensões por representações que se mostraram completamente destituídas dos conteúdos que abrangem os processos civilizatórios africano-brasileiros e a presença da cultura negra em uma imagem 31 positiva. Em tempo, as teorias científicas que se formaram no período pós-abolição viriam reforçar essas representações, criando uma falsa impressão de sua natureza incontestável dado o seu caráter científico. Dessa forma, a cultura eurocêntrica, a fim de manter as suas formas de dominação política, econômica e sociocultural na sociedade, reafirma gradativamente as concepções de inferioridade do negro propagadas em todas as esferas sociais, retirando-lhe o direito e a possibilidade de inserção cidadã e digna na sociedade que ajudara a construir. Nesse contexto, a instituição escolar absorve de maneira sutil as idéias difundidas socialmente e se transforma, através dos recursos didáticos e práticas racistas implícitas no seu cotidiano, em uma instância poderosa de difusão de tais idéias. Para Luz (2001), a postura da escola é decisiva perante essas questões uma vez que: A opção institucional por essas arkhés alheias à nossa identidade étnicocultural predominante vem produzindo, ao longo dos séculos, políticas educacionais que procuram recalcar o contínuo civilizatório africano e aborígene. (LUZ, 2001, 23) Os resultados desse processo se refletem em uma sociedade, bem como em uma comunidade escolar caracterizada, em sua maioria, por identidades fragmentadas, desprovidas de sentido no âmbito de suas origens étnico-raciais e permeada de relações conflituosas no que tange aos aspectos das diferenças e da diversidade cultural que compõe a nação brasileira. Dessa forma, a presença do sistema estadual de ensino no apoio à formação continuada que atenda plenamente aos aspectos previstos na legislação educacional referentes às relações étcnico-culturais, contribui estrategicamente para a construção de experiências de formação que possibilitem vivências culturais, comunitárias, organizacionais nas comunidades negras, nos lugares históricos e por meio dos materiais teóricos para ampliação do referencial pedagógico necessário para este trabalho. Nos estudos realizados acerca da contribuição das festas dos quilombos contemporâneos como fator formador e recriador de identidades, Moura (2005) alerta para a importância do reconhecimento identitário do professor em relação à sua prática educativa ao afirmar que: Instigar e informar os mestres quanto à sua história e à sua identidade é um começo de caminho para se mudar o panorama educacional. Os professores precisariam se reconhecer no que ensinam, conscientizando-se da formação pluriétnica do povo brasileiro e aceitando suas próprias origens, para que pudessem ensejar um processo educativo na escola mais adaptado à 32 realidade nacional, levando os alunos a também desenvolver uma atitude afirmativa com relação à sua própria identidade. (MOURA, 2005, p.80) Acrescentamos a esse pensamento, a necessidade do acesso, ou antes, da existência de materiais didáticos e recursos materiais que possibilitem estratégias para o trabalho que alcance a realidade sócio-cultural dos alunos e suas experiências individuais, coletivas e comunitárias. Nesse sentido, as experiências formadoras dos educadores precisam estar vinculadas ao atendimento dessas necessidades, pois mesmo existindo abordagens em eventos e cursos de formação continuada para a competência na aplicação da Lei nas escolas, a inexistência ou escassez de material didático para subsidiar as intervenções, certamente irá interferir na qualidade dos processos de aprendizagem nas dimensões objetivadas. A análise das informações obtidas permite uma breve compreensão do contexto atual da prática educativa no que se refere à aplicação da Lei 10.639/03 nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental no Colégio Estadual Adroaldo Ribeiro Costa. O projeto-políticopedagógico da escola aponta para o respeito nas relações pessoais, à cultura, às questões raciais e à pluralidade cultural. Além disso, a escola está aberta à realização de projetos que sejam de interesse dos alunos e da comunidade em geral. No ano letivo em que a pesquisa se realizou estavam em curso os projetos Escola aberta e Consciência Negra que são sintonizados com a causa negra no sentido da afirmação existencial e cultural dos valores civilizatórios africanos e afro-brasileiros, mas não diretamente ligados ao ensino curricular. O Projeto Escola Aberta propõe, como sugere o nome, uma abertura no sentido de absorção e inserção da comunidade local para o espaço escolar. A importância de um trabalho como este pode ser compreendida nos aspectos que estão no âmago da história do cotidiano escolar, caracterizado durante muito tempo por apenas uma voz: a voz de uma formação educativa moldada por dimensões lingüísticas e simbólicas das concepções coloniais. Primando pela evidência de formas de expressão inerentes às particularidades dos sujeitos que fazem parte da escola percebemos que: Essa linguagem, que comunica o saber da visão de mundo negra, em muito se diferencia dos elementos de comunicação que caracterizam a transmissão do saber no sistema de ensino oficial. (LUZ, 1989, p.13) Devido a essa diferenciação das formas oficias de comunicação existentes na escola, as possibilidades desse projeto vislumbram a interação da comunidade local com a comunidade escolar, a sua presença nos espaços escolares através das diferentes linguagens simbólicas e o seu envolvimento em um lugar que foi durante muito tempo legitimado socialmente como espaço privilegiado de poucos. 33 O projeto realiza oficina de danças, pinturas em esteiras e outros materiais, percussão, informática, entre outras atividades, sempre buscando uma abertura e integração com a comunidade. Os trabalhos produzidos no projeto refletem uma visão valorizadora do negro e de seus costumes através de imagens positivas desses elementos. Esses trabalhos se incluem na perspectiva da educação para a diversidade e estima do pertencimento étnico africanobrasileiro e colaboram para um repensar das atitudes e visões negativas das diferenças, pois estão sempre sendo apresentados às crianças nos eventos e expostos nas salas de aula, gerando certamente indagações e novos olhares para os alunos que os percebem. O projeto Consciência Negra busca integrar a escola como um todo, propondo uma culminância das atividades realizadas durante o ano letivo, movidas pelo pensamento do respeito às diferenças culturais e pela postura valorizadora das territorialidades afrobrasileiras que fazem parte da formação cultural do país, outrora ocultadas. Com esses objetivos o projeto naturalmente ocorre na data comemorativa de 20 de novembro abrangendo um período de aproximadamente uma semana para que todas as turmas possam expor seus trabalhos que podem ser cartazes, dramatizações, podem também recitar poesias de artistas negros, expor objetos artesanais produzidos, apresentar danças, pesquisas, entre outros. É importante, porém, atentar para que esses trabalhos não se realizem apenas em períodos próximos à Semana da Consciência Negra, caracterizando-se como uma prática apenas por ocasião da data comemorativa como há muito tempo vinha ocorrendo. Entretanto, a aproximação do trabalho pedagógico dos processos civilizatórios que compõem a cultura afro-brasileira precisa estar presente de uma forma interdisciplinar que vai muito além de eventuais citações oportunas do assunto, com vistas à promoção de uma nova realidade escolar que venha a resultar em uma consciência política e cidadã em todos os aspectos do pertencimento étnico-cultural, ou seja, da identidade da criança negra. As perguntas constantes dos questionários direcionadas aos docentes e à coordenação pedagógica buscaram essencialmente percepções acerca: da apropriação e abordagem educativa na pratica escolar dos conhecimentos referentes à temática africana e afrobrasileira; da formação inicial e continuada na realização das propostas contidas na Lei; dos recursos didáticos acessíveis; do reconhecimento pessoal como parte de uma sociedade formada pela diversidade e do conhecimento dos profissionais acerca dos aspectos étnicoculturais que compõem as relações sociais e escolares das quais são mediadores. Os resultados obtidos apontam para a sensação de despreparo do educador frente às abordagens interdisciplinares propostas pela temática para a superação de uma prática apenas em datas comemorativas e feriados oficias. A começar pela formação inicial que para a 34 maioria dos docentes em exercício não contemplou questões que pudessem prepará-los para uma prática de desconstrução de estereótipos acerca da cultura e tradição africano-brasileiras. Ainda nesse contexto, inclui-se a formação continuada que é contemplada em algumas ações realizadas pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia através da criação da Coordenação de Diversidade Negra, de Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos, cuja meta prioritária é a inclusão da temática negra na educação da Bahia. Suas propostas visam à promoção de programas de formação continuada de professores para esse tema, porém, tais ações ainda configuram-se insuficientes para abranger o universo docente em questão. Salientamos a importância da parceria da Secretaria de Educação com instituições como a Secretaria de Promoção da Igualdade (SEPROMI), Secretaria de Cultura (SECULT), Instituto Anísio Teixeira (IAT) e universidades na elaboração de programas de formação continuada nesse sentido. Mas apesar da existência desses cursos, poucas de suas vagas alcançam as possibilidades reais de os professores poderem participar. Entre as quatro professoras do Ensino Fundamental I que responderam à pesquisa, apenas duas participaram de cursos ou eventos relacionados ao tema, sendo que estes não foram promovidos pela rede estadual de ensino. Levando em conta o grande número de docentes à procura dos mesmos e a quantidade insuficiente de vagas, os professores se vêem em condições pouco favoráveis à sua inserção nos cursos. Muitos ainda realizam outras atividades em horários opostos ao turno de trabalho não podendo, consequentemente, participar dentro do horário do expediente pela inviabilidade de se ausentar da sala de aula por um longo período devido à falta de professores substitutos. Às dificuldades relacionadas à preparação docente para o reconhecimento e educação das relações étnico-raciais, podem-se acrescentar outros fatores, como por exemplo, o material didático disponível e o referencial teórico do assunto. Os professores apontaram uma grande deficiência de materiais que possam subsidiar seu trabalho na produção de atividades relacionadas aos processos civilizatórios afro-brasileiros e temas afins. Por causa disso, boa parte deles realiza essas atividades tendo como base informações de revistas, jornais, estudos encontrados na área acadêmica, vídeos e materiais dessa natureza, nem sempre adaptados didaticamente. Além disso, o livro didático se configura em uma fonte significativa de informações a respeito, o que, em muitos casos, observou-se que pode acabar se tornando o eixo norteador das ‘abordagens oportunas’ de acordo com os conteúdos do livro naquele momento, podendo limitar-se a uma concepção superficial e fragmentada dos saberes previstos para essa prática. Sobre o apoio na questão material didático, podem ser encontradas no site oficial da 35 Secretaria de Educação do Estado da Bahia (2009), informações sobre as ações realizadas para a implementação das propostas constantes da Lei 10.639/03. Entre as que já se concretizaram encontra-se a distribuição de 5.000 filmes “Quilombos da Bahia” e 30.000 livros “Consciência Negra” nas escolas. Quanto ao alcance dessa meta no CEARC constatouse a entrega de dois filmes e o referido livro acima não foi localizado como entregue pela diretora. Aos inúmeros prejuízos – a curto e longo prazo – para os alunos, assumidos por estes professores, somam-se as conseqüências visíveis nos resultados educativos: uma visão superficial, por vezes equivocada dos processos civilizatórios que constituem os valores milenares da História Africana e afro-brasileira, sendo estes, em algumas falas, reduzidos aos saberes encontrados em materiais disponíveis em periódicos, reportagens midiáticas e livros didáticos formatados ainda sutilmente de forma eurocêntrica. Apesar da deficiência de materiais teóricos/didáticos e recursos disponíveis, as informações encontradas nos diários, nos questionários e percebidas nas observações indicaram que alguns docentes trabalham dentro de sua realidade com pesquisas, leituras de contos e mitos, dramatizações, produções artísticas, personagens negras que influenciaram a nossa história, entre outros. Os educadores do Ensino Fundamental I têm conhecimento da existência da Lei 10.639/03 e suas propostas, mas um percentual em torno da metade deles expressa um sentimento de isolamento para com a aplicação das mesmas, reduzindo, em alguns casos, à abordagem comemorativa ou conteudista do livro didático ou à sua completa inexistência. Afirmam, portanto, disporem de poucas informações e trabalham com elas dentro de suas possibilidades. Diante disso, reafirma-se a necessidade de um comprometimento integral de toda a escola para levar à concretização dos objetivos almejados pelos pressupostos incluídos na lei. Sendo o Ensino Fundamental I do CEARC formado predominantemente por crianças afrodescendentes, esse segmento de ensino encaixa-se perfeitamente nas necessidades apontadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais (2005) quando esclarece que: Reconhecer exige que os estabelecimentos de ensino, freqüentados em sua maioria por população negra, contem com instalações e equipamentos sólidos, atualizados, com professores competentes no domínio dos conteúdos de ensino, comprometidos com a educação de negros e brancos, no sentido de que venham a relacionar-se com respeito, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes e palavras que impliquem desrespeito e discriminação. (BRASIL, 2005, p.12) 36 Considerando integralmente as implicações apontadas pelas Diretrizes, que se envolvem na prática cotidiana de uma dimensão educacional que valoriza o processo civilizatório afro-brasileiro, torna-se relevante a observação em termos de auto-reflexão, a respeito da motivação individual do professor para este trabalho. Tendo em vista as inúmeras dificuldades que tornam incipiente o trabalho com a temática nos Anos Iniciais do CEARC, o estímulo pessoal do próprio educador na busca de recursos que o auxiliem na realização deste trabalho perpassa por várias outras questões que o nosso trabalho não poderia abranger, como também não é exatamente o objetivo. Ainda assim, convém salientar que esta dimensão da questão reveste-se de uma relevância muito grande na medida em que traz em seu interior, fatores relacionados à própria identidade do professor enquanto cidadão consciente de seu pertencimento a uma origem étnica. Sua visão a respeito dos conceitos referentes à cultura negra, sua percepção no cotidiano escolar de elementos que indiquem atitudes e posturas preconceituosas, implícitas em brincadeiras, apelidos e outras formas de rejeição do outro ou de si mesmo, são decisivas para desfazer um ambiente escolar hostil às origens africano-brasileiras. A realidade que se mostra cada vez mais denunciadora das relações preconceituosas no espaço escolar, demonstra que: “Silenciar-se diante do problema não apaga magicamente as diferenças, e ao contrário, permite que cada um construa, a seu modo, um entendimento muitas vezes estereotipado do outro que lhe é diferente.” (CAVALLEIRO, 2006, p. 21) Com isso, tais percepções acompanhadas de intervenções docentes desconstrutoras dessas representações discriminatórias, fazem uma grande diferença nos elementos formadores da identidade das crianças negras. Nas observações de trabalhos pedagógicos como cartazes, murais temáticos sobre a diversidade regional e cultura popular, construídos em sala de aula, alguns assuntos estão presentes em datas comemorativas como o folclore, trazendo a imagem do negro tradicionalmente pitoresca e cristalizada em um passado representado de forma desprovida de elementos existenciais de sua territorialidade e alheios aos princípios culturais e valores milenares do qual faz parte. Nos planos de curso e diários, os professores procuram abordar mais especificamente na disciplina de História, os assuntos que tratam dos temas ligados a problemas sociais, como desigualdades, relações de gênero, racismo, preconceito, discriminação, escravidão, cultura e tradições africanas, manifestações culturais e, em alguns casos, conhecimento do continente africano, herança e contribuição negra na formação social do Brasil e beleza afro-brasileira. Apesar disso, os professores reconhecem a importância da promoção das mudanças no 37 interior das relações sociais existentes, reconhecendo que muitos conteúdos levantados nos encontros diários com os alunos poderiam ser mais bem explorados se houvesse um maior referencial didático-pedagógico por parte dos professores, pois: Diante desse cenário, as crianças negras, sua vida e suas famílias são negadas diariamente, por professores e professoras que também desconhecem sua identidade, por colegas e por todos que as relegam a uma dupla negação, de ser criança e ser criança negra na nossa sociedade. (SALVADOR, 2005, p. 23) Cientes da problemática que se forma em torno do quadro atual, as educadoras defendem mudanças que caminhem na direção do respeito à diferença, ultrapassando os complexos de inferioridade e desculturação reforçados através das atitudes, dos hábitos, pensamentos e estereótipos que permeiam as relações humanas. A composição cultural diversificada da nação brasileira, predominantemente afrodescendente, expressa uma imperiosa necessidade dos educandos terem acesso aos “[...] valores e linguagem do processo civilizatório negro africano na formação social brasileira, e seu real significado na constituição da nossa identidade própria.” (LUZ, 2000, p.19) As explanações referentes aos estudos sobre a aplicação da Lei nesse segmento de ensino demonstram que a tímida participação do poder público no apoio à escola na abordagem dessa temática para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, colabora apenas para o retardamento de um processo de desconstrução de práticas educativas e relações interpessoais que há muito tempo confirmam a constatação de que: A escola não leva em conta o saber diferenciado que o aluno pode trazer da vivência do seio de sua família, aprendido com seus pais e avós ou no seu meio social de origem. Assim, ela desconhece a origem étnica dos alunos e a formação cultural de sua clientela. (MOURA, 2005, p. 79) Quando refletimos sobre os estudos a respeito da prática pedagógica homogênea indiferente à alteridade - historicamente consolidada na escola, principalmente nos anos iniciais, podemos compreender mais claramente como, ao longo dos anos, esse processo produziu conseqüências negativas para as identidades das crianças dessa faixa etária, como por exemplo, a invisibilidade no cotidiano escolar e a baixa auto-estima. Sabendo-se que é exatamente nesse período que a criança começa a ter um contato social cada vez maior com seus pares, trazendo naturalmente para a sua vida escolar, suas referências familiares e comunitárias, esse é o momento crucial para que ela construa gradativamente uma consciência político-cultural autônoma e ativa perante a conjuntura social que vivencia. 38 Nesse contexto, a importância da prática pedagógica comprometida com uma abordagem que mergulhe nos espaços étnico-culturais dos quais faz parte, auxiliará, sem dúvida, o aluno a sentir-se parte de uma história com valores e vivências riquíssimas, que traduzem um ser e um existir de sua ancestralidade, significativos e também formadores da sociedade em que vive, concebendo-se como parte dela com dignidade e orgulho. À luz das reflexões desenvolvidas a partir das vivências dos atores escolares aqui referenciados, abre-se espaço para o repensar das posturas docentes numa busca constante de preparo para o trabalho com a diversidade, bem como para um reconhecimento e constantes reivindicações da responsabilidade e compromisso dos agentes envolvidos na direção do sistema de ensino. As ações a respeito dos pressupostos educacionais de caráter legal que se caracterizam pela defesa de uma educação pluriétnica na promoção da igualdade e dignidade das relações humanas, podem caminhar no sentido da desconstrução das hierarquias entre as culturas, da afirmação da diversidade cultural da sociedade brasileira e do conhecimento/resgate da história e cultura afro-brasileira como eixo central da identidade étnico-racial das crianças negras. Trabalhar os temas pertencentes à cultura negra não apenas em datas comemorativas é um passo importante para uma mudança de valores, uma vez que o aluno poderá estabelecer durante todo o ano letivo um diálogo constante entre os conteúdos étnico-culturais e os demais assuntos, ajudando-o na elaboração de uma consciência político-cultural que esteja atenta à dignidade do cidadão e o respeito às diferenças. 39 5 AUTO-ESTIMA, IDENTIDADE E RELAÇÕES SOCIAIS DAS CRIANÇAS NEGRAS QUE FAZEM PARTE DOS ANOS INICIAIS DO COLÉGIO ESTADUAL ADROALDO RIBEIRO COSTA (CEARC) Uma das formas mais comuns na manutenção das ideologias e alienações existentes em nossa sociedade basicamente perpassa pelo desconhecimento e ocultação da realidade que se busca camuflar. Entre os diferentes conflitos sociais de que se tem notícia, a questão racial esteve presente nos diferentes momentos históricos, também marcada por situações naturalizadas aparentemente e que eram geradas com o intuito de amenizar as injustiças, através de imagens estrategicamente construídas para esse fim. Mesmo após a abolição da escravatura os negros não foram vistos com bons olhos pela sociedade no sentido de serem resguardados os seus direitos básicos enquanto cidadãos comuns. As imagens e idéias que giravam em torno da coexistência de outras culturas com a cultura afro-descendente se basearam em conteúdos preconceituosos, sentimentos de superioridade em relação aos afro-brasileiros, além das diversas ações legais que visavam impedir de todas as formas possíveis uma convivência baseada no direito à igualdade social considerando as diferenças. Naturalmente, as situações que se formavam em torno desses conceitos não podiam ser admitidas de forma explícita. Seria preciso uma construção ideológica aceitável que pudesse dar conta de “justificar” as atrocidades cometidas durante a escravização dos africanos e afro-descendentes em nome de interesses colonialistas, e que também se estendesse sutilmente pelo período pós-abolição. Assim, nesse período, [...] os pressupostos da inferioridade das raças não-brancas, da natureza racial das diferenças de classe (que inferioriza as massas, mesmo as de fenótipo branco) e da atribuição da degeneração racial à mestiçagem, tornaram-se os principais dogmas do racismo científico. (SEYFERTH, 2002, p. 20) Essas construções, sendo absorvidas gradativamente pela população, possivelmente contribuiriam para uma cristalização da inferioridade atribuída ao negro, cada vez mais apoiadas cientificamente, dificultando possíveis questionamentos plausíveis no assunto. Assim, a história da formação da sociedade brasileira traz a diversidade em seu âmago, porém, as tradições culturais milenares dos diferentes povos que dela fazem parte, aparecem de maneiras caricaturadas e muitas vezes recalcadas pelos interesses da cultura dominante. Essas imagens culturais reduzidas e esvaziadas das fontes civilizatórias das 40 origens africano-brasileiras, bem como dos valores patrimoniais da nossa ancestralidade, priorizam sedimentar em cada esfera social uma representação do negro vinculada à pobreza, à incompetência para o crescimento profissional e, principalmente, ao sofrimento causado no período escravista. Desprovida dos reais motivos que introduziram a mão-de-obra escrava no período colonial em várias partes do mundo, essas representações traduzem a idéia de que o único caminho era esse, ou que os negros já teriam, por natureza, uma tendência a essa situação, combatendo e omitindo, inclusive, as muitas formas de resistência que aconteciam por todo o mundo. Entre os inúmeros caminhos para a legitimação dessas idéias, o espaço escolar, seu cotidiano e as interações nele existentes se constituem como um dos mais eficientes. Operando dentro de um conceito de educação de origem essencialmente eurocêntrica, em que o saber só acontece para dentro dos muros escolares, outras formas de saber, provenientes das tradições milenares, nutridas pela ancestralidade africano-brasileira foram categoricamente desconsideradas. Com isso, o lugar para a propagação de uma visão estigmatizada do negro foi se ampliando e ecoando potencialmente nas mentes e identidades afro-brasileiras desde a sua formação. Ao apontar as mensagens veiculadas pelos meios didático-pedagógicos visando o fortalecimento desses estigmas Lima (2005) alerta que [...] quando personagens negros entram nas histórias aparecem vinculados à escravidão. As abordagens naturalizam o sofrimento e reforçam a associação com a dor. As histórias tristes são mantenedoras da marca da condição de inferiorizados pela qual a humanidade negra passou. Cristalizar a imagem do estado de escravo torna-se uma das formas mais eficazes de violência simbólica. (LIMA, 2005, p. 103) Dessa forma, as idéias que se transmitem diariamente pelos meios de comunicação no ambiente escolar ou fora dele, e pelas relações sociais que aí se estabelecem, reforçam uma condição já ultrapassada da cultura negra, que por muito tempo foi reprimida e associada ao único aspecto da escravização, colaborando para o enfraquecimento de identidades em formação das crianças afro-brasileiras. A eficiência desses processos estigmatizadores da condição sociocultural subalterna do negro se dá com muito mais força em crianças que, em fase de formação da concepção de si mesmas enquanto cidadãs, se vêem em um ambiente social bastante hostil às suas origens étnico-culturais, e que, em muitos de seus espaços, renega a afirmação existencial de sua cultura. 41 Inevitável não pensar nos conflitos que se originam dessas questões, ou seja, nas identidades que se fragmentam e que se confundem nessa dinâmica de reconhecer-se culturalmente. Lima (2005) considera ainda que o problema não é a abordagem sobre a escravidão com o objetivo de conhecer a história e os fatores pertinentes à sua complexidade, e sim, à repetição dessas temáticas nessa única perspectiva, como se a respeito das africanidades e seu legado milenar, nada mais fosse relevante, esvaziando assim as matrizes étnicas e seus contínuos civilizatórios aqui no Brasil. Ao compreender essas abordagens nas relações sociais, especialmente na prática educativa, percebe-se que o “[...] ponto nevrálgico está em esta ser a quase única imagem apresentada para se reconhecerem. A restrição impede as demais escalas de identificação.” (LIMA, 2005, p. 104) As restrições representativas criadas a partir dessas relações, vão de encontro à necessidade que a criança tem de uma convivência saudável com a alteridade a fim de reconhecer-se em sua diferença diante do outro, respeitando-o e ao mesmo tempo orgulhandose de si mesmo no sentido de pertencimento étnico-cultural. Nessa dinâmica que reafirma marcas negativas históricas muitas vezes confundidas com desigualdades sociais, um modelo ideal de beleza se recria no dia a dia, através das mensagens trazidas pelas experiências cotidianas dessas crianças, pois as “[...] formas de discriminação de qualquer natureza não tem o seu nascedouro na escola, porém o racismo, as desigualdades e discriminações correntes na sociedade perpassam por ali.” (BRASIL, 2005, p. 14) Por causa disso, muitas delas se percebem isoladas das outras, rejeitadas por algum valor social não alcançado por elas por razões que elas mesmas não entendem ou ainda estão começando a compreender. Na medida em que essas relações étnico-raciais se fortalecem nessa perspectiva, inúmeros prejuízos são evidenciados na vida escolar dessas crianças sendo que, em muitos casos, são atribuídos a eles causas individuais, sociais ou biológicas. Assim, essas crianças negras acabam se constituindo dentro de um convívio mediado por práticas sócio-históricoculturais que invisibilizam suas origens étnicas, simbologias, costumes, mitos e filosofias provenientes dos patrimônios ancestrais da cultura africano-brasileira. Essas vivências fatalmente produzem em muitas dessas crianças, identidades recalcadas, sem uma clareza em termos de referenciais culturais, considerando que as “[...] crianças que lidam com situações de negação de sua identidade poderão passar por muitos conflitos que podem comprometer sua socialização e aprendizagem.” (SANTANA, 2006, p. 45) 42 Partindo dessas concepções, nos elementos extraídos da nossa pesquisa, muitos desses aspectos foram observados e constatados nas falas e imagens, que as crianças do Colégio Estadual Adroaldo Ribeiro Costa (CEARC) expressaram através das entrevistas coletivas. Participaram do diálogo, dois alunos de cada turma dos Anos Iniciais, formando dois grupos (matutino e vespertino) de 8 crianças aproximadamente, com faixas etárias variadas devido ao ano escolar em que cada uma se encontrava no momento. Considerando que a herança cultural que existe no Brasil e, principalmente, na Bahia está muito ligada à cultura africana e às formas de resistência criadas pelos negros que foram escravizados, as crianças têm isso claro para si mesmas, ao mesmo tempo em que vislumbram essa concepção de uma maneira fortemente unilateral. Em geral, sua compreensão acerca da cultura negra está amplamente ligada às questões da escravidão e se lembram nitidamente de situações que trazem essa idéia ao tema da negritude. Aliado a isso, percebemos que a idéia que têm da África está dividida entre pobreza e riqueza, mais pobreza do que riqueza na verdade, uma idéia intencionalmente difundida, principalmente, pela maioria dos meios de comunicação de massa. Observando esses aspectos e o peso que têm na formação humana e identitária da criança afro-descendente Santana (2006) lembra que: A rara presença de pessoas negras como protagonistas de programas infantis é um exemplo de como através da invisibilidade a mídia demarca seus preconceitos, contribuindo para que tanto crianças negras como brancas não elaborem referenciais de beleza, de humanidade e de competência que considerem a diversidade. (SANTANA, 2006, p. 45) Os elementos culturais que os alunos reconhecem em nosso cotidiano foram diversos, como por exemplo, a comida e a estética. Alguns deles afirmaram gostar, outros não. Observamos que essas preferências estão ligadas à praticidade, à beleza ou simplesmente aos seus gostos particulares. Em algumas falas, expressaram suas preferências em relação a alguns elementos culturais africanos e afro-brasileiros, mas não se percebe em suas falas uma relação identitária consciente ou clara para com os diversos aspectos da cultura negra. Na realidade, quando foram chamadas a pensar em detalhes sobre os valores tradicionais do continente africano, seus costumes, códigos culturais e riquezas dos processos civilizatórios das comunidades africanas, não encontraram referências suficientes em seus conhecimentos que pudessem ajudá-los a formar alguma opinião a respeito. Essa ausência de referenciais culturais civilizatórios afro-brasileiros ficou clara no momento da discussão acerca da existência total de negros na África ou se também haveria 43 brancos. Houve um clima de dúvida que tomou conta da maioria. A visão de um continente pobre, cheio de mazelas, mendigos, rodeado de florestas e muito aquém do “mundo civilizado” que conhecem foi visível nas idéias expostas sobre como é a África. Sobre esse assunto, um dos alunos citou: “Na África tem gente que não pode comer, moram na rua. Tem gente que tem, tem gente que não tem.” E sobre como vivem a maioria dos povos africanos concluiu: “[...] eu acho que lá tem mais gente que mora na rua e passa fome”. A expressão de visões como esta a respeito das origens da nossa ancestralidade cultural nos mostra a importância de uma abordagem escolar que aponte para o reconhecimento e, sobretudo, o resgate da história e cultura afro-brasileira na vida dessas crianças, a fim de desconstruir estereótipos sedimentados ao longo da nossa história. O desconhecimento dos interesses colonialistas que levaram à escravização dos povos africanos, violentando incontestavelmente suas ligações culturais milenares, traz a essas crianças não mais um reforço total da naturalização desse processo histórico, mas ainda, a uma falta de compreensão da realidade passada em que os fatos ocorreram. Dentro da visão estigmatizada da cultura negra que ainda vivenciam em seu cotidiano, a idéia que elas têm dos motivos que levaram à escravidão está ligada à necessidade que os brancos tinham de pessoas para trabalhar para eles e o fato de os negros não terem dinheiro, como uma das crianças afirmou: “[...] porque não tinha nenhuma pessoa negra rica onde eles moravam”. Dessa forma, o trabalho escravo se configura para muitas delas como uma ajuda para essas pessoas que “já eram pobres” e não tinham como se manter na vida. Inferimos através dessas construções expressas que as crianças têm clareza sobre as condições sub-humanas que os negros viveram no passado durante o período em que foram escravizados, trazendo, inclusive, conteúdos de novelas e minisséries que eventualmente assistiram sobre o tema. Apesar disso, demonstram que não entendem direito o que levou a essa situação e qual o contexto histórico e político-econômico da África nessa época. Em análises acerca da apropriação equivocada da realidade absorvida por esses alunos, Luz (2004) chama a atenção dos educadores para a necessidade de se ter [...] muito cuidado e sensibilidade com a seleção de linguagens pedagógicas e o conteúdo ideológico que elas projetam sobre os mundos, a vida e os impactos das mesmas na estruturação das identidades de nossas crianças. (LUZ, 2004, p. 34) Os grupos falaram com entusiasmo o que lembraram ou sabiam sobre o tema, e não se inibiram totalmente ao expor suas preferências. Entre os muitos temas levantados na 44 discussão entre os alunos, o conceito de belo se mostrou vinculado ao modelo de beleza européia como é propagado pela maior parte da mídia e da sociedade, mas apesar disso, não se percebe uma aversão completa aos traços e referências estéticas afro-descendentes. Em alguns momentos, ao pensar nos elementos que fazem parte da beleza negra alguns se dividiram ou mudaram de opinião dependendo dos colegas ou do rumo da conversa. A começar pela palavra afro-descendente que para uns ainda é desconhecida, ao serem indagados sobre seu pertencimento étnico, muitos se dividiram ao declararem-se negros. Alguns, com traços fenotípicos negros, negaram categoricamente, outros, com a tez mais clara também negaram, e ainda outros, nos dois casos, afirmaram-se negros tranquilamente. Os que negaram justificam que seus pais também não são negros, são “brancos”. Houve casos em que apenas a cor da pele sendo mais clara entre todos os outros do grupo entrevistado, se consideraram brancos sem nenhuma dúvida, mesmo tendo outros traços étnicos aparentes. A pouca ou nenhuma identificação com os traços étnicos da cultura africana parece estar intrinsecamente vinculada aos padrões estéticos e comportamentais propagados na nossa sociedade, que se baseiam exatamente em ditames de outras civilizações que pouco ou nada tem a ver com a cultura afro-brasileira. Tais questões se configuram na concretização da ideologia do branqueamento que, segundo Silva (2005) [...] se efetiva no momento em que, internalizando uma imagem negativa de si próprio e uma imagem positiva do outro, o indivíduo estigmatizado tende a se rejeitar, a não se estimar e a procurar aproximar-se em tudo do indivíduo estereotipado positivamente e dos seus valores, tidos como bons e perfeitos. (SILVA, 2005, p.23) Os cabelos, ao mesmo tempo em que para eles aparentemente não representou grandes problemas, também não é visto com orgulho pela maioria. Algumas alunas declararam não se identificar com as referências estéticas africanas relacionadas ao cabelo, simplesmente por não achar bonito ou só achar bonito em outras pessoas. Apesar de a questão da estética dos cabelos não parecer muito incômoda, mesmo assim gerou certa polêmica no grupo, pois as meninas reclamaram do trabalho para “prender” e pentear os cabelos que estão sempre “emaranhados” ou bagunçam facilmente. A postura dessas alunas e alunos frente à questão do corpo remete a aspectos relevantes dessa discussão que sinalizam uma convivência conflituosa em meio ao processo de auto-reconhecimento e auto-estima na constituição de si mesmos como pessoa. As observações permitem deixar claro o legado nocivo à construção da imagem positiva do negro e de sua natureza cultural repleta de simbologias suprimidas historicamente, pois: 45 Sabendo que a identidade negra em nossa sociedade se constrói imersa no movimento de rejeição/aceitação do ser negro, é compreensível que os diferentes sentidos atribuídos pelo homem e pela mulher negra ao seu cabelo e ao seu corpo revelem uma maneira tensa e conflituosa de “lidar” com a corporeidade enquanto uma dimensão exterior e interior da negritude. (GOMES, 2008, p.23) Quanto às tranças, poucas crianças afirmaram que adeririam ao estilo, disseram achar bonito nos outros e não nelas. Relataram que já ouviram meninas negras que não gostam de tranças dizendo ser coisa de negro: “Como se elas não fossem” afirmou uma das alunas. Outra dessas alunas exemplificou: “Têm duas meninas lá na sala que não gostam de trança, porque elas dizem que só negros usam trança. Elas ‘são morenas’.” Nesses relatos feitos pelas crianças, estas observaram claramente o fato de suas colegas se acharem morenas, e descrevendo parte de seus traços físicos, discordaram dessa afirmação. Apesar de este termo ser bastante utilizado para designar tons mais claros da pele, originados da miscigenação, talvez a idéia de ser negro não esteja muito positivada nas representações daquelas meninas, sendo o termo “moreno” utilizado, em parte, de maneira inconsciente ou induzida socialmente para se afastar da afirmação de ser negro. Ainda sobre esse assunto um aluno negro disse ter trançado o cabelo, falando de sua experiência com naturalidade e entusiasmo. Apesar disso, quase todo o grupo afirmou achar feio o cabelo black ou natural: “Acho feio porque o cabelo é todo para cima.” Outras falas expressaram aceitação a qualquer estilo desde que a pessoa se sinta bem: “Para mim, as pessoas deveriam ter o cabelo normal, o cabelo que elas quisessem.” Acerca desses aspectos estéticos tão importantes para a auto-estima da criança negra, percebemos nos discursos destas uma postura bastante insegura perante as indagações que lhes eram feitas. As meninas observaram e até criticaram outras colegas negras que não gostavam de tranças e tinham uma opinião negativa a respeito, mas, por outro lado, elas também não gostam. Não significa dizer que todas as crianças negras precisam trançar os cabelos, porém, há uma relação muito delicada no direcionamento pessoal dessas escolhas diante do coletivo devido às representações eurocêntricas que estas crianças absorvem em torno dessa questão. Nas observações do cotidiano desses alunos, apesar de percebermos um ambiente aparentemente harmônico entre eles, muitos deles se relacionavam por meio de apelidos que se originavam das características físicas. Nesses tratamentos, expressões como “cabelo duro” freqüentemente estavam presentes. Algumas meninas revidavam aos apelidos, outras eram aparentemente indiferentes, e o mais evidente era o fato de os alunos que usavam estes apelidos também serem afro- 46 descendentes. Isso mostra que a “[...] criança que internaliza essa representação negativa tende a não gostar de si própria e dos outros que se lhe assemelham.” (SILVA, 2005, p. 27) Se essas situações se davam durante as aulas, a professora imediatamente tratava de intervir de forma “rápida” para tentar desfazer aquele mal estar. Mas como sabemos, esses aspectos não se restringem à sala de aula, além de serem complexos e importantes o bastante para serem abordados de maneira eventual e corriqueira necessitando de uma prática educativa disciplinar e transdisciplinar, ou seja, que além da sala de aula, ultrapassando os conteúdos curriculares oficias, adentrem os espaços comunitários extra-escolares a fim de resgatá-los e valorizá-los. Durante o recreio, uma das alunas nos chamou a atenção pela maneira bem humorada com que lidava com a situação dos apelidos desrespeitosos sobre o cabelo. Indagada sobre o fato de ela não se chatear, afirmou que já estava acostumada, que não havia nada que pudesse fazer, como se o fato de levar na brincadeira fosse uma forma de não ser mais fortemente atingida em sua auto-imagem. É possível que essa cristalização ou aceitação de sua imagem como realmente composta de um “cabelo duro” tenha sido algo que não se consolidou apenas nas relações dentro da escola. Acerca dessas questões Silva (2005) acrescenta que Os cabelos crespos das crianças afro-descendentes são identificados como cabelo “ruim”, primeiro pelas mães, que internalizaram o estereótipo; e, na escola, pelos coleguinhas, que põem os mais variados apelidos nas trancinhas e nos cabelos crespos ao natural. (SILVA 2005, p. 28) Assim, muitas famílias de origem negra, desprovidas de uma consciência étnica e política acerca desses estereótipos, certamente acabam por reforçar as atitudes de autorejeição e, conseqüentemente, de baixa auto-estima quando até mesmo por um hábito social já internalizado, concordam com esses estereótipos. A importância de um olhar atento para esses fatos se mostra no sentido de compreender um pouco do sentimento que muito desses alunos e alunas têm sobre o corpo negro, mais especificamente os cabelos. Apesar do quadro social atual que vivenciamos, onde um número cada vez mais crescente de pessoas negras de todas as idades, inclusive jovens, se vestem, se penteiam e se mostram de forma a expressar em sua corporeidade, códigos e simbologias que falam de sua ancestralidade, resistência e afirmação cultural, muitas crianças negras ainda não se sentem em condições de desconstruir essas associações negativas em torno de sua aparência, e demonstram uma relativa identificação com os traços étnicos de sua cultura no outro, mas em si mesmas “não fica bonito” como algumas disseram. 47 Sendo a estética negra historicamente construída a partir de imagens que remetem à sujeira, maldade e mau gosto, as intervenções pedagógicas que visam desconstruir essas associações poderão se concretizar na perspectiva de uma apropriação dos valores e simbologias que compõem a corporeidade cultural milenar do povo africano. Logo, Trabalhar a razão de ser dos diferentes tipos de cabelos, ensinar como tratálos, realizar concursos de penteados afro, trazer trançadeiras para trançar na sala de aula, são algumas atividades que podem desconstruir a negatividade atribuída à textura dos cabelos crespos. (SILVA, 2005, p. 28) Os exemplos de práticas pedagógicas trazidos por Silva (2005) deixam clara a necessidade de atividades sócio-educativas que, como já dissemos, ultrapasse os conteúdos curriculares que ainda se baseiam, em sua maioria, em uma lógica simbólica colonialista. Por meio dessa prática poderão surgir possibilidades de transformação dessas relações étnicoculturais preconceituosas em atitudes de respeito e reconhecimento das diferenças fenotípicas e tradicionais de cada um, a partir da consciência dos valores que se perpetuam e se transmitem através delas. Considerando a consciência política das crianças, entendida aqui como a capacidade crítica de compreender os fatores que se articulam em favor dos interesses sócio-econômicos e culturais das classes dominantes, e que, dada a faixa etária desses alunos, essa consciência encontra-se numa fase importante de construção, o conceito de racismo expressa-se como algo já conhecido por elas e, por unanimidade, existente no Brasil, inclusive visto por todas como um crime. Porém, as informações que possuem a respeito desse tema demonstram terem sido apreendidas basicamente por meio das novelas que retratam a escravidão e, em alguns casos, por experiências pessoais. No último caso, relataram uma significativa quantidade de casos com detalhes das situações, em que perceberam pessoas negras agredindo outras sem se conceber como tal também. Nessas condições, uma das alunas demonstrou certa indignação ao ver “alguém negro” rejeitando outro assemelhado: “Eu vi uma pessoa falando: - você é todo preto! Eu falei - não faça isso que você não é preto e ele é a mesma coisa que você!.” A expressão confusa sobre ser ou não ser preto no enfrentamento da agressão do outro, que depois também é declarado por ela como não-preto, parece configurar uma concepção dessa atribuição como algo próximo a uma ofensa ao outro que logo é defendido como não sendo preto mesmo, evidenciando-se um sentimento de rejeição ao ser negro, mediante a um visível desconhecimento sobre essa razão de ser e a estima vinculada a essa afirmação. 48 Em sociedades multiculturais como a nossa, o entendimento da concepção do sujeito por meio de uma trama dialógica entre os seus pares, e as expressões da diversidade humana muito presente em seu cotidiano, perpassam por representações coletivas que são transmitidas e reafirmadas através desses diálogos muitas vezes inconscientes. Nesse sentido, a identidade étnico-cultural do sujeito forma-se em meio à apropriação dos códigos simbólicos presentes nesta sociedade, atentando cuidadosamente para a o resultado da formação dessas identidades ao concordar que a “[...] cultura pode ser entendida como a lente através da qual o homem vê o mundo.” (CANDAU, 2002, p. 73) As situações em que as crianças desviam de si as atribuições físicas naturais de seu corpo como a cor da pele e, por conseguinte, também não as “enxergam” no corpo do outro, por não se sentirem apropriadas de seus significados étnico-raciais, demonstram mais uma vez a auto-rejeição desenvolvida no contato diário com conceitos coletivos que as inferiorizam na dinâmica cultural da sociedade em que vivem. Entendida aqui como as interações que acontecem no cotidiano dos sujeitos sociais, envolvendo técnicas de comportamento aceitas, valores e conceitos imagéticos acerca do outro, “[...] a cultura configura o nosso modo de ser e a maneira pela qual cada grupo social se organiza, estando relacionada a processos extremamente complexos, e, em sua maior parte inconscientes.” (CANDAU, 2002, p. 74) Entre as diversas experiências de discriminação que tiveram ou ouviram alguém contar, as crianças se agitaram mostrando ter muitas situações a relatar. Muitos delas efetivamente já souberam ou vivenciaram uma cena de racismo. Elas lembraram mais as cenas entre crianças, na escola ou fora dela, observando com veemência que crianças negras chamam outras de negras e as que são chamadas afirmam ser mesmo negras, mas mesmo assim ficam chateadas ou revidam lembrando que o agressor também é. Relatando uma experiência pessoal uma aluna contou: “Teve um dia que eu estava na outra sala, aí uma menina chegou e disse que eu era preta. Eu disse a ela que eu sou negra. E ela também é”. A atitude de lembrar o outro a origem étnica atribuída a si, pode significar uma postura de enfrentamento à rejeição do outro através de sua auto-afirmação, como pode também denotar um possível revide como uma maneira de também devolver ao outro o “insulto” recebido. Tais elucidações seriam elementos de estudos específicos sobre este aspecto das interações entre as crianças. Apesar disso, a análise dos significados presentes nas relações constituintes da formação de uma identidade positiva ou negativa de uma criança pode se estender aos 49 elementos primordiais das relações que estas desenvolvem também com os adultos, fontes significativas na transmissão de valores discriminatórios. A importância da consciência política que para Silva (2002, p.49) “[...] é precedida pela consciência racial [...]” é um ponto que deve ser tratado com bastante atenção. Para ela, a criança desenvolve o processo de socialização primária num fluxo constante de mensagens apreendidas nas atitudes dos adultos que fazem parte do seu convívio familiar e comunitário, incluindo a escola. É possível que as mensagens emitidas através das diferentes linguagens simbólicas presentes no cotidiano dos adultos com essas crianças tragam, inconscientemente, conceitos etnocêntricos que hierarquizam culturas, a partir do esvaziamento proveniente das narrativas neocolonialistas da história oficial. Portanto, [...] nessa fase da vida, os membros de seu primeiro grupo de referência não precisam fazer nenhum pronunciamento explícito acerca da importância social da cor da pele para a criança. A atribuição de significado social às propriedades físicas, desde a infância, resulta da compreensão que, paulatinamente, vai se adquirindo em face dos sinais de aceitação ou de rejeição implícitos nas atitudes e nas condutas dos adultos. (SILVA, 2002, p. 50) A importância social da cor da pele no enfrentamento e posterior reflexão crítica das experiências pessoais de discriminação e preconceito vividas pelas crianças pode ser trabalhada nos espaços escolares com objetivos que ultrapassem a simples apreensão desses saberes, destituídos de sentidos no âmbito da dominação sociocultural, a fim de suprir os espaços de conhecimentos culturais, por muito tempo esvaziados dos valores existenciais do mundo negro-africano. Em alguns casos de discriminação ocorridos dentro da escola, as crianças afirmaram terem procurado os professores ou a diretora. Uns relataram ter havido uma resposta por parte da escola e os racistas foram chamados a uma conscientização, acompanhadas para alguns, de advertências ou suspensões dependendo da situação. Porém, muitas situações acontecem longe dos olhos dos adultos, na escola ou fora dela, e são “relevadas” pelas crianças que acabam internalizando ou não as mensagens contidas nessas vivências dentro de sua capacidade crítica de desdobramento político-cultural dessas questões. Situações como essas em que muitas vezes as crianças se vêem “sozinhas” no enfrentamento das mesmas, apenas reafirmam as dificuldades enfrentadas por elas na busca pela auto-afirmação de seus valores existenciais, e na construção de um lugar digno para a sua cidadania, pois: 50 O fracionamento da identidade, a auto-rejeição, a rejeição ao seu povo, a negação do racismo aqui existente e a ausência de participação na luta pela sua destruição, significam um efetivo prejuízo para a luta por direitos de cidadania e respeito à alteridade. (SILVA, 2004, p.34) Mesmo diante da aparente constatação de aquisição de poucos elementos constituidores da afirmação da cultura negra por essas crianças, não podemos afirmar que as mesmas convivem em um estado de entorpecimento cultural de sua condição na sociedade em que vivem. A consciência política da questão racial surge de forma incipiente, mas sem perder sua importância, apesar de tudo. Mesmo não dispondo de um amplo capital cultural, rico de possibilidades para vivenciarem de perto situações extra-escolares que resgatam os processos civilizatórios africano-brasileiros livres de conteúdos etnocêntricos e suas alienações históricas, observa-se que os alunos fazem uso dos saberes que possuem a respeito do racismo, discriminação e outros na constante reelaboração positiva de si mesmos. Em sua maioria, quando relatam que foram vítimas de preconceito ou discriminação, imediatamente contam sua reação com firmeza ao se assumirem negros mesmo, e acusarem o outro de racista, esclarecendo a existência de seus direitos legais como cidadãos, ao invés de apenas abaixar a cabeça e sair. Atitudes dessa natureza demonstram certa clareza e consciência de sua condição social, enquanto pertencente a um determinado grupo étnico, constituindo-se num ponto de partida extremamente valioso para uma educação que prima pela expressão da diversidade e, por conseguinte, da valorização de culturas vistas historicamente como minorias, quando na verdade foram ocultadas estrategicamente pelas culturas dominantes. Dentro das reflexões trazidas neste estudo acerca da imagem do negro, comumente vinculada à identidade escrava através das histórias com esses conteúdos, e com imagens caricaturadas do lugar humilhante do negro na sociedade, percebemos que os educandos demonstraram conhecer a história do povo negro mais fortemente pela linha da escravidão, porém, mesmo nessas condições, não concebem uma visão passiva e completamente alienada desse processo histórico. Também não demonstraram nutrir idéias sobre os negros numa perspectiva de inferioridade de “raça”, apesar de terem obtido informações dessa natureza com tendências para a justificação da escravização, não pareceram concordar com essa concepção ideológica. Nesse sentido, parecem saber exatamente como a sociedade vê e trata uma pessoa afrodescendente e reconhece ser isso uma injustiça sem tamanho. Entretanto, apesar de concordarem ser injusto, parecem compreender que as mudanças sociais não serão rápidas e 51 entendem o espaço escolar como possibilidade de afirmação pessoal e profissional na sociedade e emancipação de sua condição econômica pouco favorecida. A percepção do tratamento dispensado na sociedade aos negros pobres não passou despercebida nas discussões. Um aluno afro-descendente que não se afirmou como tal, relatou que preferia não se declarar negro para facilitar a convivência no seu meio social. Visivelmente desconfortável diante dos colegas na declaração/negação de sua identidade étnica, mesmo assim se declarou branco e afirmou não gostar da idéia de ser negro, pois: “[...]é chato.”, disse ele. Em meio às argumentações de alguns colegas que se autodeclararam negros, sua afirmação foi “justificada” quando associada à sua condição social: “porque a gente é pobre e negro.” Podemos inferir que esse aluno já sente na pele o que é ser negro em nossa sociedade, e ainda pobre, ao que posteriormente concordou com a idéia dessa condição se unir à possibilidades de também ser maltratado e, por vezes, excluído. Assim, para ele, categoricamente suas idéias pareciam concordar que “sendo branco” a convivência seria melhor, mais amena, mesmo sendo pobre. É importante salientar que esse foi um caso específico de um aluno que expressou fielmente diante dos outros, as razões de sua “escolha” étnica, a partir de uma realidade que, dentro de seu alcance político-cultural dessas questões, não vislumbra alternativas viáveis para a convivência saudável no que tange aos aspectos de sua origem étnica. Entretanto, alguns de seus colegas, preferiram mudar de declaração étnica, dependendo da situação levantada nas discussões, buscando sempre uma posição confortável diante dos constrangimentos sentidos por suas características físicas e as implicações de aceitação/negação destas na sociedade. Elucidações como estas nos fazem pensar que [...] não basta apenas para o negro brasileiro avançar no pólo da rejeição para o da aceitação para que compreenda e valorize a riqueza da sua cultura. Verse e aceitar-se negro toca em questões identitárias complexas. Implica, sobretudo, a ressignificação de um pertencimento étnico/racial no plano individual e coletivo. (GOMES, 2003, p. 28) Por causa disso, a construção dessas crianças de um novo olhar, alheio aos paradigmas culturais que ainda atuam fortemente em nossa sociedade contribuirá para a apreensão consciente da realidade em que vivem, visando transformações substanciais na postura delas diante das atitudes sociais inscritas simbolicamente nas relações que reproduzem o desrespeito à diferença. 52 Ainda no quesito que diz respeito à cor da pele, as crianças trouxeram à tona o caso do cantor Michael Jackson que segundo uma delas “[...] tomou remédio para ficar branco, pois não gostava de ser famoso e ser negro”. Mas imediatamente começaram a indagar acerca de outros famosos negros que não fizeram isso. A referência do negro no meio artístico, mais especificamente na música popular, parece ser relevante para a construção de sua identidade e auto-estima na sociedade. Quando se lembram de pessoas famosas que negam sua origem étnica, descaracterizando os atributos físicos que falam de sua ancestralidade, questionam o motivo específico de ser negro como não suficiente para justificar esses comportamentos e contrapõem essa atitude com a postura de outros negros famosos que não agiram da mesma maneira. Alguns alunos mostraram insatisfação com algumas características físicas, mas nem sempre ligadas ao biótipo afro-descendente. A cor escura da pele, por exemplo, não representou, em boa parte dos discursos encontrados, um problema para essas crianças. Ao invés de disso, os educandos afirmam que se pudessem mudar não mudariam a cor da tez. Mesmo quando alguns deles não se sentiram à vontade ou seguros para se reconhecerem negros perante os seus traços étnicos e familiares, também não demonstraram uma visível baixa auto-estima diante de sua condição, ou seja, não esboçaram uma rejeição completa e sim, certo receio para afirmar-se negro. Portanto, a inclusão de aspectos da história africana e afro-brasileira vem exatamente contribuir para uma nova construção da visão de pertencimento étnico-cultural da criança negra a partir da positivação da herança africana, uma vez que: A discriminação vivenciada cotidianamente compromete a socialização e interação tanto das crianças negras quanto das brancas, mas produz desigualdades para as crianças negras, à medida que interfere nos seus processos de constituição de identidade, de socialização e de aprendizagem. (SANTANA, 2006, p. 36) As observações discutidas no grupo sobre as contradições evidentes na nossa sociedade, as quais, de alguma forma, se relacionam com a problemática da desigualdade social e o desrespeito à alteridade, não se perderam em poucas palavras desprovidas de sentido. Ao contrário, as crianças demonstram compreender, dentro de suas possibilidades, os aspectos que geram os constantes conflitos de interesses no contexto capitalista em que vivem. Por isso, sempre buscaram questionar os dois lados, a fim de encontrar respostas que geraram novas perguntas, favorecendo o desenvolvimento do pensamento crítico de um modo geral. 53 Elas se mostraram cientes de que existe muito racismo no Brasil, inclusive na escola em que estudam, onde já presenciaram alunos negros agredindo outros negros e os pais não perceberem isso, ou também concordarem que seus filhos “não são negros mesmo”, mas podem chamar os outros de “negro”. Essas concepções demonstram que a ideologia do embranquecimento encontra, em muitos casos, dentro da própria família do aluno, um ambiente propício para a proliferação de suas idéias preconceituosas e reforçadoras de relações sociais e posturas, que favoreçam o “clareamento” da família. Esta, por sua vez, também se auto-rejeita e transmite essas concepções para a criança. Em relação às atividades realizadas no cotidiano escolar referentes à temática, a maioria relatou que já participou de algum evento dessa natureza – não necessariamente na sala de aula – geralmente ligado à semana da consciência negra, com apresentações de trabalhos de turmas do 5º ano em diante. Nessas condições, pode-se inferir que as abordagens acerca dos pressupostos trazidos na Lei 10.639/03 nesse segmento de ensino na escola, na maioria das vezes, só acontecem com uma maior riqueza pedagógica em período de festas ou datas comemorativas. Em outros momentos, dependem dos trabalhos elaborados pelos professores ou das abordagens existentes no livro didático, e suas isoladas, quando não equivocadas concepções. Diante das inúmeras situações relatadas no ambiente escolar e extra-escolar em que acontecem as relações sociais e seus conflitos, o ensino da História Africana e Afro-brasileira se constitui fundamental para o enfrentamento dessa realidade. Ele traz subsídios essenciais na construção da identidade étnico-cultural destas crianças, possibilitando uma ampliação e modificação do olhar para si e para o outro, igual ou diferente. A responsabilidade deste trabalho em uma sociedade como a nossa, marcada pelas conseqüências nefastas dos diferentes tipos de desigualdades, perpassa pela consciência de que “[...] o educativo é eminentemente cultural e que a relação ensino/aprendizagem se constrói no campo dos valores, das representações e das diferentes lógicas.” (GOMES, 2003, p. 37) Portanto, essas propostas poderão contribuir para uma saída do lugar de dúvidas e receios sobre o que se é ou se pretende ser enquanto cidadão, fortalecendo assim a autoestima e as ações humanas desses alunos na dinâmica das transformações sociais, em especial as que dizem respeito a esse tema. 54 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante dos aspectos evidenciados nas reflexões acerca da realidade investigada neste trabalho, inúmeras questões se revelam, além de tantas outras que podem surgir a partir daquelas. Observa-se que, apesar dos avanços sobre a temática racial obtidos nas diversas áreas da sociedade brasileira, em especial na educação, a aproximação do cotidiano escolar e a escuta de algumas vozes que fazem parte dele nos permitem compreender uma pequena parte das sensações, expressões e percepções que ainda fazem parte da vida das crianças afrodescendentes na instituição escolar. Muitas destas sensações, ainda são motivadas por sentimentos de fragilidade em torno de suas identidades em processo de construção e reafirmação constantes, mediante as relações conflituosas inerentes à diversidade cultural que se estabelecem em suas experiências individuais. Diante disso, a postura da escola nesse processo é decisiva, pois: Dependendo da forma como é entendida e tratada a questão da diversidade étnico-racial, as instituições podem auxiliar as crianças a valorizar sua cultura, seu corpo, seu jeito de ser ou, pelo contrário, favorecer a discriminação quando silenciam diante da diversidade e da necessidade de realizar abordagens de forma positiva ou quando silenciam diante da realidade social que desvaloriza as características físicas das crianças negras. (SANTANA, 2006, p. 44) Refletindo sobre as históricas conseqüências das relações sociais, influenciadas por idéias preconceituosas em nossa sociedade, percebe-se o quanto elas deixaram marcas profundas que perpassaram, e ainda perpassam, pela identidade de grande parte dos cidadãos afro-brasileiros deste país, uma vez que suas experiências escolares de uma maneira geral, não contemplaram elementos fundamentais de suas origens culturais. À medida que vivenciavam a constituição de sua identidade étnica, esses indivíduos se viram dentro de uma sociedade que se utilizava de práticas sociais essencialmente reforçadoras da supressão e inferiorização dos aspectos fundantes da sua ancestralidade, reduzindo-os aos diversos estereótipos mantidos para esses fins. Diante de algumas dificuldades encontradas no Colégio Estadual Adroaldo Ribeiro Costa (CEARC) para a prática da educação das relações étnico-raciais na perspectiva da História Africana e Afro-Brasileira, é possível considerar parte dessas dificuldades relacionadas às questões que falam da formação e capacitação docente. Tais questões estão evidentemente previstas nas Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnicoraciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas, que direcionam para os 55 sistemas de ensino em suas respectivas instâncias, a responsabilidade na preparação dos docentes para essa abordagem. Dessa forma, a presença pouco expressiva do Estado no sentido da formação a respeito da temática racial ao alcance de todos os docentes dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental I que fazem parte do CEARC, acaba por comprometer partes importantes das propostas previstas nesta importante ação afirmativa sancionada para os fins aqui discutidos. Ação esta que atinge não apenas as atividades que acontecem em datas comemorativas, mas a sala de aula em todas as dimensões do seu cotidiano, onde ocorre, de fato, grande parte dos efeitos nocivos à formação humana e à auto-estima dos educandos. Apesar da elaboração da Lei 10.639/03 e suas propostas, os resultados aqui explorados caminham também para uma cuidadosa reflexão acerca do poder ressonante e sutilmente discriminatório de concepções culturais, sociais e midiáticas que persistem em nossa sociedade. Tais concepções propagadas diariamente continuam colaborando para a existência de educandos que ainda se negam em sua origem étnica como uma forma de defesa, aceitação ou sobrevivência no meio social em que vivem. Assim, para cada atitude tomada nesta direção, importa criar um olhar diferenciado e crítico, uma vez que “[...] a construção da (s) identidades (s) torna-se um ato político, porque ela não só conscientiza e ressignifica os atores sociais, como também faz com que eles percebam o seu papel social e cultural enquanto sujeitos históricos.” (ATAIDE; MORAIS, 2003, p. 97) Por outro lado, o espaço escolar que se constituiu ao longo da história, em um veículo de transmissão de valores discriminatórios, agora passa a ser um lugar importante para a promoção do respeito à diversidade, por meio da aproximação dos elementos que compõem os processos civilizatórios africano-brasileiros dos valores culturais milenares da ancestralidade negro-africana. As constatações feitas ao longo deste trabalho permitem compreender também a prática da educação para a diversidade, não apenas no âmbito da obrigatoriedade oficial do sistema de ensino, mas como um compromisso consciente dos docentes e como uma necessidade essencial dos nossos alunos. As experiências previstas nas propostas curriculares nacionais se tornam fundamentais para a (re) constituição e afirmação da identidade étnicocultural entendida como fio condutor do sentimento de pertencimento e auto-estima dos educandos. A partir das verdadeiras possibilidades de se verem contemplados socioculturalmente de maneira legítima em esferas importantes da sociedade como é o caso da escola, chegarão 56 ao alcance de cada criança afro-brasileira, as sementes de uma significação africano-brasileira que já está entre nós. 57 REFERÊNCIAS ATAÍDE, Yara Dulce B. de; MORAIS, Edmilson de Sena. A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural. Revista da FAEEBA, Salvador, v.12, n. 19, p. 81-98, jan./jun. 2003. BENTO, Maria Aparecida Silva. Cidadania em preto e branco. São Paulo: Ática, 2005. BERND, Zilá. O que é negritude. São Paulo: Brasiliense, 1988. BERND, Zilá. A questão da negritude. São Paulo: Brasiliense, 1984. BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICA DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL – MEC: Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília - DF, 2005. BRASIL. ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL. BRASÍLIA, 2003. In: SANTOS, Renato Emerson dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro – Rj: DP&A editora, 2003. CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: a construção de uma perspectiva. In: CANDAU, Vera Maria (Org.). Sociedade, Educação e Culturas: Questões e propostas. Petrópolis, RJ : Vozes, 2002. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 2ª ed. Volume 2. São Paulo: Paz e Terra, 2000. CAVALLEIRO, Eliane. Valores civilizatórios: dimensões históricas para uma educação antiracista. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Orientações e ações para a educação das relações étnicoraciais. Brasília: SECAD, 2006. GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5 ed. São Paulo: Atlas, 1999. GOMES, Nilma Lino. Educação e relações étnico-raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação. In: MUNANGA, Kabengele (Org). Superando o racismo na escola. 2 ed. Brasília: MEC/SECAD, 2005. 58 GOMES, Nilma Lino. Cultura Negra e Educação. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro. N. 23. Maio/Ago. 2003. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/rbedu/n23a05.pdf>. Acesso em 27 jul. 2008. ITANI, Alice. Vivendo o preconceito em sala de aula. In: AQUINO, Julio Groppa (Org.). Diferenças e Preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas.. 4 ed. São Paulo: Summus, 1998. KOPNIN, Pável Massilicvitch. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. LIMA, Heloíza Pires. Personagens negros: Um breve perfil na literatura infanto-juvenil. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2 Ed. MEC/SECAD. Brasília,2005. LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EDU, 1986. LUZ, Marco Aurélio. Educação e pluricultura nacional. In: LUZ, Marco Aurélio (Org.). Identidade Negra e Educação. Salvador: Ianamá, 1989. LUZ, Marco Aurélio. Pré-história e antiguidade. In: LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: EDUFBA, 2000. LUZ, Marco Aurélio. Pindorama, Brasil, Ilê-axé: 500 anos depois a terra está em perigo. In: LUZ, Marco Aurélio. Cultura Negra em Tempos Pós-Modernos. Salvador: EDUFBA, 2002. LUZ, Marco Aurélio. Paraguaçú-Caramuru: Diversidade e conflitos de civilização. Sementes: Caderno de pesquisa. Salvador, v.5, n. 7, p. 15-28, jan/dez. 2004. LUZ, Marco Aurélio. Dos tumbeiros às fábricas. Dos quilombos à comunalidade africanobrasileira. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida (Org.). A república e a questão do negro no Brasil. RJ: Museu da República, 2005. LUZ, Marco Aurélio; SANTOS, D. Maximiliano. Diversidade histórica e sócio-cultural. In: LUZ, Marco Aurélio; SANTOS, D. Maximiliano. O Rei Nasce Aqui, Oba Biyi: a educação pluricultural africano-brasileira. Salvador: Fala Nagô, 2007. 59 LUZ, Narcimária C. do Patrocínio. Por uma educação pluricultural. In: LUZ, Marco Aurélio. (Org.). Identidade Negra e Educação. Salvador, Ianamá, 1989. LUZ, Narcimária C. do Patrocínio. Casa Grande, Senzala e Kilombos: Qual o território do currículo dos cursos de formação de professores? Sementes: Cadernos de pesquisa. Salvador, v. 2, n. 3/4, p. 23-35, jan./dez. 2001. LUZ, Narcimária C. do Patrocínio. Parabolicamará! Uma contra linguagem à pedagogia do nomos. Sementes: Cadernos de pesquisa. Salvador, v. 5, n. 7, p. 32-47, jan/dez. 2004. MATTOS, Ivanilde Guedes de. Estética Negra: Identificação e representação na adolescência. In: MATTOS, Wilson Roberto de. (Org.) et al. Afrouneb: ações afirmativas, igualdade racial e compromisso social na construção de uma nova cultura universitária. Salvador, EDUNEB, 2008. MONTEIRO, Rosana Batista. Licenciaturas. In: Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais. Brasília: SECAD, 2006. MOURA, Glória. O direito à diferença. In: MUNANGA, Kabengele (Org). Superando o racismo na escola. 2 ed. Brasília: MEC/SECAD, 2005. ROCHA, Rosa M. de Carvalho; TRINDADE, Azoilda Loretto da. Ensino Fundamental. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais. Brasília: SECAD, 2006. SALVADOR. Prefeitura Municipal de Salvador: Secretaria Municipal da Educação e Cultura. Diretrizes Curriculares para a Inclusão da História e Cultura Afro-brasileira e Africana no Sistema Municipal de Ensino de Salvador. Salvador – BA, 2005. SANTANA, Patrícia Maria de Souza. Educação Infantil. In: Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais. Brasília: SECAD, 2006. SANTOS, Joel Rufino dos. O que é racismo. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. SEYFERTH, Giralda. O beneplácito da desigualdade: breve digressão sobre o racismo. In: SEYFERTH, Giralda. (Org.) et al. Racismo no Brasil. São Paulo: Petrópolis, ABONG, 2002. 60 SILVA, Ana Célia da. Ideologia do embranquecimento. In: LUZ, Marco Aurélio. Identidade Negra e Educação. Salvador: Ianamá, 1989. SILVA, Ana Célia da. O ensino da História da África nos currículos baianos. In: MATTA, Alfredo E. Rodrigues (Org.). Educação, Cultura e Direito: Coletânea em homenagem a Edvaldo M. Boaventura. Ed. Edufba, 2004. SILVA, Ana Célia da. A desconstrução da discriminação no livro didático. In: MUNANGA, Kabengele (Org). Superando o racismo na escola. 2 ed. Brasília: MEC/SECAD, 2005. SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: EDUFBA, 2004. SILVA, Maria Palmira da. Identidade e consciência racial brasileira. In: SEYFERTH, Giralda. Racismo no Brasil. São Paulo: Petrópolis, ABONG, 2002. SIQUEIRA, Maria de Lourdes (Org.). Imagens Negras: ancestralidade, diversidade e educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2006. TRINDADE, Azoilda Loretto da. Cultura, diversidade cultural e educação: Entrevista com o professor Muniz Sodré. In: TRINDADE, Azoilda Loretto da; SANTOS, Rafael dos (orgs.). Multiculturalismo: mil e uma faces da escola. 3 ed. Rio de Janeiro, RJ: DP&A editora, 2002.