Edilene Queiroz, O corpo como cenário da perversão feminina

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INTERVENÇÃO DE EDILENE FREIRE DE QUEIROZ
CORPO E PERVERSÃO NO FEMININO
A literatura psicanalítica tem mostrado que não se pode falar
propriamente de uma perversão feminina uma vez que o modelo de perversão,
proposto por Freud, é o do fetichismo, no qual está em jogo a questão do
enigma feminino para o homem. Porém, observa Granoff e Perrier (1974), no
caso da mulher, convém pensar numa perversão da libido, uma vez que pelas
razões acima as coordenadas não são as mesmas da do homem. Isso significa
dizer que a mulher não pode ser fetichista, contudo pode ser fetichizada.
Alguns autores põem restrições a essa hipótese e preferem explicar tais
casos como pseudo-perversões; outros chegam a identificar modos de
perversão feminina. Dor (1991), por exemplo, distingue dois modos de
perversão feminina: a homossexual e a transsexual, embora considere
arriscado falar de perversões sexuais na mulher. Pierre e Granoff (1974)
sublinham
duas
vias
de
escoamento
dos
traços
perversos:
a
da
homossexualidade e a da maternidade[1].
Considerando que a perversão é uma defesa contra a percepção da falta
feminina, ou seja, uma defesa contra a ameaça da castração vivida pelo
homem, a mulher estaria isenta dessa angústia, pois ela não tem nada a perder
e, portanto não tem a castração como ameaça. Concordamos que o feminino
se comporta de modo diferente ante a constatação da castração materna e,
desse modo, a hipótese de uma perversão feminina não conota da mesma
forma que a masculina e, igualmente, a maneira como uma e outra tomam o
corpo como instrumento.
Entretanto, insisto na hipótese de uma perversão no feminino sustentada
na tese de Roland Chemama (1999) de que a perversão de que a perversão
não pode ser discutida como uma questão intemporal, levando-se em conta o
que se teorizou sobre ela há um século atrás. O discurso social de hoje está
fortemente marcado pela dimensão perversa, pois incita o sujeito a acreditar
que para cada um existe um gozo acessível, um gozo ligado à possessão ou
ao uso de um objeto determinado. Também é consenso a constatação
da feminilização da cultura. Logo, é pertinente empreender tal discussão.
A hipótese de uma perversão no feminino não é nova, venho refletindo
sobre ela já há alguns anos. Num trabalho anterior, publicado na
Revista Latinoamericana de
Psicopatologia
Fundamental,
em
2002,
tentei demonstra-la a partir da análise de um caso clínico: uma mulher que
apresentava um quadro singular de manifestações sintomáticas corporais. Ela
era constantemente acometida, de patologias físicas diagnosticadas pelos
médicos como graves, confirmada por exames laboratoriais, e, por razões
inexplicáveis, elas desapareciam sem aplicação de alguma terapêutica.
Segundo a paciente, ela “vivia uma realidade virtual”. Ao aventar a hipótese de
perversão, também refletimos sobre a possibilidade de um quadro histérico ou
psicossomático. Para discuti-lo, sustentei-me em algumas teses:
1ª.) Freud se aproximou do tema da perversão instigado pela crença da
existência real da cena de sedução relatada pelas histéricas, portanto pelo
discurso feminino. A mulher sendo não toda submetida à castração não se rege
completamente
pelas
leis
simbólicas
e,
por
conseguinte
teria
uma
predisposição natural a abrir-se à perversão, razão pela qual ela ocupa, com
facilidade, o lugar de objeto a e se implica na perversão pela via do desejo
masculino. Há uma “ligadura imaginária” (expressão de Assoun, 1993) e
cumplicidade objetal que liga o perverso à mulher.
2ª.) A hipótese de Pierre e Granoff da possibilidade de uma perversão
da libido, já mencioanda.
3º.) Nas reflexões de Abelhauser[2] (1999), ao discutir a questão da
mulher e a perversão. Ele distingue certos sintomas de patologias graves,
como
anemias,
câncer,
patologias
cardiovasculares
apresentadas
por
determinados pacientes que submetem a tratamentos prolongados e a
internações e, num belo dia, esses sintomas desaparecem sem a equipe
médica encontrar razão plausível. Costuma-se identificar tal quadro clínico à
síndrome de Münchausen, considerada pelo DSM III, como fazendo parte das
perturbações factícias. Por serem encarados como uma simulação ou
pantomimas, sempre se associam as manifestações histéricas, no entanto, o
autor chama atenção para certa variante dessas dificuldades, que deve ser
entendida de um outro modo. Convém distinguir os sujeitos que buscam se
fazerem reconhecer como doentes – para isso apelam para o poder de
convencimento de seus discursos, para a simulação – daqueles que invocam
um ataque real do corpo, requerendo intervenção médica. No primeiro caso o
traço fundamental é a simulação; no segundo, o traço fundamental é o fato de
se reconhecerem como portadores de uma falha e exigem do Outro, no caso o
médico, a confirmação disso. Eles organizam, deliberadamente, o dano no
corpo.
Abelhauser se pergunta por que determinados sujeitos precisam dar tal
consistência à falta? O que faz o sujeito vivê-la em dois registros – no do real,
pela via do dano somático, e no do simbólico atingindo a integridade do Outro?
Que relação guardam tais atitudes com o feminino?
A percepção da falta no corpo feminino pela mulher vai introduzi-la num
gozo
outro
não-indexado
ao phallus,
de
certo
modo deslocalizado,
deslizado, metonimizado pelo corpo. A mulher apaixona-se pelo próprio corpo e
faz dele seu fetiche. Aprendemos com Freud (1925) que o estado de paixão é
propício ao escoamento da libido para o objeto da paixão. Nesse caso o outro
como objeto da paixão, fica forcluído e o corpo próprio toma o lugar. O corpo,
como formula Lacan, é também o Outro de si – lugar de desvio do sujeito dele
mesmo.
No caso estudado o sofrimento da paciente em decorrências das
patologias graves apresentadas e dos tratamentos subseqüentes, transmutavase em gozo, em gozo de ser “lambida pela morte” (metáfora empregada pela
paciente).
Gozava
com
o
corpo,
afetando-o
mutilando-o.
Gozo
masoquista, sacrificial, que num primeiro momento se associa à aceitação da
feminilidade pela histérica. Já o jogo de alternância de presença e ausência
dessas lesões corporais lembrava o modo binário como Lacan descreve os
fenômenos psicossomáticos[3]. Entretanto, há de se considerar uma outra
espécie de gozo, igualmente ligado ao Outro, mas enquanto submetido à
impostura que o seu corpo produz. Interpretei como sendo a ação
daVerleugnung no corpo, nos seus desdobramentos polissêmicos (desmentir,
recusar a falta, negar a presença de algo, agir contra a natureza). Observa
Lacan (1969), em Radiofonia, que na perversão há uma submissão aos
imperativos do gozo do Outro como nos fenômenos psicossomáticos; mas,
diferente destes, que reduzem o par significante ao UM, naquele já ocorre
ALGUM DOIS. O Outro é convocado a se cumpliciar no desmentido que o
corpo produz, deixando-o siderado. Era justamente isso que a paciente fazia
com os médicos – deixava-ossiderados. Nesse caso o ataque ao corpo
reproduzia sua relação com a mãe.
Retorno, então, a essa hipótese de trabalho, ou seja, de um escoamento
da libido para o corpo, da necessidade de um ataque real no corpo, para obter
o reconhecimento do Outro, avançando um pouco mais na compreensão de
alguns fenômenos contemporâneos. Tomo, então, uma variante dessa
hipótese: o fato de a libido e o ataque real no corpo dirigir-se ao corpo estético,
aos contornos do corporais e não ao corpo como organismo.
Numa
cultura
marcada
pelo
individualismo,
pelo
aparente
e
pela sensorialidade, o corpo passa a ser o Outro de si, o cenário de
manifestação dos conflitos pervertendo as formas de reconhecimento. Por
conseguinte, valorizam-se as intervenções sobre o real do corpo como forma
de resposta a todo gênero de sintomas e mal-estares, sendo a intervenção
cirúrgica um dos meios mais recorrentes para extirpar os males do corpo.
Encontrei ressonância das minhas preocupações em Mieli (2002) uma
psicanalista italiana radicada em Nova Iorque. Ela vem teorizando sobre a
intervenção irreversível sobre o corpo, por meio de cortes, incisões ou
manipulações. Partindo da clínica, ela mostra que tal tipo de intervenção sobre
o real do corpo se impõe, com freqüência, como uma “necessidade” de integrar
ou excluir um traço físico particular vivido sob o signo do “em excesso” ou do
“excessivamente pouco” (MIELI, 2002, p. 15). Trata-se de um lugar do corpo
percebido pelo sujeito como aquilo que insiste em embaraçá-lo; na realidade
um “estorvo, fonte de mal-estar e preocupação” (ibid, p. 15). Acrescenta ela
que esse ponto do corpo é de “onde nos sentimos olhados” (ibid, p. 15) e por
isso nos persegue quando nos deparamos com a nossa imagem.
O traço em questão não é um lugar qualquer e sim um lugar designado
pelos significantes da história individual; ele assinala tanto a consistência
quanto a inconsistência da imagem subjetiva. A necessidade de intervir, pela
via da incisão no corpo, pode representar uma virada decisiva e positiva na
vida do indivíduo, por produzir uma inscrição simbólica que solidifica a
identificação narcísica, fazendo uma espécie de acabamento na imagem
subjetiva. A autora toma como referência uma pesquisa realizada com
pacientes masculinos submetidos à cirurgia plástica, por razões estéticas, no
Hospital John Hopkins, entre 1957 e 1959. Ressalta ela que 75% desses
pacientes identificaram o traço físico que queriam modificar com um traço físico
paterno e todos os sujeitos estudados se reconheciam mais próximos da mãe
do que do pai.
Alterar um traço herdado dos ascendentes representa uma tentativa de
modificar uma identidade através da imagem. Nesses casos a dor engendrada
pelo corte na carne faz signo, metaforizando um corte simbólico. Entretanto,
quando o corte passa ser sede de gozo, cortar-se se torna manifestação
compulsiva e o sujeito passa a ser um dependente da cirurgia plástica.
Ora, é justamente sobre tais casos, frequentemente observados entre as
mulheres, ou seja, uma compulsão de modelar o corpo, que proponho uma
discussão. E, para mobilizar o debate, invoco uma figura que considero
paradigmática do que suponho ser da ordem de uma perversão no feminino –
modelo Ângela Bismarchi, casada com o cirurgião plástico OxBismarchi, que
ficou conhecido na mídia por moldar a própria mulher. Até a morte do marido,
em 2003, ela havia se submetido a 30 cirurgias plásticas, sem considerar que o
encontro dos dois se deu, em 1998, quando ela o procurou para corrigir uma
prótese de silicone mal colocada. Casou-se, novamente, com outro cirurgião
plástico para continuar sua compulsão de modelar-se. Ela mantém um site,
oficial, em cuja animação de abertura aparecem várias fotos com a seguinte
epígrafe: “Perfeição da cabeça aos pés”.
Penso
que
a
mulher
embaraçada
com
o
fato
de
ter
um phallus anatômico inferior pode se compensar com a manutenção de uma
imago reformada do corpo. Isso faz com que a personalidade da mulher seja
marcada por uma fixação no estético. Nos nossos dias, as alternativas
disponibilizadas pela ciência para transformar, esteticamente, o corpo tem
alimentado o desejo feminino de compensar a fantasia de inferioridade
anatômica e de dar suplência à falha. Pode-se afirmar, então, que é no ser e
não no ter que a mulher constrói seu próprio fetiche, ou seja, o corpo modelável
torna-se fetiche e instrumento de gozo. Por esta razão ela faz dele um objeto
em constante transformação. Nesse sentido ela oferece, sem escrúpulos, seu
corpo a “retaliações” cirúrgicas. A lógica perversa feminina indica que o corpo
quanto mais modelado e modificado pelos recursos oferecidos pela ciência
(cultura) mais distante fica do corpo original (natureza) visto como imperfeito.
A mulher enamora-se da própria imagem e produz uma forclusão do
Outro como parceiro do gozo. A possibilidade de ela se transformar cria à
ilusão
de
poder
advir
uma
outra
mulher
–
perfeita
–,
que
a
suprirá narcisicamente. Essa hipótese norteia nosso trabalho de pesquisa que
pretende analisar, metapsicologicamente, através de discursos e depoimentos,
a
organização
psíquica
de
mulheres
que,
a
serviço
da
estética,
compulsivamente, submetem-se a cirurgias plásticas e a práticas alternativas
para modelagem e transformação do corpo. Esta pesquisa se insere numa
proposta investigativa cujo objetivo é teorizar sobre a metapsicologia do corpo.
Bibliografia:
ABELHAUSER, A. La femme et la perversion. In Cahiers de l’Association
freudienne internationale. Qu’appelons-nous perversion? Journées d’étudies,
Paris, 16,17,19,21 Janvier 1999, p. 05-14.
ASSOUN, P. L. Freud e a Mulher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
DÖR, J. Estrutura e Perversões. Porte Alegre: Artes Médicas, 1991.
FREUD, S. (1925) Sobre o narcisismo: uma introdução. In FREUD, S. Obras
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1986, v. 14.
GRANOFF, W. e PERRIER, F. Le désir et le féminin. Paris: Aubier, 1979.
LACAN, J. Radiofonia. (1969) In LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.
MIELI, P. Sobre as manipulações irreversíveis do corpo e outros textos
psicanalíticos. Rio de Janeiro: Contra capa, 2002.
ROLAND, C. Apresentation de la Journées d’étudies sur Qu’appelons-nous
perversion? Cahiers de l’Association freudienne internationale. Qu’appelonsnous perversion? Journées d’étudies, Paris, 16,17,19,21 Janvier 1999, p. 0514.
[1]
A maternidade não está fundada sob o registro da lei e por isso torna-se menos protegida e mais
vulnerável à instalação de pactos perversos entre mãe e filho.
[2]
Alain Abelhauser é psicanalista, mestre de conferência, diretor de pesquisas e diretor do Departamento
de Psicologia da Universidade de Rennes II.
[3]
Na Conferência de Genebra, Lacan toma os fenômenos psicossomáticos pelo viés do gozo específico,
o gozo auto-erótico, que se inscreve diretamente no corpo não-subjetivado, sem a mediação da metáfora
paterna. O que vem do Outro se inscreve diretamente no corpo. Parece haver uma subversão dialética
entre corpo e Outro: o corpo ocupa o lugar do Outro e fala no lugar da linguagem, reduzindo o par
significante S1–S2 ao UM do traço unário que se congela no corpo.
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