Quando amar é dar aquilo que se tem... Amor

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QUANDO AMAR É DAR AQUILO QUE SE TEM...
Adelson Bruno dos Reis Santos
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Mestrando em Psicologia - IP/UFRJ; Bolsista CAPES;
Membro do CLINP-UFRJ/CNPq (Grupo de Pesquisa Clínica Psicanalítica);
Psicólogo pela PUC – Minas.
Rua Lopes da Cunha 145; 4/508 – Fonseca; Niterói-RJ;
CEP: 24.120-095 / Tel.: (21) 7537 – 9487
RESUMO: Lacan postula que amar “é dar aquilo que não se tem”. O amor, portanto, implica o
domínio do “não-ter”, acentuando a dimensão faltante do sujeito. Se para amar é necessária a aceitação da
condição de “não-todo”, o que podemos dizer acerca do amor na perversão, uma vez que o perverso é
aquele que, desmentindo a castração, renega a falta para viver para o gozo? Contrariando o domínio do
“não-ter”, ele se apresenta como aquele que tem o saber sobre o desejo e sobre o gozo, conciliando-os e
resolvendo sua contradição originária. A perversão parece nos colocar diante de um ponto de interseção
entre amor e gozo que não necessariamente se excluem. É possível que, ao se deparar com o desejo, o
gozo encontre seu próprio limite. Talvez não seja tanto de seu gozo que o perverso se ocupe, mas de seu
desejo que ele não negligencia. Enfim, que lugar poderia ter o amor na perversão? Essa questão,
fundamental para a clínica sob transferência, orienta este trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Amor; Perversão; Falta; Desejo; Gozo.
A assertiva lacaniana de que “amar é dar aquilo que não se tem” instaura o amor no
campo da falta (LACAN, 1960-61/1992). Mas como pode alguém dar aquilo que lhe
falta? O sujeito da psicanálise, tal qual Lacan (1960/1998) o define, é tomado como algo
cujo modo de existir é a barra, a abolição, a incompletude, operações pelas quais ele se
constitui e se realiza. É nesse sentido que o amor implica o domínio do “não-ter”. Para
amar é necessária a aceitação da condição de “não-todo”, o reconhecimento de que “não
se tem”; é preciso admitir a castração como aquilo que torna possível o enlaçamento à
lei do Outro. O lugar do amor deve ser situado a partir do encontro sempre faltoso do
sujeito com o Outro, na ilusão apaziguadora da completude perdida, na busca incansável
da satisfação primeira e num profundo anseio de seu retorno sob o signo do desejo.
Como aquilo que faz suplência à relação sexual, ele revela um esforço sempre precário
de fazer frente ao real da falta. Contudo, o amor pertence ao domínio do mito, uma vez
que não encontra sua satisfação na realidade. Logo, ele não é real: é um engodo; é a
falsidade resultante do “assujeitamento” do desejo ao desejo do Outro. Para Ferreira
(2004) ele seria, então, uma tentativa de fazer desaparecer sempre um efeito de logro, na
medida em que o que falta ao amante o amado também não tem.
Numa época em que o amor se torna líquido, evidenciando a fragilidade dos laços
humanos (BAUMAN, 2006), cada sujeito é levado a reinventar sua relação com ele,
num labirinto de mal entendidos onde, a saída não existe. Sob o imperativo do gozo o
amor parece encontrar seu entrave. Assim sendo, o que é possível dizer acerca do amor
na perversão considerando que o perverso é aquele que, desmentindo a castração,
renega a falta para viver para o gozo? Contrariando o domínio do “não-ter”, ele se
apresenta como aquele que tem o saber sobre o desejo e sobre o gozo, conciliando-os e
resolvendo sua contradição originária. Daqui derivam as dificuldades para se definir a
relação do perverso com o amor.
Contudo, uma relação difícil não significa ausência nem impossibilidade. Segundo
Braunstein (2007), pensar a relação entre o amor e a perversão a partir de seus limites e
impasses nos permite ampliar nossa compreensão acerca do específico de um amor que
denuncia as convenções unificadoras e que desmente a falta ao invés de basear-se nela.
Ao falarmos do amor na perversão, propomos uma inversão da lógica lacaniana para
questionarmos: E quando amar é dar aquilo que se tem? Seria isso possível?
Na perversão a função de fazer advir a falta como causa de desejo encontrar-se-ia
obstruída: “Ao desmentir o desejo, a ele se renuncia; a ele se cede. Posto que o desejo
está do lado do Outro, desejar é mostrar uma falta e oferecer esta falta à falta do
Outro, ou seja, reconhecer a recíproca castração para atravessá-la” (BRAUNSTEIN,
2007). Condição para o amor, o desejo no perverso é convertido em “vontade de gozo”;
uma vontade que não é livre arbítrio, uma submissão acrítica a uma norma absoluta.
Uma vontade que faz do gozo o princípio racional da ação, que não nasce da decisão
elaborada de um querer, mas de uma coação que exige escapar da lei do Édipo e da
castração.
Entretanto, Lacan (1962-63/2005) nos adverte que a vontade de gozo na perversão
fracassa em relação ao exercício do desejo. O desejo poderia ser chamado vontade de
gozo se, frente a esta, ele não se colocasse de maneira tão imponente:
Mesmo na perversão, na qual o desejo se dá como aquilo que serve de lei, ou
seja, como uma subversão da lei, ele é, efetivamente, suporte de uma lei. Se
há uma coisa que hoje sabemos do perverso, é que aquilo que aparece
externamente como uma satisfação irrefreada é uma defesa, bem como o
exercício de uma lei, na medida em que esta refreia, suspende, detém o
sujeito no caminho do gozo. A vontade de gozo no perverso, como em
qualquer outro, é uma vontade que fracassa que depara com seu próprio
limite, seu próprio freio, no exercício mesmo do desejo (LACAN, 1962-
63/2005, p. 166).
A partir dessa formulação de Lacan, somos levados a pensar que talvez não seja tanto de
seu gozo que o perverso se ocupa, mas de seu desejo que ele não negligencia. A
perversão parece nos colocar diante de um ponto de interseção entre amor e gozo que
não necessariamente se excluem. É possível que, ao se deparar com o desejo, o gozo
encontre seu próprio limite. A perversão é a recusa, mediante o desmentido, de
converter os valores do gozo em moeda do desejo. Entretanto, o desejo não está ausente
no perverso. Mesmo que precariamente, é o desejo que o move, pois a renúncia ao gozo
se produziu: por isso não é um psicótico. Ele sabe que deve renunciar ao gozo, “mas
mesmo assim...” busca implacavelmente alcançá-lo. O perverso é um sujeito dividido
pelo desejo, contudo, o desejo, que é fautor da fenda no sujeito, “sem dúvida se
conformaria em se dizer vontade de gozo”, pois “ele já começa derrotado, fadado à
impotência” (LACAN, 1962-63/1998, p. 784).
Por mais que o desejo se converta em vontade de gozo, nem por isso deixa de ser o
meio de defesa do perverso contra o gozo: “Também ele se defende, à sua maneira, em
seu desejo. Pois o desejo é uma defesa, proibição de ultrapassar um limite no gozo”
(LACAN, 1960/1998, p. 839). Miller (2000) diz que o desejo vem efetuar uma
significantização do gozo; um gozo mortificado pela identificação fálica que entrava o
livre curso de desejo e que deve ser transposto para o significante. Trata-se,
essencialmente, do apagamento do gozo pelo significante que o anula e o restitui sob a
forma de desejo significado: “O gozo, por um lado, não é outra coisa que o desejo, que
é, ao mesmo tempo, desejo morto” (MILLER, 2000, p. 91).
Lacan (1972-73/1985) ressalta o amor como o único a fazer com que o gozo
condescenda ao desejo. Para Miller (2010) o gozo condescende ao desejo na tentativa de
suprir a ausência da relação sexual colocando em evidência a oposição entre o
enquistamento do gozo autoerótico e o amor que mostra sua abertura ao Outro. Mas
como esse gozo pode entrar na dimensão do Outro? Como passamos do gozo ao desejo
do Outro? Que lugar poderia sobrar para o amor como aquilo por meio do qual se atam
e desatam os nós na clínica possível da perversão? A Clínica nos obriga e distinguir no
mesmo sujeito sua posição em relação ao desejo como pergunta e a resposta que ele já
tem sobre seu gozo.
Nesse sentido, é possível perceber na perversão um sintoma da transferência; e se é
possível falarmos de transferência na perversão, logo nos obrigamos a falar do amor
numa relação analítica ancorada sobre a predominância do desafio como fenômeno
transferencial, implicando uma não-outorgação da função analítica (FERRAZ, 2005).
Na clínica, o “sujeito-suposto-saber” é que faz o vínculo entre o saber e o amor. O amor
em jogo na transferência está ligado à presença do analista e à função que ele ocupa no
tratamento. A demanda do paciente é de saber, e é em termos de saber que o analista
deve responder a este amor. O sujeito busca uma resposta sobre si mesmo e seu
sofrimento, porém, na perversão, a queda do suposto saber do analista se dá na entrada.
Sendo assim, o que pode a análise?
É inegável que a clínica da perversão se caracteriza por uma especificidade da relação
transferencial. É partindo de uma aposta na ampliação da clínica psicanalítica e de seus
dispositivos que nos propomos a investigar a relação transferencial peculiar à clínica da
perversão. Tal clínica traz em sua base a sutil complexidade das relações narcisistas de
objeto que produzem formas de vinculação diferente tanto das neuróticas como das
psicóticas. A perversão lança um desafio ao analista, cujo objetivo seria a imposição da
lei do seu próprio desejo sobre a lei paterna, a lei da diferença sexual e sobre a ordem
simbólica. Diante dessa realidade, a função analítica passa a ser a de não ceder às
imposições do paciente, identificando na própria transferência, a essência da perversão.
Pensamos não haver outra forma de compreender essa especificidade de transferência
que não seja por uma disposição ética do analista para a escuta. A clínica da perversão
coloca em jogo uma questão que não é meramente técnica, mas essencialmente ética.
Dogmatizar o veredictum de que o perverso não se angustia, é incorrer no risco de uma
perversão da situação analítica (QUEIROZ, 2004). Assim, a análise assumiria uma
configuração de impasse e paralisia, de desprezo do paciente pela análise, e de nenhuma
identificação e aposta do analista no material clínico trazido pelo paciente. Não se trata
de recusar a demanda de amor específica do sujeito da perversão, mas também não cabe
ao analista responder a ela. O fundamental nesse caso é se dispor a assumir outras
posições e outras disposições para suportar em sua relação com esse sujeito a homologia
entre suas posições de instrumentos de gozo do Outro (MILLER, 2010). A resposta do
analista é o amor, o amor de transferência que o mantém afastado do gozo desse sujeito
que ama dando aquilo que se tem.
Referências Bibliográficas:
BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
FERRAZ, F. C. Tempo e ato na perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
FERREIRA, N. P. A teoria do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
LACAN, J. (1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano.
In__ Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
__________ (1960-61) O Seminário Livro VIII: A transferência: Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992.
__________ (1962-63) Kant avec Sade. In__ Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
__________ (1962-63) O seminário Livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
__________ (1972-73) O Seminário Livro XX: Mais ainda: Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985.
MILLER, J-A. O desejo. In__ Lacan Elucidado: Palestras no Brasil. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1997.
__________ Os seis paradigmas do gozo. In__ Opção Lacaniana. São Paulo, n° 26-27,
p. 87-105, abril de 2000.
__________ Uma conversa sobre o amor. Opção Lacaniana on-line. Ano 1; nº 2, Julho,
20010. Disponível em: <www.opcaolacaniana.com.br>; Acesso em 25 de julho de 2010.
QUEIROZ, E. F. A clínica da perversão. São Paulo: Editora Escuta; 2004.
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