Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Lisandra Moreira Martins A reincidência criminal à luz do processo penal constitucional Doutorado em Direito São Paulo 2016 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Lisandra Moreira Martins A reincidência criminal à luz do processo penal constitucional Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora em Direito Processual Penal, sob a orientação da Professora Doutora Eloisa de Sousa Arruda. São Paulo 2016 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Lisandra Moreira Martins A reincidência criminal à luz do processo penal constitucional Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora em Direito Processual Penal, sob a orientação da Professora Doutora Eloisa de Sousa Arruda. Aprovada em:___/___/___ Banca Examinadora Professora Doutora Eloisa de Sousa Arruda (Orientadora) Instituição: PUC-SP Assinatura:________________________ Julgamento: _____________________________________________________ Professor (a) Doutor (a) ____________________________________________ Julgamento: _____________________________________________________ Instituição: ______________________Assinatura:_______________________ Professor (a) Doutor (a) ____________________________________________ Julgamento: _____________________________________________________ Instituição: ______________________Assinatura:_______________________ Professor (a) Doutor (a) ____________________________________________ Julgamento: _____________________________________________________ Instituição: ______________________Assinatura:_______________________ Professor (a) Doutor (a) ____________________________________________ Julgamento: _____________________________________________________ Instituição: ______________________Assinatura:_______________________ Ao meu marido Fábio, companheiro e amigo em todas as horas, por sempre estar ao meu lado, com infinitas demonstrações de amor e carinho. Ao meu filho Rubens, presente de Deus em minha vida e prova concreta do maior amor já experimentado. Razão do meu desejo incansável de nunca desistir. À minha mãe querida, Maria Aparecida, por todas as orações, incentivo e, acima de tudo, o amor incondicional. Ao meu pai Laércio Martins (in memoriam), pelo amor, cuidado, preocupação e carinho. A minha alegria o alcançará no céu. Aos meus irmãos, Lailson e Lenilson, pelo amor presente em toda minha vida. Vocês são a razão de tudo! Eu os amo muito!!! Essa pesquisa contou com o apoio da CAPES, por meio de concessão de bolsa de estudos. AGRADECIMENTOS Agradeço em primeiro lugar a Deus por sempre me guiar pelo melhor caminho. Da mesma forma a intercessão de Nossa Senhora Aparecida, por cuidar da minha vida e da minha família junto ao Criador. À minha mãe, inspiradora maior na busca infindável pelo conhecimento, por não poupar esforços e me amparar em toda a minha vida. Obrigada por ser meu constante porto seguro, pela força, incentivo e orações! Ao meu marido pela compreensão, por entender que a minha ausência em diversos momentos sempre foi para o crescimento e bem-estar de nossa família, e por acreditar em nossa união e felicidade! Sem o seu apoio não seria possível concluir mais uma etapa de minha vida. Ao meu filho amoroso e carinhoso, de uma bondade infinita, pela preocupação dispensada a mim, inclusive quanto à construção desse trabalho. Aos meus irmãos, meus sogros, Rubens e Maria Auxiliadora, e toda minha família, pelas orações e apoio incondicional. Aos meus amigos professores, funcionários e alunos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, pelo incentivo. Aos professores e amigos que compartilharam as minhas inquietações, incentivando-me e dividindo comigo seus valorosos conhecimentos, além dos inúmeros materiais para as pesquisas. Não os nominarei, são muitos, mas eles saberão identificar. Muito obrigada! Aos membros da banca de qualificação, Dr. Gustavo Octaviano Junqueira Diniz e Dr. Cláudio José Langroiva Pereira, pelos edificantes apontamentos ao meu trabalho. Ao Professor Dr. Isael José Santana, verdadeiro mestre e incentivador à pesquisa e ao crescimento profissional, detentor de posição junto aos bancos da academia que transcende a sua titulação, por todo apoio incondicional, desde a decisão de ingressar no doutorado, pelos incontáveis materiais emprestados, pelos vastos e brilhantes ensinamentos jurídicos compartilhados, leituras e sugestões, e por acreditar que esse objetivo também seria possível. Ao Professor Dr. Mário Lucio Garcez Calil, docente investido de um saber admirável, profissional jurídico interdisciplinar, por me apresentar obras fundamentais na construção desse trabalho, pela atenção constante e pelos apontamentos indispensáveis. À Professora Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches por fazer parte da minha história desde o mestrado e por sempre estar à disposição de seus ex-alunos com tanto carisma. Ao Professor Dr. Roberto Ferreira Archanjo da Silva pelas brilhantes aulas na disciplina de Direito Processual Penal, as quais me incentivaram ainda mais na pesquisa. E, em especial, à minha orientadora, Drª Eloisa de Sousa Arruda! Tornase muito difícil expressar nesse pouco espaço toda minha gratidão, carinho e admiração, não só pela profissional de destaque que é, mas também pela pessoa serena e humilde que demonstrou ser. Agradeço por ter me acolhido como sua orientanda e pela atenção a mim dispensada em todos os momentos. Eterna será a minha gratidão, pelo apoio, confiança, segurança transmitida e por tudo que fez por mim! O Direito, arma da cidadania, instrui e mobiliza a consciência humana e social, a bem da Pátria. Pela ordem jurídica, sob todos os aspectos, o jurista há de velar como patrono, e não só como procurador. Não precisa de procuração para acudir e salvar. O que é direito para os outros cidadãos constitui dever para todos os compromissados. Como instrumento heroico de garantia da vida do Direito, o Direito penal precisa menos de ciência do que consciência, mormente consciência social. (Roberto Lyra) RESUMO A presente tese de doutoramento tem como objetivo o estudo da reincidência criminal, no contexto do processo penal constitucional. Este último tem como finalidade precípua proteger o cidadão, com respaldo nas garantias e direitos fundamentais. A reincidência criminal é um instituto antigo no ordenamento jurídico brasileiro, que sofreu alterações mínimas no decorrer da história da evolução do direito penal e do direito processual penal. Além de funcionar como uma circunstância agravante da pena, apresenta reflexos negativos para o réu em diversas fases do processo. Apesar de ter sido declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, muitos são os questionamentos sobre a reincidência e sua forma de aplicação, que, atualmente, é automática. A análise do tema parte, portanto, da concepção de sistema trazida por diversos estudiosos, os quais apontam a necessidade de se olhar, primeiramente o todo para, somente depois, avaliar a aplicação isolada de determinados institutos do direito e pretender neles alguma alteração. Nesse contexto, imperioso compreender o sistema processual penal e a base que deveria sustentá-lo no panorama da Constituição Federal de 1988. Após o estudo das peculiaridades da reincidência, das discussões doutrinárias e jurisprudenciais, será possível questionar neste estudo a justificativa que a mantém aplicável e suas implicações práticas. Atrelado ao tema apresenta-se o problema do sistema penitenciário que revela, através de algumas pesquisas, números elevados de reincidência criminal, com a manifestação ainda da seletividade penal e da neutralização dos criminosos, implícitas na execução da pena. Por fim, a partir da análise do modelo de política criminal adotado pelo Estado Democrático de Direito, o estudo apontará a necessidade de alterar o instituto da reincidência criminal no Brasil, o que refletirá diretamente no problema da superlotação penitenciária e da ineficácia da ressocialização da pena, visando colaborar para que o processo penal seja de fato um instrumento que exerça uma função social. Palavras-chave: Processo penal. Função social. Reincidência criminal. Criminalidade. Direitos e garantias fundamentais. ABSTRACT This doctoral thesis has the objective of examining recidivism in the context of constitutional criminal procedure. The latter has as primary purpose to protect the citizen based on guarantees and fundamental rights. Recidivism is an old principle in the Brazilian legal system, which has undergone minor changes throughout the history of the evolution of Criminal Law and Criminal Procedural Law. Besides acting as an aggravating circumstance to the penalty, it has negative consequences for the defendant in several stages of the criminal proceedings. In spite of having been claimed constitutional by the Supreme Court, there are many issues on recidivism and its application, which are, currently, automatic. Therefore, the analysis of this subject draws on the conception of a system devised by several scholars who point out the need to consider the whole in the first place and only then evaluate the isolated application of certain principles of law, and seek to change them. In this context, it is imperative to understand the criminal justice system and the foundation that should support it based on the Constitution of 1988. After the study of both the peculiarities of recidivism and doctrinal and jurisprudential discussions, this investigation questions the reason why it is kept applicable as well as its practical implications. Along this line, there is the problem of the prison system that reveals, according to some research, large numbers of recidivism with the manifestation of criminal selectivity and neutralization of criminals, implicit in the execution of the sentence. Finally, from the analysis of the Criminal Policy model adopted by the Democratic Rule of Law, the study will point out the need to change the recidivism principle in Brazil. This will directly reflect on the problem of prison overcrowding and the ineffectiveness of rehabilitation of the penalty. The final aim is to contribute with criminal proceedings so that they could be, in fact, an instrument that would perform a social function. Keywords: Criminal Procedure. Social role. Recidivism. Crime. Fundamental rights and guarantees. RIEPILOGO Questa tesi di dottorato intende studiare la recidiva, nel contesto della procedura penale costituzionale. Quest'ultimo ha come scopo principale proteggere i cittadini, con il sostegno delle garanzie e diritti fondamentali. La recidiva è una vecchia regolamentazione nel sistema giuridico brasiliano, che ha subito modifiche minime in tutta la storia dell'evoluzione del diritto penale e del diritto processuale penale. Oltre ad agire come circostanza aggravante della pena, tale pratica ha conseguenze negative per l'imputato in diverse fasi del processo. Anche se è stata dichiarata costituzionale dalla Corte Suprema federale, ci sono ancora molte domande su recidiva e il suo modo di applicazione, che attualmente è automatico. Perciò, l’analisi del tema parte dalla progettazione del sistema portata da diversi studiosi, che sottolineano la necessità di considerare prima le cose nel loro complesso, poi valutare l'applicazione isolata di alcune norme di legge e desiderare un emendamento. In questo contesto, è indispensabile comprendere il sistema processuale penale e la fondazione che dovrebbe sostenerlo nel panorama della Costituzione federale del 1988. Dopo aver studiato le particolarità della recidiva, dei discussioni dottrinali e giurisprudenziali, sarà possibile in questo studio indagare la giustificazione che la sostiene applicabile e le sue implicazioni pratiche. C'è anche il problema del sistema carcerario collegato a questo tema, che rivela, attraverso alcune ricerche, un gran numero di recidiva, con la manifestazione ancora di selettività penale e la neutralizzazione dei criminali, implicite nella esecuzione della pena. Infine, dall'analisi del modello di politica criminale adottata dallo Stato democratico di diritto, lo studio indicherà la necessità di cambiare la regolamentazione della recidiva in Brasile, che si rifletterà direttamente sul problema del sovraffollamento carcerario e l'inefficacia della risocializzazione della penna, progettato per rendere la procedura penale, infatti, uno strumento che svolga una funzione sociale. Parole chiave: Procedura penale. Funzione sociale. Recidiva. Criminalità. Diritti e garanzie fondamentali. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 12 2 2.1 SISTEMA JURÍDICO E O DIREITO PROCESSUAL PENAL A teoria transdisciplinar de Ludwig von Bertalanffy – teoria geral dos sistemas A importância do sistema kelseniano no desenvolvimento da ciência do direito Teoria tridimensional de Miguel Reale e o sistema jurídico A contribuição de Lourival Vilanova O sistema a partir da sociologia do direito de Niklas Luhmann O sistema autopoiético e o direito Claus-Wilhelm Canaris e a conceituação de sistema Os modelos de sistemas aberto e fechado O direito processual penal inserido em um conceito de sistema jurídico 20 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 2.7 2.8 2.9 LIMITES DA PERSECUÇÃO PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 3.1 O Estado Democrático de Direito: pilar do processo penal 3.2 Sistemas processuais penais 3.2.1 Sistema inquisitório 3.2.2 Sistema acusatório 3.2.3 Sistema misto 3.3 Sistema processual penal constitucional ou democrático 3.4 Princípios orientadores da persecução penal 3.4.1 Princípios constitucionais orientadores do direito penal 3.4.1.1 Princípio da ultima ratio ou intervenção mínima 3.4.1.2 Princípio da legalidade 3.4.1.3 Princípio da lesividade ou ofensividade 3.4.1.4 Princípio da culpabilidade 3.4.1.5 Princípio da individualização da pena 3.4.1.6 Princípio do ne bis in idem 3.4.2 Princípios constitucionais orientadores do direito processual penal 3.4.2.1 Da dignidade da pessoa humana 3.4.2.2 Princípio do devido processo legal 3.4.2.3 Princípio da ampla defesa 3.4.2.4 Princípio do contraditório 3.4.2.5 Princípio da presunção de inocência 3.4.2.6 Princípio da imparcialidade do juiz 3.4.2.7 Princípio da motivação das decisões 3.4.2.8 Princípio da publicidade 3.4.2.9 Princípio da proporcionalidade 3.4.2.10 Princípio da inadmissibilidade de utilização de provas ilícitas 3.5 A importância do processo penal e suas garantias 21 26 33 35 39 41 49 55 60 3 67 68 72 73 75 79 81 87 92 92 93 94 95 97 98 99 99 102 104 106 108 109 111 112 113 116 118 4 4.1 4.2 4.3 4.3.1 4.3.2 4.3.3 4.4 4.5 4.6 4.6.1 4.6.2 4.6.3 4.6.4 4.6.5 4.6.6 4.6.7 4.6.8 4.7 4.7.1 4.7.2 4.8 5 5.1 5.2 5.3 5.4 5.5 5.6 5.7 6 A REINCIDÊNCIA CRIMINAL NO BRASIL E NO DIREITO ESTRANGEIRO Origem histórica: a impregnação cultural da reincidência na legislação brasileira Conceito, natureza jurídica e espécies da reincidência Aspectos gerais da reincidência Documento comprobatório da reincidência Regras da aplicabilidade da reincidência Período depurador Finalidade da reincidência a partir das teorias das penas Consequências desfavoráveis da reincidência Previsão legal no direito estrangeiro Itália Portugal Alemanha Espanha França Argentina Colômbia Estados Unidos da América Discussão sobre a (in) constitucionalidade da reincidência Fundamentos favoráveis e a constitucionalidade da reincidência A ilegitimidade da reincidência: violação aos princípios constitucionais e o direito penal do autor Rumo ao processo penal democrático OS REFLEXOS DA REINCIDÊNCIA CRIMINAL NO PROCESSO PENAL Fase investigatória: o prejulgamento do reincidente e a participação da mídia O fundamento exclusivo da reincidência na decretação de medidas cautelares de natureza pessoal Fase judicial: a reincidência na valoração das provas e na dosimetria da pena Fase de execução penal: o círculo vicioso da reincidência criminal A reincidência como resultado estatístico da seletividade Arraigada A política criminal contemporânea: a reincidência no contexto da crise do sistema penal e processual penal Por uma nova interpretação à luz da efetividade do processo penal 122 122 130 136 136 139 142 145 159 165 165 167 170 171 173 174 176 177 179 182 188 195 201 202 210 218 229 239 250 259 CONCLUSÃO 265 REFERÊNCIAS 270 12 1 INTRODUÇÃO Objeto A presente tese de doutoramento tem por objeto o estudo da reincidência criminal à luz do processo penal constitucional. Tal instituto configura uma agravante obrigatória de pena, conforme artigo 61, I, do Código Penal, e acompanha a história do poder punitivo estatal produzindo diversos efeitos penais e processuais rigorosos no tratamento da pena e de seu cumprimento. Está definido no artigo 63 do Código Penal e é aplicado quando o réu comete uma nova infração penal, após a condenação definitiva por outra. Como regra geral, o legislador adotou a chamada reincidência ficta, ou seja, basta a condenação definitiva e não o cumprimento da sanção penal para caracterizá-la. Contudo, a reincidência criminal traz consequências gravosas ao réu não só na dosimetria da pena, mas em vários momentos processuais, sem qualquer efeito prático, o que agrava uma realidade social que clama por mudança. Sob a justificativa primeira da necessidade de reduzir e combater a criminalidade, com maior reprimenda àquele que se recusou em receber a ressocialização proposta pelo Estado e insistiu na prática delitiva, há décadas vem sendo aplicado esse instituto. Por isso, enfrentar um problema que não é apenas jurídico exige uma visão mais ampla e desprendida da normatividade das leis penais e processuais penais, eis a importância da análise da concepção de sistema, sistema jurídico e do processo penal nesse contexto. O estudo de sistema, como fundamentação da própria existência do direito, meio de controle social também, volve a atenção aos verdadeiros objetivos de uma seara que deve buscar como finalidade precípua a proteção da pessoa e de sua dignidade. Tem o condão de não deixar o jurista se perder em atrações punitivistas, que longe de cumprirem as promessas encorpadas 13 midiaticamente, agravam em grande escala e continuadamente o fenômeno da criminalidade. Entender a reincidência criminal e suas peculiaridades também é uma estratégia para aferir quão influenciável ela é realmente na vida do réu e nos reflexos sociais advindos da condenação. Na mesma senda, tratar a reincidência como um instituto internacional, voltando-se às regras de alguns países, revela que essa não possui um tratamento uniforme; em contrapartida, as altas taxas de reincidência nos mais diversos países estão em voga em quase todas as discussões doutrinárias e jurídicas. Assim, a busca de estratégias ao fenômeno criminal tem também como base fundamental as garantias individuais processuais. Importante ponderar que desde a Constituição Federal de 1988 há uma política criminal delineada que jamais pode ser desvirtuada com medidas encobertas por modelos contrários a essa decisão, sob pena de estagnação e retrocesso social. Formulação do problema e justificativa O direito penal e o direito processual penal acompanham a história da humanidade. O homem enquanto um ser inserido na sociedade e dependente das relações com o seu semelhante nunca esteve distante do crime e das possíveis formas de punições. O controle sobre o homem por meio da sanção penal traz uma sensação de conforto e de justiça à sociedade. E o direito, enquanto meio de controle social, atinge seu ápice com os métodos processuais penais, isto por que se coloca em pauta o direito à liberdade. A reincidência entra nesse cenário como um instrumento de controle penal, eis que agrava a pena do condenado e obsta ou retarda a concessão de benefícios penais e processuais. Compõe, assim, um sistema que funciona a base da ameaça punitivista, com a justificativa da necessidade de maior rigor penal para conter o fenômeno da criminalidade. 14 Desta forma, caminha ao lado do desenvolvimento da pena privativa de liberdade, por conseguinte, do fracasso da pena de prisão e sua função de tratamento ressocializador. Longe de conter a criminalidade e ressocializar o criminoso, a prisão se transformou num nascedouro de estratégias criminais e de especialização no crime, por conta das péssimas estruturas dos estabelecimentos prisionais. Em razão, principalmente, da violência operacional, o sistema penitenciário gera problemas mais graves que aqueles propostos a solucionar. A inserção do criminoso num sistema falido já é um pressuposto que, na grande maioria dos casos, não gera qualquer resultado positivo. Além disso, a forma como vem sendo aplicada a prisão reforça diariamente o estigma de criminoso, com reflexo social imensurável. A sociedade enxerga o detento e o egresso como um perigoso ‘inimigo’, visto que o fato de ter cumprido pena ou ter sido condenado causa o incômodo da insegurança. Desta forma, o recidiva é taxado com essa etiqueta ad eternum, o que gera criminalização e exclusão social, formando um círculo vicioso. Esse cenário dá ensejo ao apoio a movimentos que defendem maior repressão penal com a manutenção, pelo maior tempo possível, do isolamento do criminoso em relação ao restante da sociedade, sem importar nesse viés a forma como esse processo será executado. Esquece-se que a qualidade de cidadão não pode ser retirada de ninguém no Estado Democrático de Direito. A reincidência, no formato atual, é utilizada como um instrumento da política maximalista, que promete fins imediatos, sem a preocupação com a compatibilidade dos meios empregados ao modelo estatal elegido e que pretende, acima de tudo, a neutralização do delinquente. Por outro lado, a quebra do compromisso de ressocializar o condenado não ocasiona qualquer consequência gravosa ao Estado, ao contrário do criminoso que tem condenações agravadas por fatos pretéritos, como se apenas esse tivesse falhado na proposta inicial da pena de prisão. Por conseguinte, os questionamentos em torno da reincidência são dos mais variados e não se concentram apenas em âmbito nacional, pois constatou-se que se trata de preocupação em diversos países os fundamentos, a aplicação e os resultados práticos deste instituto. 15 O Brasil não foi o único país a ser questionado sobre a constitucionalidade da reincidência criminal, tampouco a ter doutrinadores que defendem a exclusão desse instituto do ordenamento jurídico. A discussão perpassa as fronteiras nacionais e preocupa inúmeros países pelos elevados índices de reincidência. A partir dessa visão, a reincidência criminal deve ser contextualizada no âmbito da política criminal que determina métodos claros de prevenção e repreensão, com resultados efetivos para as promessas traçadas. Assim, cabe questionar a real finalidade ou intenção do legislador ao prever e manter o instituto da reincidência no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente considerando os princípios à frente dessa política e como é possível aplicar o instituto da reincidência criminal respeitando uma política criminal minimalista que contenha a violência e dê forma à resolução dos conflitos assegurando, sobretudo, os direitos e garantais fundamentais. Apesar de tamanha relevância e polêmica, a discussão em torno da reincidência se mostra inexpressiva e sem qualquer indício de solução definitiva às questões postas. A reincidência criminal permanece praticamente inerte no processo evolutivo dos estudos penais e processuais penais, um verdadeiro contrapasso ao caminho crítico traçado pela Constituição Federal. Há anos vem sendo aplicada da mesma maneira e, no Projeto de Lei do Senado nº236, de 2012 (projeto do novo Código Penal), as proposta de alterações são tímidas perto das vicissitudes causadas pela reincidência criminal na vida do criminoso e a perpetuação de seus efeitos, sejam explícitos ou implícitos. A escolha do tema almeja a junção aos demais estudos existentes, com ênfase na importância da análise da reincidência criminal para que se corrobore a proposta de adequação desse instituto à luz da Constituição Federal, mais precisamente, do processo penal constitucional. Definição, natureza e abrangência espaço-temporal do estudo O estudo desenvolvido através desta tese de doutoramento possui natureza aplicada com o intuito de o resultado ser futuramente executado, 16 ainda que parcialmente, para a solução de diversos problemas oriundos da alta taxa da reincidência criminal. Será realizada uma proposta de alteração na execução da reincidência criminal tangenciada, a verdadeira finalidade do processo penal constitucional. Conforme abordado no objeto de estudo, a pesquisa está voltada à análise da reincidência criminal e seus reflexos na atualidade brasileira, sem deixar, contudo, de apresentar os momentos históricos importantes que trouxeram alguma alteração relevante e, ainda, de abordar o tratamento reservado por alguns países que de alguma forma influenciaram o Brasil na previsão da reincidência ou que são mencionados pelos autores brasileiros estudados. Objetivo e hipótese geral O objetivo deste trabalho é demonstrar a dificuldade de aplicar o instituto da reincidência e seus efeitos dentro dos parâmetros de um processo penal constitucional e no processo penal. Portanto, é imprescindível uma proposta de modificação desse instituto para apresentar critérios mais precisos em prol de um efetivo garantismo. A pesquisa tem por escopo a análise da reincidência criminal na seara do processo penal constitucional, suas implicações, formas de aplicação, consequências jurídicas e sociais. Para tanto, são necessários vários objetivos específicos. Primeiramente, demonstrar-se-á como o estudo do sistema jurídico amplia a visão do jurista em torno de um problema que exige alternativas e soluções dentro do ordenamento jurídico brasileiro, além de ser um respaldo teórico para a interpretação a ser desenvolvida acerca do tema proposto no âmbito do direito processual penal. Na sequência, será abordada a finalidade do processo penal como um instrumento democrático, compatível com a evolução imprescindível do sistema processual adotado e desprendido das amarras de uma cultura inquisitiva e opressora. 17 Em seguida, partir-se-á para o exame da reincidência criminal e suas particularidades, tais como origem histórica, conceito, espécies, finalidades, consequências no ordenamento jurídico brasileiro, com a exposição do tratamento em alguns países que influenciam o Brasil e são destacados pelos estudiosos do tema. E, ainda, levantar-se-á para discussão da decisão que entendeu pela constitucionalidade do instituto referido. Será traçado também o panorama da reincidência criminal na realidade do processo penal brasileiro, juntamente com a análise de dados estatísticos de pesquisa recente e da interpretação criminológica sobre a justificativa de medidas punitivistas de um direito penal máximo. Por fim, pretender-se-á desenvolver uma proposta que contribua para compatibilizar a aplicação da reincidência criminal no processo penal constitucional, tudo com base nas vertentes de uma política criminal minimalista, de rigoroso respeito aos direitos humanos e às garantias jurídicas do Estado Democrático de Direito, com o objetivo final de alterar a forma como vem sendo aplicada a reincidência criminal no país, como instrumento apenas de maior reprimenda e sem qualquer efetividade, a fim de torná-la mais democrática e efetiva. Estrutura e desenvolvimento da tese A presente tese de doutoramento foi construída em cinco capítulos, aos quais se sucedem as conclusões. O segundo capítulo, após a Introdução desta pesquisa, abordará o sistema jurídico como base teórica e crítica. Nele serão selecionadas as visões de alguns estudiosos do sistema a fim de se enquadrar o direito processual num conceito de sistema jurídico, com a posterior explanação, das teorias que podem nortear o jurista na evolução da ciência jurídica. No terceiro capítulo, o foco do estudo será o sistema processual penal adequado ao Estado Democrático de Direito, com a exposição dos princípios basilares e destaque à importância desse modelo na proteção das garantias e dos direitos fundamentais do cidadão processado criminalmente. 18 Já no quarto capítulo, voltar-se-á a atenção à reincidência criminal desde a origem histórica, conceito, natureza jurídica, espécies, finalidade, consequências, regramento no direito comparado e discussão sobre a constitucionalidade firmada pelo Supremo Tribunal Federal, com a exposição dos argumentos contrários e favoráveis, além de serem apresentadas as jurisprudências que destacam o tratamento da reincidência criminal nos Tribunais Superiores. No último capítulo, após a explanação sobre as consequências da reincidência na vida processual do réu na fase investigatória, na decretação de medidas cautelares, na fase judicial e na execução penal, esse instituto será contextualizado com fulcro na seletividade penal e nos modelos de política criminal em voga no ordenamento jurídico brasileiro. Ao final, será realizada uma proposta de alteração a fim de contribuir para o desenvolvimento do sistema processual penal constitucional, principalmente, na efetividade da reincidência criminal no decorrer do processo penal e após sua conclusão. Nas considerações finais realizar-se-á, incialmente, o resumo dos temas tratados nos capítulos e, posteriormente, dada ênfase às propostas atinentes às respostas à hipótese levantada. Método e teorias A presente tese de doutoramento foi desenvolvida com base em pesquisa bibliográfica e documental, a partir do método dedutivo-indutivo, inicialmente, do geral para o particular. Baseada na análise do todo – sistema jurídico –, realiza-se o enquadramento do direito processual nesse conceito para, posteriormente verificar dogmaticamente o direito processual penal e estudar a reincidência, partindo de dados empíricos e suas consequências processuais com o objetivo de sugerir alteração na aplicabilidade desse instituto, observando a realidade também pela criminologia crítica. Como referencial, várias são as teorias basilares e os autores consultados para a construção desse trabalho, conforme se constata nas referências bibliográficas. Alguns foram utilizados apenas em um único capítulo em virtude da especificidade do assunto abordado. 19 Esclarecimentos adicionais A opção pelo estudo da reincidência criminal deveu-se às mínimas pesquisas a respeito, em contrapartida ao grave problema que ela se tornou e se ampliou causando preocupação em âmbito mundial. Em quase todos os debates sobre criminalidade é apontada a alta taxa de reincidência, porém, poucos são os estudos sobre esse instituto histórico. Entende-se que esse trabalho seja mais um passo para colaborar na construção de uma solução tangente a um problema que assola não só o sistema jurídico, mas atinge a toda sociedade. Por fim, foram realizadas consultas a diversas jurisprudências, o que justifica os apontamentos detalhados em notas de rodapé. Ademais, procurouse manter a informação de todas as citações diretas e indiretas indicando a fonte precisa de pesquisa. 20 2 SISTEMA JURÍDICO E O DIREITO PROCESSUAL PENAL A abordagem sistêmica é, de fato, uma nova visão da realidade, pelo menos 1 quando contraposta à abordagem científica clássica, analítica e mecânica . Analisar um tema com suas problemáticas e exigências interpretativas atuais, demanda um estudo preliminar que identifique esta necessidade e demonstre onde se situa a questão dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, não é possível construir um pensamento sem respaldo e posição teórica basilar. Por isso, neste capítulo, será analisado o sistema jurídico na visão de alguns doutrinadores, com o fim de identificar qual a melhor concepção para embasar a interpretação a ser desenvolvida do tema proposto dentro do direito processual penal. O entendimento da ideia de sistema perfilha o caminho científico e possibilita melhor compreensão do fenômeno jurídico, principalmente tangente aos valores que devem servir de orientação para esse fim. Delimitando o campo de análise, parte-se da visão transdisciplinar de Ludwig von Bertalanffy sobre a teoria geral dos sistemas a fim de demonstrar a importância da concepção sistêmica nas mais diversas ciências para, em seguida, destacar a visão de alguns doutrinadores que também trilharam o caminho do estudo sistêmico. Desta forma, selecionou-se a concepção de sistema kelseniano e a tentativa de fechar normativamente o sistema; o culturalismo jurídico a partir de Miguel Reale, a partir da análise da ciência jurídica como objeto cultural, o direito como experiência; as contribuições de Lourival Vilanova para a compreensão da unidade do sistema e a possível abertura; a visão da sociologia jurídica a partir de Nikas Luhmann, que traz a ideia de autopoiese do direito e a discussão peculiar em torno dos sistemas aberto e fechado. Ao final, destacou-se o pensamento sistêmico de Claus-Wilhelm Canaris, sustentáculo do presente trabalho, tudo com o objetivo de delinear um sistema axiológico que fundamente a interpretação do direito processual penal dentro de um conceito de sistema. 1 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.56. 21 Identificar o direito processual penal no contexto do sistema jurídico favorece a compreensão de institutos muitas vezes questionáveis no que tange à lógica estrutural e aos seus reais objetivos. Estudar o instituto da reincidência e suas consequências requer a atenção em torno da finalidade não só da norma, mas a razão de sua criação e manutenção, além dos objetivos do próprio direito processual penal no ordenamento. Desta forma, evidenciar a importância da conceituação do sistema jurídico, em razão não somente das suas consequências externas ao direito (exigências sociais), mas também em relação ao que ela oferece dentro do próprio direito (ordem, hierarquia, possibilidades interpretativas), sem dúvida, é um passo para nortear o jurista na contínua construção de uma ciência jurídica. 2.1 A teoria transdisciplinar de Ludwig von Bertalanffy – teoria geral dos sistemas De acordo com Ludwig von Bertalanffy, o termo teoria geral dos sistemas foi introduzido, inicialmente, em sentido universal, amplo. Posteriormente, a teoria foi reconhecida como uma disciplina, trazendo à realidade uma “ciência nova”2, que tem por conteúdo a formulação e a derivação dos princípios válidos para os “sistemas” em geral 3. Destaca-se a teoria geral dos sistemas por se apresentar como uma tentativa4 de unificar a ciência a partir de conceitos gerais, especialmente no que tange à própria definição de sistema. A contribuição científica dessa teoria para o desenvolvimento das ciências é uma característica marcante5. 2 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.11. 3 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.57. 4 Ao tratar do conceito da palavra sistema, Juarez de Freitas esclarece: “Todavia, útil registar que passos iniciais rumo do que se pode definir como uma Teoria dos Sistemas foram dados por Ludwig von Bertalanffy (In: Teoria geral dos sistemas, Petrópolis: Vozes, 1973), que de forma ambiciosa, buscou, ainda que sem êxito pleno, “uma teoria não dos sistemas de um tipo mais ou mesmo especial, mas dos princípios universais aplicáveis aos sistemas em geral” (p.55), já antecipando, em certo sentido, a possibilidade de aplicação da teoria dos sistemas abertos aos sistemas materiais, psicológicos e sócioculturais” (p.50).” (FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.39). 5 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.116. 22 As teorias sistêmicas se originam das ciências da natureza e empregam instrumentos lógicos buscando totalidade e unidade. Possuem característica interdisciplinar de estruturas uniformes (isomorfias) e abrem caminho aos métodos mais adequados6. Para Márcio Pugliesi7, a proposta do biólogo Bertalanffy é transdisciplinar e “atraiu a atenção de muitos membros da comunidade científica, particularmente por incorporar e sobrepujar os conhecidos recursos do estruturalismo, bem como aqueles do funcionalismo”. Importante destacar que a noção de sistema é abordada desde os períodos clássicos da antiguidade, conforme pondera Paulo Bonavides8. Com a concepção de que foi iniciado um novo paradigma, Ludwig von Bertalanffy indica três aspectos principais que se distinguem na intenção. O primeiro refere-se à “ciência dos sistemas”, caracterizada pela pesquisa científica e teoria dos “sistemas” nas mais variadas ciências, como a física, a biologia e as ciências sociais e a teoria geral dos sistemas aplicável a todos eles. Nesse sentido, “a teoria geral dos sistemas é então uma investigação científica de “conjuntos” e “totalidades que, não faz muito tempo, eram considerados noções metafísicas, transcendendo os limites da ciência”9. O segundo seria a “tecnologia de sistemas” compreendendo os problemas emergentes na tecnologia e nas sociedades modernas que exigem novos caminhos e uma nova abordagem, como a interdisciplinaridade. Por fim, o terceiro aspecto é a filosofia dos sistemas, isto é, “uma reorientação do pensamento e da concepção de mundo decorrente da introdução do ‘sistema’ como um novo paradigma científico”10. Nesta, percebe-se que descrever o sistema não é uma tarefa fácil, pois há o consenso do que pertence ao sistema real em contrapartida daquilo que é construído simbolicamente, os sistemas abstratos como a ciência. 6 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.108. PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.55. 8 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.108. Segundo o autor, “sistema” é palavra grega e significa reunião, conjunto ou todo. Houve uma ampliação desse conceito sendo entendido como o “conjunto organizado de partes, relacionadas entre si e postas em mútua dependência.” 9 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.11. 10 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.15. 7 23 Para Ludwig von Bertalanffy, a palavra “sistema” está presente em todos os campos da ciência. Em todos os ramos se vê a necessidade do “enfoque sistêmico” para solucionar um problema. Nas palavras do autor, “os políticos frequentemente reclamam a aplicação do “enfoque sistêmico” a problemas urgentes, tais como [...] a bruma urbana, a delinquência juvenil e o crime organizado”11. Por isso, ele propõe uma reorientação do pensamento científico, esclarecendo que não a faz de maneira neutra. Inicialmente, observa que os fenômenos sociais devem ser considerados como “sistemas”, isto quer dizer que há uma nítida tendência de se estudar esses fenômenos não de maneira isolada, mas com interações, o que exige novas ideias, conceitualizações que serão compostas dentro do sistema. O problema surge quando o homem se perde dentro dessa “evolução”, transformando-se num ser meramente substituível, já que o foco é o sistema. Nessa senda, o homem passa a ser um ser amestrado e dominado por uma minoria privilegiada12. A este respeito, Paulo Bonavides13 alerta que a versão cibernética da teoria sistêmica pode conduzir ao advento de uma tecnocracia de homens “máquinas” ou “robôs”, e isto seria ameaçador ao humanismo e à liberdade. Considerando que a ciência está dividida em diversas disciplinas que vão criando novas subdisciplinas, é difícil que uma influencie a outra, apesar de apresentarem problemas semelhantes. Por isso, fazendo referência à biologia, Ludwig von Bertalanffy menciona a necessidade de se estudar não somente as partes e os processos isoladamente, mas impera solucionar problemas encontrados na organização e na ordem que os unifica, “resultante da interação dinâmica das partes, tornando o comportamento das partes diferente quando estudado isoladamente e quando tratado no todo”14. Com base nesta visão, muitas vezes pesquisadores descobrem princípios em sua área de atuação que já haviam sido revelados em outro 11 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.29. 12 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.29. 13 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.108. 14 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.55. 24 campo. Então, a teoria geral dos sistemas seria uma fonte de modelos a serem utilizados em diferentes campos e transferidos de uns para outros. Assim, essa teoria apresenta como um dos propósitos a integração nas várias ciências, naturais e sociais, além de desenvolver princípios unificadores que direcionam para a unidade da ciência15. Essa unificação da ciência teria muita utilidade para a educação interdisciplinar e integrada a fim de proporcionar o bem-estar à humanidade. De nada adiantariam os domínios separados das áreas da ciência, cada qual com sua especialidade, sem interação com as demais. Nesse contexto, o homem deve ser visto como um indivíduo que possui valores a serem respeitados pela humanidade. “A sociedade é baseada nas realizações do indivíduo e está condenada se o indivíduo for transformado em uma roda dentada da máquina social”16, afirma Bertalanffy. Por isso, interessante o conceito abaixo: Um sistema pode ser definido como um complexo de elementos em interação. A interação significa que os elementos p estão em relações R, de modo que o comportamento de um elemento p em R é diferente de seu comportamento em outra relação em R’. Se os comportamentos em R e R’ não são diferentes não há interação, e os elementos se comportam independentemente com respeito às 17 relações R e R’ . Além disso, o sistema considerado unitário não deixa de possuir elementos que apresentam funções distintas, trazendo a ideia de que as partes podem se tornar imutáveis com respeito a certas ações. Por isso, um progresso apenas é possível se o sistema se autorregular, ou seja, executar interações internas: “o progresso só é possível pela subdivisão de uma ação inicialmente unitária em ações de partes especializadas”18. 15 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.63. 16 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.81. 17 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.84. 18 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.102. 25 Ludwig von Bertalanffy19, então, defende a unidade da ciência com a aplicação de princípios gerais dos sistemas. Esta unidade “é conferida não pela utópica redução de todas as ciências à física e à química, mas pelas uniformidades estruturais dos diferentes níveis da realidade” 20. Não se deve, contudo, considerar que todos os fenômenos são agregados de ações fortuitas de unidades físicas elementares, pois já se demonstrou que isto conduz à mecanização da humanidade e à desvalorização dos valores superiores. Nesse contexto, o homem deve ser visto como um indivíduo cujos valores estão acima de método científicos ou raciocínios estruturais das ciências. Impera destacar que para Ludwig von Bertalanffy existe um consenso unânime de “que ‘sistema’ é um modelo de natureza geral, isto é, um análogo conceitual de certas características um tanto universais de entidades observadas”21. O que diferencia a abordagem de sistema é o grau de generalidade ou abstração, tratada nas mais diversas disciplinas. “Daí a natureza interdisciplinar da teoria geral dos sistemas; ao mesmo tempo suas afirmativas pertencem a coletividades estruturais abstraindo da “natureza de elementos e forças no sistema” com os quais se ocupam as ciências especiais (e explicações nestas)”22. “Um sistema pode ser definido como um conjunto de elementos em inter-relação mútua e com o meio ambiente”23. Ainda que não tenha havido êxito em tratá-lo como isoformismo tal qual Bertallanfy pretendia – já que conduziu a um formalismo que sacrificou “a concretude do sistema, os componentes materiais, visualizando assim o sistema pela forma e organização e não propriamente pelo conteúdo”24 – nas ciências jurídicas muitos doutrinadores lutaram por traçar um modelo de sistema compatível com a forma e a finalidade do direito, como será adiante abordado. 19 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.121. 20 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.123. 21 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.314. 22 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.314. 23 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.315. 24 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.116. 26 2.2 A importância do sistema kelseniano no desenvolvimento da ciência do direito A teoria criada por Hans Kelsen foi disseminada por todo o mundo e, apesar de sofrer veementes críticas25, apresenta sua importância para a compreensão da ciência do direito. Como teórico do direito e do Estado, filósofo, sociólogo, Kelsen inaugurou a lógica jurídica com o objetivo de pontuar princípios e métodos da teoria jurídica a fim de conseguir autonomia jurídica ao jurista. Em sua obra Teoria pura do direito, Kelsen objetiva demonstrar que a ciência do direito deve ser purificada e esta pureza se refere à interpretação da norma de forma neutra, ou seja, o jurista não deve se ater aos fundamentos sociais, psicológicos, morais, mas apenas à norma feita sem as considerações valorativas. Nos dizeres de Hans Kelsen, “quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental”26. Conforme destaca André Franco Montoro27, ao tratar da posição do direito: “A teoria do direito, diz Kelsen, quer única e exclusivamente conhecer seu objeto. Procura responder à pergunta: que é e como é o direito, mas não à questão de como deve ser ou como convém elaborá-lo.” Ainda, de acordo com Tercio Sampaio Ferraz Jr. 28, “Kelsen propõe, nestes, termos, uma ciência jurídica preocupada em ver, nos diferentes conceitos, o seu aspecto normativo, reduzindo-os a normas ou a relações entre normas.” 25 Nesse sentido, Juarez Freitas, após expor, em síntese, que o estruturalismo de Kelsen não resolve o problema dos limites, do ponto final e inicial da ordem jurídica e que por sua teoria o jurista não construiria o Direito, não interpretaria, apenas o produziria, conclui: “Deste modo, em que pese o caráter invulgar de sua contribuição, que o faz autor de meditação obrigatória, é seguro que, ao almejar a especificidade do Direito, em sua dimensão de fenômeno social, mostrou-se insuficiente diante do desafio de refletir sobre a normatividade jurídica em face das múltiplas e inovadoras funções – não necessariamente repressivas – do Estado. Portanto, a tarefa de uma metodologia jurídica está a exigir a superação do positivismo, absorvendo-se tudo o que neles houver de capaz de suscitar o enriquecimento de uma perspectiva dinâmica, que não se oponha à identidade essencial entre a “ciência” e a “jurisprudência”, o “ser” e o “dever-ser” e, em última instância, o “funcional” e o “estrutural”, compreendendo e vivenciando o Direito, simultaneamente, como sistemático e aberto.” (FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.45). 26 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8.ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.03. 27 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25.ed. São Paulo: RT, 2000, p.84. 28 FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2012, p.37. 27 Para Niklas Luhmann: A concepção de hierarquia é de longe a tentativa de construção mais interessante e melhor sucedida, mantendo-se até Kelsen. Ela permite que tanto a teoria do ser quanto a teoria da norma excluam a negatividade e ao mesmo tempo a utilizem enquanto elemento de 29 construção nos parâmetros do positivamente permissível . “Em especial para a teoria pura do direito de Kelsen, é fundamental e característica a noção de que uma diferenciação hierárquica não ameaçaria a unidade do direito”30, assegura Niklas Luhman. Não se trata de uma teoria de simples compreensão, principalmente pelo fato de Kelsen tê-la desenvolvido com peculiaridades de complexidade que o acompanhavam na exposição de sua tese; há que se considerar também o momento histórico em que está inserida. De acordo com Maria Helena Diniz, “a teoria kelseniana, expressão máxima do estrito positivismo jurídico, é uma repercussão ideológica de sua época, é uma consequência da decadência do mundo capitalista-liberal, marcada pela Primeira Guerra Mundial”31. Serão, portanto, neste estudo, abordados alguns aspectos da teoria kelseniana, aqueles relacionados à tese de doutoramento ora desenvolvida, tudo com o objetivo de apresentar um pilar teórico. Por meio dessa teoria, há a pretensão de demonstrar que, por força do condicionante das ideias, o que importa é a juridicidade de qualquer norma, seja advinda de Estado totalitário, seja Estado socialista. Considera-se, portanto, o criador da norma. Kelsen apresenta duas modalidades de ciência: a teoria jurídica estática e a teoria jurídica dinâmica. Ele as distingue a partir da análise de alternativas, tais como as normas reguladoras da conduta humana ou a conduta humana regulada pelas normas. 29 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p.192. 30 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p.192. 31 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito – introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.132. 28 A teoria jurídica estática teria por objeto o estudo do direito como um sistema de norma em vigor, no seu momento estático, isto é, estuda a norma pronta e acabada. Já a teoria jurídica dinâmica teria por objeto o estudo do processo jurídico em que o direito é produzido e aplicado, ou seja, no seu movimento analisa a competência do criador da norma e os fatos condicionantes daquela competência. Quem regula a produção e a aplicação do direito é o próprio direito. Conforme Kelsen, “também a teoria dinâmica do direito é dirigida a normas jurídicas, a saber, àquelas normas que regulam a produção e a aplicação do direito”32. Normas jurídicas são definidas não como juízos, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento, são mandamentos, comandos, imperativos. E, ainda, permissões, atribuições, porém não são instruções (ensinamentos), pois o direito permite, prescreve, confere, mas não “ensina” nada 33. Essas não devem ser confundidas com proposição jurídica. Em termos singelos, quando o jurista estuda a norma, ele enuncia uma proposição jurídica. Desta feita, as proposições jurídicas são descritas pela ciência jurídica e podem ser definidas como juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem certas condições ou pressupostos fixados por um ordenamento. São, portanto, diferenças básicas de norma jurídica e proposição jurídica: a primeira é uma criação real, existe no espaço, no tempo, é alterável, revogável, substituível, decorre de um ato de vontade, é um imperativo sancionador; já a segunda é criação que decorre do jurista soberano, trata-se de criação epistemológica, não havendo qualquer escolha por parte do jurista, é ato de conhecimento, está no mundo da lógica, é um juízo hipotético condicionante. Na diferenciação, “ganha expressão a distinção que existe entre a função do conhecimento jurídico e a função, completamente distinta daquela, 32 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8.ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.80. 33 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8.ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.81. 29 da autoridade jurídica, que é representada pelos órgãos da comunidade jurídica”34. Eis, então, uma importante distinção: a ciência jurídica tem por objetivo conhecer o direito e descrevê-lo com base no seu conhecimento. Já os órgãos jurídicos possuem a missão de produzir o direito para que ele possa então ser conhecido e descrito pela ciência jurídica 35. Neste contexto, um conjunto de proposições jurídicas consiste no sistema: “a distinção mais relevante entre normas e proposições concerne à organização lógica do sistema jurídico”36. Segundo o autor37, não há, para Kelsen, lógica interna no conjunto de normas. As autoridades apenas colocam em prática atos de vontade, e as normas podem apenas ser válidas ou inválidas. Somente por meio das proposições jurídicas é possível deduzir a lógica das relações internormativas, isto quer dizer que se houver contradição entre duas proposições jurídicas descritivas das normas, estas não poderão ser consideradas válidas. O jurista deve somente conhecer e descrever a norma de direito por meio de proposição jurídica 38. Para Maria Helena Diniz39, por meio das proposições é que a ciência jurídica descreve as normas: “as normas jurídicas são estabelecidas por atos volitivos das autoridades, ao passo que as proposições são formuladas pela ciência do direito, decorrendo de atos de conhecimento.” A proposição jurídica é criação epistemológica, resultado de conhecimento. Kelsen defende que o dever-ser da proposição jurídica não tem, como o dever-ser da norma jurídica, um sentido prescritivo, mas um sentido descritivo: não se pode afirmar, por exemplo, que o furto é punido com prisão, 34 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8.ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.81. 35 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8.ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.81. 36 COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. Prólogo de Tércio Sampaio Ferraz Jr. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.09. 37 COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. Prólogo de Tércio Sampaio Ferraz Jr. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.09. 38 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito – introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.135. 39 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito – introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.140. 30 pois há casos em que o furto não é efetivamente punido, v.g., quando o ladrão se subtrai da punição. Outro aspecto interessante da teoria kelseniana diz respeito à existência de uma norma hipotética fundamental que irradiaria em todas as normas descritivas no sistema. O conteúdo dessas seria oriundo da norma hipotética fundamental, que traz o conteúdo de validade. Conforme Fábio Ulhoa Coelho, “a norma hipotética fundamental é a categoria kelseniana criada para solucionar a questão do fundamento último de validade das normas jurídicas”40. Desta criação, Kelsen conclui que “o sistema jurídico é posto pela ciência do direito, mas para tanto o jurista stricto sensu deve pressupor uma norma hipotética fundamental”41. Esta é uma indispensável hipótese lógica para que a ciência jurídica possa considerar o direito como um sistema de normas válidas. A norma jurídica fundamental, no entanto, não é a mesma no sistema estático e no sistema dinâmico, uma vez que sua natureza jurídica é diferente. No sistema normativo estático, todas as normas descritas na pirâmide deverão retirar o elemento de validade da norma jurídica fundamental. Já no sistema normativo dinâmico a natureza da norma hipotética fundamental é a lógica transcendental, isto é, confere fundamento de validade; dentro da pirâmide há relações de competência. Há, assim, um topo inicial, que concede o ponto de partida ao jurista, sendo também o ponto final – a norma hipotética fundamental. Na verdade, esta não é verdadeiramente uma norma, visto que o jurista não tem poder normativo. Kelsen utilizou a palavra “hipotética” justamente para distinguir a norma hipotética fundamental das proposições jurídicas, inaugurando-a no mundo da lógica. Observa-se que a norma fundamental está na base do ordenamento jurídico. É uma norma que cria a fonte suprema do direito, ou seja, de acordo com Norberto Bobbio, “a que autoriza ou legitima o supremo poder existente 40 COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. Prólogo de Tercio Sampaio Ferraz Jr. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.11. 41 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito – introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.144. 31 num dado ordenamento a produzir normas jurídicas”42. Esta norma-base não é verificada positivamente, ela não é posta, mas suposta pelo jurista a fim de que compreenda o ordenamento: “trata-se de uma hipótese ou um postulado ou um pressuposto do qual se parte ao estudo do direito”43. Kelsen utiliza da norma hipotética fundamental para fechar o sistema jurídico, pretendendo alcançar a sugerida pureza. Por este viés é possível compreender que essa norma não positiva, mas pensada e que está no mundo da lógica, autoriza o poder constituinte a emanar normas a todos os cidadãos44. “A norma fundamental, como sabemos, não tem para Kelsen caráter ético-político, mas cognitivo, isto é, ela é condição de possibilidade do conhecimento jurídico”45, pontua Tercio Sampaio Ferraz Jr. A apontada falha na teoria kelseniana diz respeito à contradição enfrentada pelo autor, pois no início desvincula o jurista da análise do fato social e depois menciona esta tarefa. Nos dizeres de Bobbio: Tal teoria foi submetida a muitas críticas. E, com efeito, pode-se duvidar que chegue a resolver o problema para o qual foi formulada, isto é, fechar o sistema normativo, assegurando-lhe a perfeita unidade. De fato, se fazemos a indagação: no que se funda a norma fundamental?, ou respondemos fazendo referência a uma outra norma, agora estaríamos diante de um recursis ad infinitum; ou respondemos que tal norma existe juridicamente enquanto for de fato observada, e recaímos na solução que se desejava evitar com a teoria da norma fundamental, isto é, fazemos depender o direito do 46 fato . Mesmo criticado, Kelsen é reconhecido pelo brilhantismo de ter sido o primeiro a criar uma distinção entre direito e ciência do direito, a contribuir com a evolução da epistemologia do direito. Conforme explica Maria Helena Diniz: 42 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Mora. Tradução e notas Márcio Pugliesi. Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p.200. 43 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Mora. Tradução e notas Márcio Pugliesi. Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p.200. 44 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Mora. Tradução e notas Márcio Pugliesi. Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p.200. 45 FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.128. 46 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Mora. Tradução e notas Márcio Pugliesi. Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p.201-202. 32 Kelsen pretendeu, embora não o tenha, no nosso entender conseguido, tão somente preservar a pureza do sistema normativo, foi só por isso que fundou sua validade numa ideia a priori, independente de qualquer fato empírico, daí sua afirmação de que a 47 validade da norma fundamental é uma validade por suposição . A apontada falha também foi identificada por Kelsen e verificada em sua obra póstuma Teoria da norma jurídica, na qual há um corte epistemológico. Não importa o que aconteceu antes da criação da norma hipotética fundamental, mas apenas o que houve depois. Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho: Em sua obra póstuma, Kelsen revê o caráter hipotético da norma fundamental. Afirma tratar-se de uma ficção, no sentido de que contraria a realidade e é contraditória em si mesma. De fato, a norma pensada pela ciência jurídica contradiz a realidade normativa, já que não corresponde a nenhum concreto ato de vontade, não existe enquanto norma. E se contradiz internamente, porque descreve a outorga de poder supremo, partindo de uma autoridade ainda superior. A ficção, no entanto, a despeito de suas inerentes 48 contradições, é instrumento do saber limitado (Kelsen, 1979: 329) . Considerando a teoria desenvolvida por Kelsen, não se pode negar sua importância para a interpretação do sistema jurídico atual e a continuidade da construção da ciência jurídica. Para o estudo deste doutoramento, a teoria kelseneana não é adotada como pilar filosófico jurídico, mas esclarece muitas interpretações equivocadas que refletem consequências gravosas no direito processual penal, por exemplo, quando se tenta interpretá-lo a partir de um sistema fechado, ou dando maior ênfase à norma, desconsiderando outros fatores (sociais, psicológicos, políticos), adentrando-se a um sistema estático há muito já rechaçado. 47 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito – introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.146-147. 48 COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. Prólogo de Tercio Sampaio Ferraz Jr. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.15-16. 33 2.3 Teoria tridimensional de Miguel Reale e o sistema jurídico Para Miguel Reale49, o direito é composto de fato, valor e norma, eis a estrutura tridimensional do direito. Não há como separar o fato da conduta, nem o valor da finalidade a que a conduta está relacionada, nem a norma que incide sobre ela. Ele considera a experiência jurídica uma das modalidades da experiência histórico-cultural e por isso fato-valor passa por um processo normativo de natureza integrante, ou seja, a norma ou o conjunto de normas representa a operação que considera determinados valores sobre fatos, o que implica na formação de modelos jurídicos e sua aplicação50. Esse tridimensionalismo é concreto, dinâmico e dialético, os três elementos sofrem permanente atração, “já que o fato tende a realizar o valor, mediante norma”51. Desta forma, o direito deve ser estudado em sua totalidade, ou seja, a partir da totalidade de seus elementos constitutivos, “visto ser logicamente inadmissível qualquer pesquisa sobre o direito, que não implique a consideração desses três fatores”52. Conforme Miguel Reale53, o direito “não é, pois, puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe dá uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade competente segundo uma ordem de valores.” Não há supremacia, na visão do autor, entre estes elementos. O jurista deve estudar a norma, o fato e o valor enunciando logicamente o seu pensamento. No âmbito do ordenamento, a norma é o poder jurídico que advém de fato volitivo decisório do poder competente sopesando fato e valores. A elaboração de uma norma é um dos momentos em que resulta a experiência 49 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito: preliminares históricas e sistemáticas. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p.57. 50 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito: preliminares históricas e sistemáticas. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p.74. 51 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito – introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.157. 52 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito – introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.158. 53 REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3.ed. São Paulo: RT, 1998, p.302. 34 jurídica54. O sistema é, então, o conjunto de enunciados lógicos que analisam norma, fato e valor; tais enunciados são poderes dogmáticos. Para Miguel Reale o sistema é multiplural, pois abrange vários subsistemas de normas, vários subsistemas de fato e vários subsistemas de valor que estão numa relação de importação e exportação. Conforme Maria Helena Diniz55, “a ciência jurídica propriamente dita estuda o momento normativo, sem insular a norma, isto é, não abstrai os fatos e valores presentes e condicionantes no seu surgimento, nem os fatos e valores supervenientes ao seu advento.” Para a doutrina, ora estudada, há a necessidade de integração dos três elementos para a análise do direito, sendo inviável analisá-lo pelas concepções setorizadas do direito. A ciência do direito seria, desta forma, histórico-cultural e compreensivo-normativa, “por ter objeto a experiência social na medida, enquanto esta normatividade se desenvolve em função de fatos e valores, para a realização ordenada da convivência humana”56. Para Miguel Reale, o jurista é um intérprete, deve averiguar o sentido e o alcance das normas, mas sem se esquecer de analisar os fatos e os valores envolvidos. A partir da interpretação proposta por Miguel Reale, o jurista tentará sempre trazer a melhor forma, provocando a mínima perturbação social. Apesar da importância da teoria tridimensional, a qual trilhou um novo caminho na interpretação jurídica quebrando a barreira dos paradigmas positivistas tradicionais, que impedia o estudo do direito como experiência 57, por isso aqui destacada, não é possível adotá-la para embasar a visão sistêmica do direito processual penal, em virtude do seu aspecto descritivo e retrospectivo em relação ao seu objeto, o que inviabiliza uma crítica prospectiva, ou seja, refere-se ao objeto como algo pressuposto, acabado e já 54 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito: preliminares históricas e sistemáticas. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p.61. 55 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito – introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.158. 56 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito – introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.159. 57 COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.04-05. 35 existente antes do conhecimento, e não como algo que possa ser por ele construído 58. 2.4 A contribuição de Lourival Vilanova O pensamento filosófico de Lourival Vilanova é no sentido de defender um sistema geral, o sistema sempre como referência. Ele entende que há um sistema de normas jurídicas no qual está inserido todo fato jurídico. Impera destacar a contribuição do autor para a compreensão sobre a unidade do sistema, assim como a existência de abertura que possibilita a influência de outros subsistemas. Tratando-se de sistema, Lourival Vilanova apregoa que cada Estado é um sistema e este surge a partir de uma história pré-jurídica59. Ocorre que o sistema possui em si mesmo as regras (proposições) de formação e de transformação de suas proposições. “As normas que estatuem como criar outras normas, isto é, as normas-de-normas, ou proposições-de-proposições, não são regras sintáticas fora do sistema. Estão no interior dele”60. Para que todas as regras do direito positivo alcancem a homogeneidade é necessária a normatividade, e esta tem como ponto de partida a norma fundamental, adotando Hans Kelsen. Tanto a unidade do sistema, como a unicidade do ponto de partida, consoante Lourival Vilanova, caracteriza o sistema do direito positivo. “E qualquer forma normativa de relacionar os elementos (fatos e condutas) será apenas mera possibilidade lógica se a forma normativa não pertencer a um sistema”61. Vilanova traça que os dois sistemas, o da ciência do direito e o do direito positivo, são formalizáveis. Isto quer dizer que uma proposição descritiva da ciência jurídica pode ser formalizada da mesma forma que uma proposição pertencente ao direito positivo. Nesse sentido, destaca-se: 58 COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.06. VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.125. 60 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.126. 61 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.127. 59 36 Há estruturas interiores na proposição, como as proposições se interligam em estruturas. Não convivem meramente justapostas. Umas implicam outras, umas são partes de outras e todas ingressam numa forma mais abrangente, numa estrutura total: a do sistema. O sistema é a forma-das-formas. [...]. O que chamamos ordenamento jurídico, sintaticamente é o sistema. Sob esse ângulo formal, cabe dizer, com Pontes de Miranda: o Direito é um sistema lógico de 62 proposições. Mas tanto o Direito-ciência, como o Direito positivo . Deve-se, ainda, considerar o conceito de sistema como uma ordenação das partes constituintes, relações entre as partes ou elementos e, mais, uma ordem: “as relações não são elementos do sistema. Fixam, antes, sua forma de composição interior, sua modalidade de ser estrutura”63. Ademais, há para Vilanova um sistema sobre o outro: o metassistema e o sistema-objeto. Contudo, o princípio da unidade no sistema do direito positivo é homólogo ao princípio de unidade no conhecimento jurídico-dogmático. Lourival Vilanova articula interpretando que este princípio será a Constituição ou uma proposição situada no direito internacional no sistema do direito positivo. De forma diversa seria considerar a norma fundamental kelseniana, entendendo que o que dá unidade à pluralidade de proposições normativas vigentes é a proposição que está na metalinguagem ou metassistema. Então, a norma fundamental é uma proposição de metalinguagem em termos de lógica moderna. Isto quer dizer que a norma fundamental não está ao lado das outras proposições do direito positivo, não proveio de nenhuma fonte técnica64. No campo do direito, sistema emprega dois planos: o da ciência e o do objeto. Tanto a ciência do direito (sistema científico) quanto o direito positivo utilizam a linguagem. Assim, um e outro apresentam como nota comum o fato de que são constituídos de linguagem, ainda que descritiva, uma, prescritiva, outra. Desta feita, os dois sistemas, o da ciência do direito e o do direito positivo, por isso mesmo contendo estruturas proposicionais, são formalizáveis. 62 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.134. 63 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.135. 64 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.137. 37 O princípio da unidade encontra campo tanto no direito positivo como na ciência do direito. Lourival Vilanova dá a ideia de que um sistema está contido no outro, ao estatuir: Não só o Direito positivo tende à forma-limite do sistema, como também a ciência que o tem por objeto. Há, pois, um sistema sobre outro sistema: um meta-sistema e um sistema-objeto. O que facilmente se compreende, tendo em conta que a linguagem é componente nos dois níveis de sistema. E o princípio da unidade no sistema do Direito positivo é homólogo ao princípio da unidade no 65 conhecimento jurídico-dogmático . A unidade do objeto se comunica à ciência, já que a norma fundamental é a proposição que confere unidade ao sistema-objeto. Por outro lado, ainda que Kelsen debatesse a favor de um sistema unitário de normas e, ainda, de um sistema único, fechado, Vilanova apregoa que o “o fechamento dos sistemas é tão-só do ponto de vista do conhecimento específico (dogmático) levado a termo pela Ciência-do-Direito”66. Conclui-se, então, que princípio da unidade do sistema de direito positivo é homólogo à unidade no sistema científico e esta característica é dada pelo fato de que ambos empregam a linguagem, porém, a ciência do direito é metassistema do qual é sistema objeto o direito positivo. Vilanova defende que o sistema jurídico é um sistema aberto, isto por que, há um intercâmbio com os subsistemas sociais (econômicos, políticos, éticos), de onde são retirados os conteúdos-de-referência67. Afirma ainda que “o pluralismo de normas fundamentais corresponde a cada Estado, com sua morfologia política historicamente diversificada”68. Sobre o sistema jurídico, Vilanova ensina que o direito é um complexo de proposições e um sistema que revela contradições. Aponta ainda que existe o problema de o direito não dever conter contradições e apoia-se em Kelsen quando destaca que o sistema jurídico não é um sistema científico, 65 VILANOVA, Lourival. Noeses, 2010, p.137. 66 VILANOVA, Lourival. Noeses, 2010, p.141. 67 VILANOVA, Lourival. Noeses, 2010, p.141. 68 VILANOVA, Lourival. Noeses, 2010, p.142. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: 38 tampouco formal ou real (empírico): “um sistema científico, este não tolera a inconstância, a incompatibilidade contraditória entre seus enunciados. A contraditoriedade arruína-lhe a estrutura”69. Vilanova descreve que para eliminar as contradições normativas há duas vias, uma, dada pelo próprio sistema jurídico 70; outra, pela ciência jurídica. Nesse sentido, a via para eliminar o contraditório do interior de um sistema positivo de normas é feita pela ciência. Além disso, “conhecer cientificamente é reduzir à unidade a multiplicidade de dados-da-experiência. E a unidade é redução a um princípio ordenador, o que requer a coerência interna nos enunciados através dos quais se recolhem os dados”71. Esclarece Vilanova, que ao contrário da interpretação de Kelsen, é possível um sistema de normas jurídicas abrigar contradições: “se há contradições normativas, então a ciência jurídica, não as admitindo, está-se colocando em função diversa da cognoscente ou descritiva” 72. Com isso, tomando a posição de emitente de proposições prescritivas, refaz-se o sistema, aceitando-se a ciência jurídica como fonte do direito, tese contrária à de Kelsen: Firmado na lei lógica da não-contradição, o jurista científico emite a norma da não-contraditoriedade, pois, se há normas conflitantes, na espécie da antinomia contraditória, eliminar uma das duas conflitantes só é possível através de normas. Normas são eliminadas 73 por normas, proposições prescritivas por proposições prescritivas . E, na visão de Vilanova, em tempos atuais, estas questões se tratam de níveis de linguagem, quais sejam a linguagem do direito-objeto e a 69 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.161. 70 Sobre o meio do sistema jurídico, conforme esclarece José Afrânio Vilela “[...] se ele é constituído de níveis proposicionais, com diferentes níveis de valia, se está construído hierarquicamente, a proposição de maior nível elimina a correspondente contraditória de menor nível; quando de mesmo nível, é o critério extralógico de sucessão temporal que manda a posterior revogar a anterior. Daí por diante: a norma constitucional prevalece sobre a norma ordinária, a lei formal prevalece sobre o regulamento; tudo segundo um princípio ordenador, que requer a coerência interna nos enunciados através dos quais se recolhem os dados. Ao pensar sobre os aspectos da Completude do Sistema Jurídico, agora permeando a prática, anota que o juiz necessita do saber teorético a convolar-se em saber instrumental, para conhecer e depois interpretar e aplicar normas. (VILELA, José Afrânio. O pensamento jurídico de Lourival Vilanova. Revista Estudos Filosóficos n.14/2015. Disponível em: <http://www.ufsj.edu.br/portal2repositorio/File/revistaestudosfilosoficos/art19%20rev14.pdf.>. Acesso em: 12 out. 2016. (VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.161). 71 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.164. 72 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.167. 73 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.167. 39 linguagem da Ciência-do-Direito; ainda, de um outro nível de linguagem: a linguagem lógica, onde se encontra a lei de não-contradição74: A lei lógica declara que duas normas contraditórias não podem ser ambas válidas (nem ambas falsas, segundo a lei-de-terceiro-excluso). Mas, como lei, é enunciado teorético, cujo valor-de-verdade é independente da conformidade ou não-conformidade do Direito positivo a essa lei. Como lei lógica, é analiticamente verdadeira, muito 75 embora fale sobre proposições que carecem de valores veritativos . Por fim, um sistema científico que infringe lei lógica é, formalmente (analiticamente), falso, antes de alcançar o objeto de conhecimento. Mas um sistema normativo, como o do direito positivo, infringente da lei de não contradição sobre proposições normativas, continua a ser válido76. 2.5 O sistema a partir da sociologia do direito de Niklas Luhmann Considerando que a evolução e a construção do direito não podem ficar restritas apenas aos preceitos desta área, sem considerar os demais ramos da ciência, e que a análise de sistema não é um desafio apenas jurídico, o estudo por meio da sociologia do direito é capaz de contribuir na reflexão sobre o conceito de sistema e suas peculiaridades. Destaca-se, no presente estudo, o sociólogo Niklas Luhmann por apresentar uma visão sobre o direito que leva à reflexão sobre a importância de se distinguir o sistema aberto do fechado e inova com a concepção da autopoiese do direito, que será abordada no próximo tópico. Niklas Luhmann77, em sua obra Sociologia do direito I78, considera o direito como uma construção social indispensável. Como há diversas 74 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.168. 75 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.168. 76 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4.ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.168. 77 “Niklas Luhmann nasceu em 1927. Professor na Universidade de Bielefeld, Alemanha, desde 1968, centralizou seu trabalho em torno da teoria geral da sociologia, sociologia do direito, da economia e das organizações. [...] A obra de Luhmann engloba não somente os pensamentos clássicos da sociologia, mas também as conquistas fundamentais da teoria de sistemas complexos e não lineares, elaborada e utilizada concomitantemente em interação recíproca com outras diversas áreas científicas, como na física termodinâmica, biologia molecular, cibernética e teoria da informação e comunicação, entre tantas. (AMARAL, Claudio do Prado. Princípios penais: da legalidade à culpabilidade. São Paulo: IBCCrim, 2003, p.65). 40 possibilidades em cada situação, para estabelecer o ordenamento jurídico de determinada sociedade, faz-se necessário deixar de lado a concepção de que todas as sociedades devam reconhecer determinado direito. Por isso, a sociologia, de acordo com a abordagem clássica79 à sociologia do direito não busca a base da vigência em normas. Tem-se para esta linha de pensamento, de forma geral, que o direito toma a posição central no desenvolvimento social – “não como uma causa impulsionadora ou planejada no sentido político do desenvolvimento, mas como forma e expressão da situação social correspondente”80. De acordo com Germano Schwartz81, os autores tradicionais: “[...] vêem o direito como a estrutura normativa da sociedade, ou seja, o direito como evolução societária, e não de sua crescente complexidade. Daí, que o direito passa a ser determinado por sua referência à sociedade.” Desta forma, com base nesta análise, desenvolve algumas conclusões: que o direito não é determinado por si próprio, mas por sua referência à sociedade, que o direito fomenta o seu desenvolvimento ao ter que se adaptar ao processo de evolução da sociedade para atender às suas necessidades. Por isso, o direito, ao se deparar com uma sociedade mais rica em possibilidades, ou seja, mais complexa, deve ser compatível com um número maior de possíveis situações e eventos. Para ele, a sociologia do direito deixou de lado essa transformação82. Niklas Luhmann evidencia, pois, a possibilidade de discutir a relação entre sociedade e direito e aponta que as considerações sobre a teoria de sistemas e a teoria social, formação e modificação do direito ao longo do 78 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. 79 É por meio de um resumo comparativo realizado a partir das bases teóricas de Emile Durkheim, Karl Marx, Maine, Weber, Parson e Ehrlich, que Niklas Luhmann chega a essa conclusão. Para ele: “A sociologia do direito tem um relacionamento indiferente, frio, quando não abertamente inamistoso para com a legislação.[...] Até hoje não existe nenhuma abordagem digna de registro no sentido de uma teoria sociológica da positividade do direito.” (LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p.34-35). 80 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p.15. 81 CLAM, Jean; ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germando. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.52. 82 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p.33-35. 41 desenvolvimento social lançam para a sociologia do direito a perspectiva de poder apreender a positividade do direito83. A partir destas considerações, vê-se uma das formas com que os sociólogos contribuem para a própria compreensão do direito e da lógica que envolve o sistema de regras, o qual deve se desenvolver, manter-se e evoluir para o bem da sociedade humana a fim de que as normas editadas não destoem de fatos sociais propulsores da própria adequação jurídica. Importante dizer que a abordagem sociológica de sistema, a partir da análise em Niklas Luhmann, pode ser considerada um percurso que orienta novas teorias. O sociólogo influenciou a definição do direito como estrutura de sistemas sociais. Para Luhmann, o direito pode ser definido “como estrutura de um sistema social, a qual se baseia na generalização congruente de expectativas normativas de comportamento”84. Então, o direito realiza uma função necessária em toda sociedade constituída. Sua evolução é perceptível na medida da complexidade da sociedade, no mecanismo de determinação de papéis e processos jurídicos. Todas essas ideias influenciaram na construção da teoria do sistema autopoiético, uma nova concepção de sistema social, para explicar a reprodução do direito. Por isso, adiante será abordada a autopoiese do direito, com ênfase na visão de abertura e fechamento do sistema. 2.6 O sistema autopoiético e o direito Impera, pois, abordar a autopoiese do direito desenvolvida por Niklas Luhmann, o qual representa um marco na transição da teoria geral dos sistemas para teoria dos sistemas sociais. Segundo Niklas Luhmann, a teoria geral dos sistemas organizou-se na ideia de sistemas abertos, ou seja, na relação de troca com seu ambiente por meio das operações inputs e outputs, baseado num sistema aberto. 83 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p.37. 84 LUHMANN, Niklas. Direito como generalização congruente. In: FALCÃO, Joaquim; SOUTO, Cláudio. Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, p.136. 42 Contudo, inicia a crítica a essa teoria pela distinção de todo e parte, ou seja, questiona onde termina a abertura do sistema. Conforme análise de Luhman: A consideração teórica dos sistemas abertos é, até certo ponto, uma teoria de alta generalidade, já que deixa aberta a pergunta sobre que tipo de relação de intercâmbio deve ocorrer entre sistema e meio. O desenho dos sistemas abertos trabalha com um conceito indeterminado de meio e não distingue a relação geral entre sistema e meio, da relação mais específica entre sistema e sistemas-no85 meio . O sistema aberto parte da lógica da causalidade para manter relações de continuidade e procurar o equilíbrio e a estabilidade com o meio externo. Eis que a estrutura interna do sistema somente poderia ser modificada com a provocação por meio de seu ambiente. Com essa abertura do sistema, dificulta-se o próprio conceito de sistema: “a abertura eliminou o fechamento, ou seja, a identidade sistêmica”86. Por isso, Luhmann desenvolve uma crítica para solucionar essa questão, baseado no construtivismo radical em que é preciso distinguir sujeito de objeto. Contudo, a dificuldade é separar sujeito de objeto, excluir a interferência do observador. E, ainda, considerar que a realidade parte da experiência do observador, o qual transmite a informação com base no observado figurando o produto de um sistema. Além disso, foi preciso que Luhmann criasse outro conceito de ação para tornar possível, concomitantemente, a autonomia e a dependência da sociedade em relação ao ser humano, com a teoria da comunicação. Esta junção foi realizada pela criação da teoria dos sistemas autopoiéticos 87. A autopoiese vem do grego autós (‘por si próprio’) e poiesis (‘criação’, ‘produção’). “Significa inicialmente que o respectivo sistema é construído pelos próprios componentes que ele constrói”88. Na definição de Maturana, autopoiesis significa que um sistema só pode produzir operações na 85 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópoles, RJ: Vozes, 2009, p.63. 86 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p.34. 87 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p.34. 88 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p.113. 43 rede de suas próprias operações, sendo que a rede na qual essas operações se realizam é produzida por essa mesmas operações89. Pode também ser definida como a qualidade de um sistema que organiza a conectabilidade (por seus elementos), tudo com operações reprodutivas90. De acordo com Leonel Severo Rocha: [...] a noção de Autopoiese surge como uma necessidade de se pensar aquilo que não poderia ser pensado em uma visão dogmática e unidimensional. É um sistema que não é fechado nem aberto. Por quê? Porque um sistema fechado é impossível, não pode haver um sistema que se autorreproduza somente nele mesmo. Por sua vez, igualmente, não pode haver um sistema totalmente aberto e sem limites. Há, aqui, então, a proposta da Autopoiese que estabelece um 91 critério de repetição e diferença simultânea . Esse sistema autopoiético é delineado por Luhmann diferentemente do modelo de Maturana, pois não radicaliza o fechamento do sistema. O fechamento é radical na teoria biológica da autopoiese para Luhmann por que “para a produção das relações entre sistema e ambiente, é exigido um observador fora do sistema, ou seja, outro sistema”92. Já os sistemas constituintes de sentido exigiram não um observador de fora, mas uma autoobservação para a reprodução autopoiética, conforme explica Marcelo Neves 93. Existe uma operação dentro do sistema e apenas a esse se refere. O meio ambiente está fora do sistema. Assim, sistema e meio ambiente são independentes. Para Luhmann, a diferença entre sistema e meio só é possível de ser realizada pelo sistema, o que preceitua a teoria do encerramento operativo, que está numa ordem de realidade distinta da autopoiese. O sistema traça seus próprios objetivos e limites por meio de operações exclusivas, sem com isso se confundir com a antiga concepção de sistema fechado, a entropia. O fechamento a partir do encerramento operativo não pressupõe um isolamento, mas apenas que o sistema é fechado operacionalmente; “ou seja, que as 89 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópoles, RJ: Vozes, 2009, p.121. 90 CLAM, Jean; ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germando. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.103. 91 CLAM, Jean; ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germando. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.36. 92 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p.114. 93 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p.114. 44 operações próprias do sistema se tornem recursivamente possíveis pelos resultados das operações específicas dos sistemas”94. Distingue-se, pois, da antiga consideração de sistemas fechados por que esses são fechados apenas em determinadas situações, ou seja, há uma prévia seleção de causas pelo observador. Isto significa que a seletividade de causas busca definir seus efeitos, nunca podendo ser abrangidas todas as causas do mundo, apenas aquelas de interesse do observador 95. Conforme pondera Marcelo Neves96, na teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Luhmann o meio ambiente atua como o fundamento do sistema. Diversas determinações do meio ambiente podem influenciar o sistema, contudo, nem todas serão nele inseridas. Somente aquelas que receberem a forma atribuída pelo sistema por meio do código-diferença poderão integrá-lo. Fecha-se operativamente o sistema para lhe dar possibilidade de abertura, visto que só se abre o que está fechado. Então, autopoiese para Luhmann é paradoxal, mais abrangente e se compõe de três fases: a) a autorreferência de base, ou seja, com autorreprodução dos elementos e leva à conclusão de que quando os juristas operam há estabilização do sistema autopoiético; b) reflexividade, no sentido de que o processo se submente aos seus meios para escolher seus atos e c) reflexão que é a autodescrição do sistema. Quando essas três fases operam simultaneamente, tem-se a estabilização de um sistema autopoiético diferenciado de seu ambiente97. Conforme Marcelo Neves: A reflexividade diz respeito à referência de um processo a si mesmo, ou melhor, a processos sistêmicos da mesma espécie. Assim se apresentam a decisão sobre tomada de decisão, a normatização da normatização, o ensino do ensino. Mas, formulado dessa maneira, o conceito resulta insuficiente para caracterizar a reflexividade de um sistema autopoiético. Em face disso, Luhmann tenta defini-lo mais exatamente: “De auto-referência processual ou reflexividade 94 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópoles, RJ: Vozes, 2009, p.103. 95 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópoles, RJ: Vozes, 2009. 96 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p.113-115. 97 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p.50. 45 queremos falar apenas, então, se esse reingresso no processo é 98 articulado com os meios do processo” . O conceito de autopoiesis, de acordo com Luhmann, “é um ponto de partida a ser seguido por outros conceitos de reparação que se aproximem mais da complexidade da realidade”99. A autopoiesis demonstra que a dependência de um sistema se revela na maneira como o meio produz efeitos no sistema. Essa inter-relação apenas é visível por meio de um observador, que irá analisar sistema e meio. Por uma questão de lógica, deveria concluir que um sistema é mais dependente quando relacionado ao meio, contudo, Luhmann conclui, paradoxalmente, que “os sistemas altamente complexos aumentam, simultaneamente, a autonomia (se é que se permite usar assim tal conceito) e a dependência”100. Desta feita, os sistemas político, econômico e do direito, por exemplo, são “altamente dependentes e independentes em relação ao meio” 101. A política não vai bem quando a economia fica a desejar, a economia precisa de garantias fornecidas por instrumento do direito e, assim, sucessivamente. Nas palavras de Luhmann: Os sistemas parciais da sociedade tornam-se cada vez mais reciprocamente dependentes: a economia depende das garantias políticas e de decisões parametrais; a política, do sucesso econômico; a ciência, de financiamentos e da capacidade de planejamento da política; a economia, da pesquisa científica; a família, do resultado econômico dos programas políticos de pleno emprego; a política, da socialização através da família; e assim por 102 diante . O aumento da complexidade da sociedade exigiu subsistemas especializados para operacionalizar os problemas decorrentes desse desenvolvimento. Esses subsistemas se organizam e produzem seus 98 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p.117. LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópoles, RJ: Vozes, 2009, p.125. 100 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópoles, RJ: Vozes, 2009, p.127. 101 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópoles, RJ: Vozes, 2009, p.127. 102 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p.227. 99 46 elementos pela comunicação geral: “eles são autopoiéticos, capazes de se reproduzirem sem qualquer interferência externa. São operativamente fechados no sentido de que essas operações não são determinadas pelo ambiente”103. O sistema em Luhmann é fechado operacionalmente, mas aberto cognitivamente em relação ao ambiente. A comunicação apenas existe com o homem e é, constantemente irritada pelas consciências104. Nesse contexto, os subsistemas são iguais ao sistema social, abertos e fechados ao mesmo tempo, e cada um deles possui um código comunicativo próprio primeiro, isto é, não pode ser utilizado pelo outro. O direito como sistema autopoiético teria o código binário lícito/ilícito e a comunicação como elementos básicos de sua autopoiese. Reside, porém, a dúvida sobre como o direito é capaz de impor suas autodescrições aos demais subsistemas, considerando que esses também possuem códigos próprios. A resposta é construída por Luhmann ao afirmar que o direito deve produzir “congruência seletiva” entre as dimensões de sentido a fim de alcançar a função do direito. Por essa óptica o direito procura estabilizar as frustrações por meio da normatização e, para absorvê-las, pode tanto ignorar a violação de uma norma como aplicar uma sanção105: “a positividade, isto é, o princípio da variabilidade estrutural do direito, só se torna compreensível quando se vê o presente como consequência do futuro, ou seja, como decisão”106. Salienta-se que a positividade do direito nada mais significa que sua autodeterminação operacional. Isto quer dizer que o direito se fecha operacionalmente com o código-diferença lícito/ilícito, mas a escolha do que é ou não lícito é determinada de acordo com o ambiente107. Outra produção de Luhmann é que a autodeterminação do direito tem como fundamento a distinção entre expectativas cognitivas e normativas. 103 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p.62. 104 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p.56. 105 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013. 106 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p.168. 107 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p.120. 47 Com essa distinção, é possível a abertura do sistema ao ambiente. Assim, o direito seria um “sistema normativamente fechado, mas cognitivamente aberto”108. O que é fechado no sistema é sua autoprodução e o que se abre é a sua referência ao meio ambiente. Isso ocorre para que haja um filtro no sistema jurídico. Quer dizer que esse sistema escolhe seus próprios critérios podendo ou não se deixar influenciar pelos fatores do meio ambiente. Sendo o sistema cognitivamente aberto ele pode se reciclar, ou seja, alterar-se para uma adaptação ao meio ambiente, com a seleção apenas de interesses alheios ao sistema jurídico. E, o seu fechamento normativo é que deixa clara a distinção entre sistema jurídico e seu ambiente, além de impor escolhas, reduzir a complexidade e distinguir expectativas jurídicas dos diversos comportamentos do ambiente. Eis que o fechamento operativamente garante a autopoiese do direito e o estimula a garantir sua função109. Nesse contexto, destaca-se: O Direito é um subsistema fechado normativamente e aberto cognitivamente, ou seja, é um subsistema cuja reprodução autopoiética basal se fecha operacionalmente ao redor das expectativas normativas, sem que isso implique um isolamento 110 cognitivo em reação ao seu ambiente . O sistema jurídico na visão de Luhmann é um subsistema funcional e autopoiético, que compõe o sistema social e procura produzir seus elementos e estruturas, mediante operações recursivamente fechadas. A sociedade seria, então, o ambiente do direito 111. O direito se enquadraria como um dos subsistemas sociais surgido diante do crescimento da complexidade da sociedade, a qual necessitou desses subsistemas especializados a resolver os mais diversos problemas atinentes à política, à religião, à arte, à educação e ao direito, dentre outros. 108 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p.120. BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013. 110 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p.112. 111 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p.62. 109 48 Os subsistemas (direito, economia, ciência, política, educação, religião, arte, meios de comunicação de massa, arte, família e saúde) não estão isolados, podem ser irritados pelo ambiente, mas essas aberturas não afetam as operações internas do sistema – o fechamento operacional – e somente serão bem recepcionadas se resolvidas com as próprias referências dos sistemas112. Para visualizar essa relação, Luhmann faz a comparação com um jogo de sinuca: Para o jogo existir é preciso mais de uma bola de bilhar; todas diferenciadas e cada uma com sua respectiva cor (fechamento operativo). Isoladas, não fazem qualquer sentido. Também não faz sentido se elas não se baterem, chocarem (se irritarem, estimularem). Se, durante estes choques, uma das bolas lança a outra fora da mesa (desdiferenciação funcional ou corrupção de códigos), o jogo é destruído. Enfim, para o jogo continuar, é indispensável multiplicidade de bolas de bilhar que se relacionam, sem se confundirem. Esta, para 113 Luhmann, é a lógica da complexidade da sociedade moderna . Observa-se que Luhman114 desde sua obra Sociologia do direito I defendia o direito como estrutura e a sociedade como sistema em uma relação de interdependência recíproca. A sociedade seria um sistema social que deveria possuir uma ordem jurídica: “a grande novidade da última sociologia jurídica luhmanniana é precisamente de que a positividade é, a partir de então, insuficiente para explicar isso que o sistema jurídico é hoje [...]”115. Eis, então, o sistema autopoiético em que o direito se conceituaria, um sistema fechado normativamente, mas aberto cognitivamente. Quer dizer que ou o sistema é autopoiético ou não é. “Ele não pode ser mais ou menos fechado, mais ou menos autopoiético, porque suas operações não podem ter referência fora dele”116. Por fim, o sistema jurídico se encerra apenas operativamente com a abertura e uma dependência ambiental. Fecha-se apenas sua fábrica interna, 112 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013. 113 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p.65. 114 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p.22. 115 CLAM, Jean; ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germando. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.52. 116 CLAM, Jean; ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germando. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.114. 49 sendo capaz de organizar sua autorreferência, de se observar e de construir o objeto jurídico117. O direito é, pois, determinado pelo seu próprio sistema jurídico por meio das operações internas. Essas considerações sobre a autopoiese do direito irão contribuir na discussão sobre os modelos de sistemas aberto e fechado e em qual deles melhor se adequam as necessidades do direito processual penal. De antemão, afirma-se que a teoria de Luhmann, apesar de ser inovadora e de contribuir para a compreensão do sistema jurídico, denota um conteúdo meramente formal, com a sobreposição da expectativa normativa em detrimento de uma função jurídica sob a perspectiva de valores fundamentais. 2.7 Claus-Wilhelm Canaris e a conceituação de sistema Na obra Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, Claus-Wilhelm Canaris apresenta uma inovação referente à ciência jurídica ao sintetizar a ideia, o conteúdo, a natureza e os limites do pensamento sistemático. O texto apresentado por Canaris foi produto da conferência proferida em 1967 para o seu processo de habilitação, perante a Faculdade de Direito da Universidade de Munique. Com uma introdução à edição portuguesa, Antonio Menezes Cordeiro desenvolve desde a análise sobre o formalismo e o positivismo, apontando a incapacidade do formalismo perante a riqueza dos casos concretos e a dificuldade do positivismo em lidar com conceitos indeterminados como a falta de capacidade para apontar soluções alternativas perante injustiças graves no direito; até a sugerir um novo pensamento sistêmico. Cordeiro esclarece que Canaris optou pelas exemplificações na base do direito privado. Contudo, as lições empreendidas também podem ser alargadas às diversas disciplinas. Destaca Cordeiro118 que a regularidade vem concretizar a existência do direito. “Sem essa regularidade, o direito não teria qualquer consistência, 117 CLAM, Jean; ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germando. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.124. 50 ideal ou real: ininteligível, imperceptível e ineficaz, ele deveria ser afastado das categorias existentes.” Desta forma, uma primeira ideia de sistema poderia ser definida: “o direito assenta em relações estáveis, firmadas entre fenômenos que se repetem, seja qual for a consciência que, disso, haja”119. Não é demais fixar que há dúvidas e diversas discussões sobre a ideia de sistema em direito. Canaris utiliza a noção de Kant: “sistema é a unidade, sob uma ideia, de conhecimentos diversos ou, se se quiser, a ordenação de várias realidades em função de pontos de vista unitários”120. Neste contexto, para o direito ser aplicado, ele deve ser conhecido e para isto, imperioso o estudo dos fenômenos jurídicos. O direito possui um sistema interno e necessita da sistematização na aprendizagem ou na comunicação, que se materializa pela exteriorização do direito. O sistema externo interfere no sistema interno, contudo, o inverso não ocorre, pois o sistema externo tem por objetivo comunicar o interno para que este seja acessível ao estudo e à aprendizagem 121. Por isso, estudar o significado da ideia de sistema para a ciência do direito gera controvérsias e divide opiniões, eis que somente por meio do estudo do sistema se alcança o verdadeiro conhecimento. Para conceituar o sistema jurídico é necessário haver um conceito geral ou filosófico de sistema e da análise do papel do sistema na ciência do direito. Predomina a conceituação trazida por Kant já acima mencionada. Desta forma, Canaris explica que a ordem e a unidade do direito pertencem, antes, às fundamentais exigências ético-jurídicas e radicam, ao final, na própria ideia de direito: 118 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.LXIII. 119 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. LXIV. 120 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. LXIV. 121 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. LXIX. 51 Assim, a exigência de “ordem” resulta diretamente do reconhecido postulado da justiça, de tratar o igual de modo igual e diferente de forma diferente, de acordo com a medida da sua diferença: tanto o legislador como o juiz estão adstritos a retomar “consequentemente” os valores encontrados, “pensando-os, até o fim”, em todas as consequências singulares e afastando-os apenas justificadamente, isto é, por razões materiais – ou, por outras palavras: estão adstritos 122 a proceder com adequação . A ideia de sistema jurídico justifica-se a partir de elevados valores do direito, como o ‘princípio da justiça e das suas concretizações no princípio da igualdade e na tendência para a generalização. Esse é para o autor o fundamento do sistema jurídico. Ocorre ainda que outro valor supremo, o da segurança jurídica, aponta na mesma direção123. É por meio desse valor que o direito é pressionado a formar um sistema, com a estabilização de sua aplicação pela legislação e jurisprudência a fim de que não haja normas desconexas e em demasia, resultantes em contradição. Com isso, o direito seria o conjunto dos valores jurídicos mais elevados. Conceituar sistema, para Canaris, é traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica124. Descartam-se os sistemas de puros conceitos fundamentais como o desenvolvido por Kelsen, visto que traz categorias puramente formais, enquanto a unidade valorativa é sempre de tipo material. Também não seria viável um sistema lógico-formal para traduzir a unidade interior e a adequação de uma ordem jurídica positiva. Isto, porque, a unidade interna de sentido do direito, que resulta em sistema, não condiz com o desenvolvimento de justiça a partir da lógica, mas corresponde a uma derivação do tipo valorativo ou axiológico 125. Os valores não fazem parte do 122 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.18. 123 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.22. 124 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.23. 125 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.30. 52 campo da lógica formal e os pensamentos jurídicos verdadeiramente decisivos ocorrem fora do âmbito da lógica formal. Há, ainda, a tentativa de conceber o sistema como uma conexão de problemas. Contudo, Canaris rebate esta ideia entendendo que o direito não se desenvolve pela soma de problemas, mas de soluções de problemas. Claus Canaris126, então, propõe desenvolver o conceito de sistema a partir das ideais de adequação valorativa e da unidade interior da ordem jurídica. Entende que o sistema que corresponde ao ordenamento criado a partir da regra de justiça, ou seja, de regra de natureza valorativa, é o sistema em que há uma ordenação axiológica ou teológica. Daí critica o sistema lógico-formal, o qual limita o conceito de sistema, inadmissível na visão de Claus Canaris127, eis que um sistema tem por finalidade captar e traduzir a unidade e a ordenação de um determinado âmbito material com meios racionais. Restringir este caminho ensejaria a sentença de morte para a jurisprudência e para a ciência, onde são possíveis o pensamento e a argumentação racional. Deve, pois, haver um sistema axiológico e teleológico entendendo o direito como a captação racional da adequação de conexão de valorações jurídicas. Quando se trata de adequação dos valores, tem-se a adequação formal de uma valoração e não de justeza material, ou seja, refere-se ao caráter formal do princípio da igualdade. Nas palavras do autor, “garantir a adequação formal é, em consequência também a tarefa do sistema “teleológico”, em total consonância com a sua justificação a partir do princípio “formal” da igualdade”128. A partir dessa ideia, é possível vislumbrar a ordenação formal ou a hierarquia do sistema jurídico. Da mesma forma, considera-se que o sistema jurídico advém de uma ordem axiológica de princípios gerais do direito. A característica principal 126 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.66. 127 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.70. 128 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 76. 53 da ideia da unidade é a recondução da multiplicidade do singular a alguns poucos princípios constitutivos, o que significa dizer que é necessário alcançar os valores fundamentais mais profundos, justificando e fundamentando assim a legislação (ratio iuris determinante). Para formar um sistema os princípios são imprescindíveis. Eles têm o condão de extrapolar a unidade valorativa do direito e no conceito (bem elaborado) a valoração está implícita; o princípio, pelo contrário explicita-a e por isso ele é mais adequado129. Os princípios gerais do direito demonstram o caminho para a unidade apregoada por Claus Canaris. Para ele, diversos princípios são comuns a vários institutos. Esta característica enfatiza a ideia defendida de que o sistema não pode ser desconexo, mas ser o resultado de uma concatenação e ordenação interna. O sistema considerado uma ordem de valores resulta na afirmação de que cada ordem jurídica se baseia em alguns valores superiores e busca sua proteção. O princípio ultrapassa o valor por já estar suficientemente determinado e, ainda, extrapola o conceito por não estar suficientemente determinado para esconder a valoração130. Considerando esta delimitação, o sistema é definido como uma ordem teleológica de princípios gerais do direito. Para a obtenção do direito, o significado do sistema define o “sistema interno de uma ordem jurídica como axiológico ou teleológico; o argumento sistemático é, então, apenas uma forma especial de fundamentação teleológica e, como tal, deve, desde logo, ser admissível e relevante”131. No que se refere à interpretação sistemática, Canaris considera que a argumentação baseada no sistema interno exprime o prolongamento da 129 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.83. 130 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.87. 131 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.153. 54 interpretação teleológica, encontrando-se o mais alto nível entre os meios da interpretação132. É claro que para a obtenção do direito a partir do sistema há limites, pois a necessidade de controle teleológico e a possibilidade de aperfeiçoamento do direito traduzem a consequência evidente de determinadas qualidades do sistema. Existem, portanto, lacunas no sistema e quebras no sistema, fenômenos comuns para o jurista que devem ser solucionados a partir do pensamento sistemático133. Pelo pensamento sistemático desvenda-se que normas contrárias ao sistema podem, pelo fato da contradição de valores nelas incluídas, ofender princípios constitucionais, devendo ser consideradas nulas134. Não significa que cada norma contrária ao sistema deve ser considerada imediatamente nula, pois ainda que exista uma contradição de valores, este pode ser negado por outras razões. Diante da quebra do sistema, deve-se pensar no valor da segurança jurídica. Não é possível revogar de maneira geral os princípios já inseridos na consciência jurídica e modificar suas prescrições em correspondência com os valores constitutivos da nova regulação 135. As quebras no sistema são eliminadas através da interpretação sistemática e da integração sistemática de lacunas. Desta feita, caso assim não seja possível, a opção é considerar nulas as normas contrárias ao sistema. Eis, então, as teses defendidas por Claus Canaris para construir o sistema e obter o direito, contribuições que se refletem na construção da ciência do direito e nos desafios por este enfrentados. A partir, então, das concepções apresentadas sobre sistema, passase a enfocar e refletir a respeito dos modelos de sistemas aberto e fechado, de 132 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.159. 133 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.196. 134 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.225. 135 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.228. 55 fundamental compreensão para inserir o direito processual penal no sistema jurídico. 2.8 Os modelos de sistemas aberto e fechado Desde o início da construção teórica do sistema jurídico, fala-se em abertura e fechamento deste. A complexidade para o desenvolvimento de uma teoria que explique e proporcione a evolução do direito chega a impasses que estão longe de alcançar um consenso. Porém, cabe adotar a ideia que se compatibilize aos preceitos de um processo penal constitucional em sua função social. Nesse viés, o direito processual penal estaria inserido num sistema aberto ou fechado? Para responder à questão, imprescindível analisar como ocorre esse fechamento e a abertura de acordo com as doutrinas selecionadas. A noção de sistema aberto e fechado pode ser extraída, inicialmente, da teoria de caráter interdisciplinar de Ludwig von Bertalanffy, o qual inova na percepção da relação do sistema com o ambiente, possibilitando distinguir sistema aberto do sistema fechado. Para Ludwig von Bertalanffy, a teoria geral dos sistemas pode ser exemplificada por meio dos sistemas fechados e abertos e da análise das limitações da física convencional. Não faz muito tempo que a física abarcou os sistemas abertos. A física convencional apenas se aplicaria a sistemas fechados, não alcançando organismos vivos, já que esses são abertos 136. Desta forma, o sistema fechado é aquele que não se relaciona com seus ambientes, enquanto no sistema aberto há essa relação. Para o autor, o resultado final em um sistema fechado seria quase previsível, bastando apenas analisar as condições iniciais para antever seu processo e conclusão. Já no sistema aberto, como as condições iniciais podem ser diferentes, o resultado final ganha mais possibilidades. Para Bertalanffy, o organismo considerado sistema físico, não é um sistema fechado, mas aberto. “Dizemos que um sistema é “fechado” se nenhum material entra nele ou sai dele. É chamado de “aberto” se há 136 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.64. 56 importação e exportação de matéria”137. Nota-se ainda que “[...] os organismos vivos são essencialmente sistemas abertos, isto é, sistemas que trocam matéria com o ambiente”138. Para Bertalanffy139, a teoria dos sistemas abertos, integrante da teoria geral dos sistemas, refere-se a princípios que podem ser aplicados aos sistemas em geral, isto por que tem o condão de discutir totalidades de natureza geral: O estudo do organismo vivo como sistema aberto que troca matéria com o meio compreende duas questões: primeiramente, a estática, isto é, a conservação do sistema em um estado independente do tempo; em segundo lugar, a dinâmica, isto é, as variações do sistema 140 no tempo . Tem-se, então, que o organismo vivo é uma ordem hierárquica de sistemas abertos. Os sistemas fechados têm por finalidade atingir um estado de equilíbrio que independe do tempo, enquanto os sistemas abertos podem alcançar, apenas em certas condições, um estado independente do tempo. Este é o estado estável. Outra distinção entre sistema aberto e fechado é a realizada por Luhmann. Merece destaque por trazer uma análise diferenciada da abertura e fechamento do sistema. Considera que os sistemas abertos sofrem estímulos do meio que podem modificar a estrutura do sistema, uma comunicação surpreendente no campo social. Revela, pois, a dúvida de como devem ser geridas as relações entre o sistema e o meio para que seja mantida a independência do sistema e do ambiente. Por isso, considera o sistema fechado operativamente e aberto cognitivamente. Com a autopoiese, Luhmann adere aos sistemas fechados, porém não isolados. Esse fechamento se concretiza por meio da codificação binária 137 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.162. 138 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.56. 139 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.195. 140 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento aplicações. 7.ed. Tradução de Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.205. e e e e 57 lícito e ilícito e a abertura por programas condicionais (leis, regulamentos, contratos, etc). Nesse viés, o sistema se comunicaria com o ambiente por meio de acoplamentos estruturais. No caso da relação entre direito e política o acoplamento seria a Constituição Federal, do direito e economia, o contrato. Ora, a irritação ou perturbação do sistema pelo ambiente somente se tornaria possível com o acoplamento estrutural. Com essa irritação, o sistema, então, abre cognitivamente ao seu ambiente sem que isso afete sua operacionalidade. Contudo, nem sempre o sistema vai se abrir cognitivamente, ou seja, haverá uma análise de como os sistemas devem reagir às perturbações, aceitando-as ou rejeitando-as141. Nesse contexto, são muitas as peculiaridades trazidas na concepção de sistemas aberto e fechado, contudo, ao tratar de sistema, dever haver noção de que este engloba sempre duas ideias: relação e organização. “Num sistema, os seus elementos relacionam-se e, assim, adquirem uma organização, uma totalidade que revela a regra do sistema”142. E, segundo o raciocínio de Márcio Pugliesi143, o sistema aberto é aquele que troca matéria, energia com o ambiente e outros sistemas, enquanto o fechado se isola em condições experimentais. Segundo análise do autor, podem ser observados sistemas mais fechados e outros mais abertos, a exemplo de uma comunidade como uma família ou uma empresa. Caso se feche ao ambiente não apresenta mudanças, mas se houver uma abertura demasiada, “corre o risco de se descaracterizar pelas mudanças incessantes. Mas é a única hipótese que tem de se desenvolver, evoluir e crescer”144. Para Pugliese, o funcionamento do sistema depende do seu núcleo e apenas ocorrerá uma mudança no sistema se esse for atingido. Em caso de mudanças que não tenham por finalidade destruir o sistema, basta preservar o seu núcleo145. 141 BÔAS FILHO, Orlando Villas; GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013. 142 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.58. 143 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.60. 144 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.61. 145 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.63. 58 Já Claus-Wilhem Canaris, ao analisar o direito alemão, esclarece que existem diferentes enfoques na construção de sistema aberto e sistema fechado. Uma primeira concepção é a de que o sistema quando construído casuisticamente com apoio na jurisprudência é aberto, e quando a ordem jurídica tiver por base a codificação, é fechado. “A segunda concepção é a de que o sistema aberto seria incompleto, com capacidade de evolução. Contudo, entende que as modificações no sistema aberto só podem ser compreendidas quando analisados separadamente os conceitos de sistema científico (abertura como conhecimento científico incompleto) e de sistema objetivo (abertura como modificação dos valores fundamentais na ordem jurídica)146. O sistema científico, formado por proposições doutrinárias da ciência do direito, é incompleto e aberto, por que não é definitivo. O conhecimento científico atende às expectativas de determinada época e necessita de um natural progresso. Do mesmo modo o sistema objetivo, composto de uma codificação, também é suscetível de aperfeiçoamento para adquirir uma unidade de sentido, uma ordem jurídica concreta147. “À abertura como incompleitude do conhecimento científico acresce assim a abertura como modificabilidade da própria ordem jurídica”148. Essas duas formas de aberturas são pertencentes ao sistema jurídico. O sistema jurídico, no entanto, não pode chegar ao seu fim se for um processo infindável, oriundo da abertura do sistema. Essa abertura não pode ser confundida com a mobilidade do sistema. O sistema móvel traz a igualdade fundamental de categoria e a substituibilidade mútua dos competentes princípios ou critérios de igualdade. Já o aberto “não tem fatalmente, como consequência, a igual categoria dos seus 146 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.104. 147 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.104. 148 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.109. 59 princípios e a renúncia à previsão firmes; um sistema móvel pode, portanto, ser aberto ou fechado e um sistema aberto pode ser móvel ou rígido” 149. O sistema móvel está entre a previsão rígida e a cláusula geral (que não concedem critérios necessários para sua concretização, determinando-se apenas no caso concreto)150. Nesse contexto, o sistema móvel garante em menor medida a segurança jurídica, considerando que o imóvel é formado hierarquicamente e a partir de previsões normativas firmes, conforme explica Canaris151. Tal medida é visualizada quando se considera que a justiça remete a uma tendência individualizadora para justificar o sistema móvel. Pondera, contudo, Canaris que a individualização não pode ocorrer de forma ilimitada, pois é composto por um número limitado de elementos. O sistema móvel determina, em geral, critérios de justiça e vai depender do caso concreto para apontar as consequências jurídicas. Observa-se que não há uma conceituação unânime sobre sistema aberto e sistema fechado. De todo o exposto, acredita-se que essa discussão é um percurso para orientar a melhor forma de manter a autonomia do direito e, ao mesmo tempo, fazer com que essa ciência atinja às finalidades propostas. Não se pode retirar o mérito de nenhuma das construções mencionadas, pois a partir da escolha de um dos modelos da visão sistêmica há inúmeras possibilidades de ver o todo em funcionamento. Com as peculiaridades próprias de cada abordagem, o direito pode ser considerado muito mais aberto do que fechado, porém, tende a encontrar os limites dessa abertura a fim de não perder a finalidade precípua de realizar o direito e prezar pela dignidade da pessoa humana. Com valores reitores, fecha-se o sistema, ou seja, a forma insculpida deve se desenvolver por meio da codificação que irá sempre atendêlos, porém, para ampliá-los na sociedade e alcançar a completude, abre-se a evolução. 149 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.129-130. 150 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.142. 151 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.143. 60 Assim, a concepção de Claus-Wilhem Canaris é a que melhor se adequa ao entendimento do direito processual penal em sua finalidade, pois se totalmente fechado na sua codificação e estrutura, não acompanha as mudanças naturais estagnando-se no seu próprio organismo. O conhecimento científico voltado à função e às finalidades do direito processual penal não pode permanecer inerte, ao contrário, deve fazer parte do progresso da ciência do direito. E esse progresso, que deve ser contínuo e duradouro, pode ser constatado no direito processual penal quando da mudança estrutural do seu sistema processual pela Constituição Federal, modificação essa resultante do avanço no conhecimento dos valores fundamentais que deve regê-lo. Atrelado a isso, também é possível a abertura do sistema objetivo, aquele baseado na ideia de ordem jurídica estável pela codificação. Como o direito processual penal deve ser orientado por valores fundamentais, caso seja identificada a necessidade de se compatibilizar com esses, a abertura permitirá a modificação. Nesse contexto, basta lembrar que, após a Constituição Federal, inúmeras foram as reformas das leis penais e processuais penais. Várias continuam no cerne da discussão de compatibilidade constitucional, como é o caso da reincidência criminal. Assim, eis a importância da distinção traçada, ao revelar que o direito pode ser estudado sob um viés que ora o direciona para um fortalecimento impetuoso, ora para uma incerteza temida, porém, necessária, eis que inconcebível prever todas as mudanças que poderá sofrer. 2.9 O direito processual penal inserido em um conceito de sistema jurídico O direito processual penal, analisado a partir da concepção de sistema, pode ser entendido integrante do sistema jurídico e a esta lógica deve seguir partindo de valores que servem como base à proteção dos direitos fundamentais do cidadão. Desde a concepção da teoria geral dos sistemas delineada por Ludwing von Bertalanffy, é possível extrair que o homem inserido dentro de um sistema não pode se perder na busca da evolução com sua transformação em 61 uma roda dentada da máquina social, e o desvalor humano. O ser humano sempre deve estar acima da estruturação das ciências. O que Bertalanffy desenvolveu contribui para a compreensão de que o direito se organiza com a junção de partes organizadas, as quais possuem princípios gerais que irradiam em todas as esferas. Da mesma forma, que na busca da evolução do sistema, ou seja, na resolução de questões que precisam ser tratadas em conjunto, não é possível deixar de considerar valores supremos, como a vida e a liberdade, que se destacam no direito processual penal. Esses valores podem estar dissociados da norma a ser aplicada no caso concreto se efetuada uma interpretação que se preocupa apenas com a finalidade pura desta, quer dizer, o que é e não como deve ser ou deveria ser, uma concepção kelseniana do direito. A frustrada tentativa de fechar o sistema normativo, com o almejado alcance da pureza do direito, reflete-se na análise ora realizada do direito processual penal, cuja finalidade de proteger o cidadão, a ser melhor tratada no segundo capítulo, exige uma ruptura na observação puramente jurídica para que a complexidade em torno da concretização da justiça seja desvencilhada da forma mais adequada no sistema jurídico. Considerando a forma como esses valores são selecionados, destacam-se os ensinamentos de Miguel Reale, integrantes do culturalismo jurídico, com uma interpretação da norma que cause menos perturbação social, a partir do estudo do fato, valor e norma, eis que o direito deve ser visto na sua totalidade e como objeto cultural e experiência. Contudo, não têm o condão de esclarecer a função prospectiva do direito, por conseguinte, do direito processual penal, função essa considerada fundamental nesta pesquisa. Luhmann vê o direito como o reflexo do momento vivenciado pela sociedade e entende possível compatibilizar sua estrutura com a própria evolução social. O direito faz parte da sociedade e com ela se altera, faz referência à sociedade. “O direito é, desta maneira, um dos fundamentos indispensáveis da evolução societária”152. Desta forma, o sistema jurídico está afeto à construção social e deve ser interpretado de forma a se coadunar com 152 LUHMANN, Niklas. Direito como generalização congruente. In: FALCÃO, Joaquim; SOUTO, Cláudio. Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, p.135. 62 a necessidade social do momento, porém sem se perder em interpretações de insegurança jurídica. A teoria paradoxal de Luhmann possibilita compreender a importância de distinguir um sistema aberto do sistema fechado e a forma como o sistema se produz ou reproduz. Em Luhmann, o direito processual penal não poderia ser totalmente fechado nem aberto ilimitadamente. A isso, exigir-se-ia uma autopoiese na sua reprodução. E autopoiese, contudo, exige outro sistema, o observador de fora, pois a autorreprodução e reprodução somente se realizam dentro do sistema. Isso quer dizer que o sistema tem sim objetivos próprios. O direito processual penal englobaria um sistema jurídico que, cada vez mais, mostra-se imprescindível na complexidade da sociedade. Nesse viés, o direito busca trazer segurança, a qual inicia com a segurança das expectativas para posteriormente se voltar à segurança do cumprimento destas expectativas, por meio do comportamento esperado153. Utilizando-se da visão de Luhmann, o direito processual penal seria complexo, autônomo, porém dependente de seu meio. Por conta disso, o desenvolvimento dessa seara não se isola no fechamento operacional, ou seja, na aplicação de seu código binário, mas recebe a influência dos valores de seu ambiente. Cada subsistema possui seu fechamento operacional, mas precisa se abrir recebendo valores do meio para acompanhar a evolução social. Portanto, a autopoiese do direito processual penal poderia ser apontada como a reprodução demasiada de normas, com a justificativa da manutenção da expectativa normativa. Ocorre que, há a dificuldade de se identificar o código binário que seria percursor do fechamento operacional do direito processual penal. Na mesma senda, não se acredita que a função dessa seara é a simples manutenção da expectativa normativa, ao contrário, deve ir além e ser interpretado sistematicamente, visto sob o ângulo instrumental a que serve. Até o momento, é possível afirmar que a interpretação do sistema jurídico é traçada num emaranhado de pensamentos que visam revelar o caminho para a melhor aplicação do direito. São métodos desenvolvidos que 153 Direito como generalização congruente. In: FALCÃO, Joaquim; SOUTO, Cláudio. Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, p.135. 63 firmam pensamentos bastante peculiares e norteiam a infindável evolução jurídica. Nesse contexto, outro estudioso que desenvolveu o conceito de sistema foi Lourival Vilanova, o qual defendeu a existência de princípio da unidade no sistema do direito positivo e no conhecimento jurídico-dogmático, qual seja a Constituição ou uma preposição do direito internacional. Essa unidade por ele defendida deve existir no direito processual penal, visto que é impossível o seu desenvolvimento sem o respeito das normas constitucionais. Ademais, a definição pelo autor de sistema aberto reforça o entendimento nessa tese de doutoramento de que o processo penal realiza diversos intercâmbios para completar seu desenvolvimento científico. No entanto, a concepção que melhor enquadra o direito processual penal num conceito de sistema jurídico é a de Claus Canaris 154, para quem o sistema jurídico pode ser definido como “uma ordem axiológica ou teleológica de princípios gerais de direito, na qual o elemento de adequação valorativa se dirige mais à característica de ordem teleológica e o da ordem interna à característica dos princípios gerais.” A função do sistema na ciência do direito, de acordo com Canaris155, é a de “[...] traduzir e desenvolver a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica.” E, ainda, “o pensamento sistemático ganha também a sua justificação que, com isso, se deixa derivar mediatamente dos “valores jurídicos mais elevados”156. O sistema jurídico é oriundo de princípios gerais do direito para solucionar problemas e assim procede por meio de um processo que deve ser legal e justo: “um processo judicial é justamente um conjunto de problemas sociais do tipo específico (problemas jurídicos) resolvidos por meio de descritores devidamente aplicados”157. 154 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.77-78. 155 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.280. 156 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.280. 157 SCURO NETO, Pedro. Sociologia geral e jurídica: introdução à lógica jurídica, instituições do Direito, evolução e controle social. São Paulo: Saraiva, 2009, p.168. 64 Aqui, pode-se afirmar que o direito processual penal se justifica para a execução de medidas em prol de valores fundamentais, aqueles supremos, ou seja, tanto os princípios constitucionais como os processuais penais que concedem conexão ao sistema jurídico afeto à matéria processual penal. Da mesma forma, a eleição de valores elevados, sobretudo do valor supremo da segurança jurídica, evita que arbítrios sejam cometidos em detrimento dos direitos e garantias fundamentais. A partir de todos esses ensinamentos sobre o sistema jurídico, a premissa que se pretende alcançar é a de que sendo frustrada a unidade científica de todas as ramificações do conhecimento, como já muito se tentou realizar, a diversidade da análise sistêmica da ciência jurídica é inalcançável, e a ciência do direito ou é sistemática ou não é nada158. Isso quer dizer que o direito, e restringindo-se ao direito processual penal, deve ser analisado sistematicamente. Na linha de raciocínio em torno da abertura e fechamento do sistema, importante considerar que o sistema aberto em Canaris tem o apoio da jurisprudência, não ficando adstrito apenas à codificação. Essa forma de abertura é claramente visualizada no direito processual penal, que na sua mobilidade precisa ser aplicado conforme cada caso concreto, uma individualização que não pode ser ilimitada para respaldar a justiça, visto que há uma rigidez a ser cumprida afeta às normas fundamentais constitucionais. O que se pretende demonstrar é que o direito processual penal não foge à regra de que o mais adequado é adotar o sistema aberto como um todo para prospectar suas metas. Pensar de modo contrário é aceitar um bloqueio na evolução social do sistema, conforme argumenta Claudio José Langroiva Pereira: O atual sistema fechado com fundamento no positivismo jurídico da dogmática penal, que adota a interpretação literal da norma como limite de sua aplicabilidade, reportando decisões a uma postura prédeterminada com base em argumentação de autoridade e imposição de decisões anteriores no mesmo sentido, bloqueia a evolução do 159 sistema, mantendo-o estático e sem sentido . 158 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.132. PEREIRA, Claudio José Langroiva. Proteção jurídico-penal e direitos universais – tipo, tipicidade e bem jurídico universal. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.48. 159 65 O próprio sistema jurídico deve ser visto como aberto, ou seja, “com uma estrutura dialógica que proporciona a capacidade de as normas constitucionais compreenderem a mudança de realidade, ao mesmo tempo, estar aberta às concepções variantes de “verdade” e “justiça””160. O direito processual penal não pode no positivismo jurídico manterse estático sem se atentar aos fenômenos sociais. Essa opção de sistema aberto leva à concepção, de acordo com Juarez Freitas 161, de que “embora com elementos fixos (no sentido de considerar intangíveis topicamente pelo aplicador),” é possível melhor avaliar o fenômeno histórico da positivação dos direitos fundamentais. Desta forma, por meio do sistema aberto, o direito processual penal se direciona pela finalidade de proteção aos direitos humanos fundamentais, rechaçando normas absolutas em prol dos objetivos traçados para embasar a sua existência: Pelo visto, resulta que não se deve pressupor um mundo jurídico acabado fora do pensamento, tampouco pretender constituir ou formular um conceito de sistema fechado à base de definições alheias ao mundo dos valores materiais e históricos. O Direito Positivo é aberto, vale dizer, a ideia de um suposto conjunto autossuficiente (sem variabilidade evolutiva) de normas não apresenta a menor plausibilidade, seja no plano teórico, seja no plano 162 empírico . Dentro da lógica do sistema jurídico o direito processual penal deve apresentar uma justificativa e na aplicação da justiça estar em evolução contínua. Essa prática traz o aperfeiçoamento do sistema e, assim procedendo, estar-se-á sendo preservado dentro do ordenamento jurídico163: Não por acaso, o processo penal acaba apresentado nos cursos de direito como um sistema fechado, que, por ser um instrumental meramente “técnico” voltado à aplicação “racional” de penas, não admite contestações a partir de dados empíricos ou reflexões teóricas acerca de sua disfuncionalidade; um sistema fechado que parte de premissas que não se sustentam a partir de um olhar crítico e sensível à realidade, a saber: a) de que o direito penal atende aos fins a que se destina (função preventiva e ressocializadora); b) de que processo penal tem a missão de tutelar a sociedade para todos e contra todos; e c) de que indiciado ou réu é provavelmente um 160 AMARAL, Claudio do Prado. Princípios penais: da legalidade à culpabilidade. São Paulo: IBCCrim, 2003, p.75. 161 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.61. 162 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.33. 163 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.25. 66 criminoso e, portanto, um inimigo a receber tratamento/resposta 164 eficaz através do processo penal . A análise do direito processual penal deve, portanto, partir do todo composto por valores que se materializam por meio dos princípios. O sistema jurídico é, então, inacabado e, em razão disso, a abertura propicia a completude que pondera os valores envolvidos em prol dos objetivos traçados pelo modelo estatal adotado, o Estado Democrático de Direito. Considerando que o direito processual penal é conduzido por uma principiologia decorrente desse modelo estatal, inadmissível o fechamento em “um número limitado de fórmulas (axiomas)”165. Configuraria um verdadeiro retrocesso social se houvesse a desconsideração das mudanças sociais e o necessário desenvolvimento de reafirmar a proteção aos direitos e garantias fundamentais. Aliás, ao se adotar um sistema aberto, nunca será definitiva a eleição de um critério que solucione os problemas enfrentados. Não se descarta uma mudança no próprio sistema para corrigir imperfeições e adaptálo de forma satisfatória à solução de conflitos166. O direito processual penal deve atender à política criminal aventada pela Constituição Federal e, nesse compasso, deve estar sempre em evolução, não se prendendo a percepções fechadas, ignorando o todo a que deve servir. A relevância do direito processual penal no sistema jurídico só vem confirmar que a atuação estatal no direito de punir apresenta reflexos diretos de como a democracia vem sendo exercida, eis que retrata a consequência prática da execução da política criminal traçada. Assim, esse ramo do direito deve atender sua finalidade descrita dentro do sistema e na sua excepcionalidade, já que apenas irá ser utilizado em casos de ultima ratio, desenvolvendo-se em prol de um processo penal atento à democracia. 164 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.42. 165 PEREIRA, Claudio José Langroiva. Proteção jurídico-penal e direitos universais – tipo, tipicidade e bem jurídico universal. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.50. 166 PEREIRA, Claudio José Langroiva. Proteção jurídico-penal e direitos universais – tipo, tipicidade e bem jurídico universal. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.54. 67 3 LIMITES DA PERSECUÇÃO PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO A lei às vezes degrada e avilta, corrompe e escraviza em ocasiões sociais e políticas de profunda crise e comoção, gerando a legalidade das ditaduras, ao passo que a Constituição é sempre a garantia do poder livre e da autoridade legítima exercida em proveito 167 da pessoa humana . Com a conquista do Estado Democrático de Direito, inicia-se uma nova fase no direito, não mais configurando sua luta em prol da sociedade com e somente a previsão de um direito ou garantia, mas indo além, a caminho de interpretar as normas existentes e criar outras novas em consonância com a Constituição Federal. A democracia hasteada coloca a proteção do cidadão acima do Estado, o que justifica a própria existência desse ente. Essa proteção demonstra a valorização com que o cidadão deve ser tratado em todas as ramificações da sociedade, sobretudo, no sistema jurídico. A partir disso, o Estado passa a agir para a manutenção do cidadão frente ao seu poder inserindo diversos direitos e garantias fundamentais nesse percurso. O Estado brasileiro, então, Constitucional, “[...] deve imperar o equilíbrio político-institucional, que implica em inegociável respeito ao prescrito pela sua Constituição, e que tais prescrições reflitam, acima de tudo, o interesse dos cidadãos”168. Seguindo o mesmo caminho, o processo penal passa a se expressar como um termômetro dessa democratização169, haja vista que por meio do seu desenvolvimento é possível extrair até que ponto o Estado de fato evoluiu na dicotomia do direito de punir estatal, qual seja, atender a pretensão acusatória e ao mesmo tempo dar máxima eficácia aos direitos e garantias fundamentais do processado. No mesmo sentido, Winfried Hassemer170 entende que o desenvolvimento do combate à criminalidade ocorre com a limitação de direitos fundamentais, e, concorda com Jorge Miranda, quando defende que “o 167 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.424. GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Constituição, Ministério Público e direito penal: a defesa do estado democrático no âmbito punitivo. Rio de Janeiro: Renavan, 2010, p.105. 169 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.42. 170 HASSEMER, Winfried. Processo penal e direitos fundamentais. In: Jornadas de direito processual penal e direitos fundamentais. Lisboa: Almedina, 2004, p.17. 168 68 processo penal constitui um bom teste à força de uma Constituição.” Claus Roxin171, na mesma linha, afirma que o direito processual penal é um sismógrafo da Constituição do Estado, e depende das normas constitucionais. Nas palavras de Antonio Scarance Fernandes, “essa dicotomia é, em regra, representada pelo confronto entre eficiência e garantismo no processo penal”172. Desta feita, o processo penal tem por finalidade servir como um instrumento democrático, sem o qual toda normatividade penal material perderia o sentido no contexto constitucional. Pensar em um processo penal sem sobrelevar a própria Constituição representa um retrocesso na cultura do sistema processual adotado, ou seja, seria desconsiderar todas as mazelas causadas por uma inquisição opressora cujas cicatrizes na história ainda estão por ser curadas. Nesse contexto, será aqui abordada a inserção do processo penal no Estado Democrático de Direito a fim de demonstrar sua importância no sistema jurídico e de que forma ele vem sendo desenvolvido a caminho de uma evolução que não despreza a unidade pela concatenação de valores fundamentais. 3.1 O Estado Democrático de Direito: pilar do processo penal Após o rompimento do autoritarismo que marcou a história devido ao excessivo controle estatal acima dos direitos fundamentais dos cidadãos, a inovação legislativa fincada com o Estado Democrático de Direito 173 torna-se propulsora de uma nova fase a partir de valores que geram diversos desafios estatais. 171 ROXIN, Claus. Derecho procesal penal. Tradução da 25.ed. alemã de Gabriela E. Córdoba e Daniel R. Pastor. Buenos Aires: Del Puerto, 2000, p.10;12. 172 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7.ed. São Paulo: RT, 2012, p.23. 173 O Estado Democrático de Direito “tem por finalidade o pleno desenvolvimento dos cidadãos, através da superação das desigualdades sociais e reconhecimento dos limites da esfera de intervenção do Estado, de forma a realizar a justiça social e assegurar a dignidade da pessoa humana.” (SILVA, Marco Antonio Marques da. Cidadania e democracia: instrumento para a efetivação da dignidade humana. In: (Coords.) MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da. Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.229). 69 Com o advento do Estado Democrático de Direito insculpido pela Constituição Federal de 1988174 surge a necessidade de se filtrar muitas normas anteriores e de cunho autoritário. Conforme explicação de Luís Roberto Barroso175, a filtragem constitucional “consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados”. Desta forma, o ordenamento jurídico como uma estrutura da complexidade encontra seu limite na própria Constituição de Estado de Direito, visto que esta irá excluir comportamentos que lhe são contrários e trará a previsão de meios voltados para a busca de outras possibilidades a fim de se obter uma escolha sensata. Ou seja, tornará estratégica a construção de um ordenamento mais elevado. O Código de Processo Penal vigente no Brasil, de 1941, deve necessariamente ser lido de acordo com a principiologia constitucional, avaliando a efetividade e a normatividade das disposições, adaptando-as para a aplicação de acordo com os ditames constitucionais. Nesse contexto, além de ser fundamental o papel do Poder Judiciário, “o juiz passa a assumir uma relevante função de garantidor, que não pode ficar inerte ante violações ou ameaças de lesão aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, como no superado modelo positivista” 176. Eis uma forte característica da democracia, visto que o juiz fica vinculado à Constituição177. Essa vinculação constitucional inicia-se desde a própria atuação do legislador, de quem passa-se a exigir uma atuação dotada de conhecimento sobre as normas e os princípios constitucionais a fim de ser legítima, no sentido material, a criação da legislação infraconstitucional. No direito processual penal, a constitucionalização do direito, ou seja, a ampliação dos textos constitucionais com novos conteúdos próprios dessa 174 Foi inaugurada pelo Constituinte de 1988 a Constituição da República em Estado Democrático de Direito, conforme consta no preâmbulo da Constituição Federal no artigo1º. 175 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.390. 176 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.1100. 177 “A uma Constituição autoritária vai corresponder um processo penal autoritário, utilitarista (eficiência antigarantista). Contudo, a uma Constituição democrática, como a nossa, necessariamente deve corresponder um processo penal democrático, visto como um instrumento a serviço da máxima eficácia do sistema de garantias constitucionais do indivíduo.” (LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.42). 70 área, exige desde a sua criação até a interpretação para aplicação prática o respeito às matrizes dos direitos e garantias fundamentais. Segundo José de Faria Costa, A diminuição das garantias processuais é um dos aspectos que mais rapidamente se manifesta enquanto característica do Estado punitivo. Não por acaso é o direito processual penal visto como a mais sensível das sensitivas às variações mínimas das estruturas do poder. [...] Hipotecam-se as garantias do arguidos em prol de uma luta mais eficaz contra aquela criminalidade que abala os alicerces da comunidade democrática, mas que, ao fim e ao cabo, acaba por fazer esta mesma comunidade pôr em risco a democracia em que 178 assenta . O processo penal se legitima com a democracia e não se aplica isolando-se no ordenamento jurídico, isto é, sem considerar valores supremos. Contudo, “não se trata apenas de reconhecer a irradiação das garantias constitucionais orientando a interpretação do processo”179.Além disso, deve-se estudar os traços que conferem um caráter democrático ao processo penal. Destaca-se, então, que “é a partir do princípio democrático que o processo penal deve ser reinterpretado”180. Nesse sentido: [...] pode-se afirmar que o princípio democrático incide no processo penal brasileiro para que suas leituras e funcionalidade se deem a partir da premissa de que dizer democracia significa falar em controle 181 e limite ao exercício do poder . Com o Estado Democrático de Direito, o processo penal serve como amparo ao indivíduo frente ao poder estatal. É “um ramo do direito público, e, como tal, implica autolimitação do Estado, uma soberania mitigada”182. Destaca-se que por trabalhar a liberdade, bem fundamental do ser humano, “reflete a concepção política dominante e o seu modo de tratar os 178 COSTA, José de Faria. Direito penal e globalização: reflexões não locais e poucos globais. Portugal: Coimbra, 2010, p.63. 179 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. A constitucionalização do processo penal: reinterpretando o processo penal a partir do princípio Democrático. In: (Coords.) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.859. 180 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. A constitucionalização do processo penal: reinterpretando o processo penal a partir do princípio Democrático. In: (Coords.) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.859. 181 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.313. 182 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.46. 71 direitos, as garantias do suspeito, do acusado e os interesses dos órgãos incumbidos da persecução penal”183. Segundo Celso Castro, “na democracia, as intromissões do Estado promovem o desaparecimento da distinção entre direitos particulares e direitos públicos”184. Essa afirmação conduz à ideia de que o Estado tem o poder de interferir em qualquer esfera, ao mesmo tempo, não de forma absoluta. A democracia fundamenta, pois, o Estado Democrático de Direito e torna possível materializar valores imprescindíveis à vida comum em sociedade, tais como a igualdade, a dignidade da pessoa humana e a liberdade. O Estado é limitado pelo direito positivo e pautado no controle de legalidade em prol do cidadão para reafirmar direitos e garantias individuais. O Estado, democrático e de direito, promove a justiça social, “institucionalizando um poder popular, conservando a legalidade, mas agora diretamente destinada a princípios de igualdade e justiça individual”185. Conforme afirma Elías Diaz: el Estado democrático de Derecho es hoy el Estado de justicia, es decir, el Estado que aparece actualmente como legítimo, como justo, em función precisamente de unos determinados valores históricos 186 que son la democracia, el socialismo, la liberdtad y la paz . Essa perspectiva de justiça traz um novo paradigma ao sugerir que não basta toda estrutura estatal senão para concretizar os valores democráticos à justiça social. Surge, então, o prognóstico de que o processo penal, dentro do contexto do Estado Democrático de Direito, vai além de satisfazer a aplicação do direito material com as sanções atinentes. O processo penal, em cada fase de sua aplicação, deve se orientar pelo manto do próprio fundamento do Estado Democrático de Direito, sob pena de esvaziar-se materialmente e de tornar-se um formalismo inócuo na função estatal de proteger o cidadão. 183 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7.ed. São Paulo: RT, 2012, p.25. CASTRO, Celso A. Pinheiro de. Sociologia do direito: fundamentos de sociologia geral; sociologia aplicada ao direito. 5.ed. São Paulo: Atlas, 1998, p.309. 185 PEREIRA, Claudio José Langroiva. Proteção jurídico-penal e direitos universais – tipo, tipicidade e bem jurídico universal. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.37. 186 DIAZ, Elías. Estado de derecho y sociedad democrática. Madrid: Taurus Pensamiento, 2010, p.136. 184 72 É sim um valioso instrumento que deve ter como pilar a própria existência do Estado Democrático de Direito: o “Estado só se justifica enquanto meio que tem como fim a tutela do homem e dos seus direitos fundamentais, porque busca o bem comum, que nada mais é do que o benefício de todos e de cada um dos indivíduos”187. Assim, pensar no processo penal atrelado ao fundamento do Estado Democrático de Direito é caminhar na democratização do processo penal, com a garantia do devido processo legal, quer seja, dentro da legalidade, sem arbitrariedades, buscando a aplicação da justiça sem afrontar os valores que transformaram o novo modelo estatal. Sem isso, o processo penal está fadado a se arquitetar para mascarar uma finalidade democrática inexistente na prática e contrária ao próprio sistema processual penal entendido como o adequado a esse modelo estatal, conforme se verá adiante. 3.2 Sistemas processuais penais Por sistema processual penal é possível entender, consoante Paulo Rangel: “o conjunto de princípios e regras constitucionais de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas à aplicação do direito penal a cada caso concreto”188. O sistema processual penal é, portanto, uma das consequências oriundas do modelo estatal adotado. Em um Estado totalitário é presenciada a busca pela punição a qualquer custo, com o desrespeito ou a desconsideração dos direitos e das garantias individuais. Já em um modelo Democrático de Direito, o sistema deve ser de tal modo que protege o cidadão contra o arbítrio estatal. Desta feita, os sistemas processuais penais são classificados em espécies com características bastante peculiares, o que torna visível a diferenciação entre eles. Passe-se, então, à análise das espécies de sistemas processuais penais. 187 188 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.49. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.46. 73 3.2.1 Sistema inquisitório O sistema inquisitório ou inquisitivo tem origem nos regimes monárquicos, com grande destaque no direito canônico189. Surgiu como uma forma de substituir o acusatório privado, sob a justificativa de que a defesa da sociedade não poderia ficar nas mãos do particular. Por isso, o Estado assume o papel de acusador e julgador como forma de evitar impunidades190. Apesar de ter sido uma forma de tomar a acusação dos particulares, esse sistema comprometia a imparcialidade do juiz, que acumulava as três funções dentro do processo (defender, acusar e julgar), com a incumbência de proferir uma decisão que transmitisse sua conclusão, já estampada quando da instauração da investigação. Conforme explica Denilson Feitoza191, “o acusador e o julgador estão reunidos na mesma pessoa ou órgão. Não havia defensor, pois, se o réu era culpado, não o merecia; se era inocente, um juiz inquisidor honesto o descobriria”. O grande destaque, portanto, desse sistema é que a gestão da prova cabia ao magistrado, que de plano não possuía qualquer imparcialidade. Além disso, o processo era secreto, sem a presença do contraditório e da ampla defesa. O acusado era um mero objeto sem quaisquer direitos, e a confissão, uma prova absoluta e plena. As provas eram tarifadas, ou seja, havia a valoração antecipada de cada uma delas, como por exemplo, a “necessidade de duas testemunhas para provar um fato – testis unus, testis nullus” 192. Desta forma, “esse modelo atendia, portanto, às ideias de fortalecimento do Estado e de prevalência dos interesses abstratos da coletividade em detrimento dos interesses concretos individuais”193. 189 Conforme Geraldo Prado, a jurisdição eclesiástica se sobressaiu com um poder centralizado. A igreja entendia que o crime não se referia apenas à questão de interesse privado, mas era um problema de salvação da alma. A Igreja, então, difundiu o modelo inquisitorial e na época, podendo ser identificada como Idade Média, representou a luz da racionalidade, pois buscou reduzir os privilégios da justiça feudal, que sujeitava a medidas punitivista discricionárias. (PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.88-89). 190 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.47. 191 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.61. 192 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.62. 193 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.88. 74 O processo inquisitorial não pode ser visto como um processo na acepção constitucional, pois totalmente destoado dos princípios do devido processo legal, juiz natural, ampla defesa, contraditório e presunção de inocência. Era um processo utilizado pelo Estado sem quaisquer garantias asseguradas ao acusado. E mais, na visão de Rubens Casara e Antonio Pedro Melchior194, não havia um processo de partes, mas apenas o acusado submetido à “agência judicial” para a busca da verdade e punição. Conforme observa Geraldo Prado195, renascem os tormentos pelas torturas para se encontrar a verdade real; além disso, pela confissão chegava-se à sanção representativa da penitência. Para Paulo Rangel, “é da essência do sistema inquisitório um “desamor” total pelo contraditório”196. E, no contexto do processo atual, não é raro o apontamento de resquícios inquisitoriais e do autoritarismo em busca da verdade e da condenação a qualquer custo: Sob esse prisma tem razão Kant de Lima (1989 e 1990) ao sublinhar o peso e a força das tradições inquisitoriais em nosso sistema de justiça criminal. O argumento empregado por magistrados não se diferencia radicalmente do argumento empregado por policiais quando estes justificam a prática de irregularidades nas investigações, tais como a manutenção de uma rede de alcaguetes, o recurso à chantagem, o emprego de tortura e maus-tratos como 197 modo de reconstruir fatos criminais e apontar prováveis culpados . O sistema inquisitorial, portanto, representa uma veemente incoerência constitucional, inadmissível no ordenamento jurídico pátrio. No entanto, de nada vale rechaçá-lo explicitamente e continuar utilizando seu raciocínio de forma implícita no transcorrer do processo. O processo penal deve seguir um modelo condizente a sistematização constitucional. A restrição de direitos e de garantias não pode 194 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 88. 195 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.90. 196 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.98. 197 ADORNO, Sérgio. Crime, justiça penal e desigualdade jurídica. In: FALCÃO, Joaquim; SOUTO, Cláudio. Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, p.314. 75 justificar a busca incessante pela verdade e a perversidade oriunda da intolerância estatal. O juiz deve ser imparcial, não se contaminar mentalmente, afastandose da gestão das provas e apenas recepcionando-as, adotando “um estilo, uma ética, aqui marcado pelo respeito à alteridade, à secularização e à tolerância”198. Acolher um sistema inquisitivo seria um retrocesso processual de consequências imensuráveis à democracia, seria o mesmo que desconsiderar toda a orientação constitucional pertinente à limitação estatal. 3.2.2 Sistema acusatório O sistema acusatório, diferentemente do inquisitório, traz a nítida distribuição das funções de acusar, defender e julgar, com um juiz imparcial e inerte. Apesar da impressão de ter sido criado depois do sistema inquisitório, a verdade é que foi retomado após as barbáries vivenciadas com a inquisição. Desde a antiguidade vigorava algo parecido com o sistema acusatório na Grécia e em Roma, a partir da acusação particular, verdadeira participação direta do povo. Conforme Geraldo Prado199, na Grécia Antiga existiam duas classes de delitos, públicos e privados. Quando se tratava de interesse público e delitos graves, qualquer cidadão poderia em nome próprio sustentar a acusação. A semelhança ao sistema acusatório está no fato de que “cada parte apresentava suas provas e formulava suas alegações, não incumbindo ao tribunal a pesquisa ou aquisição de elementos de convicção” 200. Eis que, “ao contrário do sistema inquisitorial, o sistema acusatório caracterizase por gerar um processo de partes, no qual o autor e o réu constroem, através do método dialético (e, portanto, de forma crítica), a solução justa do caso penal”201. 198 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.91. 199 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.79. 200 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.79. 201 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.92. 76 Em Roma, o sistema procedimental penal sofreu mudanças no decorrer da história para atender às novas exigências sociais, até chegar a accusatio ou judicium publicum ou quaestio, modelo no qual havia um acusador particular representando o interesse público da sociedade202. De acordo com Geraldo Prado203, a forma acusatória dessa época era marcada integralmente pelo contraditório, visto que as provas deveriam ser buscadas pelas partes. Contudo, no Império, houve uma decadência do sistema acusatório, pois estava se tornando insuficiente para atender às necessidades da época quanto à repressão dos delitos. Foi enfraquecido pelo fato de, na prática, agentes públicos assumirem uma atividade de polícia, quando alguém deixava de apresentar a acusação204. Portanto, esse descontentamento com o sistema acusatório fez com que os juízes tomassem para si, cada vez mais, a função de acusar, procedendo de ofício205. Desta feita, do sistema acusatório retrocedeu-se ao sistema inquisitório. Foram introduzidos no processo penal romano a tortura como um meio de angariar provas, o segredo processual e a redução do processo na forma escrita. Após os horrores e as marcas deixados pelo sistema inquisitivo, com a Revolução Francesa, no século XVII, o sistema inquisitório foi sendo abandonado gradativamente mas, ainda, nos dias atuais, é tema de reflexão na evolução do processo penal. Desta forma, “o sistema acusatório floresceu na Inglaterra e na França após a revolução, sendo hoje adotado na maioria dos países americanos e em muitos da Europa”206. Com as características do sistema acusatório, quais sejam: a) divisão das tarefas de acusar, julgar e defender; b) inércia e imparcialidade do juiz; c) publicidade e oralidade; d) igualdade de tratamento das partes; e) livre convencimento motivado do juiz, sem a tarifação prévia de provas; f) 202 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.81. 203 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.82. 204 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.83. Para o autor: “A nova cognitio, diferentemente da primeira, conferia amplos poderes ao magistrado, não somente para investigar as infrações penais, recolhendo provas, como ainda, para julgar a causa, podendo valer-se mesmo da tortura.” (p.84). 205 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.94. 206 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 13.ed. São Paulo: Altas, 2002, p.40. 77 contraditório e ampla defesa há de se afirmar que esse modelo é “o mais indicado à concretização de um processo penal comprometido com as garantias individuais”207. O poder do Estado-juiz torna-se limitado com regras que buscam a igualdade das partes processuais. A inércia do juiz estimula a produção de provas pelas partes, que não devem utilizar meios ilícitos, como a tortura, para obtê-las. Inaugura-se a necessidade de um órgão específico para atuar na acusação, distinto do juiz, para que esse tivesse sua imparcialidade incólume. O Estado, então, cria um órgão acusador, conhecido hoje como Ministério Público. Interessante observar que, na França, no fim do século XIV, “surgiram les procureurs du roi (os procuradores do rei), dando origem ao Ministério Público”208. Segundo Denilson Feitoza, o sistema inglês é o que, hoje, mais se parece com o sistema acusatório. O juiz é imparcial e não pode produzir provas de ofício, cabendo às partes fazê-lo para fundamentar a decisão209. No mesmo sentido, consoante Geraldo Prado210, na Inglaterra, pátria do common law, predomina o sistema de acusação privada. É no sistema inglês que se alcança o maior nível de acusatoriedade, por ser um processo de partes, com respeito à ampla defesa, ao contraditório, à publicidade, à oralidade e à absoluta imparcialidade do juiz. Na realidade, o sistema acusatório ressoa muito mais apropriado à busca da verdade processual, traçando regras que cindem a produção de provas com qualquer explicação divina dos resultados processuais. O sistema acusatório, por suas características é aquele apontado como compatível ao modelo de política criminal escolhida no Brasil, gerando impactos desde a investigação criminal até a fase de execução da pena. Para Paulo Rangel, “hodiernamente, no direito pátrio, vige o sistema acusatório (cf. artigo 129, I, da Constituição Federal de 1988), pois a função de 207 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.92. 208 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.49. 209 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.61. 210 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.110-111. 78 acusar foi entregue, privativamente, a um órgão distinto: o Ministério Público, e, em casos excepcionais, ao particular”211. Segundo o autor, Em um Estado Democrático de Direito, o sistema acusatório é a garantia do cidadão contra qualquer arbítrio do Estado. A contrario sensu, no Estado totalitário, em que a repressão é a mola mestra e há supressão dos direitos e garantias individuais, o sistema inquisitivo 212 encontra sua guarida . [...] No plano normativo, a opção marcada na Constituição da República de 1988 foi clara: ao se conferir a exclusividade no exercício da ação penal de iniciativa pública ao Ministério Público, bem como ao se assegurar direitos fundamentais ao réu, tais como o contraditório e a ampla defesa, decidiu-se por um processo de partes e por um juiz 213 imparcial, portanto, pelo sistema acusatório . Por isso, consoante Afrânio Silva Jardim214, a máxima purificação do sistema acusatório, com a distribuição das funções aos sujeitos processuais, é uma tendência da legislação brasileira e que permite ao julgador se manter incólume de contaminação processual, garantindo assim um processo penal mais democrático. Nesse contexto, importantes são as críticas à suposta adoção prática do sistema acusatório. Não é demais lembrar que uma cultura inquisitiva ainda se lastreia durante a produção das normas processuais e também na sua interpretação. Denilson Feitoza pondera que o princípio inquisitivo domina no Brasil, com previsões que destoam do sistema acusatório, tais como, por exemplo, a possibilidade de o juiz produzir provas de ofício ou provocar o Ministério Público a ampliar a acusação. Diante disso, salienta: “uma cultura inquisitiva de mais de 700 anos não se diluiria tão facilmente no Brasil”215. Contudo, afirma que “a Constituição Federal de 1988 fundou um novo “ordenamento jurídico”, claramente estabelecendo um sistema acusatório”216. 211 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.50. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.25. 213 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.95. 214 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.312. 215 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.65. 216 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.65. 212 79 Ao distinguir se o que caracteriza o sistema processual penal é o poder de impulso ou a gestão da prova, diz-se que “não há um modelo acusatório puro semelhante ao modelo anglo-saxão adversarial e, por consequência, é inadequada uma teoria da prova que trata como absoluta a partilha do ônus de provar, exigindo passividade do juiz”217. Para Aury Lopes Jr., o sistema brasileiro é de núcleo inquisitório, ainda que com alguns “acessórios” que vestem o sistema como acusatório. Ou seja, não há pureza nesse sistema218. Falta a filtragem constitucional que fortalece o processo penal e o faz cumprir na sua essência a garantia dos direitos do acusado. Assim, o sistema acusatório tende a evoluir para um sistema processual democrático, somando-se às suas características a finalidade democrática do processo, justificando-se todos os instrumentos previstos em sua aplicabilidade. 3.2.3 Sistema misto Conforme Denilson Feitoza, “não se pode falar, propriamente, em outro sistema que seria o formal ou misto, mas numa reforma do sistema inquisitivo”219. O sistema misto parte da necessidade de se reafirmar as ideias da Revolução Francesa de 1789220 e é consagrado pelo Code d’instruction criminelle (1808), durante o século XIX. Aury Lopes Jr.221 menciona uma falácia do sistema bifásico do Código Napoleônico de 1808, pois se serviu a um tirano não poderia servir à democracia. 217 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. A constitucionalização do processo penal: reinterpretando o processo penal a partir do princípio Democrático. In: (Coords.) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.862-863. 218 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.94. 219 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.62. 220 “O novo sistema, que principiou sua atuação na França, em seguida à Revolução, para com as guerras napoleônicas chegar a outros países, disciplinava o processo penal em duas fases.” (PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.101). 221 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.106. 80 Esse sistema processual penal possuía duas fases: uma inquisitiva, em que ocorria a investigação e a preparação instrutória e outra na qual ocorria o julgamento222. O juiz não era imparcial, pois em alguns países participava da colheita das provas como juiz de instrução. As duas principais características desse modelo são: “a) a persecução penal pública e b) a averiguação da verdade histórica como meta do procedimento, com base na qual se deve fundar a decisão final”223. O sistema misto era assim denominado por se dividir em duas fases: a instrução preliminar e a judicial. Na primeira, o juiz poderia investigar e colher informações para futura acusação perante o tribunal. Contudo, na segunda fase, o juiz se tornava um expectador dos debates, com a acusação feita pelo Ministério Público224. A primeira fase ocorria secretamente e o juiz preparava o caminho para o exercício da ação penal; na segunda fase, chamada também de juízo, todas as atuações realizavam-se publicamente, perante um tribunal colegiado, ou o júri, com controvérsia e debate entre as partes, no maior nível possível de igualdade225. Por ainda manter o juiz na produção das provas não é considerado o melhor sistema, já que o Ministério Público é o órgão destinado a fiscalizar a investigação que irá embasar a ação penal. Observa-se que pela escolha da política estatal pelo Estado Democrático de Direito não se admite um juiz contaminado pela participação na investigação. Nesse contexto, a divisão do processo em duas fases não deixa de contaminar o todo com o caráter inquisitivo, caindo por terra a necessidade de um núcleo fundante ou de um princípio unificador. Tem-se, assim, por consequência que: “a ausência de um princípio unificador que seja capaz de reger os componentes do sistema permite concluir que o chamado sistema 222 Por isso, Aury afirma que esse sistema é um monstro de duas cabeças, com uma fase totalmente inquisitiva e outra acusatória, essa última como uma mera reprodução da primeira. (LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.106). 223 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.62. 224 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.52. 225 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.101. 81 misto é uma falácia do ponto de vista de uma teoria dos sistemas” 226. Nessa linha, “considerando que os sistemas realmente puros são tipos históricos, sem correspondência com os atuais, a classificação de ‘sistema misto’ não enfrenta o ponto nevrálgico da questão: a identificação do núcleo fundante”227. Da mesma forma, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho adverte que não é possível dividir um princípio unificador, sendo, portanto, inviável um princípio misto. Por isso, entende que há opção política por um tipo de sistema; no caso do sistema misto, não existe uma soma dos elementos, mas eleito o princípio reitor, por exemplo, o inquisitivo, agrega-se a ele elementos do sistema acusatório ou vice-versa228. Apenas a figura do Ministério Público não garante a formação de um processo íntegro, sem vícios. É o papel desempenhado por esse órgão que garantirá o desenvolvimento de um processo sem o comprometimento da imparcialidade do juiz. Assim, apesar de alguns autores entenderem que o sistema misto está presente no ordenamento jurídico brasileiro, não é essa a melhor opção considerando o papel do processo embutido na democracia. 3.3 Sistema processual penal constitucional ou democrático Se as próprias normas constitucionais devem ser interpretadas e aplicadas considerando o sistema constitucional, as normas processuais penais devem seguir o mesmo caminho. O sistema constitucional, sendo o ápice, fundamenta o sistema de justiça criminal, de onde deriva o sistema processual penal229. Paulo Bonavides ao abordar o sistema constitucional esclarece que a interpretação sistemática é a única capaz de “iluminar a regra constitucional 226 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.84. 227 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.105. 228 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: O novo processo penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei nº159/2009 do Senado Federal. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010, p.08. 229 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.84. 82 em todas as suas possíveis dimensões de sentido para exprimir-lhe corretamente o alcance e o grau de eficácia”230. Desta forma, assim como o direito constitucional, o direito processual penal tende a se desenvolver e evoluir numa interpretação sistemática a partir da Constituição Federal. E, nesse caso, tanto as normas constitucionais como as processuais penais devem acompanhar a realidade prática a que servem. Nas palavras de Paulo Bonavides: Em suma, o sistema constitucional pede o emprego de métodos hermenêuticos que possam de perto acompanhar as variações dinâmicas da Constituição, presos atentamente ao critério evolutivo, 231 sempre de fundamental importância para a análise interpretativa . Por isso a busca por um sistema processual penal adequado não poderia ser diferente. Ao analisar os sistemas processuais acusatório, misto e inquisitório, evidente que esses modelos foram delineados considerando fatores históricos da época em que se aplicaram. Nessa senda, atualmente o sistema processual penal demanda uma filtragem para atender às necessidades e às finalidades do processo penal em compatibilidade às normas constitucionais. O sistema processual penal pode ser entendido [...] pelo conjunto de normas (regras e princípios), agências estatais e práticas relacionadas ao poder punitivo estatal, que forma um todo coerente (ou propositalmente incoerente), em razão de um princípio unificador, de um mandamento nuclear que emana efeitos sobre o 232 todo . Tem-se, então, que o sistema processual penal brasileiro evolui para uma democraticidade, eis o princípio unificador que marcaria todo o desenrolar do processo, extirpando-se a dúvida e o embaraço quanto à escolha entre um 230 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.86. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.140. 232 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.86. 231 83 sistema acusatório ou inquisitivo, visto que nem todas as características desses modelos são notadas em completude na tradição histórica do sistema233. Esse princípio unificador é que “organiza o sistema processual e, dessa forma, fixa a posição e o limite de atuação de cada um dos atores jurídicos”234. Além disso, é com base nesse princípio que com respeito aos direitos fundamentais o processo penal minimizará a violência estatal e privada e preservará ao máximo a liberdade do indivíduo. Por meio do princípio da democraticidade, o sistema processual penal tem o condão de irradiar os valores democráticos por todo o processo penal inibindo o esquecimento, em algumas fases ou medidas, da essência de sua finalidade. O princípio da democraticidade não exclui o princípio do acusatório. Esse decorre daquele, ou seja, o acusatório delimita o poder de atuação de cada parte, oriunda de uma “repartição democrática de poderes entre os sujeitos processuais”235, enquanto o da democraticidade é mais amplo, exige uma interpretação voltada à limitação do poder estatal de punir. De acordo com Geraldo Prado236, o princípio acusatório é fundamental para a constituição do sistema acusatório, mas não suficiente. Isto, porque, o princípio democrático, na esfera do processo penal, não se dirige apenas à função dos sujeitos processuais, mas refere-se ainda a um instrumento que serve à sociedade para a legítima solução do conflito de interesses. O Código de Processo Penal (Decreto-lei nº3.659, de 3 de outubro de 1941), foi criado num contexto histórico diferente dos dias de hoje237, por 233 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.95. 234 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.65. 235 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.67. Segundo os autores, “a gestão da prova interessa, enfim, à própria democraticidade que deve reger o sistema. Não se trata de argumentar pela consolidação de um “sistema puro”, mas de fixar um núcleo que permita qualificar um processo penal como democrático, isto é, um sistema penal construído a partir do princípio acusatório, a considerar como disse Rui Cunha Martins, que a acusatoriedade é o modo instrumental de garantir a democraticidade do sistema.” (p.69). 236 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.139-140. 237 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. A constitucionalização do processo penal: reinterpretando o processo penal a partir do princípio Democrático. In: (Coords.) SOUZA NETO, Cláudio 84 isso a atenção especial ao projeto político-ideológico da Constituição Federal e sua imersão no processo penal. Tanto é assim, que tramita a reforma do Código de Processo Penal pelo Projeto de Lei nº156/2009, do Senado Federal, o qual dá lugar à observância das regras constitucionais, baseado no sistema acusatório238. Nesse contexto, o sistema processual penal democrático se desenvolveria a partir dos seguintes itens: a) releitura do princípio acusatório à luz do conceito de participação nos espaços deliberativos, b) resgate do conceito de procedimento, como meio de concretizar a aspiração legitimadora, c) reexame da 239 coisa julgada em nome de uma exigência de lealdade discursiva . Nesse viés, as partes no processo devem ser tratadas de forma igualitária, além de se exigir uma distinta separação de funções, retirando-se a gestão das provas das mãos do juiz. O juiz deve ser imparcial e isso representa um “processo acusatório-democrático”240. O Brasil afirmou que se constitui em um “estado democrático de direito” (artigo 1ª, caput, da CR), o que também se reflete no processo penal [...]. Um processo penal acusatório, fundado no princípio do estado democrático de direito, não deixa espaço para um juiz 241 autocrático, com poderes que tendem a ser ilimitados e absolutos . Desta forma, a imparcialidade do juiz retira-lhe poderes instrutórios e é a principal garantia da jurisdição. O juiz gestor de provas é tendencioso a busca do mito da “verdade real” e, sem dúvida, antecipa-se na formação do juízo. Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.860. 238 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: O novo processo penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei nº159/2009 do Senado Federal. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010, p.15. 239 Conforme pondera Rogério José Bento Soares do Nascimento, “o fato de o Código de Processo Penal vigente no Brasil, adotado com o Decreto-lei nº3.689, de 3 de outubro de 1941, ter sua origem no período de ditadura do Estado Novo, tendo sido adotado pelo Executivo sem qualquer discussão, na sociedade ou no parlamento, que se encontrava fechado, reforça a necessidade de um enfoque constitucional do processo (NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. A constitucionalização do processo penal: reinterpretando o processo penal a partir do princípio Democrático. In: (Coords.) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.858). 240 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.96. 241 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.66. 85 Segundo Aury Lopes Jr., “atribuir poderes instrutórios a um juiz – em qualquer fase – é um grave erro, que acarreta a destruição completa do processo penal democrático”242. Há um quadro mental paranoico, visto que o juiz que determina a produção de uma prova já está influenciado por um raciocínio de justificação da decisão mentalmente elaborada. Pensar apenas na forma de gestão das provas não resolve o problema na identificação do sistema processual penal aplicável ou necessário na atualidade. O sistema processual penal deve inserir-se na perspectiva constitucional como na propulsora dos direitos humanos: O problema é que estamos no século XXI e a complexidade das sociedades contemporâneas exige um constante ajuste e adaptação do Direito e do Processo. Esse é um dos maiores erros de algum setor da doutrina, que, arraigada em conceitos do século XVIII (e até 243 antes...), não percebe a superação do discurso empregado . Por isso, hoje deve-se colocar em voga a eficácia ou a ineficácia das garantias trazidas pela Constituição Federal de 1988. Se há aspectos que contestam a adoção de um sistema acusatório, sistema misto ou inquisitivo, é necessário consolidar outro capaz de extirpar dúvidas e incertezas quanto à compatibilidade democrática. Importante lição é que a nova ordem democrática traz um rompimento e com isso o processo penal inspirado na democraticidade, não pode ser inquisitório, tampouco misto. É mais que acusatório, pois é democrático, “deve ser um instrumento de 244 garantia da democracia” . O próprio fato de muitos autores salientarem que não é puro o sistema acusatório adotado pelo Brasil, com fortes resquícios inquisitoriais, leva à conclusão de que um novo sistema processual é necessário no processo democrático do Brasil. Para Geraldo Prado245, ao se analisar a norma constitucional que assegura ao Ministério Público de forma privativa o exercício da ação penal pública, a que garante aos acusados a ampla defesa, o 242 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.114. LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.119. 244 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.119. 245 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.171. 243 86 contraditório e a presunção de inocência, a que assegura o julgamento por juiz imparcial e competente, chega-se à conclusão de que, embora implicitamente, a Constituição Federal adotou o princípio acusatório. Contudo, se analisado o concreto estatuto dos sujeitos processuais e a aplicação prática, para Geraldo Prado246, prevalece no Brasil a teoria da aparência acusatória, o que significa a aplicação de princípios contrários ao acusatório na prática processual. Aliás, conforme pondera Paulo Rangel247, o maior problema do operador do direito é interpretar o sistema acusatório de acordo com a Constituição e não de acordo com a lei ordinária, isto porque se esta estiver em desacordo com aquela, não haverá recepção. Seguindo o mesmo raciocínio, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: Neste caso, a opção pela base do Sistema Acusatório é uma prestação de contas com a realidade, principalmente depois de 1988 não mais faz sentido – começando pela inconstitucionalidade – nenhum ordenamento que se coloque de forma incompatível com a 248 Constituição . Nesta senda, a Constituição Federal vem trilhando um novo caminho a ser percorrido na construção de um processo penal democrático. Infelizmente, as dificuldades encontradas estão apegadas a argumentos autoritários e num discurso que enaltece a função punitiva estatal em desmerecimento da protetora. Destarte, não se pode esquecer que as metas de um sistema processual constitucional se baseiam em duas premissas básicas: dignidade da pessoa humana do investigado e do acusado e, na eficiência de se desvendar a verdade mais próxima da real e identificar o autor do crime e comprovar a materialidade delitiva249. No entanto, os altos índices de criminalidade noticiados diariamente incutem a sensação de insegurança, fundamentando um rigor extremo no 246 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional de leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.171. 247 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.54. 248 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: O novo processo penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei nº159/2009 do Senado Federal. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010, p.11. Para o autor, o CPP configura um sistema misto, ou seja, mantém a base inquisitorial e a esse sistema agrega elementos típicos da estrutura do sistema acusatório. 249 SILVA, Roberto Ferreira Archanjo da. Por uma teoria do direito processual penal: organização sistêmica. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p.283. 87 processo penal e no imediatismo, possíveis apenas se ignorados direitos constitucionais consagrados. Está lançado o desafio de perfilar um sistema processual penal verdadeiramente democrático, constitucional, isto é, avançar do acusatório não puro para um sistema decisivo na proteção processual quando do desenvolvimento do jus puniendi estatal. Considera-se que vários princípios constitucionais e processuais edificam essa construção, superando o discurso positivista com a ruptura do modelo de regras250. Diante disso, sublinha Lenio Streck: “os princípios funcionarão como uma blindagem contra arbitrariedades, apontando o modus operativo que deve ser seguido pelo intérprete, buscando assim, a coerência e a integridade do direito”251. 3.4 Princípios orientadores da persecução penal O Estado Democrático de Direito possui como diretrizes diversos princípios 252 , os quais compõem de maneira significativa a interpretação do direito, e representam uma ruptura na aplicação perene apenas das normas como uma verdade universal253. Para Rogério Nascimento, “a estrutura e a essência do sistema decorrem dos princípios adotados, examinados como um todo que aspira coerência”254. E complementa: “nenhum aspecto isolado, mesmo a importante 250 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2009, p.30. 251 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2009, p.30. De acordo com o autor, “a assim denominada “era de princípios” representa simbolicamente a ruptura com o modelo de regras.” (p.266). 252 Conforme Robert Alexy, “o ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas fáticas e existentes. (ALEXY, Robert. Teoria dos direito fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5.ed.São Paulo: Malheiros, 2008, p.90). 253 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.253. 254 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. A constitucionalização do processo penal: reinterpretando o processo penal a partir do princípio Democrático. In: (Coords.) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.865. 88 questão de quem vai gerir a busca da verdade, tem suficiente força para caracterizar o sistema processual concreto”255. Desta feita, cabe nesse momento a abordagem principiológica do sistema processual penal volvido ao princípio da democraticidade outrora argumentado. Com a Constituição Federal de 1988 há, nos dizeres de Luís Roberto Barroso256, um verdadeiro “sistema aberto de princípios e regras, permeável, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central.” O mesmo entendimento tem Paulo Bonavides, para quem “os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo sistema normativo”257. A noção de sistema aberto, abordada no segundo capítulo, torna viável mudanças “em face da sempre possível (re)descoberta de outros princípios, que se sucedem, não raro de modo diacrônico, no envolver histórico de transformações”258. Nesta senda, o sistema processual penal democrático ou constitucional pode ser considerado “geneticamente aberto” 259, uma vez que “potencialmente contraditório, normativa e axiologicamente”260. A relação com os princípios se insere na ordenação do sistema para a adequação valorativa. Os princípios vêm demonstrar que há sempre um movimento de abertura histórica em busca de um sentido verdadeiro, o qual compõe um processo que não tem um ponto final. Esse processo perfila pelo sentido paradigmático insculpido pelo Estado Democrático de Direito. É certo que, “por trás de cada regra há um princípio constitucional”261. Dentre os princípios constitucionais, diversos fundamentam o processo penal e devem refletir na aplicação prática do direito em cada fase 255 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. A constitucionalização do processo penal: reinterpretando o processo penal a partir do princípio Democrático. In: (Coords.) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.865. 256 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.343. 257 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.258. 258 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.49. 259 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.51. 260 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.51. 261 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2009, p.264. 89 processual. Muitos podem ser considerados princípios gerais do Direito, por serem comuns aos mais diversos ramos jurídicos e proporcionarem a unidade do sistema, como defendido por Claus-Wilhelm Canaris262. Importante, pois, esclarecer que os princípios apesar de terem a função sistematizadora não podem ser considerados de maneira isolada. Conforme Robert Alexy263, “o âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes”. Segundo ele, por meio dos princípios são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus, conforme as possibilidades normativas e fáticas e, ainda, como possuem uma dimensão de peso “não determinam as consequências normativas de forma direta, ao contrário das regras”264. Além disso, destaca que as regras contêm determinações e que deve ser feito exatamente aquilo que ela exige. O que distingue regras e princípios não é o grau, mas o valor qualitativo, visto que toda norma é uma regra ou um princípio265. Para Claus Canaris, os princípios apresentam quatro características que facilitam a sua compreensão e aplicação: os princípios não valem sem exceção e podem entrar em oposição ou contradição entre si; eles não têm pretensão de exclusividade; ostentam o seu sentido próprio apenas numa combinação de complementação e restrição recíprocas; necessitam, para sua 262 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.83. 263 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5.ed.São Paulo: Malheiros, 2008, p.90. 264 Cumpre ressaltar que não será tratada nesse trabalho a diferenciação de regras e princípios com a profundidade merecida do tema, o que destoaria da discussão central. Porém, é importante destacar a obra de Humberto Ávila, o qual critica a separação da doutrina geral entre interpretação das regras e ponderação dos princípios, defendendo a capacidade de ponderação das regras também. Propõe o autor uma nova categoria, a dos postulados normativos aplicativos. Esclarece: “Como os postulados situam-se em um nível diverso do das normas objeto de aplicação, defini-los como princípios ou como regras contribuiria mais para confundir do que para esclarecer. Além disso, o funcionamento dos postulados difere muito do dos princípios e das regras. Com efeito, os princípios são definidos como normas imediatamente finalísticas, isto é, normas que impõem a promoção de um estado ideal de coisas por meio da prescrição indireta de comportamentos cujos efeitos são havidos como necessários àquela promoção. Diversamente, os postulados, de um lado, não impõem a promoção de um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem comportamentos. Rigorosamente, portanto, não se podem confundir princípios com postulados.” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.137-138). 265 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5.ed.São Paulo: Malheiros, 2008, p.91. 90 realização, da concretização através de sub-princípios e de 266 valorações singulares com conteúdo material próprio . Quanto à primeira característica significa afirmar que os princípios podem levar a decisões contrárias. Basta considerar, por exemplo, o princípio da liberdade e as inúmeras exceções a esta liberdade, como exemplifica Canaris. Segundo Alexy, “um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições”267. No que se refere à segunda característica, uma consequência jurídica pode ser determinada por um ou vários princípios de forma conectada. Importante ressaltar que mesmo em caso de colisão entre princípios, “ao contrário do que ocorre com os conflitos entre regras, nenhum dos princípios será declarado inválido”268. No que tange à terceira e à quarta características, pode haver uma complementação entre os princípios e a limitação recíproca, o que conduz a um grau de dificuldade na formação do sistema. Para Canaris, deveria ser antes normativamente consolidado, impossibilitando sua aplicação imediata. Nesse sentido, as consequências jurídicas quase nunca são atingidas, de forma imediata, da mera combinação de princípios, mas antes requer a análise sobre pontos de vistas valorativos autônomos269. Sob outro viés, Humberto Ávila270 expõe a definição de Dworkin, o qual como ataque ao positivismo, distingue regras de princípios com aquelas sendo aplicadas ao modo tudo ou nada. A regra no caso concreto ou é válida ou não é válida. Em caso de colisão, uma das regras deve ser considerada inválida, enquanto os princípios têm uma dimensão de peso, isto é, o de peso maior prevalece sem que o outro perca sua validade271. 266 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.88. 267 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5.ed.São Paulo: Malheiros, 2008, p.93. 268 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p.34. 269 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5.ed. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.96. 270 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.37. 271 “A distinção entre princípios e regras – segundo Alexy – não pode ser baseada no modo tudo ou nada de aplicação proposto por Dworkin, mas deve resumir-se, sobretudo, a dois fatores: diferença quanto à 91 Para Paulo Bonavides, em todo discurso normativo deve-se inserir os princípios vinculados às regras. “Os princípios espargem claridade sobre o entendimento das questões jurídicas, por mais complicadas que estas sejam no interior de um sistema de normas”272. Por isso, com a pretensão de utilizar dessa claridade, urge analisar os princípios previstos na Constituição Federal, aqueles virtuosos para a unidade, cujo alcance deve se estender a todas as esferas do Direito. No direito processual penal não poderia ser diferente. Há que se buscar a preservação na lógica do sistema constitucional, ou seja, manter o verdadeiro “espírito da Constituição.” De acordo com Paulo Bonavides273, “a ideia de sistema inculca imediatamente outras, tais como as de unidade, totalidade e complexidade. Ora, a Constituição é basicamente unidade, unidade que repousa sobre princípios: os princípios constitucionais.” Desta forma a interpretação sistemática da Constituição requer o desdobramento nos princípios que norteiam os direitos fundamentais, valores esses que ultrapassam o tecnicismo puro das normas: Esses não só exprimem determinados valores essenciais – valores políticos ou ideológicos – senão que informa e perpassam toda a ordem constitucional, imprimindo assim ao sistema sua feição particular, identificável, inconfundível sem a qual a Constituição seria um corpo sem vida de reconhecimento duvidoso, se não 274 impossível . A esse respeito convém registrar que para Luís Roberto Barroso275, “os princípios constitucionais gerais são especificações dos princípios fundamentais e, por seu menor grau de abstração, prestam-se mais facilmente à tutela direta e imediata das situações jurídicas que contemplam.” colisão, na medida em que os princípios colidentes apenas têm sua realidade normativa limitada reciprocamente, ao contrário das regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a antinomia; diferença quanto à obrigação que instituem, já que as regras instituem obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima facie, na medida em que podem ser superadas ou derrogadas em função dos outros princípios colidentes. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.38-39). 272 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.259. 273 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.130. 274 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.130. 275 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.350. 92 Ademais, os princípios orientadores do Estado Democrático de Direito fundamentam tanto o direito penal como o direito processual penal “mais do que a norma infraconstitucional, ora superada em vários termos com a nova realidade social que diariamente se opera”276. Ademais, conforme observa Marco Antonio Marques da Silva, “os princípios que norteiam os direitos e garantias, numa democracia, são as linhas mestras que estabelecem os limites da atuação do Estado na sociedade contemporânea”277. Por isso, serão adiante estudados os princípios que devem fundamentar o sistema processo penal vigorado e se relacionam diretamente com o tema proposto nessa tese, com o finco de relacionar com a abertura sistêmica trazida no primeiro capítulo e com a questão central, qual seja, a reincidência penal inserida no processo penal constitucional levantada nos dois últimos capítulos. Além desses, serão abordados alguns princípios constitucionais penais, os quais se tangenciam ao processo penal e guardam ampla relação com os argumentos que colocam em dúvida o instituto da reincidência criminal. 3.4.1 Princípios constitucionais orientadores do direito penal 3.4.1.1 Princípio da ultima ratio ou intervenção mínima O direito penal, além de buscar a punição, tem como missão limitar a atuação estatal. Nesse contexto, os princípios constitucionais penais são imprescindíveis. O princípio da ultima ratio vem estabelecer que o direito penal apenas irá atuar quando não houver outro meio para solucionar o problema jurídico em questão, já que totalmente incisivo no direito de liberdade. Apenas é possível recorrer à intervenção do direito penal em situações extremas278, visto a relevância de se conceder prioridade a outros ramos do direito para a solução das relações jurídicas. 276 PEREIRA, Claudio José Langroiva. Proteção jurídico-penal e direitos universais – tipo, tipicidade e bem jurídico universal. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.54. 277 SILVA, Marco Antonio Marques da. Cidadania e democracia: instrumento para a efetivação da dignidade humana. In: (Coords.) MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da. Tratado lusobrasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.229. 278 ESTEFAM, André. Direito penal. v.1. São Paulo: Saraiva, 2010, p.121. 93 Também conhecido como princípio da intervenção mínima, o direito penal “[...] orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico”279. Segundo Marco Antonio Marques da Silva, “neste sentido temos o princípio da ultima ratio que está ligado à função social do direito penal, que é a de proteção dos bens jurídicos”280. Assim, devem ser selecionados apenas os bens jurídicos mais importantes para serem tutelados pelo direito penal, sob pena do caráter ‘violento’ do direito penal se propagar. Desta feita, “o uso excessivo da sanção criminal não garante uma maior proteção; ao contrário, condena o sistema penal a uma função meramente simbólica e negativa”281. 3.4.1.2 Princípio da legalidade O princípio da legalidade está previsto na Constituição Federal de 1988, artigo 5º, XXXIX e XL, e prevê que não há crime nem pena sem prévia lei que o defina. Com isso, é proibida a criação de delitos e penas pela analogia ou costume. Somente a lei escrita pode criar crimes e penas; também é proibida a retroatividade da lei penal282. Este princípio constitui “a chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo”283. Além disso, “funda-se na idéia de que há direitos inerentes à pessoa humana que não precisam ser outorgados pelo Estado”284. Tudo que não estiver proibido é permitido, cabendo ao Estado editar as proibições penais por meio da lei. 279 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.13. 280 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.09. 281 PRADO, Luiz Regis. Elementos de direito penal. v.1. São Paulo: RT, 2005, p.29-30. 282 Curioso é que antes mesmo do nascimento do período humanitário, o princípio da legalidade já era defendido no Direito Penal por Hobbes. “A punição deveria ser uma consequência lógica da violação de leis estabelecidas previamente no Estado. Sem lei anterior, a punição seria arbitrária. Daí a necessidade de definir e classificar os delitos.” (MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.63). 283 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12.ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011, p.63. 284 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.22. 94 Esse princípio, introduzido pela fórmula nullum crimen, nulla poena sine lege, é um efeito limitador do poder punitivo estatal, que exige um processo legislativo regular para a criação de tipos penais. A transparência e o limite da formulação normativa dos tipos penais, no âmbito do direito penal, são exigências deste princípio; no processo penal isso também viabiliza a forma de intervenção do Estado na vida do cidadão285. O princípio da legalidade proporciona segurança jurídica ao exigir lei prévia, escrita, estrita e certa286. São apontadas, ainda, como garantia desse princípio, a garantia jurisdicional e na execução, ou seja, é proibido impor pena senão pelo processo penal e executá-la de modo distinto do determinado em lei287. 3.4.1.3 Princípio da lesividade ou ofensividade Pelo princípio da lesividade apenas podem ser consideradas criminosas as condutas que causam lesão à bem jurídico de terceiro. Por esse princípio, “[...] o direito penal não pode se ocupar de comportamentos que impliquem apenas autolesão, isto é, que não transcendam a pessoa do próprio lesionado, por mais que lamentemos tais decisões (autolesivas)”288. Além disso, é necessário existir um perigo concreto, real e efetivo, ou seja, deve o direito penal resguardar um interesse socialmente relevante desde que haja um perigo ou dano concreto. Se não houver ofensa ao bem jurídico selecionado para a proteção no viés penal, inexiste crime a ser punido. Impera destacar que o princípio da ofensividade tem uma dupla função no direito penal em um Estado Democrático de Direito: 285 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.07. 286 “Lex praevia significa proibição de edição de leis retroativas que fundamentem ou agravem a punibilidade. Lex scripta, a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário. Lex stricta, a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia (analogia in malam partem). Lex certa, a proibição de leis penais indeterminadas. (TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.22). 287 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.08. 288 QUEIROZ, Paulo. Curso de direito penal – parte geral. v.1. 8.ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p.94. 95 a) função político-criminal – esta função tem caráter preventivoinformativo, na medida em que se manifesta nos momentos que antecedem a elaboração dos diplomas legislativo-criminais; b) função interpretativa ou dogmática – esta finalidade manifesta-se a posteriori, isto é, quando surge a oportunidade de operacionalizar-se o Direito Penal, no momento em que se deve aplicar, in concreto, a norma 289 penal elaborada . Para Nilo Batista290, há quatro principais funções desempenhadas por esse princípio: a) proibir a incriminação de uma conduta interna (o projeto mental não é punível); b) proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; c) proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais; e d) proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico. Como será abordado no próximo capítulo, esse princípio é apontado como nitidamente violador à reincidência, ao mesmo tempo em que configuraria um direito penal do autor no ordenamento em que é aplicada. 3.4.1.4 Princípio da culpabilidade O princípio da culpabilidade rechaça qualquer responsabilidade objetiva no direito penal, aquela que considera limitadamente o resultado. A responsabilidade penal é subjetiva, por isso, é indispensável aferir a culpabilidade, ou seja, prová-la por meio do processo penal. Consoante Cezar Roberto Bitencourt291, a culpabilidade pode ser vista: a) como fundamento da pena (possibilidade de aplicação ou não de uma pena em virtude da prática de uma infração penal); b) como elemento da determinação ou mediação da pena; c) como conceito contrário à responsabilidade objetiva. Além disso, o princípio da culpabilidade está relacionado à intranscendência e à individualização da pena. A primeira impede que a pena 289 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.22. 290 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12.ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011, p.90-91. 291 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1.11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.16. “Resumindo, pelo princípio em exame, não há pena sem culpabilidade, decorrendo daí três consequências materiais: a) não há responsabilidade objetiva pelo simples resultado; b) a responsabilidade penal é pelo fato e não pelo autor; c) a culpabilidade é a medida da pena.” 96 ultrapasse a pessoa do condenado e a segunda exige que a pena seja aplicada considerando a pessoa concreta à qual se destina. Nesse passo, surge a coculpabilidade em que se considera o contexto vivido pelo autor, suas experiências sociais, oportunidades e o papel do Estado para com o processado. De acordo com Nilo Batista, a coculpabilidade se refere à individualização judicial, ou seja, as condições da pessoa concreta devem ser analisadas para a aplicação da pena292. Gustavo Octaviano Diniz Junqueira293, em sua tese de doutoramento intitulada “Liberdade, culpabilidade e individualização da pena”, aborda o tema para afastar qualquer tentativa de fundamentar seu trabalho na coculpabilidade. Entende que a atribuição de responsabilidade à sociedade pela prática de infração juntamente com o sujeito criminoso não é possível do ponto de vista jurídico, apenas social. Por isso, defende que os fatores socioeconômicos devem ser considerados na aferição da culpabilidade, rechaçando ainda qualquer crítica sob o viés do direito penal do autor, já que apenas depois da prática do crime é que será realizado o exame das condições de formação da sua personalidade, ou seja, não haverá punição pelo modo de ser, mas poderá ser atenuada a punição considerando a formação da personalidade condicionada294. Aliás, “o direito penal só pune fatos (ação/omissão); daí estabelecer uma responsabilidade por fato próprio (direito penal do fato), opondo-se a um direito penal do autor fundado no modo de vida ou no caráter”295. O princípio em destaque possui uma forte relação com os argumentos que questionam a reincidência criminal por considerar que está 292 “Trata-se de considerar, no juízo de reprovabilidade que é dado como essência da culpabilidade, a concreta experiência social dos réus, as oportunidades que se lhes depararam e assistência que lhes foi ministrada, correlacionando sua própria responsabilidade a uma responsabilidade geral do Estado que vai impor-lhes a pena; em certa medida, a co-culpabilidade faz sentar no banco dos réus, ao lado dos mesmos réus, a sociedade que os produziu, como queria Ernst Bloch.” (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12.ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011, p.10-102). 293 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Liberdade, culpabilidade e individualização da pena. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p.186. 294 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Liberdade, culpabilidade e individualização da pena. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p.188-190. 295 PRADO, Luiz Regis. Elementos de direito penal. v.1. São Paulo: RT, 2005, p.28. 97 incutida uma repressão à personalidade, do modo de ser do autor, incompatível com o direito penal do fato296. 3.4.1.5 Princípio da individualização da pena O princípio da individualização da pena deve ser observado desde a fase do processo de criminalização primária, da dosimetria da pena até a fase de execução penal. O legislador, quando da criação dos tipos penais, observando a proporcionalidade, determina a quantidade de pena a cada espécie de crime. Após essa fase, nota-se a individualização na fase da dosimetria da pena, conforme dispõe o artigo 59 do Código Penal. Em relação ao princípio da individualização da pena (CF, artigo 5º, XLVI) importa pôr em destaque os seus três níveis: momento da cominação, da aplicação e da execução. Todos fazem parte do princípio da proporcionalidade (aliás, são expressões dele). Da cominação da pena (ou seja: previsão in abstrato da pena no tipo legal) quem se encarrega é o legislador, que deve cominar penas proporcionais em cada caso. Um homicídio não pode nunca ter pena idêntica a um furto. Um crime doloso não pode ter pena paritária à modalidade culposa e assim por diante. Quem individualiza a pena no momento da aplicação é o juiz, observando os critérios (judiciais) do artigo 59 do CP (culpabilidade do agente, antecedentes, motivação, circunstâncias do delito etc.). Quem individualiza a execução é tanto 297 o juiz como o próprio pessoal que integra o sistema penitenciário . De acordo com Luiz Luisi298, na individualização judiciária da sanção penal estamos frente a uma “discricionariedade juridicamente vinculada”. Isto significa que “o juiz está preso aos parâmetros que a lei estabelece.” 296 Interessante destacar que Gustavo Octaviano Diniz Junqueira menciona a reincidência, “aceita pela doutrina e pelos tribunais como fator determinante na intensidade da sanção”, como uma das amarras do direito penal que sanciona o sujeito pelo o que ele é, violando o direito penal do fato. Além da reincidência, demonstra que a personalidade do sujeito também é levada em consideração na fixação da pena (artigo 59 do CP), como um direito penal do autor. (JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Liberdade, culpabilidade e individualização da pena. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p.192). 297 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice; DAHER, Flávio. Princípios constitucionais penais: à luz da Constituição e dos tratados internacionais. E-book LivroeNet, 2015, p.50. 298 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2.ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p.54. 98 É certo, para Luiz Regis Prado, que “o princípio da individualização da pena obriga o julgador a fixar a pena conforme a cominação legal (espécie e quantidade) e a determinar a forma de sua execução (artigo 5º, XLVI, CF)”299. Esse princípio revela sua grande importância no processo penal, pois exterioriza a função social do processo penal de materializar a tutela dos bens jurídicos mais importantes e aplicar a pena conforme essa valoração, sempre respeitando os limites constitucionais. 3.4.1.6 Princípio do ne bis in idem É vedada no ordenamento jurídico processual penal brasileiro a valoração dúplice do mesmo fato criminoso. Essa proibição se inicia desde a acusação até a condenação e procura “impedir mais de uma punição individual – compreendendo tanto a pena como a agravante – pelo mesmo fato (a dupla punição pelo mesmo fato)”300. Então, “o princípio do ne bis in idem veda a dupla incriminação. Por isso, ninguém pode ser processado ou condenado mais de uma vez pelo mesmo fato”301. Deriva do princípio da legalidade302 e está inserido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos no artigo 8º, item 4 – “o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”. Caso isso venha ocorrer, o processo penal disponibiliza instrumentos capazes de reparar esse deslize: exceção de litispendência quando dois processos são instaurados por fato idêntico ou coisa julgada caso o fato já tenha sido julgado definitivamente. Ainda que o princípio em destaque 299 PRADO, Luiz Regis. Elementos de direito penal. v.1. São Paulo: RT, 2005, p.30. PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 7.ed. São Paulo: RT, 2014, p.106. 301 ESTEFAM, André. Direito penal. v.1. São Paulo: Saraiva, 2010, p.122. 302 “Como já enfatizado [...], o princípio do ne bis in idem, que se traduz na proibição da dupla valoração fática, tem hoje seu apoio no princípio constitucional da legalidade. Não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração. O fato criminoso que deu origem à primeira condenação não pode, depois, servir de fundamento a uma agravação obrigatória de pena, em relação a um outro fato delitivo, a não ser que se admita, num Estado Democrático de Direito, um direito penal atado ao tipo de autor (ser reincidente), o que constitui uma verdadeira e manifesta contradição lógica.” (FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui; SILVA JÚNIOR, José; NINNO, Wilson; FELTRINI, Oscar; BETANHO, Luiz Carlos; GUASTINI, Vivente Celso da Rocha. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. v.1. t.1: parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 1997, p.1019). 300 99 tenha conteúdo material relativo à imposição da pena, manifesta-se no campo processual303. O princípio ne bis in idem também proíbe que várias sanções sejam aplicadas ao sujeito pelo mesmo fato, ou seja, “por um mesmo fato e por sanções que tenham um mesmo fundamento, isto é, que tutelem um mesmo bem jurídico”304. É por isso que o instituto da reincidência é apontado como violador desse princípio, visto que como circunstância agravante está sempre punindo o infrator uma segunda vez por fato já julgado anteriormente, argumento que será abordado no próximo capítulo. Portanto, por meio desse princípio, visa-se resguardar que a punição do sujeito se eternize no processo penal com consequências gravosas destoantes da real missão do direito penal e processual penal. 3.4.2 Princípios constitucionais orientadores do direito processual penal 3.4.2.1 Da dignidade da pessoa humana O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos princípios que fundamentam o Estado Democrático de Direito, conforme previsão do artigo1º, III, da Constituição Federal de 1988305. Conforme Jorge Miranda, a Constituição Federal, a qual confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais, repousa na dignidade da pessoa humana, isto quer dizer que enaltece a pessoa como fundamento e fim da sociedade e do Estado306. Não se tem registro exato da sua aparição no Direito, contudo, desde as obras mais clássicas, ele pode ser desvendado quando se retrata a busca incessante por um direito considerado natural. 303 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 7.ed. São Paulo: RT, 2014, p.107. QUEIROZ, Paulo. Curso de direito penal – parte geral. v.1. 8.ed. Salvador: JusPodivm, 2012, p.83. 305 BRASIL. Constituição Federal. 1988. Artigo 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana;” 306 MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais. In: (Coords.) MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da. Tratado lusobrasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. 304 100 Pode ser entendido como um valor supremo e natural pertencente a todo e qualquer ser humano, além de reconhecer “o valor da pessoa humana como condição preexistente, ou seja, da própria natureza do homem” 307. Ou seja, o “homem possui dignidade pelo simples fato de existir como ser humano, dignidade esta que lhe é inerente e inalienável”308. No mesmo sentido, Alain Supiot309 ensina que o homem é um sujeito soberano na acepção dos direitos humanos. E, “como o homo juridicus, é titular de uma dignidade própria, nasce livre, dotado de razão e titular de direitos.” De acordo com Marco Antonio Marques da Silva 310, “o ser humano deve ser sempre tratado de modo diferenciado em face de sua natureza racional.” Sendo um valor fundamental, “a dignidade, portanto, é um princípio jurídico de status constitucional”311. E, como valor e princípio, “funciona tanto como justificação moral quanto como fundamento normativo para os direitos fundamentais”312. Além disso, tem-se que a dignidade da pessoa humana pode ser considerada um reconhecimento constitucional dos limites do poder de intervenção do Estado na vida do cidadão. Desta feita, os direitos fundamentais decorrem da dignidade humana, a qual norteia o alcance desses direitos313. Conforme argumenta Eloísa de Sousa Arruda, ao basear a República na dignidade da pessoa humana, a Constituição explicita de forma inequívoca que o “poder” ou o “domínio” da República terá de assentar-se em dois pressupostos ou precondições: 1) em primeiro lugar, está a pessoa humana, e, depois a organização política; 2) a pessoa é sujeito e não objeto, é o fim e não o meio de relações jurídico-sociais. A dignidade da pessoa humana afigura-se, assim, como trave-mestra de sustentação e 307 PEREIRA, Claudio José Langroiva. Proteção jurídico-penal e direitos universais – tipo, tipicidade e bem jurídico universal. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.42. 308 ARRUDA, Eloísa de Sousa. O papel do Ministério Público na efetivação dos tratados internacionais de direitos humanos. In: (Coords.) MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da. Tratado lusobrasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.362. 309 SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.235. 310 SILVA, Marco Antonio Marques da. Cidadania e democracia: instrumento para a efetivação da dignidade humana. In: (Coords.) MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da. Tratado lusobrasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.225. 311 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.273. 312 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.273. 313 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.05. 101 legitimação da República e da respectiva compreensão do poder 314 político . Nesse viés, abordar o processo penal pela limitação do poder inserida na democracia implica considerar que a dignidade da pessoa humana enaltece o ser humano como sujeito de direitos. Desta forma, o processo penal é um instrumento democrático para resguardar que o acusado não se torne um objeto ao bel-prazer estatal para a construção da verdade processual. Tratando-se do processo penal, a ideia de processo como instrumento para realizar-se a ordem constitucional está umbilicalmente ligada ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento e fim do Estado. Da mesma forma, a dignidade da pessoa humana deve ser observada desde a criação da lei, como um importante imperativo no papel desempenhado pelo legislador: “qualquer lei que viole a dignidade, seja em abstrato ou em concreto, será nula”315, segundo a percepção de Luís Roberto Barroso. Para observar a dignidade da pessoa humana no decorrer do processo penal, o princípio da igualdade reforça o sopesamento nos casos concretos, ao passo que a dignidade é conferida quando há igualdade processual. “Em um processo penal democrático, portanto, todos os atores jurídicos devem ser tratados de forma digna”316, afirma Rogério Greco. Segundo ele317, esse princípio não possui caráter absoluto, mas pode ser relativizado, pois é um valor individual, por isso será avaliado e ponderado em cada caso concreto. Por exemplo, o direito à liberdade está diretamente ligado à dignidade e num caso de extorsão mediante sequestro, essa liberdade será cedida frente à proteção dos bens jurídicos pertencentes às vítimas. 314 ARRUDA, Eloísa de Sousa. O papel do Ministério Público na efetivação dos tratados internacionais de direitos humanos. In: (Coords.) MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da. Tratado lusobrasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.363. 315 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.274. 316 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.313. 317 GRECO, Rogério. Sistema prisional: colapso atual e soluções alternativas. 2.ed. Niterói, RJ: Impetus, 2015, p.71. 102 Da mesma forma, para Mário Lúcio Garcez Calil318, “é plenamente possível a colisão entre a dignidade da pessoa humana e outros princípios, tendo em conta sua natureza de mandamento de otimização.” Contudo, devese ressaltar que o núcleo essencial da dignidade é inatingível. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana representa um corolário do Estado Democrático de Direito que torna possível a sobrevalorização da essência humana. Possui a função primordial de afastar a incerteza das consequências oriundas do poder estatal sem limitação em sua amplitude, além de reafirmar a verdadeira finalidade que leva à adoção de um determinado modelo estatal. Não é possível discutir o direito processual penal sem considerar o princípio da dignidade da pessoa humana; seria o mesmo que ignorar a própria finalidade desse ramo jurídico dentro do ordenamento jurídico pátrio. 3.4.2.2 Princípio do devido processo legal Para garantir a proteção estatal em face do acusado, o princípio do devido processo legal vem coibir que o Estado atue de maneira arbitrária desrespeitando a liberdade do cidadão. Conforme observa Denilson Feitoza, ele “consiste na garantia de alguém somente poder ser privado de sua liberdade ou de seus bens, por meio de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei”319. Na Constituição Federal de 1988, ele está previsto no artigo 5º, LIV320 e pode ser considerado o “princípio reitor de todo o arcabouço jurídico processual. Todos os outros derivam dele”321. No mesmo sentido, pode-se afirmar que se trata de uma garantia de grande amplitude, pois abrange 318 CALIL, Mário Lúcio Garcez. Efetividade dos direitos sociais: prestação jurisdicional com base na ponderação de princípios. Porto Alegre: Nuria Fabris 2012, p.165. 319 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.142. 320 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 5º, LIV: “Ninguém será privado da liberdade e de seus bens sem o devido processo legal.” 321 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.05. 103 diversas outras, mas sempre com o finco de proteger o cidadão contra a arbitrariedade estatal322. A necessidade de observância desse princípio não se restringe apenas ao andar processual. Além disso, o devido processo legal alcança a concretização de interesses de natureza substancial, ou seja, limitar a própria produção legislativa323: O devido processo legal não se destina tão somente ao intérprete da lei, mas já informa a atuação do legislador, impondo-lhe a correta e regular elaboração da lei processual penal. Em outra palavras, o juiz está submetido e deve submeter as partes à norma processual penal 324 vigente, o que caracteriza a garantia constitucional . Não é demais lembrar que o princípio da dignidade da pessoa humana é a base do devido processo, pois considerar a parte e dar-lhe a oportunidade de ser ouvida antes de qualquer imposição invasiva é respeitar sua dignidade pessoal325. Ademais, o princípio do devido processo legal demonstra a necessidade de respeito a um sistema processual atento às diretrizes constitucionais em prol de um processo justo. A importância desse princípio pode ser averiguada desde a Magna Carta de 1215, primeiro documento jurídico que fez menção ao devido processo legal, vinculando direito às regras comuns por todos aceitas326. Também foi explicitada na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) nos artigos 8º e 10º327. No artigo 11 prevê que a culpabilidade daquele que é acusado da prática de um ato delituoso deve ser apurada de acordo com a lei, ou seja, que há necessidade de uma lei prévia impondo o 322 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.17. 323 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.319. 324 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.17. 325 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2009, p.30. 326 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.16. 327 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.318. 104 modo como proceder (por meio de um devido processo legal)328. Observa-se que, O corolário do sistema processual brasileiro vem a ser a cláusula princípio que impõe respeito ao devido processo legal. Processo devido é processo legítimo. Processo legítimo é, como expressa Convenção Européia de Direitos Humanos, o processo justo e 329 equitativo. E processo justo é processo democrático . O processo penal não se desvincula do devido processo legal, mas é aquele que efetiva o universo das garantias individuais em qualquer fase. Por fim, conforme Rogério Lauria Tucci, o processo penal é concebido com base nas seguintes garantias: a) de acesso à Justiça Penal; b) do juiz natural em matéria penal; c) de tratamento paritário dos sujeitos parciais do processo penal; d) da plenitude de defesa do indiciado, acusado, ou condenado, com todos os meios e recursos a ela inerente; e) da publicidade dos atos processuais penais; f) da motivação dos atos decisórios penais; g) da fixação de prazo razoável de duração do processo penal e; h) da 330 legalidade da execução penal . 3.4.2.3 Princípio da ampla defesa O princípio da ampla defesa representa um grande avanço no processo penal, pois abrange o direito à defesa técnica e o direito à autodefesa durante o processo. Deriva do devido processo legal e está inserido tanto na Constituição Federal (artigo 5º, LV), como na Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 11, inciso 1º e artigo 8º, 2, b, c e f)331. Nesse binômio de defesa técnica e autodefesa há a possibilidade de o acusado ser amparado durante o processo penal para que nenhum abuso estatal viole o seu direito de ter transparência em todos os atos durante o desenvolvimento da persecução criminal. 328 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.16. 329 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. A constitucionalização do processo penal: reinterpretando o processo penal a partir do princípio democrático. In: (Coords.) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.865. 330 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 4.ed. São Paulo: RT, 2011, p.66. 331 BRASIL. Constituição Federal (1988), artigo 5º, LV: Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 105 A justiça criminal não pode ser alcançada sem a aplicação precisa do princípio da ampla defesa. Se a acusação é exercida por um órgão dotado de conhecimento técnico-jurídico, ao acusado deve ser proporcionada a mesma oportunidade, isto é, de ter sua defesa acompanhada por um profissional no mesmo nível em prol da paridade de armas do devido processo penal332. Contemporaneamente, o papel da defesa técnica é obrigatório e ultrapassa a concepção de que basta um defensor público ou um advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, pois essa defesa deve ser realizada de forma satisfatória, o que não significa o alcance da absolvição. A defesa técnica “deve ser efetiva, concreta, capaz de contribuir, em favor do réu, com a construção da solução justa do caso penal”333. Nesta mesma linha de raciocínio, Antonio Scarance Fernandes: O direito de defesa é ao mesmo tempo garantia da própria justiça, havendo interesse público em que todos os acusados sejam defendidos, pois só assim será assegurado efetivo contraditório, sem 334 o qual não se pode atingir uma solução justa . Não é demais lembrar que a história já testemunhou os absurdos do sistema inquisitório que dispensava a defesa com a confissão, prova máxima e suficiente para a condenação. Quando a acusado confessava nem havia necessidade de advogado. Interessante que “a função do advogado era fazer com que o acusado confessasse logo e se arrependesse do erro, para que a pena fosse imediatamente aplicada e iniciada a execução”335. Esse absurdo não mais faz parte do sistema processual penal democrático. Caso a defesa técnica não seja desempenhada a contento, cabe ao Poder Judiciário declarar o réu indefeso. Vale dizer que a Súmula Vinculante nº14 do Supremo Tribunal Federal prevê que o defensor tem o direito de ter acesso aos elementos de prova já documentados em procedimento investigatório por órgão com 332 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.20. 333 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.258. 334 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7.ed. São Paulo: RT, 2012, p.23. 335 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.102. 106 competência de polícia judiciária a fim de exercer o direito de defesa do seu cliente. Já a autodefesa é desempenhada durante o processo penal pelo próprio acusado, o qual contribui em diversos momentos na construção de sua defesa. É renunciável e abrange “direito de audiência, direito de presença e direito a postular pessoalmente”336. Qualquer violação à ampla defesa anula o processo, eis que ofende a própria dignidade da pessoa do acusado de se valer dos meios processuais para contrapor a acusação. Nesse contexto, poder-se-ia questionar o exercício da ampla defesa no processo em que serão aplicados os efeitos da reincidência. Ao lado do princípio do ne bis in idem, caso se opte por justificar a reincidência como uma ofensa a bem jurídico diverso da primeira condenação, a coisa julgada passa a ser questionada. Se há a ofensa de dois bens jurídicos novos (esse um dos fundamentos da manutenção da reincidência) ao réu caberia a garantia de ampla defesa em relação a ambos. Desta forma, seria aberta a oportunidade de questionar a aplicação dos efeitos da reincidência. Se o juiz utiliza a reincidência para agravar a pena do réu (e esse instituto se refere a fatos passados), em atendimento à ampla defesa, abre-se margem à defesa novamente, com verdadeiro caráter revisional da pena aplicada. 3.4.2.4 Princípio do contraditório O princípio do contraditório também está consagrado no artigo 5º, LV da Constituição Federal e no artigo 8º da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), aprovada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº27, de 26/05/1992. Esse princípio transparece o direito daqueles que são partes de um processo de reagir diante do conjunto probatório e das afirmações construídas a fim de alcançar a verdade processual. Por esse princípio há a garantia de tomar conhecimento da acusação e dos atos processuais para, então, aplicar o direito à defesa: “é do contraditório, manifestado num primeiro momento no 336 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7.ed. São Paulo: RT, 2012, p.265. 107 direito à informação, que nasce a possibilidade do exercício da ampla defesa”337, defende Marco Antonio Marques da Silva. Como se vê, os princípios do contraditório e da ampla defesa estão relacionados e são garantias derivadas do devido processo legal. Não há uma identificação notória se o direito de defesa deriva da garantia do contraditório ou se da garantia da defesa decorre o contraditório338. Sabe-se que o contraditório garante o equilíbrio na relação jurídicoprocessual, trazendo igualdade entre as partes para manter uma ‘perfeita harmonia entre os bens jurídicos que irão se justapor”339. Daí ser imprescindível a assistência de um defensor técnico para tanto. Nos dizeres de Fernando da Costa Tourinho Filho: Aliás, em todo processo de tipo acusatório, como o nosso, vigora esse princípio, segundo o qual o acusado, isto é, a pessoa em relação à qual se propõe a ação penal, goza do direito “primário e absoluto” de defesa. O réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la, evitando, assim, possa ser condenado 340 sem ser ouvido . O processo não deve ser apenas procedimento e contraditório, mas sim procedimento, contraditório e participação. Com o contraditório há informação e reação341, essa última traz a participação, a qual vem se ampliando, visto que “não participam no processo só estes sujeitos, mas também a vítima, as testemunhas, os peritos, os advogados, etc.”342. Desta feita, o princípio do contraditório, oriundo do sistema acusatório, deve manter as partes em situação de igualdade para que possuam as mesmas oportunidades dentro do processo, seja a de produção de provas ou de manifestação a respeito daquelas produzidas. Exige, pois, a informação 337 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.18. 338 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7.ed. São Paulo: RT, 2012, p.254. 339 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.18. 340 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.23. 341 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.17. 342 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7.ed. São Paulo: RT, 2012, p.5051. 108 às partes sobre todos os atos processuais para exercerem o contraditório, ainda que de forma diferida343. 3.4.2.5 Princípio da presunção de inocência O princípio da presunção de inocência surgiu para proteger o cidadão do poder punitivo desmedido do Estado. Proclamado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, em 1948, foi consagrado pela Constituição Federal de 1988 no artigo 5º, LVII344. Com forte influência do sistema acusatório, visou-se “tratar o acusado com mais dignidade e respeito à sua liberdade de locomoção”345. O reflexo disso está nas hipóteses de cabimento de aplicação de sanções, principalmente, quando se resulta na privação da liberdade. Tratando-se, em especial, da prisão, o acusado apenas poderá sofrer esta consequência quando houver sentença condenatória transitada em julgado, salvo se existirem requisitos que justifiquem a cautelaridade da medida. Interessantes são as observações de Paulo Rangel ao defender que a Constituição Federal não presume a inocência, distinguindo ele a certeza da inocência com a presunção de inocência. Esclarece ainda que “a terminologia presunção de inocência não resiste a uma análise perfunctória”346. Por isso, a magistrado pode tanto presumir o réu inocente como culpado, a depender do resultado da operação mental percorrida. Para o autor, a Constituição Federal proíbe considerar culpado e não presumir. Outro argumento é o de que a própria Constituição Federal admite prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade competente ou em 343 Nas lições de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar: “É o caso, em particular, das medidas cautelares reais, a exemplo do sequestro de bens imóveis, previsto no artigo 125, CPP e da interceptação das comunicações telefônicas (Lei nº9.296/96). Quanto às medidas cautelares de natureza pessoal, imprescindível registrar que a Lei nº12.403/2011, alterando o Código de Processo Penal, previu o contraditório como regra, de modo que a parte contrária somente deixará de ser intimada em “casos de urgência ou perigo de ineficácia da medida” (artigo 282, §3º, CPP).” (TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 8.ed. Salvador: JusPodivm, 2013, p.58). 344 Hobbes defendia o princípio da inocência, que foi consagrado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, “ao cogitar da pena somente após o autor da transgressão ser ouvido em juízo e “declarado culpado”. Tal princípio tornou-se universal e serve de base para o processo penal contemporâneo, com consequências em vários institutos de natureza penal.” (MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.65). 345 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.24. 346 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.25. 109 flagrante, ou seja, se houver motivação, a decretação da prisão anterior à sentença penal condenatório não fere o princípio em análise. Do princípio da presunção de inocência também pode ser extraída a proteção de o réu não ter o dever de provar sua inocência e sim o Estado provar a sua culpa por meio do órgão competente. O ônus da prova no processo penal deve ser atribuído ao Ministério Público, que “deve provar a existência do fato típico, ilícito e culpável, narrado na denúncia e praticado pelo réu, assumindo, por inteiro, o ônus da acusação feita”347. Para Paulo Rangel, inclusive, se o réu alegar uma causa de exclusão da ilicitude, cabe ao parquet provar que não estão presentes os elementos que compõem esta figura permissiva: [...] o disposto no inciso LVII do artigo 5º da CRFB não pode ser entendido como princípio da presunção de inocência, mas sim como regra constitucional que inverte, totalmente, o ônus da prova do Ministério Público. O Ministério Público, assim, assume seu verdadeiro papel de órgão fiscalizador da lei dentro de um Estado Democrático de Direito, recaindo, sobre si, o ônus de uma acusação feita sem o suporte probatório mínimo que deve lastrear toda 348 acusação penal . Tem-se, então, o princípio da presunção de inocência como um corolário do devido processo legal fortemente relacionado ao instituto da reincidência criminal, o qual é duramente violado, conforme será abordado nos capítulos seguintes. Aliás, a grande crítica da Escola Positiva à Escola Clássica que enalteceu esse princípio era a de que “a presunção teria menos força quando se tratasse de delinquente reincidente”349. 3.4.2.6 Princípio da imparcialidade do juiz A imparcialidade do juiz é uma das vigas mestras de um sistema processual democrático, visto que tem por finalidade resguardar um julgamento 347 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.27. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.32. 349 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.28. 348 110 isento de juízos prévios e de contaminação subjetiva, o que afastaria a aplicação íntegra do direito ao caso concreto. O juiz imparcial é aquele mero expectador das provas geridas pela acusação e pela defesa, porém, com o poder fiscalizatório contra arbitrariedades que impeçam um processo penal desmedido ou desregrado. Desta forma, a imparcialidade do juiz o retira da tarefa de persecução penal. A Constituição Federal separa as funções dos sujeitos processuais ao atribuir ao Ministério Público a exclusividade da ação 350. Conforme Rubens Casara e Antonio Pedro Melchior: A maior garantia para a imparcialidade endoprocessual, isto é, para a imparcialidade no curso do iter processual penal, é a inércia do órgão julgador (ne procedat iudex ex officio), que, somada ao correlato ativismo do Ministério Público e ao fato de a gestão da prova estar nas mãos das partes, garante o distanciamento necessário ao julgamento e à justiça da decisão no sistema processual penal 351 acusatório . Interessante notar que a imparcialidade do juiz pode se dar na ordem objetiva ou subjetiva, ambas ligadas à linha de raciocínio desenvolvida pelo julgador e exteriorizada de alguma forma. A imparcialidade objetiva demanda transparência em todos os atos processuais realizados pelo juiz352. Não basta o juiz executar suas tarefas, além disso, deve transmitir em cada uma delas a segurança de que a justiça será aplicada com imparcialidade. No que tange à imparcialidade subjetiva, a qual é presumida, é vedado ao juiz esconder razões íntimas que possam favorecer uma das partes. Se houver essa possibilidade, as partes devem requerer a declaração de suspeição do magistrado parcial. No entanto, o princípio da imparcialidade tem sido um dos mais difíceis de serem adotados. “A prática forense mostra-nos que a imparcialidade existe no plano jurídico, mas é de difícil aplicação quotidiana”353, observa Paulo Rangel. 350 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.20. CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.143. 352 CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. v.I.: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p.144. 353 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.21. 351 111 A atuação do juiz é limitada e deve obedecer à legalidade, sob pena de um retrocesso na história, quando os juízes mantinham fidelidade apenas com os que tinham escolhido, agindo ademais sem qualquer controle, sendo temidos pelo povo e com uma imagem bastante negativa354. Nesse passo, conclui-se que o juiz está na relação processual entre as partes e acima delas, ou seja, não está no processo em nome próprio, nem em conflito de interesses com as partes, por isso torna essencial a imparcialidade do julgador. Assim, o princípio da imparcialidade afasta a influência de interesses quando do julgamento. No processo penal a dificuldade em concretizar essa garantia para o efetivo contraditório se torna ainda tormentosa frente a determinados institutos jurídicos, que já influenciam no juízo prévio dos juízes dado o caráter estigmatizador, como a reincidência criminal. 3.4.2.7 Princípio da motivação das decisões O princípio da motivação das decisões consta do artigo 93, IX, da Constituição Federal de 1988 e estabelece que todas as decisões dos órgãos jurisdicionais serão fundamentadas. Esta premissa visa controlar o trabalho jurisdicional exigindo explicitamente os motivos que levaram ao acolhimento ou não da pretensão punitiva estatal. “O juiz é livre para decidir, desde que o faça de forma motivada, sob pena de nulidade insanável” 355. Eis o sistema do livre convencimento motivado adotado pelo artigo 155, caput, do Código de Processo Penal. A fundamentação traz uma resposta social sobre o fato julgado e confere segurança jurídica, já que é por meio da decisão e sua motivação que as partes poderão exercer o direito de recorrer da sentença. 354 Conforme Dalmo de Abreu Dallari, o iluminista italiano Pietro Verri, companheiro de Beccaria, na obra Observações sobre a tortura (São Paulo: Martins Fontes, 1992) relatou um caso em que houve uma epidemia de peste em Milão com várias mortes, acreditando-se que a doença fora causada por ação de um criminoso. O governo quis encontrar o culpado e estimulou delações, as quais levaram à prisão de um homem e a entrega a um juiz que o torturou horrendamente para obter a confissão, sendo um caso de milhares em que o sistema penal era brutalmente utilizado ao bel-prazer dos juízes. (DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva,1996, p.12). 355 TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 8.ed. Salvador: Jus Podivm, 2013, p.63. 112 Nesse contexto, Lenio Luiz Streck356 nos ensina que é uma obrigação dos juízes justificar suas decisões, uma vez que elas afetam os direitos fundamentais, “além da relevante circunstância de que, no Estado Democrático de Direito, a adequada justificação da decisão constitui-se em um direito fundamental”, assegura. Desta feita, o princípio da motivação das decisões se reflete em várias etapas do processo. Também concretiza o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, pois somente por meio da motivação as partes poderão rebater os argumentos utilizados pelo magistrado e, assim, concordar ou questionar a decisão, na maioria dos casos recursais, em um controle hierárquico imediatamente superior. 3.4.2.8 Princípio da publicidade A publicidade dos atos processuais e das atividades estatais está relacionada ao devido processo legal, constitucionalmente consagrada nos artigos 5º, LX e 93, IX e prevista no artigo 792 do Código de Processo Penal. Coaduna-se com o modelo político do Estado Democrático de Direito em que o conhecimento dos atos processuais permite o controle da atividade jurisdicional. No mesmo passo, está na linha do sistema acusatório e concede às partes o direito ao acesso aos autos, já que o procedimento secreto foi abolido do ordenamento jurídico brasileiro. A publicidade, contudo, não é absoluta, podendo ser restringida nos casos previstos em lei, visto que em alguns deles se sobrepõe pela necessidade da medida adotada e sua consequente eficácia, como a interceptação telefônica. Então, quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem, a lei poderá restringir a publicidade dos atos processuais. Desta forma, não é um direito absoluto, pois possui exceções, “mas jamais poderá 356 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2009, p.364. 113 estabelecer o sigilo com relação ao réu, sob pena de infringir o princípio da publicidade”357, conforme alerta Marco Antonio Marques da Silva. 3.4.2.9 Princípio da proporcionalidade O princípio da proporcionalidade apresenta uma importante função na aplicação de todo o Direito, não sendo diferente no direito processual penal. Relaciona-se à proteção das próprias normas constitucionais, daí sua notoriedade. Ele deve estar presente e ser observado desde a criação das legislações penais e processuais penais. Encontra-se inserido implicitamente na Constituição Federal e é uma regra afeta à dimensão do poder no processo penal358, “porque o direito processual penal é constituído de vasta enunciação normativa da Constituição do Brasil”359, de acordo com Nestor Távora e Rosmar Alencar. A vinculação desse princípio ao Direito Constitucional “ocorre por via dos direitos fundamentais”360, por isso de extrema importância, já que protege a liberdade fornecendo critérios para limitar o poder estatal. Conforme Humberto Ávila, a ideia de proporção no direito processual está entre o “gravame criado por um ato do Poder Público e o fim por ele perseguido”361. Inicialmente, tem a função de “controlar a constitucionalidade dos tipos penais e das penas penais”362. Além disso, por meio de uma subdivisão o objetivo se volta à análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito na norma, elementos indispensáveis para 357 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.23. 358 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.1097. 359 TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 8.ed. Salvador: Jus Podivm, 2013, p.74. 360 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.395. 361 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.163-164. O autor diferencia proporção de proporcionalidade. Essa apenas se aplica quando há a relação de causalidade entre dois elementos: o meio e o fim, ao passo de conduzir aos exames da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. 362 PULIDO, Carlos Bernal. O princípio da proporcionalidade da legislação penal. In: A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. (Coords.) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.805. 114 aplicá-lo. Os elementos referidos são denominados subprincípios ou conteúdos parciais. De qualquer forma, deve haver uma relação entre meio e fim, esse fim consiste no resultado concreto almejado, portanto, deve ser determinado, para então analisar se o meio é adequado para tanto. Há fins internos e externos. Os internos se referem às pessoas ou situações e parte da avaliação do que é relevante para firmar um tratamento, a pena deve corresponder à culpa. Já os externos atendem às finalidades atribuídas ao Estado363, com dimensão extrajurídica, a exemplo do fim social do processo penal. A respeito dos elementos mencionados, tem-se que a adequação “impõe duas exigências a todas as intervenções em direitos fundamentais: a) a existência de um fim constitucionalmente legítimo; b) a adequação ou idoneidade da medida (ou meio) para favorecer a obtenção desse fim”364. No processo penal, a adequação demonstra que é devida a aplicação de uma medida para o fim da persecução criminal, do contrário é arbitrária e constitucionalmente ilegítima. Humberto Ávila entende que “a medida será adequada se o julgado, no momento da decisão e depois que ela for adotada, verificar que a medida promove o fim”365. Já a necessidade se relaciona à intervenção mínima, ou seja, ao meio que menos interfere no direito de liberdade no processo penal. Segundo Carlos Bernal Pulido, “não deve existir nenhum outro meio alternativo que revista pelo menos da mesma idoneidade para alcançar o objetivo proposto e que seja mais benigno com o direito afetado”366. Desta feita, “o meio necessário é aquele mais suave ou menos gravoso relativamente aos direitos fundamentais colaterais, para a média dos 363 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.166. 364 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.137. 365 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.170. 366 PULIDO, Carlos Bernal. O princípio da proporcionalidade da legislação penal. In: A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. (Coords.) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.824. “Trata-se, então, de uma comparação da medida adotada com os meios alternativos disponíveis, comparação na qual se analisa: 1. A idoneidade equivalente ou maior do meio alternativo, e 2. O menor grau em que este interfira no direito fundamental.” 115 casos”367. Então, se há outros meios que promovem o fim perseguido e, além disso, de forma mais satisfatória, são esses que devem ser utilizados. No entanto, não é tão simples quanto parece encontrar a resposta se a medida é necessária ou não no viés da proporcionalidade. Isto, porque, podem ocorrer diferenças dos meios em grau, ou seja, um meio que restrinja pouco o direito fundamental em questão, mas não promove o fim satisfatoriamente ou, um meio que promova o fim conforme planejado, mas causa muita restrição ao direito fundamental368. A dificuldade está assentada na análise da suficiência de um meio alternativo dos direitos igualmente eficaz às finalidades perseguidas pelo legislador na aplicação do Direito. Já o último elemento, a proporcionalidade em sentido estrito, “exige a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais”369. Não é de fácil visualização essa tarefa, a qual demanda de uma análise que não destoa da subjetividade. Parte-se do questionamento a respeito da sobreposição das vantagens sobre as desvantagens da medida, quer dizer, que deve haver proporcionalidade nas vantagens do fim alcançado com as desvantagens da restrição dos direitos para esta finalidade. Será analisada a importância tanto da intervenção no direito fundamental quanto do fim justificado, comparando qual delas tem maior destaque nessa comparação. No processo penal, seguindo a linha de raciocínio de Denilson Feitoza370, quanto mais se procura demonstrar a ocorrência de um fato criminoso para galgar sucesso na persecução penal, mais se excepciona os direitos fundamentais do investigado. Utilizando-se desse ensinamento, afirma-se que quanto mais o processo penal se distancia da sua essência de proteção e promoção aos direitos fundamentais arraigados pelo Estado Democrático de Direito em prol 367 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.173. 368 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.175. 369 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.175. 370 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.139. 116 de uma resposta clamorosa para a falta de segurança pública, a impunidade e o aumento do índice de crimes, mais tumultuário torna o desenvolvimento do processo penal democrático. Devem também ser analisadas “a eficácia, a rapidez, a probabilidade, o alcance e a duração com que uma intervenção no direito fundamental contribua para a realização do fim da persecução criminal”371. Nesse contexto, quanto mais o processo penal intervém no direito de liberdade, com reflexo em diversos princípios de cunho processual e constitucional, para justificar medidas voltadas a uma política criminal repressora e contemporânea, maior deve ser o controle exercido nessa atividade. E esse é o papel do princípio da proporcionalidade, que não constitui um direito da liberdade, “mas direito que protege a liberdade; uma garantia fundamental, ou, antes de tudo, um princípio geral de direito”372. 3.4.2.10 Princípio da inadmissibilidade de utilização de provas ilícitas As partes têm o direito à admissão de provas no processo penal a fim de levar ao juiz o conhecimento dos fatos. Contudo, apesar desse direito ter respaldo constitucional, não é absoluto, diante de outros valores também protegidos constitucionalmente373. Por isso, existem limites probatórios expressos na Constituição Federal, dispostos também no Código de Processo Penal. Dispõe o artigo 5°, LVI, da Constituição Federal: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Essa proibição se coaduna com o resguardo de outros direitos fundamentais, tais como a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem (artigo 5º, X), inviolabilidade do domicílio (artigo 5º, XI), inviolabilidade do sigilo das comunicações em geral e de dados (artigo 5º, XII), proibição de tortura ou tratamento desumano ou 371 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6.ed. Atualizada com a “Reforma Processual Penal”. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p.140. 372 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.401. 373 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997, p.91. 117 degradante (artigo 5º, XLIX) e amparo ao preso em sua integridade física e moral (artigo 5º, XLIX). Desta forma, em regra, qualquer prova produzida violando essas garantias constitucionais são ilícitas. A exceção vem da aceitação no Brasil do princípio da proporcionalidade374 375 , o qual exige que o juiz analise se outra norma constitucional não se sobrepõe aquela violada. Para Antonio Scarance Fernandes, “é ampla a aceitação de sua aplicação aos casos em que a prova da inocência do réu depende de prova produzida com violação a uma garantia constitucional”376. Para Antonio Magalhães Gomes Filho377, no confronto entre o direito à prova da inocência e à proibição de prova deve prevalecer aquele, porque o Estado não pode ter interesse em punir um inocente, e deixar impune o verdadeiro culpado. Além disso, ressalta que são raros os casos no Brasil em que a defesa utiliza meios ilícitos para obter provas. No mesmo sentido, para Luiz Francisco Torquato Avolio, “contrariamente à admissibilidade das provas ilícitas encontra-se hoje a doutrina dominante, temperada, por muitos autores, pela teoria da proporcionalidade, especialmente no tocante à prova ilícita pro reo”378. Aury Lopes Júnior adverte que o réu, nessa situação, estaria acobertado pelas excludentes da legítima defesa ou do estado de necessidade, conforme o caso, o que afastaria a ilicitude da conduta e da própria prova 379. No Código de Processo Penal a matéria de prova ilícita é tratada no artigo 157, onde consta a definição de provas ilícitas como aquelas obtidas em violação às normas constitucionais ou legais. Sendo ilícita, a prova deve ser desentranhada dos autos. Também é disciplinada no §1º do artigo 157 a contaminação das provas, denominada de prova ilícita por derivação (teoria dos frutos da árvore 374 SILVA, Marco Antonio Marques da; FREITAS, Jayme Walmer de. Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2012, p.273. 375 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7.ed. São Paulo: RT, 2012, p.93. 376 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7.ed. São Paulo: RT, 2012, p.93. 377 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997, p.106. 378 AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. 3.ed. ampl. em face das Leis 9.296/96 e 10.217/2001 e da jurisprudência. São Paulo: RT, 2003, p.75. 379 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.412. 118 envenenada), aquelas que foram descobertas em razão de uma prova ilícita. Contudo, a lei (§1º do artigo 157 do Código de Processo Penal) traz exceções quando não há nexo entre a prova ilícita e a derivada, quando a descoberta da prova seria inevitável e no §2º quando a fonte for independente. Então, mesmo com a regra da contaminação das provas, a proibição não é absoluta, visto que são reconhecidas algumas exceções380. 3.5 A importância do processo penal e suas garantias Após demonstrar que o sistema processual penal está ainda passando por um processo para sua sólida democratização, impera abordar o processo penal que zela por garantias como a consequência prática desse percurso. O processo penal, como instrumento de aplicação do direito material e proteção dos direitos e garantias individuais do cidadão acusado, representa com fidedigna percepção o desempenho do poder estatal na persecução penal. Por meio do processo penal é possível vislumbrar se a política criminal firmada pelo Estado vem atendendo às finalidades propostas381. Longe de apenas impor a aplicação de uma sanção materializando o direito penal, cabe ao direito processual penal trazer meios que justifiquem a restrição de direitos fundamentais do processado. Isto quer dizer que, em todas as fases processuais, as medidas aplicadas devem ter plausibilidade que as 380 Para Antonio Magalhães Gomes Filho, é impossível negar a contaminação da prova secundária pela ilicitude da primeira. Entende que de nada valeria as restrições à admissibilidade da prova, se as derivadas da ilicitude pudessem servir ao convencimento do juiz. (GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997, p.110). 381 Interessante é que: “Desde a década passada vem crescendo o número de antropólogos, sociólogos e historiadores que se valem de processo penais, certamente na esteira de alguns estudos pioneiros (Corrêa, 1983; Chalhoub, 1986; Fausto, 1984; Mello e Souza, 1986). Não são poucas as razões que concorrem para a sedução dos autos. Duas merecem destaque. Por um lado, os autos deixam entrever, como nenhuma outra fonte documental, o modo concreto de funcionamento de uma agência de controle social encarregada de distribuir sanções penais e que, por isso mesmo, concentra poder. [...] Por outro lado, como sabiamente demonstrou Mariza Corrêa (1983), em circunstâncias específicas, os processos penais expressam um momento de tensão nodal das relações interpessoais – a supressão física de uma pessoa por outra põe a nu alguns pressupostos da existência social, permitindo visualizar a sociedade em seu funcionamento, o jogo pelo qual, no torvelinho de conflitos e tensões subjetivas, se materializa a ação de uns sobre outros em pontos críticos das articulações sociais, transformando o drama pessoal e social.” (ADORNO, Sérgio. Crime, justiça penal e desigualdade jurídica. In: FALCÃO, Joaquim; SOUTO, Cláudio. Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, p.319). 119 enquadram no sistema processual penal lógico e, assim, sejam pertinentes e necessárias. O processo penal visa promover garantias, ou seja, proteger de forma legítima o acusado, evitando que a busca incessante ou cega na penalização se sobreponha a sua instrumentalidade democrática: A Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia sua força normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas também como vetor de interpretação 382 de todas as normas do sistema. Nesse passo, demonstrou-se que desde o estudo do próprio sistema processual penal adotado, seu desenvolvimento, até a base principiológica, há a necessidade de se quebrar o paradigma da irrestrita atividade punitivista, a qual fomenta uma legislação que se contradita quando da aplicação prática. O modelo acusatório irradia garantias no processo penal. A dignidade da pessoa humana, o devido processo penal, o contraditório, a ampla defesa, por exemplo, se interlaçam com outras – a publicidade, a oralidade, a legalidade do processo e a motivação da decisão judicial – as quais deveriam garantir um processo uniforme às partes e com finalidades claras, precisas, sob pena de desfalecer-se no sistema jurídico: “tais garantias são condições necessárias para que o debate transcorra com transparência e igualdade de oportunidades, ou seja, no ambiente que se espera da estrutura dialética do processo”383, defende Aury Lopes Júnior. E se o direito penal deve ser a ultima ratio, o processo penal se conduz na mesma linha, porém, exercendo o papel primordial de fazer valer as garantias processuais constitucionais do cidadão, sujeito passivo na persecução estatal penal. O processo penal, então, é um instrumento que, na ultima ratio do direito penal, possui como prima ratio a proteção dos direitos e garantias individuais. 382 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.390. 383 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.115. 120 Desta forma, segundo Aury Lopes Júnior, “a instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existência, mas com especial característica: é um instrumento de proteção dos direitos e garantias individuais”384. O processo penal, a partir do Estado Democrático de Direito, passa, então, a ser concebido como um instrumento para conter o poder punitivo e a pena385. O processo penal com garantias vem ao encontro do sistema processual penal democrático, refletindo em todas as fases, desde a investigação criminal à execução da pena. Por isso, questiona-se se o instituto da reincidência criminal vem sendo aplicado de forma compatível com toda a instrumentalidade do processo penal e alcançando a finalidade que a justifica dentro do sistema processual penal. Um instituto jurídico secular deve ser questionado e analisado sob a perspectiva humanista do processo, resposta que somente pode ser alcançada por meio do entendimento sobre a estrutura do sistema processual penal e do caminho a ser percorrido. Num momento de crise penal e processual penal, com dificuldades de estabelecer uma posição firme no combate à criminalidade sem ofensa, ou com a mínima restrição aos direitos e garantias fundamentais, há de se questionar um instituto jurídico que causa tanta perplexidade pela forma incisiva pela qual interfere na vida do processado. O peso que carrega um reincidente pode colocar em dúvida se não há necessidade de reajustes neste instituto. Se a regra da reincidência é prevista e aplicada há tanto tempo, como se verá no próximo capítulo, seria viável afirmar que sua finalidade deve ser clara e os resultados práticos já verificados com exatidão. O processo penal que observa as garantias constitucionais, portanto, tem o condão de levar à reflexão se determinados institutos jurídicos devem ser mantidos como estão frente a um modelo estatal democrático que implanta a 384 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.55. PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa. A ponderação de interesses em matéria de prova no processo penal. São Paulo: IBCCrim, 2006, p.126. 385 121 proteção ao cidadão, ou se merece reparos a fim de se manter como justificador de uma política criminal. Considerando os argumentos levantados nesse capítulo é que será abordada a reincidência criminal no Brasil e como ela vem sendo mantida para, então, passarmos a questioná-la e a sugerir alterações no ordenamento jurídico brasileiro nos próximos capítulos deste estudo. 122 4 A REINCIDÊNCIA CRIMINAL NO BRASIL E NO DIREITO ESTRANGEIRO O crime é um fenômeno social complexo que não se deixa vencer totalmente por armas 386 exclusivamente jurídico-penais . Considerando que o direito processual penal deve ser de garantias dentro do sistema jurídico e, ainda, que o seu desenvolvimento depende da análise de muitos institutos de forma minuciosa, há a necessidade do estudo da reincidência criminal, a qual representa ora um instrumento contra o crime ora o reflexo do fracasso no combate a esse. Neste sentido, serão aqui abordados seus aspectos históricos e legais, desde a sua inclusão no direito brasileiro, sua aplicação prática até a decisão que entendeu ser a reincidência constitucional por diversos argumentos. 4.1 Origem histórica: a impregnação cultural da reincidência na legislação brasileira A origem da reincidência no Brasil está arraigada a uma cultura extremamente punitivista. Apesar de ter sofrido algumas mudanças no decorrer da história da legislação brasileira, o seu caráter de censura incisiva esteve sempre presente. No direito pátrio, a reincidência surge desde o início do próprio direito penal no período colonial, com a passagem das Ordenações Afonsinas, vigentes em Portugal quando do descobrimento do Brasil, pelas Manuelinas até as Filipinas387. 386 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.05 . 387 As Ordenações Afonsinas, na verdade, não chegaram a ter aplicação por ausência de uma organização estatal adequada, isto é, até 1521, quando de sua revogação, não havia nenhum núcleo colonizador no Brasil. As Manoelinas, publicadas em 1521 foram aplicadas de forma escassa até a substituição pelas Filipinas, publicadas em 1603 e revalidadas por D. João VI em 1604. No Livro V se encontrava a codificação penal do Reino que foi aplicada durante o Brasil colonial com toda rigidez. (TOLEDO Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.56). Para Zaffaroni e Pierangeli, as Ordenações Afonsinas exaltam importância em razão do seu pioneirismo e da época em que surgiram, sendo ponto de partida para a evolução do direito português. Representaram um marco fundamental na história do direito português. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.174). 123 As Ordenações Filipinas, promulgadas em 1603, traziam no Livro V um direito penal seletivo, medieval e que não distinguia o direito da moral e da religião. Punia-se desde os hereges aos degredados e consideravam-se crimes vários “pecados”. A reincidência trazia consequências ainda mais severas ao criminoso, como a previsão no Título XXVIII – Dos barregueiros casados e de suas barregãs, em que estabelecia que o homem casado que tivesse barregã388 deveria ser degradado pela primeira vez por três anos para a África, com a quarentena de prisão de seus bens, tirando a parte que pertencia à esposa. Contudo, se reincidisse, a quarentena seria em dobro; e na terceira vez em triplo do dobro389. Em 1808, com a vinda da família real portuguesa ao Brasil, mesmo com o caminho traçado para a emancipação política, a legislação penal em nada foi modificada. Apenas com o retorno de D. João VI ao seu país, é que algumas pequenas mudanças foram introduzidas pelo príncipe D. Pedro, como o Decreto de 23.05.1821 sobre a prisão de criminosos. Com a proclamação da independência, em 1823, o então imperador D. Pedro I outorgou a Constituição em 23.03.1824, com ideias mais liberais, o que influenciaria na elaboração do Código Criminal de 1830: Muito embora o projeto não deixe de apresentar alguns pontos de conceituação kantiana quanto à pena, mesmo assim, ali já se sustentava que a pena deveria adequar-se à sensibilidade do ofendido, com o que se inspirava nas ideias de Jeremias Bentham, para quem a sexta regra da pena estava assim estabelecida: “A mesma pena não deve ser infligida para o mesmo delito a todos os delinquentes, sem exceção. É necessário considerarem-se as circunstâncias que influem sobre a sensibilidade”. Essa concepção foi acolhida pelo artigo 19: “Influirá também na agravação ou na 390 atenuação do crime a sensibilidade do ofendido” . 388 “Nas propriedades da Corte, o homem que possuísse uma “barregã”, quer dizer, uma concubina, seria degredado.” (PIERONI, Geraldo. A pena do degredo nas Ordenações do Reino. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/11658-11658-1-PB.htm>. Acesso em: 1º dez. 2015). 389 Conforme texto das Ordenações Filipinas: “Ordenamos, que o homem casado, que tiver barregã teúda e manteúda, seja degradado pola primeira vez per trez anos para África, e da prisão pague a quarentena da valia de todos seus bens, tirando a parte que a sua mulher pertencer. E pola segunda vez, que fôr comprebendido no dito pecado com a dita barregã, ou com outra, haverá a dita pena de degredo, e pagará a quarentena em dobro. E pela terceira vez será degradado pelo dito modo, e pagará quarentena em tresdobro. E se a quarentena de cada vez, que fôr compreendido, não chegar a trez mil reis, sempre queremos que seja condenado em trez mil reis.” (BRASIL. Ordenações Filipinas on-line. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1179.htm>. Acesso em: 1º dez.2015). 390 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.187. 124 Nesse primeiro Código já se inseriu a reincidência no artigo 16, §3º prevendo que uma das circunstâncias agravantes era: “3º Ter o delinquente reincidido em delicto da mesma natureza”391. E, ainda, no artigo 282 do Capítulo II da Parte Quarta intitulado Sociedades Secretas com a previsão de dobro da pena no caso de reincidência392. O Código inaugurou o instituto da reincidência no direito penal brasileiro, porém recebeu diversas críticas já que não definiu as modalidades de aplicação, nem o que seria ‘delitos da mesma natureza’. Como o Código Francês de 1810 já disciplinava a reincidência no artigo 56 de forma mais clara, as críticas foram pontuais393. Conforme Foucault394, o Código Penal de 1810 indicava ao reincidente o máximo da pena, ou a pena imediatamente superior. Com a proclamação da República colocando fim ao Império, vê-se a necessidade de adaptar as legislações vigentes da época de acordo com as exigências da burguesia urbana e da aristocracia. Desta forma, os novos detentores do poder partem para substituir o Código do Império. Cria-se, então, o Código Penal Republicano de 1890, encomendado pelo Ministro Campos Sales ao Conselheiro Baptista Pereira, que o entregou em prazo curtíssimo, pouco mais de três meses395. Esse instrumento não teve boa recepção e foi duramente criticado por se entender arcaico e defeituoso, o que gerou a elaboração de propostas de reformas pouco tempo após entrar em vigor. Essa insatisfação dá-se ao fato de o Código não corresponder à ideologia positivista e o momento vivenciado 391 Código Criminal do Império de 16 de dezembro de 1830. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em: 2 dez. 2015. 392 “Artigo 282. A reunião de mais de dez pessoas em uma casa em certos, e determinados dias, sómente se julgará criminosa, quando fôr para fim, de que se exija segredo dos associados, e quando neste ultimo caso não se communicar em fórma legal ao Juiz de Paz do districto, em que se fizer a reunião. Penas – de prisão por cinco a quinze dias ao chefe, dono, morador, ou administrador da casa; e pelo dobro, em caso de reincidencia.” (Código Criminal do Império de 16 de dezembro de 1830. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em: 2 dez. 2015). 393 CHIQUEZI, Adler. Reincidência criminal e sua atuação como circunstância agravante. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p.43. 394 FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p.96. Interessante observar que pela legislação de 1791, os reincidentes em quase todos os casos, eram passíveis de ter a pena dobrada e segundo a lei de Floreal ano X, deviam ser marcados com a letra R. 395 TOLEDO Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.60. 125 pelas influências da escola criminológica italiana que rechaçava o liberalismo presente do Código de 1890396. A reincidência estava prevista nesse Código que representava um instrumento de repressão e controle social. No artigo 39, §19, a reincidência era considerada uma circunstância agravante. No artigo 40, o legislador esclarece: “a reincidência verifica-se quando o criminoso, depois de passada em julgado sentença condemnatoria, commette outro crime da mesma natureza e como tal entende-se, para os effeitos da lei penal, o que consiste na violação do mesmo artigo”. Trazia, assim, a reincidência específica nos moldes transcritos, ou seja, quando houvesse o cometimento de outro crime inserido no mesmo artigo do anterior397. Na sequência histórica da legislação penal, foi aprovada a Consolidação das Leis Penais pelo Decreto nº22.213, de 14 de dezembro de 1932, que não constituía um novo Código, porém, para Basileu Garcia, “passou a ser o novo estatuto penal brasileiro: eram assim enfeixados em um só corpo o Código de 1890 e as disposições extravagantes”398, ou seja, representou uma transição para a grande reforma penal que se consolidaria no Estado Novo com o Código Penal de 1940399. A Consolidação referida conservou a redação do artigo 40 do Código Penal Republicano, e no seu artigo 178 trouxe a previsão de que há reincidência “sempre que o criminoso, depois de condenado por sentença irrecorrível cometer crime eleitoral, embora não infrija a mesma disposição de lei”, isto é, estabeleceu uma outra modalidade de reincidência, a genérica, quando da violação de artigo diverso quando se tratasse de crime eleitoral400. 396 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.190. “Deste modo, para adequar as práticas penais às transformações sociais do período republicano, através das reformas possíveis mesmo sem a substituição do Código de 1890, um grupo significativo de juristas irá abraçar os ensinamentos criminológicos, principalmente aqueles divulgados pela escola criminológica de Lombroso, Ferri e Garofalo.” (ALVAREZ, Marcos César; SALLA, Fernando; SOUZA, Luis Antonio F. A sociedade e a lei: o Código Penal de 1890 e as novas tendências penais na primeira república. Disponível em: <http://www.nevusp.org/downloads/down113.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2015) 397 Código Penal Republicano de 1890. Disponível em: <legis.senado.gov.br/legislação>. Acesso em: 2 dez. 2015. 398 GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. v.I. 5.ed. São Paulo: Max Limonad, 1980, p.126. 399 TOLEDO Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.62. 400 ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.39. 126 O Código Penal de 1940401, que recebeu influência determinante do Código italiano de 1930 – Código de Rocco e do suíço de 1937, pode ser definido como “um estatuto de caráter nitidamente repressivo, construído sobre a crença da necessidade e suficiência da pena privativa de liberdade (pena de prisão) para o controle do fenômeno crime”402. O projeto de Alcântara Machado foi entregue ao governo em abril de 1940 e o código foi sancionado na vigência da Carta Política de 1937, claramente autoritária. O Código de Processo Penal (Decreto-lei nº3.689, de 03 de outubro de 1941) foi elaborado na mesma época, e acompanhou as reformas posteriores. Por conta disso, já naquela época, a insuficiência de estabelecimentos penais necessários e adequados deu início à marginalização de uma massa socioeconômica menos favorecida, cuja sobrevivência estava na prática de novos delitos. Evidencia-se a semeação de problema carcerário vivenciado até os dias atuais, com nítidos índices de reincidência403. Desta forma, segundo Francisco de Assis Toledo, já era vivenciada a superpopulação e a falta de condições mínimas a um tratamento penal adequado, os quais “transformavam o período de execução da pena em um verdadeiro estágio para o incremento das tendências deliqüenciais”404. Nesse contexto, o instituto da reincidência, pela primeira vez dividido nas modalidades genérica e específica, está ancorado no ordenamento jurídico brasileiro como um instituto que, logo no início da história do direito penal, pouco apresentava os resultados práticos esperados. 401 “Seu texto corresponde a um “tecnicismo jurídico” autoritário que, com a combinação de penas retributivas e medidas de segurança indeterminadas (própria do Código Rocco), desemboca numa clara deterioração da segurança jurídica e converte-se num instrumento de neutralização de “indesejáveis”, pela simples deterioração provocada pela institucionalização demasiadamente prolongada. [...] O código de 1940 foi sancionado na vigência da Carta Política de 1937, esta claramente autoritária. Seu sistema de penas e medidas de segurança (que na prática constituem recursos formais para prolongar as penas indefinidamente) não era compatível com a Constituição de 1946.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.192-193). 402 TOLEDO Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.64. 403 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Acesso em: 9 ago.2016. 404 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.65. 127 A reincidência estava prevista em diversos artigos, já revogados: artigo 44, I, como circunstância que sempre agravava a pena; artigo 46 com a explicação de que a reincidência era verificada quando o agente cometia novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no estrangeiro, o tivesse condenado por crime anterior; §1º, I e II, do artigo 46, estava a definição de que a reincidência era genérica, quando os crimes fossem de natureza diversa; e específica, quando os crimes são da mesma natureza. Além disso, o §2º explicava o que era crime da mesma natureza 405 e o artigo 47 previa os efeitos da reincidência, aplicando pena mais rígida ao reincidente específico406. Segundo Débora de Souza Almeida407, não houve menção a um prazo prescricional para a reincidência, o que levou a um sistema de perpetuidade. Da mesma forma, presumia-se que o reincidente em crime doloso era perigoso, conforme artigo 78, IV, e por isso deveria ser segregado por meio de medida de segurança, conforme previsão do artigo 76, constituindo-se no sistema penal binário da época. Como previa que apenas crimes geravam a reincidência, no ano seguinte, com o Decreto-lei nº3.688 de 03.10.1941 (Lei de Contravenções Penais), no artigo 7º, previu que também haveria a reincidência “quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou, no Brasil, por motivo de contravenção”408. Já em 1963, Nelson Hungria apresentou um novo projeto de Código Penal, materializado pelo Decreto-lei nº1.004, de 21 de outubro de 1969, o qual 405 BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº2.848 de 07.12.1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 2 dez. 2015. Crimes da mesma natureza. §2º Consideram-se crimes da mesma natureza os previstos no mesmo dispositivo legal, bem como os que, embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos fatos que os constituem ou por seus motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns. Parágrafo único. Para efeito de reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos. (Redação dada pela Lei nº6.416, de 1977). 406 BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº2.848 de 07.12.1940 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 2 dez. 2015. Efeitos da reincidência especifica. Artigo 47. A reincidência específica importa: I – a aplicação da pena privativa de liberdade acima da metade da soma do mínimo com o máximo; II – a aplicação da pena mais grave em qualidade, dentre as cominadas alternativamente, sem prejuízo do disposto no nºI. Artigo 47. Para efeito de reincidência, não se consideram os crimes militares ou puramente políticos. (Redação dada pela Lei nº6.416, de 1977). 407 ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.40. 408 BRASIL. Lei de Contravenções Penais. Decreto-lei nº3.688, de 03.10.1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3688.htm> Acesso em: 2 dez. 2015. 128 jamais entrou em vigor, devido ao trâmite bastante conturbado e alvo de inúmeras críticas pela manutenção do conteúdo repressivo do Código de 1940. O texto que deveria entrar em vigor em 01.08.1970 foi revisado e reformado pela Lei nº6.016/73, teve a vigência prolongada e, pela Lei nº6.578/75 foi derrogado. Foram quase dez anos de possível vigência409. No entanto, o Código Penal de 1969 trazia importantes reformas e complementações no instituto da reincidência. No artigo 57 conceituou reincidência eliminando a diferença entre genérica e específica; no §1º acabou com o sistema da perpetuidade ao prever o período de cinco anos da data do cumprimento ou extinção da pena e do crime posterior 410; e no §2º passou a não considerar para efeito de reincidência os crimes puramente militares ou políticos. Já no artigo 64 e §§ distinguiu o criminoso habitual do criminoso por tendência, regulamentando uma forma de punição mais gravosa. Considerou o criminoso habitual aquele que, reincidente pela segunda vez na prática de crime doloso da mesma natureza, punível com pena privativa de liberdade em período de tempo não superior a cinco anos, descontado o que se refere a cumprimento de pena (alínea ‘a’) – com a presença aqui da reincidência específica –, e aquele que embora não tivesse condenação anterior, cometesse sucessivamente, em período de tempo não superior a cinco anos, quatro ou mais crimes da mesma natureza, puníveis com pena privativa de liberdade, quando demonstrada, pelas suas condições de vida e pelas circunstâncias dos fatos apreciados em conjunto, acentuada inclinação para tais 411 crimes (alínea ‘b’) . O Código Penal de 1969 foi considerado natimorto e no percurso de sua vacatio legis surgiu a Lei nº6.416/77 que incorporou várias alterações no Código Penal de 1940. Consoante Francisco de Assis Toledo, as modificações, ainda que bem vistas no meio jurídico, não passavam de uma providência 409 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.193. 410 “§1º Não se toma em conta, para o efeito de reincidência, a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e o crime posterior decorreu período de tempo superior a cinco anos.” (BRASIL. Código Penal de 1969. Decreto-lei nº1.004, de 21 de outubro de 1969. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-1004-21-outubro-1969-351762publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 2 dez. 2015). 411 BRASIL. Código Penal de 1969. Decreto-lei nº1.004, de 21 de outubro de 1969. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-1004-21-outubro-1969-351762publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 2 dez. 2015. 129 urgente e de transição na busca por eficiência na execução penal em curto prazo412. Desta feita, sob a influência do Código Penal de 1969, inseriu a prescrição da reincidência, passou a desconsiderar para efeitos de reincidência os crimes militares ou puramente políticos; extinguiu a distinção entre reincidência específica e genérica, revogando assim os §§1º e 2º do artigo 46 do Código Penal de 1940. Passou também a exigir tempo maior de cumprimento de pena pelo reincidente para o livramento condicional e proibiu a este a suspensão condicional da pena413. Finalmente, a Lei nº7.209/84 reformulou a Parte Geral do Código de 1940, “humanizou as sanções penais e adotou penas alternativas à prisão” 414, modificando o instituto da reincidência. No mesmo ano foi promulgada a Lei nº7.210/84 (Execução Penal), a qual fazia parte dos projetos e discussões dos vários Congressos em torno da reforma penal. Essas alterações refletiam a política criminal pensada na época. Conforme Francisco de Assis Toledo, integrante das Comissões Revisoras dos anteprojetos do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal, quando a sociedade se transforma também mudam as regras de comportamento. Era um momento em que havia sido superada a ideia de pena-compensação do mal pelo mal, eis que a pena justa era aquela necessária415. No que se refere à reincidência, a reforma trouxe algumas novidades: para cessar os efeitos da reincidência o período de prova do sursis ou do livramento condicional entrou na contagem (artigo 64, I); foi adotado o sistema vicariante, excluindo a medida de segurança ao reincidente, ou seja, imputável, rechaçando a periculosidade presumida do reincidente em crime 412 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.66. 413 ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.43. 414 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.47. 415 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.70. “Assim dentro de um rol de penas previstas, se uma certa pena apresentar-se como apta aos fins de prevenção e da preparação do infrator para o retorno ao convívio pacífico na comunidade de homens livres, não estará justificada a aplicação de outra pena mais grave, que resulte em maiores ônus para o condenado”. 130 doloso416; vedou-se a suspensão condicional da pena apenas aos reincidentes em crimes dolosos. Esse foi, sucintamente, o desenvolvimento histórico da legislação penal sobre a reincidência hoje aplicada no Brasil. Surgiram também algumas legislações específicas regulamentando a reincidência, conforme será abordado mais adiante. De todo o percurso traçado, conclui-se que o instituto da reincidência se impregnou no ordenamento jurídico pátrio, nunca estando ausente das legislações penais. Apesar de muito se discutir sobre a falácia do sistema penitenciário, como aplicador da pena retribuição e não a necessária, pouco se abordava sobre os reflexos práticos da reincidência, seja em âmbito penal ou processual penal. Agravava-se o fato de, por muito tempo, ter-se aplicado medida de segurança ao reincidente, presumindo sua periculosidade e não aferindo sua culpabilidade. Desta forma, os condenados que recebiam medida de segurança já estavam condenados há mais de 30 anos de prisão, prazo mais que suficiente para a prevenção e assistência. Outrossim, a maioria dos casos de aplicação de medida de segurança era nos crimes de roubo, em que o condenado dificilmente parava no primeiro crime, fato que ainda hoje perdura. Assim, a concepção de reincidência construída no decorrer histórico não se desvincula da legislação atual, a qual conserva implicitamente um caráter meramente repreensor e inquisitorial que influencia num juízo de valor subjetivo sem apresentar requisitos precisos para sua aplicação. 4.2 Conceito, natureza jurídica e espécies da reincidência A palavra reincidência é composta do prefixo “re”, que significa “de novo”, mais a palavra incidência (acontecimento). Significa, pois, ato ou acontecimento de praticar outra vez novo ato. 416 “[...] a reforma penal brasileira, longe de retornar a fórmulas clássicas, dá um passo adiante, com solução coerente para o sério problema do agente imputável que já se tenha revelado um delinquente habitual ou por tendência, sem necessidade de recorrer-se à pena totalmente indeterminada ou à fórmula do duplo binário que, como se viu, não foi bem assimilada pela experiência brasileira.” (TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.77). 131 É oriunda do termo recidere, que significa ato ou efeito de reincidir, obstinação, pertinácia ou teimosia segundo o dicionário da língua portuguesa417. De acordo com Maria Helena Diniz418, a reincidência no direito penal é definida da seguinte forma: “Recidiva: prática de novo crime por aquele que já foi anteriormente condenado, revelando sua periculosidade e determinando a agravante.” Na mesma linha, para Suzane Cristina da Silva 419, “reincidência é uma espécie do gênero antecedentes criminais.” De forma bastante direta, Damásio420 a conceitua como “em termos comuns, repetir a prática do crime.” Já Rogério Greco421 afirma: “a reincidência é a prova do fracasso do Estado na sua tarefa ressocializadora”. Importante expor que, conforme Eugenio Raúl Zaffaroni422, é muito difícil proporcionar um conceito satisfatório de reincidência em âmbito internacional, por várias razões, tais como a centralização em torno da discussão sobre a diferença entre reincidência genérica e específica, ficta ou real, bem como a sistematização em alguns países de institutos próximos (multirreincidência, habitualidade profissional e por tendência). No Código Penal423 vigente é conceituada no artigo 63: “verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.” Para Salo de Carvalho424, o Código Penal não define reincidência, mas indica as condições pelas quais ela pode ser verificada. Como natureza jurídica, pode ser definida como uma causa de agravante de pena, ou seja, um dado que embora não faça parte da estrutura 417 ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.62. 418 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.135. 419 SILVA, Suzane Cristina. Reincidência e maus antecedentes: crítica a partir da teoria do labelling approach. Revista Liberdades nº16, maio-ago., Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2014, p.59. 420 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal – parte geral. v.1. 28.ed. Saraiva: São Paulo, 2007, p.348. 421 GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 17.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015, p.644. 422 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Reincidencia. Revista de Ciencias Penales: Montevideo, v.2, 1996, p.119. 423 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal – parte geral. v.1. 28.ed. Saraiva: São Paulo, 2007, p.348. 424 CARVALHO, Salo de. Reincidência e antecedentes criminais: abordagem crítica desde o marco garantista (Comentário de Jurisprudência). Revista de Estudo Criminais n.1, 2001, p.112. 132 do crime é apontado como importante para aferir a maior culpabilidade do agente425. Para Fernando Capez426, “natureza jurídica: trata-se de circunstância agravante genérica de caráter subjetivo ou pessoal.” Sendo circunstância subjetiva, não se comunica ao partícipe ou coautor. Quanto às espécies de reincidência, a doutrina as distingue da seguinte maneira: a) reincidência genérica, absoluta, geral ou heterogênea: quando há o cometimento de um delito, depois de ter sido o agente condenado e submetido à pena por outro delito. Em outras palavras: “[...] ocorre quando os crimes praticados pelo agente são previstos em dispositivos legais diversos, configurando natureza distinta.” Essa é a posição adotada pelo Brasil427. b) reincidência específica, especial ou homogênea: quando exige a prática de um novo delito igual, ou da mesma categoria, daquele pelo qual sofreu anterior condenação. É o “ato de o agente perpetrar novamente crime da mesma natureza daquele pelo qual foi, anteriormente, condenado por sentença transitada em julgado. Era designada também de reincidência especial”428. A dificuldade enfrentada pela doutrina estava exatamente em definir o que significava essa especificidade, ‘crimes de igual natureza’, isto é, se eram aqueles previstos no mesmo dispositivo legal ou que apresentavam caracteres fundamentais comuns. Com a Reforma da Parte Geral de 1984, o conceito de reincidência específica havia sido abandonado. Antes da reforma, o artigo 47 do Código Penal determinava a aplicação da pena acima da metade da soma do mínimo com o máximo e, dentre as cominadas alternativamente, e a mais severa em 425 QUEIROZ, Paulo. Curso de direito penal – parte geral. v.1. 8.ed. Salvador:Jus Podivm, 2012, p.453. “As circunstâncias agravantes são dados ou fatos acidentais, objetivos ou subjetivos, que, embora não façam parte da estrutura do crime, são importantes para a verificação da maior culpabilidade do agente; e diferentemente das atenuantes, o rol das agravantes é taxativo, motivo pelo qual o juiz não pode admitir outras que não constem da lei, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade da pena. Além disso, e à exceção da reincidência, todas são aplicáveis exclusivamente aos crimes dolosos, pois o que se castiga em última análise é atuação qualificada do agente em virtude das variáveis do caso concreto.” 426 CAPEZ, Fernando. Direito penal – parte geral. v.1. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.478. 427 ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.70. 428 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.135. 133 caso de penas cominadas alternativamente. Desta feita, os delitos da mesma natureza eram aqueles previstos no mesmo tipo penal ou, ainda, em dispositivos diversos, contudo, com elementos comuns. Pelo fato de o termo específico ter conotação bastante ampla, gerou diversos significados429. No entanto, a reincidência específica foi novamente introduzida no ordenamento jurídico por outras legislações: I) Lei nº8.072/90 (Crimes Hediondos430) é considerado reincidente específico aquele que pratica, nos termos já explicados, outro crime previsto na lei referida; II) Lei nº11.705/2008431 que alterou a redação do artigo 296 da Lei nº9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro); III) Lei nº9.714/98 que alterou o artigo 44 do Código Penal passando a prever a reincidência específica ao proibir a substituição da pena privativa de liberdade por uma alternativa em caso de cometimento de mesmo crime432. Entretanto, nesse caso, reincidente específico será o reincidente em crime previsto no mesmo tipo incriminador (furto e furto, lesão corporal culposa e lesão corporal culposa, etc); IV) Lei nº9.605/98433 (Lei dos Crimes Ambientais); V) Lei nº11.346/2006434 (Lei de Drogas). 429 Interessante observar o seguinte questionamento: qual a mais grave – a genérica ou a específica? Os que defendiam a primeira entendiam que ela demonstrava a propensão para o crime em geral, ou seja, o sujeito com aptidão variada para delinquir. Outros entendiam que era a específica, pois os impulsos mais poderosos e a tendência criminosa estariam arraigados para um crime, seria uma vocação temperamental para a atividade criminosa. (NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. v.1.2.ed. São Paulo: Saraiva, 1963, p.327). 430 BRASIL. Lei nº8.072 de 25.07.1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8072.htm>. Acesso em: 11 dez 2015. Acrescentou o inciso V no artigo 83 do Código Penal com a seguinte redação: “V – cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza.” 431 BRASIL. Lei nº11.705 de 19.06.2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2008/lei/l11705.htm>. Acesso em: 11 dez. 2015. Alterou a redação do artigo 296 do CTB “Artigo 296. Se o réu for reincidente na prática de crime previsto neste Código, o juiz aplicará a penalidade de suspensão da permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor, sem prejuízo das demais sanções penais cabíveis.” 432 BRASIL. Lei nº9.714 de 25.11.1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9714.htm>. Acesso em: 11 dez. 2015. Alterou o Código Penal o - “Artigo 44. [...] §3 Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.” 433 BRASIL. Lei nº9.605 de 12.02.1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9605.htm>. Acesso em: 11 dez. 2015. “Artigo15. São circunstâncias que agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: I – reincidência nos crimes de natureza ambiental;” 434 BRASIL. Lei nº11.346 de 23.08.2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 11 dez. 2015. “Artigo 44. Os crimes previstos nos arts.33, caput e o §1 , e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos. Parágrafo único. Nos crimes 134 c) Reincidência ficta ou imprópria: quando há a prática de um delito depois de ter sido condenado por outro. É, pois, a “perpetração de outro crime, pelo agente, após o trânsito em julgado da sentença que o condenou por prática de delito anterior”435. Nesse caso, “a denúncia, o processo, o julgamento e a condenação não deixam também de ser advertência ao criminoso, que revela pertinácia e menosprezo pela Justiça”436. É essa espécie a vigente no sistema jurídico-penal brasileiro, também considerada a mais rigorosa, pois basta a simples decisão condenatória definitiva, não se exigindo o cumprimento da pena437. d) reincidência real, própria ou verdadeira: consiste no cometimento de um delito depois de ter sido condenado e “sofrido pena”, por um delito anterior. Ocorre “[...] quando o réu delinque, após haver cumprido, no todo ou em parte, pena por crime anterior”438. e) reincidência facultativa e obrigatória: a primeira é aplicada de acordo com o livre convencimento motivado do órgão julgador, e a segunda sempre que os requisitos legais estiverem preenchidos439. f) reincidência nacional: quando é cometido o novo delito após a sentença penal condenatória transitada em julgado advinda de delito cometido no território nacional brasileiro. g) reincidência internacional: quando há sentença condenatória transitada em julgado internacional e o sujeito comete crime posterior a essa. previstos no caput deste artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico.” 435 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.135. 436 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. v.1.2.ed. São Paulo: Saraiva, 1963, p.326. “A opinião mais generalizada contenta-se com a reincidência ficta, como fazem nosso estatuto e o italiano (artigo 99). Optou pelo outro critério o Código Penal suíço (artigo 67).” 437 ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.69. 438 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. v.1.2.ed. São Paulo: Saraiva, 1963, p.326. “Não há dúvida de que, no primeiro caso, mais alarmante, em regra, é a personalidade do agente demonstrado de modo mais expressivo a inanidade da terapêutica penal.” 439 ASSIS, Cássio Chechi de. A solvabilidade constitucional do regime da reincidência criminal. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Out. 2014, p.44. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt>. Acesso em: 08 fev. 2016, p.26. 135 Interessante observar que nem toda sentença estrangeira deve gerar a reincidência, pois analisa-se se a conduta também é típica no Brasil, se houve o devido processo legal e se o país da condenação admite a reincidência440. Cumpre registar que quando da prática de contravenção penal: Reincidência na contravenção penal – direito penal. Ato de o agente praticar uma nova contravenção penal após o trânsito em julgado da sentença que o condenou no Brasil ou no exterior por um crime, ou, 441 no Brasil, por contravenção (Marcus Cláudio Acquaviva) . A reincidência está conceituada no Código Penal e funciona como uma agravante, com aplicação na segunda fase da dosimetria da pena. As espécies de reincidência facilitam a compreensão quando da aplicação prática desse instituto e a percepção de que há muito o desapontamento da função da pena é refletido com a crescente reincidência. Visto que o sistema penitenciário não condizia com sua finalidade, a reincidência foi se alterando a fim de amenizar esse problema. A exclusão da reincidência específica pela Lei nº6.416/77 demonstrou que o descontentamento e as dificuldades na execução penal já haviam se incorporado no Brasil. Com o objetivo de resolver, a curto prazo, os problemas no campo da execução, acreditou-se que a reforma amenizaria o problema da superlotação dos estabelecimentos prisionais. Contudo, sem o alcance de uma solução definitiva no decorrer de vários anos, é novamente reintroduzida no rigorismo penal. Eis a importância de se analisar o instituto da reincidência no ordenamento jurídico brasileiro. Ele reflete um problema que vem se agravando a cada dia, sem uma resposta precisa nem solução. Além de diversos desencontros legislativos falta demonstrar seus fundamentos e se realmente há uma finalidade a ser cumprida. 440 “Não seria possível condenar como reincidente no Brasil uma pessoa condenada na Colômbia, porque a legislação deste país não admite a reincidência. Não seria possível condenar como reincidente uma pessoa anteriormente condenada em multa penal na Argentina, porque a legislação deste país exclui expressamente os delitos apenados com multa.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.720). 441 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.135. 136 4.3 Aspectos gerais da reincidência A reincidência é um instituto que possui diversas peculiaridades, as quais são de suma importância ser tratadas para a compreensão como um todo no direito penal e processual penal. A seguir, serão abordados alguns aspectos da reincidência no que tange a sua aplicabilidade prática. 4.3.1 Documento comprobatório da reincidência Para aplicação dos efeitos da reincidência no processo criminal, deve haver um documento comprobatório indubitável, já que “a corrente tradicional exige certidão para a prova da reincidência”442. Entretanto, observase na jurisprudência uma forte divergência sobre qual seria esse documento, se certidão cartorária do trânsito em julgado da condenação anterior, folha de antecedentes criminais ou outro documento hábil a atestar a reincidência e até mesmo a mera confissão do réu. Conforme esclarece André Estefam443, a reincidência deve estar comprovada por documento idôneo “e este somente pode ser a certidão de objeto e pé expedida pelo ofício criminal junto ao órgão judicial em que o agente sofreu a condenação.” E destacar: “o Superior Tribunal de Justiça admitiu como prova a certidão emitida pelo Instituto Nacional de Identificação (INI), órgão da Polícia Federal, por considerá-la completa e fidedigna” (Resp. 275.971)444. Esse documento importa na segurança em averiguar a reincidência de forma convicta, pois constará a data da sentença condenatória, a data do trânsito em julgado da decisão, e eventual extinção ou cumprimento da pena. Não se trata de medida extrema, já que é acessível e cabe ao Estado se portar dos meios transparentes para aplicar a pena. Entretanto, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem demonstrado um posicionamento diverso sobre qual deve ser o documento 442 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Direito penal. 11.ed. São Paulo: RT, 2011, p.180. ESTEFAM, André. Direito penal. v.1. São Paulo: Saraiva, 2010, p.371. 444 ESTEFAM, André. Direito penal. v.1. São Paulo: Saraiva, 2010, p.371. 443 137 comprobatório da reincidência, não havendo uma resposta unânime. O Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC nº107.274, de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, entendeu que basta a folha de antecedentes para demonstrar a reincidência445 e no mesmo sentido o Superior Tribunal de Justiça também se pronunciou, conforme se verifica no julgamento do HC 212.789 SP 2011/0159540-6, de relatoria do Min. Nefi Cordeiro, julgado em 07.10.2014446. 445 HABEAS CORPUS 107.274 MATO GROSSO DO SUL RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI PACTE.(S): MARCOS WILKER DE SANTANA IMPTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO PROC.(A/S)(ES): DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS. PENA. DOSIMETRIA. PENA-BASE. FIXAÇÃO NO MÍNIMO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. MAUS ANTECEDENTES. NATUREZA ALTAMENTE NOCIVA DA DROGA APREENDIDA. REINCIDÊNCIA/MAUS ANTECEDENTES. COMPROVAÇÃO. CERTIDÃO. IDONEIDADE. BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO PREVISTA NO §4º DO ARTIGO 33 DA LEI 11.343/2006. APLICAÇÃO. INVIABILIDADE. ORDEM DENEGADA. [...]. II – Não procede a alegação de que a inexistência de certidão cartorária atestando o trânsito em julgado de eventual condenação inviabilizaria o reconhecimento de maus antecedentes/reincidência e que a folha de antecedentes criminais não serviria para esse fim. Esta Corte já firmou entendimento no sentido da idoneidade do referido documento, que possui fé pública. Precedentes. III – Infração cometida em transporte público. Incidência da causa de aumento prevista no artigo 40, III, da Lei 11.343/2006. IV – Não caracteriza bis in idem a consideração da reincidência para fins de majoração da pena-base e como fundamento para a negativa de concessão da benesse prevista no artigo 33, §4º, da Lei Antidrogas. V– Para a concessão do benefício previsto no §4º do artigo 33 da Lei nº11.343/2006, é necessário que o réu seja primário, ostente bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. VI – Réu que apresenta maus antecedentes, condição que impede a aplicação da referida causa de diminuição. VII – Ordem denegada. (Supremo Tribunal Federal, DJe 25/04/2011) Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18800729/habeas-corpus-hc-107274-ms/inteiro-teor104135278>, Acesso em: 08 dez de 2015. 446 PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS. SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL, ORDINÁRIO OU DE REVISÃO CRIMINAL. NÃO CABIMENTO. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA. REVISÃO DO CRITÉRIO DE DANOSIDADE. VIA INADEQUADA. REINCIDÊNCIA. CERTIDÃO CARTORÁRIA. NÃO OBRIGATORIEDADE. MINORANTE DO TRÁFICO PRIVILEGIADO. MAUS ANTECEDENTES. NÃO APLICAÇÃO. TRÁFICO TRANSNACIONAL. TRANSPOSIÇÃO DE FRONTEIRAS. DESNECESSIDADE. 1 [...]. 3. O registro de condenação transitada em julgado em folha de antecedentes criminais é suficiente para a caracterização da reincidência, não sendo obrigatória a apresentação de certidão cartorária. [...]. (Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/153371902/habeas-corpus-hc-212789-sp-20110159540-6. Acesso em: 08 dez. 2015). 138 Diversos são os julgados no sentido de haver cautela na averiguação da reincidência, exigindo-se certidão de trânsito em julgado,447 448 não a substituindo pelo mero extrato processual adquirido via consulta processual eletrônica449, tampouco a confissão do réu 450. 447 PENAL. ROUBO SIMPLES. CONDENAÇÃO MANTIDA. CONJUNTO PROBATÓRIO SUFICIENTE. CONFISSÃO DO RÉU. HARMONIA COM DECLARAÇÕES DA VÍTIMA E DO POLICIAL. DOSIMETRIA DA PENA. REINCIDÊNCIA. CERTIDÕES QUE NÃO NOTICIAM CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO. EXCLUSÃO. 1. Deve ser mantida a condenação no que tange ao delito de roubo quando a confissão do réu resta corroborada pelo depoimento da vítima e de policiais. 2. Exclui-se a agravante da reincidência se as certidões existentes nos autos não noticiam condenação transitada em julgado. Recurso conhecido e parcialmente provido. (BRASIL. TF-DF, Processo: APR 20140110424005, Relator (a): CESAR LABOISSIERE LOYOLA, j.13-08-2015, 2ª Turma Criminal, Publicação: Publicado no DJE: 21/08/2015, p.118). Disponível em: <http://tjdf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/222821294/apelacao-criminal-apr-20140110424005>. Acesso em: 08 dez de 2015. PENAL. APELAÇÃO. ARTIGO 129, §9º, DO CÓDIGO PENAL C/C O ARTIGO 5º, INCISO III, DA LEI 11.340/2006. ABSOLVIÇÃO – INSUFICIÊNCIA DE PROVAS – IMPROCEDÊNCIA. DOSIMETRIA. REINCIDÊNCIA – CERTIDÃO INIDÔNEA – CONDENAÇÃO POR FATO POSTERIOR E SEM TRÂNSITO EM JULGADO – AFASTAMENTO. SURSIS DA PENA – APLICAÇÃO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Descabe a absolvição do acusado quando as declarações da vítima e da testemunha ocular são firmes e coesas quanto aos fatos narrados na inicial, corroboradas por outros elementos do conjunto probatório dos autos, máxime pelo laudo de lesões corporais. Decota-se a agravante da reincidência que foi reconhecida com espeque em certidão inidônea, a qual anota condenação por fato posterior ao ora em análise e sem comprovação de trânsito em julgado. Preenchidos os requisitos necessários, devese deferir o benefício da suspensão condicional da pena previsto no artigo 77 do Código Penal. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Processo, APR 20110510120678 DF 002856088.2011.8.07.0003, Relator: ROMÃO C. OLIVEIRA, j.26.02.2015, 1ª Turma Criminal, Publicado em: 04.03.2015. Disponível em: <http://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia>. Acesso em: 8 dez.2015). 448 APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE FURTO QUALIFICADO. ARTIGO155, §4º, INCISOS IV (CONCURSO DE AGENTES) DO CÓDIGO PENAL. INVOCAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO CAUSA DE EXCLUSÃO DA TIPICIDADE. AVENTADA MÍNIMA LESÃO AO BEM JURÍDICO PATRIMONIAL. RAZÕES NÃO ACOLHIDAS. ACENTUADO DESVALOR DA CONDUTA EM RAZÃO DA AUTORIA COLETIVA. CRIME NA FORMA QUALIFICADA. DE OFÍCIO. CONDUTA SOCIAL ANALISADA DE FORMA EQUIVOCADA. SÚMULA 444 DO STJ. INEXISTÊNCIA DA AGRAVANTE REINCIDÊNCIA. CERTIDÃO QUE NÃO COMPROVA O TRÂNSITO EM JULGADO. [...]. "A reincidência, apesar de tratar-se de critério subjetivo, remete a critério objetivo e deve ser excepcionada da regra para análise do princípio da insignificância, já que não está sujeita a interpretações doutrinárias e jurisprudências ou a análises discricionárias. O criminoso reincidente apresenta comportamento reprovável, e sua conduta deve ser considerada materialmente típica." (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 1ª Turma. HC 97772/RS. Rel (a). Cármen Lúcia. DJE. nº218. Publ. 19.11.2009). Apelação Crime nº830477-6 A existência de inquéritos e processos em andamento, sem prova do trânsito em julgado, não se presta para aquilatar a conduta social, bem como a personalidade do agente, ou mesmo, para elevar a pena-base, sob pena de violação ao princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade, conforme orientação da Súmula nº444, do Superior Tribunal de Justiça. É necessária a certidão comprobatória do trânsito em julgado de decisão condenatória anterior à prática do delito em apuração para a configuração da agravante da reincidência. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. 8304776 PR 830477-6 (Acórdão) (TJ-PR), Rel. Jefferson Alberto Johnsson, j.12-042012, 3ª Câmara Criminal), Disponível em: <http://tj-pr.jusbrasil.com.br>. Acesso em: 10 dez. 2015. 449 APELAÇÃO PENAL ROUBO PENA-BASE EXASPERAÇÃO DESPROPORCIONAL REDUÇÃO CAVÍBEL – REINCIDÊNCIA AUSÊNCIA DE CERTIDÃO AFASTAMENTO REGIME PRISIONAL ABRANDAMENTO POSSÍVEL PARCIAL PROVIMENTO. A existência de circunstâncias judiciais desfavoráveis inviabiliza a imposição da pena no mínimo legal, porém não autoriza a exasperação de maneira desproporcional, mais ainda quando afastadas vários dos elementos antes negativados. Malgrado os meios eletrônicos sejam aptos a complementar dados de certidão judicial falha, a substituição da mesma por extrato processual não é suficiente à comprovação da reincidência, mormente quando inexiste data de trânsito em julgado. A imposição do regime inicial de cumprimento da pena deve observar as regras do artigo 33, §2º, b, do Código Penal, estabelecendo-se o semiaberto quando a pena estiver entre 04 (quatro) e 08 (oito) anos, o acusado não for reincidente, bem como militando em seu desfavor poucas circunstâncias judiciais. Apelação defensiva a que dá parcial provimento para o fim de diminuir a pena e fixar regime inicial semiaberto. (BRASIL. Tribunal de Justiça 139 Quanto à reincidência estrangeira, não se exige nenhum requisito especial nem sua homologação, apenas a prova de que houve o trânsito em julgado, além das observações sobre a legislação do país condenatório, já expostas nesta pesquisa. 4.3.2 Regras da aplicabilidade da reincidência Para ser aplicada a reincidência deve haver uma sentença condenatória, nacional ou estrangeira, transitada em julgada antes do cometimento do novo crime. Alguns critérios podem ser extraídos dessa regra. Inicialmente, como o artigo 63 do Código Penal se refere à crime, a condenação anterior por contravenção penal afasta a reincidência, mas pode gerar maus antecedentes. “De conformidade com a lei contravencional, uma anterior condenação por delito dá lugar à reincidência contravencional (artigo 7º da Lei de Contravenções Penais), mas o inverso não”.451 Nessa linha, não se pode considerar reincidente aquele que foi condenado definitivamente por contravenção no exterior, por omissão de previsão para tanto. Em relação à condenação por crime no exterior, a decisão não precisa ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça para gerar a reincidência, isto por que o artigo 9º do Código Penal não inclui essa hipótese no rol dos incisos. O delito anterior pode tanto ser culposo quanto doloso, punido ou não com pena privativa de liberdade. Também não configura reincidência do Mato Grosso do Sul, PL 00562953020128120001 MS 0056295-30.2012.8.12.0001, Rel. Des. Carlos Eduardo Contar, j.07-10-2013, 2ª Câmara Criminal, Publicação: 07.04.2014.) Disponível em: <http://tjms.jusbrasil.com.br/jurisprudencia>. Acesso em: 10 dez.2015. 450 “A prova de reincidência se faz com certidão cartorária de que conste a data do trânsito em julgado da condenação anterior, não bastando a tal desiderato a confissão do réu”. (TACRIM-SP-AC-Rel. Cunha Camargo – JUTACRIM 43/379); “A simples declaração do acusado de estar sendo processado não basta, é evidente, para o reconhecimento da reincidência, que exige prova inequívoca de haver a decisão anterior transitado em julgado” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso – Rev. – Rel. João Luiz Fonseca – RT 381/292). FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui; SILVA JÚNIOR, José; NINNO, Wilson; FELTRINI, Oscar; BETANHO, Luiz Carlos; GUASTINI, Vivente Celso da Rocha. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. v.1. t.1: parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 1997, p.1030; 1031). 451 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.719. 140 quando a punibilidade do delito anterior for extinta por anistia, abolitio criminis, ou morte do agente. Não induz reincidência a sentença declaratória extintiva da punibilidade de perdão judicial, conforme previsão do artigo 120 do Código Penal452 e Súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça453. Não se computam para efeitos de reincidência, conforme previsão do artigo 64, II, os delitos militares próprios, ou seja, “aqueles que só um militar pode cometer, por sua própria condição”454 e os crimes políticos, não havendo menção se todos ou apenas os próprios, por isso, entende-se que todos os delitos políticos não geram os efeitos da reincidência455. Conforme questiona Damásio, “qual a razão de não serem considerados para efeito de reincidência os crimes militares próprios e os políticos próprios e impróprios?”: Ocorre que não têm a mesma natureza dos crimes comuns. No CP Militar são descritos como crimes fatos que, sob o ângulo do Direito Penal comum, constituem simples infrações administrativas ou disciplinares. Assim, “dormir em serviço” é crime militar próprio (CP Militar, artigo 203). Sob o aspecto do Direito Penal comum, o fato não passa de “sonolência administrativa”. Quanto aos delitos políticos, explicava Aníbal Bruno, há uma tendência no sentido de tratá-los com liberalidade, reconhecendo que têm “sentido diverso dos demais crimes” e demonstram “ausência daquele caráter individual e anti456 social dos motivos” . Os institutos despenalizadores da Lei nº9.099/95, quais sejam, a transação penal, a suspensão condicional do processo e a transação penal não geram a reincidência, “pois visam evitar a abertura de um processo ou a sua continuidade”457. 452 Artigo 120. A sentença que conceder perdão judicial não será considerada para efeitos de reincidência. (Redação dada pela Lei nº7.209, de 11.7.1984). 453 BRASIL. Súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça. “A sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório.” Disponível em: <http://www.stj.jus.br/docs_internet/VerbetesSTJ_asc.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2015. 454 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.721. 455 “Pelo fato de a lei penal não fazer distinção entre os crimes políticos próprios ou impróprios, as duas hipóteses encontram-se previstas no artigo 64, II do Código Penal. (GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 10.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p.571). 456 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal – parte geral. v.1. 28.ed. Saraiva: São Paulo, 2007, p.575. 457 ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.76. 141 No que tange à pena pecuniária, apesar de a lei não distinguir a pena para caracterizar a reincidência, entende-se que a pena de multa não a enseja, pois essa sequer é impeditiva de sursis. “Para ser considerado reincidente o delinquente deve preencher os critérios técnico-jurídicos do instituto”458, afirma Débora de Souza de Almeida. Há reincidência quando o novo delito é cometido por reabilitado, isto porque a reabilitação não extingue a condenação anterior, conforme o artigo 95 do Código Penal. Em relação ao princípio da insignificância, discute-se se seria possível aplicá-lo aos reincidentes. O princípio da insignificância exclui a tipicidade material do delito, segunda vertente da tipicidade conglobante459, com a finalidade de afastar da tutela do direito penal, de ultima ratio, bens jurídicos inexpressivos, não havendo ofensa relevante para se valer da sanção penal. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos HC nº123.7324, nº123.108 e nº123.533, a fim de uniformizar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, firmou o entendimento de que a aplicação ou não do princípio da insignificância deve ser analisada caso a caso pelo juiz de primeira instância460, considerando os seguintes critérios: o reconhecimento da mínima ofensividade, a inexistência de periculosidade social, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade e a inexpressividade da lesão jurídica provocada 461. Ainda que o réu seja reincidente, é possível aplicar o princípio da insignificância, já que do contrário haveria o aumento no encarceramento de condenados por crimes de menor potencial ofensivo. A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no HC 101.998 (Rel. Min. Toffoli, j.23-11-2010), entendeu que não incidia o princípio da insignificância ao 458 ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.78. 459 “Para que se possa concluir pela tipicidade conglobante, é preciso verificar dois aspectos fundamentais: a) se a conduta do agente é antinormativa; b) se o fato é materialmente típico.” (GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 17.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015, p.113). 460 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Aplicação do princípio da insignificância deve ser analisada caso a caso. 03 ago.2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/>. Acesso em: 16 nov.2015. Destaca-se ainda: “O Judiciário não pode, com sua inação, abrir espaço para quem o socorra. É justamente em situações como esta que se deve privilegiar o papel do juiz da causa, a quem cabe avaliar em cada caso concreto a aplicação, em dosagem adequada, seja do princípio da insignificância, seja o princípio constitucional da individualização da pena”. 461 Supremo Tribunal Federal. Plenário inicia julgamento sobre aplicação do princípio da insignificância. 10 dez.2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal>. Acesso em: 16 nov.2015. 142 caso porque o agente seria reincidente específico em crimes contra o patrimônio e o caso envolvia furto de barras de chocolate (nove barras do chocolate Diamante Negro avaliadas em R$ 45)462. Por fim, a reincidência penal não pode ser considerada circunstância agravante e, simultaneamente, circunstância judicial463. 4.3.3 Período depurador Com a Lei nº6.416/77 o Código Penal adotou o sistema da temporalidade, abandonando o da perpetuidade, e fixou o prazo de 5 anos para depurar a reincidência. Conforme prevê o artigo 64, I, não prevalece a condenação anterior, se decorreu mais de 5 anos entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a data da infração posterior, computando-se o período de prova da suspensão ou livramento condicional, se não houver revogação. Denominado de período depurador, o prazo legal fixado visa eliminar a perpetuidade da reincidência, portanto, da pena, estigmatizadora na vida do condenado e, ainda, proibida pela Constituição Federal no artigo 5º, XLVII, ‘b’464. 462 A esse respeito interessa destacar as lições de Lenio Streck: “Aqui, novamente temos de lembrar a questão fulcral: igualdade, isonomia e aplicação por integridade e coerência. De um lado, R$ 10 mil para descaminho; de outro, R$10 negado para furto (ou outros valores para furtos que não tratem de reincidência). Também os pequenos crimes cometidos contra o meio-ambiente são vistos com mais simpatia por setores do Poder Judiciário, como, por exemplo, a absolvição de pessoas que pescaram um peixe dourado (sete quilos) recentemente. Registre-se, desde logo, a correção da decisão da 3ªTurma do TRF 1ªRegião. O difícil é entender a movimentação de toda a máquina pelo Ministério Público Federal para ver condenados 3 patuléus que, de caniço e samburá, foram pescar alguns peixes. Interessante: naquele Habeas Corpus do caso Valério acima relatado, o parecer do MPF foi a favor da aplicação do favor legis da lei da sonegação, mesmo contra legis, porque já transitada em julgado a condenação do contador do mensalão. Dois pesos, duas medidas [...]. Sigo. Fui o primeiro a aplicar isonomicamente a lei da sonegação de tributos e o furto sem prejuízo. Fui também o primeiro a aplicar o favor legis da lei da sonegação para o estelionato: ESTELIONATO. ÔNUS DA PROVA. No estelionato, mesmo que básico, o pagamento do dano, antes do oferecimento da denúncia, inibe a ação penal. O órgão acusador deve tomar todas as providências possíveis para espancar as dúvidas que explodam no debate judicial, sob pena de não vingar condenação (Magistério de Afrânio Silva Jardim). Lição de Lenio Luiz Streck: os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinquentes tributários (Lei 9.249/95, artigo 34) alcançam os delitos patrimoniais em que não ocorra prejuízo nem violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia. Recurso provido para absolver o apelante. (BRASIL. TARS. 2ª Câmara Criminal. Apelação criminal nº297.019.937. Rel. Amilton Bueno de Carvalho. j.25-09-1997). (STRECK, Lenio. Senso incomum. Direito penal do fato ou do autor? A insignificância e a reincidência. Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br>. Acesso em: 15 nov. 2015). 463 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 241. 464 “Alega-se em favor do sistema da temporariedade que o longo período entre o primeiro fato e sua repetição obsta que se entenda persistente o vínculo criminológico capaz de ligar os dois crimes, com o acréscimo da reprovabilidade sobre o sujeito e, portanto, de sua culpabilidade. Os dois fatos surgem isolados no tempo, sem que a prática de ambos possa fundamentar a conclusão de que neles se exprime aquele querer antijurídico obstinado que justifica o tratamento particular do reincidente.” (JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal – parte geral. v.1. 28.ed. Saraiva: São Paulo, 2007, p.570). 143 Contudo, nesse aspecto, não há um consenso sobre a influência ou não da reincidência já purificada na dosimetria da pena. Há divergência jurisprudencial. O Superior Tribunal de Justiça, em diversos julgamentos, entendeu que as condenações anteriores transitadas em julgado e já depuradas, quando da reincidência, podem ser utilizadas como maus antecedentes, permitindo a exasperação da pena-base acima do mínimo legal465. Como se vê: Muito embora o artigo 64 do CP tenha eliminado o estado perpétuo da reincidência (que havia sido abarcado pela redação originária de 1940), esta eterna estigmatização ainda permanece na figura dos maus antecedentes. No que tange às suas consequências, esta seria, aparentemente, menos gravosa ao acusado comparativamente à 466 reincidência, não fosse sua infindável condição . 465 PENAL E PROCESSUAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ROUBO. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. CONDENAÇÃO ANTERIOR. DECURSO DO PRAZO PREVISTO NO ARTIGO 64, I, DO CÓDIGO PENAL. MAUS ANTECEDENTES. CONFIGURAÇÃO. 1. Segundo a jurisprudência deste Superior Tribunal, condenações anteriores transitadas em julgado, alcançadas pelo prazo depurador de 5 anos do artigo 64, I, do Código Penal, embora afastem os efeitos da reincidência, não impedem a configuração de maus antecedentes, permitindo a exasperação da pena-base acima do mínimo legal. 2. Não tendo a confissão sido considerada na formação da convicção da autoria e materialidade do delito, não caracteriza violação do artigo 65, III, "d", do Código Penal a negativa de atenuação da pena.3. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp 1500382/SP, Rel. Min. GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, j.25-08-2015, DJe 11/09/2015) Disponível em: <https://ww2.stj.jus>. Acesso em: 8 dez.2015). AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ROUBO E EXTORSÃO. ANÁLISE DAS PROVAS DOS AUTOS. NÃO OCORRÊNCIA. PENAL. DOSIMETRIA. CONDENAÇÃO ANTERIOR COM TRÂNSITO EM JULGADO. MAIS DE CINCO ANOS. PERÍODO DEPURATIVO. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE REINCIDÊNCIA. UTILIZAÇÃO COMO MAUS ANTECEDENTES. POSSIBILIDADE. ROUBO E EXTORSÃO. CONTINUIDADE DELITIVA. IMPOSSIBILIDADE. DELITOS DE ESPÉCIES DISTINTAS. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A revaloração dos elementos probatórios constantes da denúncia, sentença e do acórdão recorridos, não implicam revolvimento das provas dos autos, sendo admissível na via do especial para fins de fixação da interpretação da legislação federal. Precedentes. 2. "Segundo entendimento desta Corte, o período depurador de cinco anos afasta a reincidência, mas não retira os maus antecedentes" (HC 281.051/MS, minha relatoria, SEXTA TURMA, DJe 28/11/2013). Súm. 83/STJ. 3. Conforme entendimento desta Corte, não há continuidade delitiva. entre os delitos de roubo e extorsão, porque de espécies diferentes. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp 1531323/SP AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2015/0112426-5, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (1131), Órgão Julgador T6 – SEXTA TURMA, Data do Julgamento 16/06/2015, Data da Publicação/Fonte DJe 25/06/2015) Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 8 dez. 2015. PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PENA-BASE. MAUS ANTECEDENTES. CONDENAÇÃO COM TRÂNSITO EM JULGADO. PENA EXTINTA. PERÍODO DEPURADOR. MAUS ANTECEDENTES. MAJORAÇÃO DA PENA-BASE. POSSIBILIDADE. RÉU REINCIDENTE. SUBSTITUIÇÃO DA PENA. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. ARTIGO 44, II E III, DO CP. AGRAVO IMPROVIDO. 1. As condenações atingidas pelo período depurador de 5 anos, previsto no artigo 64, I, do Código Penal, afastam os efeitos da reincidência, mas não impedem o reconhecimento dos maus antecedentes. 2. Não se substitui a pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, quando o réu for reincidente em crime doloso ou desfavoráveis as vetoriais do artigo 59 do Código Penal, a indicar que não se mostre suficiente para a repressão do delito. 3. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1229970/SP AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2010/0218753-8, Rel. Min. NEFI CORDEIRO (1159), Órgão Julgador T6 – SEXTA TURMA, j.19-11-2015, Data da Publicação/Fonte DJe 03/12/2015) Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 8 dez. 2015. 466 SILVA, Suzane Cristina. Reincidência e maus antecedentes: crítica a partir da teoria do labelling approach. Revista Liberdades nº16, maio-ago., Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2014, p.59. 144 Já o Supremo Tribunal Federal decidiu de forma diferente, ou seja, que a condenação anterior ao período depurador do artigo 64, I, do Código Penal não pode ser utilizada seja para fins de reincidência, seja a título de maus antecedentes467. Essa questão foi considerada de Repercussão Geral no RE 593818/SC, em 2602.2009, de relatoria do Min. Joaquim Barbosa, o qual 467 Ementa: Habeas corpus. 2. Tráfico de entorpecentes. Condenação. 3. Aumento da pena-base. Não aplicação da causa de diminuição do §4º do artigo 33, da Lei nº11.343/06. 4. Período depurador de 5 anos estabelecido pelo artigo 64, I, do CP. Maus antecedentes não caracterizados. Decorridos mais de 5 anos desde a extinção da pena da condenação anterior (CP, artigo 64, I), não é possível alargar a interpretação de modo a permitir o reconhecimento dos maus antecedentes. Aplicação do princípio da razoabilidade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana. 5. Direito ao esquecimento. 6. Fixação do regime prisional inicial fechado com base na vedação da Lei 8.072/90. Inconstitucionalidade. 7. Ordem concedida. "As condenações transitadas em julgado há mais de cinco anos não poderão ser caracterizadas como maus antecedentes para efeito de fixação da pena, conforme previsão do artigo 64, I, do CP “Para efeito de reincidência: I – não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação”. Esse é o entendimento da Segunda Turma, que, em conclusão de julgamento e por maioria, concedeu a ordem em “habeas corpus” para restabelecer a decisão do tribunal de justiça que afastara os maus antecedentes, considerada condenação anterior ao período depurador (CP, artigo 64, I), para efeito de dosimetria da pena — v. Informativo 778. A Turma afirmou que o período depurador de cinco anos teria a aptidão de nulificar a reincidência, de forma que não poderia mais influenciar no “quantum” de pena do réu e em nenhum de seus desdobramentos. Observou que seria assente que a “ratio legis” consistiria em apagar da vida do indivíduo os erros do passado, já que houvera o devido cumprimento de sua punição, de modo que seria inadmissível atribuir à condenação o “status” de perpetuidade, sob pena de violação aos princípios constitucionais e legais, sobretudo o da ressocialização da pena. A Constituição vedaria expressamente, na alínea b do inciso XLVII do artigo 5º, as penas de caráter perpétuo. Esse dispositivo suscitaria questão acerca da proporcionalidade da pena e de seus efeitos para além da reprimenda corporal propriamente dita. Nessa perspectiva, por meio de cotejo das regras basilares de hermenêutica, constatar-se-ia que, se o objetivo primordial fosse o de se afastar a pena perpétua, reintegrando o apenado no seio da sociedade, com maior razão dever-se-ia aplicar esse raciocínio aos maus antecedentes. Ademais, o agravamento da pena-base com fundamento em condenações transitadas em julgado há mais de cinco anos não encontraria previsão na legislação pátria, tampouco na Constituição, mas se trataria de uma analogia “in malam partem”, método de integração vedado em nosso ordenamento. Por fim, determinou ao tribunal de origem que procedesse à nova fixação de regime prisional, sem considerar a gravidade abstrata do delito, nos termos do artigo 33, §§2º e 3º, do CP. Vencidos os Ministros Teori Zavascki e Cármen Lúcia, que concediam parcialmente a ordem, apenas quanto à fixação do regime prisional. HC 126315/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 15.9.2015. (HC-126315)". (Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 8 dez. 2015). HABEAS CORPUS 119.200 PARANÁ RELATOR: MIN. DIAS TOFFOLI PACTE.(S): PEDRO LEMES IMPTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO PROC.(A/S)(ES): DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL COATOR(A/S)(ES): RELATOR DO RESP Nº1376390 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – EMENTA: Habeas corpus. Tráfico de entorpecentes. Dosimetria. Fixação da pena-base acima do mínimo legal em decorrência de maus antecedentes. Condenações extintas há mais de cinco anos. Pretensão à aplicação do disposto no inciso I do artigo 64 do Código Penal. Admissibilidade. Precedente. Writ extinto. Ordem concedida de ofício. 1. Impetração dirigida contra decisão singular não submetida ao crivo do colegiado competente por intermédio de agravo regimental, o que configura o não exaurimento da instância antecedente, impossibilitando o conhecimento do writ. Precedentes. 2. Quando o paciente não pode ser considerado reincidente, diante do transcurso de lapso temporal superior a cinco anos, conforme previsto no artigo 64, I, do Código Penal, a existência de condenações anteriores não caracteriza maus antecedentes. Precedentes. 3. Writ extinto. Ordem concedida de ofício. (Julgado em: 11/02/2014, PRIMEIRA TURMA, Rel. Dias Tófolli). Disponível em: file:///C:/Users/Prof.%20Lisandra/Downloads/texto_205501002%20(1).pdf. Acesso em: 8 dez. 2015). 145 foi substituído pelo Ministro Luís Roberto Barroso, em 26.06.2013. Até o momento não há pronunciamento definitivo sobre a questão468. Apesar do entendimento de que, para atender ao princípio da individualização da pena, devem ser consideradas condenações passadas, ainda que depois do período depurador, em obediência ao princípio da individualização da pena, observa-se que se assim for, a perpetuidade estigmatizadora tanto rebatida continuará presente no ordenamento jurídico, de nada valendo todo o esforço da reconstrução da reincidência criminal. Tal medida seria uma ofensa à disseminada ressocialização da pena ao deixar sempre uma marca na vida do sujeito, que já se submeteu ao poder punitivo estatal, com a promessa, ao menos normativamente, de ser reinserido ao convívio social. Se a própria Constituição Federal proíbe a pena perpétua, atentando-se ao caráter humanitário e reintegrador que a reprimenda deve ter, não há qualquer lógica sistemática a consideração ad eternum da reincidência transformando-a em maus antecedentes, verdadeira analogia in malam partem. 4.4 Finalidade da reincidência a partir das teorias das penas A origem da reincidência no Brasil está arraigada a uma cultura extremamente punitivista e remete-se à finalidade da própria pena no ordenamento jurídico. De acordo com a finalidade da pena tem-se também a da reincidência, já que esse instituto tem por escopo inicial agravar a pena. Dessa forma, não é demais analisar a finalidade da reincidência de acordo com as principais teorias das penas, as quais desvendam como a pena pode ser considerada e o porquê de sua existência. Da mesma forma que a pena deve ser estudada e aplicada se distanciando da vingança e do castigo para de fato atingir a prevenção e a ressocialização, a reincidência, como um elemento desta, compõe uma política 468 EMENTA: MATÉRIA PENAL. FIXAÇÃO DA PENA-BASE. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. MAUS ANTECEDENTES. SENTENÇA CONDENATÓRIA EXTINTA HÁ MAIS DE CINCO ANOS. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE. MANIFESTAÇÃO PELO RECONHECIMENTO DO REQUISITO DE REPERCUSSÃO GERAL PARA APRECIAÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. (BRASIL. RE 593818 RG/SC SANTA CATARINA, REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, j.26-02-2009, Publicação DJe-064 DIVULG 02-042009 PUBLIC 03-04-2009. EMENT VOL-02355-06 PP-01118. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 8 dez. 2015). 146 criminal que deve responder aos anseios sociais com uma finalidade conceptiva, não podendo ser um mero instrumento inócuo no sistema penal. A história da pena é redundante no sentido desta sempre ter um caráter vingativo, ora bem transparecido como no tempo primitivo com a vingança por sangue, ora com a institucionalização da vingança por um poder central como na Antiguidade e a suposta evolução na Idade Medieval, em que eram oferecidas ao condenado oportunidades de meditar e de se arrepender. Sem a pretensão de percorrer todo o processo histórico da pena, já que esse não é aqui o objetivo, o que importa é que a reincidência pode conter fundamentos distintos a depender da teoria que justifica a existência da pena. Partindo da época moderna (séculos XV e XVIII), quando ocorreram diversas transformações na estrutura da sociedade europeia ocidental, com a transição do feudalismo para o capitalismo, a pena estava no contexto do absolutismo, em que o poder era derivado de Deus e o monarca não devia prestar contas a qualquer pessoa469. Como o conceito de pena está diretamente ligado ao de Estado, a pena nessa época transparecia o modelo estatal absolutista que se caracterizava pela “identidade entre o soberano e o Estado, a unidade entre a moral e o direito, entre o Estado e a religião, além da metafísica afirmação de que o poder do soberano lhe era concedido diretamente por Deus”470. Por conta disso, quando havia um crime, a punição era severa como forma de intimidar as demais pessoas para que cumprissem as ordens do rei. O criminoso, além de ofender a vítima, também atingia o soberano, por isso tornava-se inimigo do sistema estabelecido. Vê-se que intuito vingativo, e dessa vez público, estava presente na aplicação da pena471. O rei se vingava do inimigo, mas a sociedade também se satisfazia com o sentimento de punição legalizada, com a forte justificativa religiosa. A 469 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.73. 470 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.82. 471 “Daí a gravidade dos suplícios em nome da vingança pública, bem retratada, no Brasil, nas sanções previstas no Livro V das Ordenações Filipinas, que vigoravam até 1830, embora na Constituição Imperial de 1824 já tivessem incluídos vários princípios de direitos fundamentais, consagrados na Declaração Francesa de 1789. (MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.73). 147 pena era, então, considerada para a teoria absoluta uma retribuição pelo mal causado e por assim ser era justa. Conforme os ensinamentos de Ferrajoli472, “as doutrinas absolutas ou retributivas fundam-se todas na expressão de que é justo “transformar mal em mal””. A pena possuía um fim em si mesmo com o escopo de alcançar a justiça devido ao mal causado. Immanuel Kant473 e Georg Wilhelm Friedrich Hegel474 foram os principais precursores das teorias absolutas. Para Kant, a pena deveria ser aplicada pelo simples fato de o delinquente ter cometido um crime, não haveria qualquer outra utilidade, pois o homem não poderia servir como instrumento. Nas palavras de Kant475: “O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.” Seria eticamente proibido castigar o delinquente em supostas razões de utilidade social, pois o homem não pode ser instrumentalizado, é, pois, um fim em si mesmo476. Nesse sentido, destacamos Falcón y Tella: Na conhecida contribuição kantiana, a pena é retribuição justa desprovida de todo fim (poena absoluta ab effect) e representa a imposição de um mal como compensação da infração jurídica culpavelmente cometida (malum passionis propter malum actionis). Isto é, o conteúdo da pena é o talião (“se matou, deve morrer”) e a 477 função da pena é a realização da justiça . Já para Hegel a fundamentação não seria ética, mas de ordem jurídica, ou seja, a pena deve ser imposta para reafirmar o Direito, já que esse foi negado pelo delinquente. Nessa concepção, a pena seria a melhor forma de recuperar a ordem jurídica atingida pelo delito, ou seja, uma verdadeira reconciliação para alcançar a própria validade da norma. Conforme Hegel: 472 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer e outros. 3.ed. São Paulo: RT, 2010, p.236. 473 KANT, Immanuel. A fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. EDIÇÕES 70, LDA, set.2007. 474 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Tradução de Norberto de Paula Lima. Adaptações e notas Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997. 475 KANT, Immanuel. A fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. EDIÇÕES 70, LDA, set.2007, p.68. 476 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.85. 477 FALCÓN Y TELLA, Maria José; FALCÓN Y TELLA, Fernando. Fundamento e finalidade da sanção: existe um direito de castigar. Tradução Claudia de Miranda Avena; revisão de Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2008, p.192. 148 Do ponto de vista objetivo, há reconciliação mediante a supressão do crime e nela a lei se restabelece a si mesma e realiza a sua própria validade. Do ponto de vista subjetivo, que é o do criminoso, há reconciliação com a lei que é por ele conhecida e que também é válida para ele, para protegê-lo. Na aplicação da lei, sujeita-se ele, por conseguinte, à satisfação da justiça; sujeita-se, portanto, a uma 478 ação que é sua . Observa-se que “a superação do delito (aufheben des Verbrechens) é o restabelecimento, a restituição do direito. Isto se consegue por meio da pena, como síntese no referido processo dialético ”479. De acordo com Oswaldo Henrique Duek Marques480, para Hegel: “[...] o crime é a negação do direito, enquanto a pena, como negação do crime, reafirma o direito.” E, ainda: “A pena é, assim, a negação da negação caracterizada pelo crime, com o objetivo de reafirmar o direito e atualizar a justiça”. No entanto, Kant e Hegel sofrem críticas, destacando-se as de 481 Ferrajoli , o qual entende que as teorias por eles apresentadas são insustentáveis, pois há uma confusão entre direito e natureza, como uma tentativa de fazer valer crenças mágicas. Destaca-se também a crítica elaborada por Claus Roxin482, o qual entende que é necessária uma fundamentação para se afirmar que a pena deve ser aplicada; devem existir limites na faculdade estatal de aplicar sanção. Ademais, não se entende como é possível eliminar um mal com outro, por isso as teorias por eles delineadas são teorias de expiação, já que não fixam os pressupostos da punibilidade. Oswaldo Henrique Duek Marques483 entende que a concepção retributiva da pena pode levar à falta de limites na quantidade e na qualidade da pena e que essa, na verdade, deveria ter sim uma “[...] finalidade construtiva e não encontrar um fim em si mesma”484. 478 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Tradução de Norberto de Paula Lima. Adaptações e notas Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p.190. 479 FALCÓN Y TELLA, Maria José; FALCÓN Y TELLA, Fernando. Fundamento e finalidade da sanção: existe um direito de castigar. Tradução Claudia de Miranda Avena; revisão de Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2008, p.197. 480 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.98-99. 481 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer e outros. 3.ed. São Paulo: RT, 2010, p.237. 482 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3.ed. Lisboa: Vega, 2004, p.17-20. 483 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.98-99. 484 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.101. 149 Outros autores também representam o desenvolvimento da teoria retribucionista, como Francesco Carrara485, defensor da ideia de que a pena retribui o mal causado e restabelece a ordem externa social violada pelo mal do delito que gera insegurança à sociedade. De acordo com Oswaldo Henrique Duek Marques486, “a pena, para Carrara, é consequência do desejo de reação ante a violação do direito. Não se destina a promover a emenda do condenado, mas a desempenhar seu papel de tutela jurídica”. Considerando as ideias das teorias absolutas, a reincidência seria um instituto tendente a retribuir o mal do delito com o mal da pena, porém agravada ou, ainda, um instituto para restaurar a ordem social. Entender-se-ia que o mal causado pelo reincidente fora maior, portanto, o mal da pena deve ser agravado, a fim de que o direito fosse revalidado e a segurança social preservada. Pensar dessa forma, contudo, retira qualquer utilidade desse instituto, sonegando-se a função social da pena. Desta forma, entende-se rechaçável o argumento de que a reincidência tem um caráter retributivo. Na sequência, podem ser relacionadas as teorias relativas ou preventivas, as quais pregam que a utilidade da pena seria evitar a ocorrência de fatos delitivos futuros, evitando-se a reincidência para preservar a convivência social. De acordo com Cezar Roberto Bitencourt487, “a função preventiva da pena divide-se – a partir de Feuerbach – em duas direções bem definidas: prevenção geral e prevenção especial.” Conforme Massimo Pavarini e André Giamberardino488, “enquanto nas hipóteses de prevenção geral se persegue o fim de impedir a coletividade de delinquir, na prevenção especial se quer evitar a reincidência de quem violou as leis.” 485 CARRARA, Franceso. Programa do curso de direito criminal: parte geral. Tradução. Jose Luiz V. de A. Franceschini, J. R. Prestes Barra. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 211-212. 486 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.102. 487 Cezar Roberto Bitencourt se refere à Paul Anselm Feuerbach, penalista alemão do século XIX, destacando a obra Lehrbuch des peinlicem rechts, 11.ed., 1832, citada por Mir Puig em Introducción a las bases del Derecho Penal. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.89). Conforme Bitencourt, as ideias prevencionistas surgem na transição do Estado absoluto ao Estado liberal e têm como principais defensores Jeremias Bentham, Beccaria, Filangieri, Schopenhauer e Feuerbach. Este último formulou a “teoria da coação psicológica”, a qual contribuiu para que fossem formadas as primeiras concepções jurídico-científicas da prevenção geral, explicando a função do direito penal, ou seja, a ameaça pela pena aos cidadãos para que se abstenham de cometer delitos (p.122). 488 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da pena e execução penal: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.146. 150 Na linha da teoria da prevenção geral, a única finalidade da pena seria prevenir a prática de delitos, isto é, intimidar a sociedade, sob a ameaça da lei. A pena seria uma motivação para não cometer delitos489. Conforme Francisco Muñoz Conde e Winfried Hassemer, para essa teoria: o delito futuro não só se pode esperar de quem já o tenha cometido alguma vez e que deve, por isso, ser ressocializado ou inocuizado para evitar que volte a cometê-lo, mas também dos demais, sobre os quais deve incidir, para evitar que cheguem a cometê-lo (prevenção 490 geral) . Por essa concepção, contudo, há lacunas na justificativa sobre o fim da pena. De modo geral, pois são diversos os problemas491 apontados em torno dessa teoria. Não é considerado o aspecto psicológico do delinquente, ou seja, que o criminoso pode entender ser capaz de praticar um crime sem ser descoberto. Além disso, desconsidera que nem todos os homens são influenciados pela ameaça da pena e, ainda, que as penas, por essa ideia, podem ser altamente elevadas para chegar à finalidade de prevenção, superando a medida da culpabilidade do autor do delito492, como por exemplo, dos traficantes de drogas, dos terroristas, dos que poluem o meio ambiente493 e, acresce-se, dos reincidentes. Desta forma, a teoria da prevenção geral da pena deve ser rechaçada pelo fato de menosprezar a pessoa, mecanizar a pena, não considerar a racionalidade do homem e, sobretudo, não demonstrar qualquer utilidade do direito penal no contexto social. 489 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.123. 490 CONDE, Francisco Muñoz; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia. Tradução, apresentação e notas de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.234-235. 491 Outros problemas apontados da teoria preventiva geral por Conde e Hassemer são: problemas empíricos, ou seja: nem todos os destinatários das normas penais conhecem seus mandamentos e proibições, não é possível demonstrar em todos os casos o porquê se comete ou não um delito, pois são de origens diversas (personalidade do agente, oportunidade de cometer o crime) e; ainda, essa teoria não possui critérios para elencar os meios de prevenção, isto é, se todos seriam válidos, até aqueles incompatíveis com os direitos fundamentais. (CONDE, Francisco Muñoz; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia. Tradução, apresentação e notas de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.239-245). 492 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.126. 493 Os exemplos são de CONDE, Francisco Muñoz; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia. Tradução, apresentação e notas de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.238. 151 Importante destacar que a teoria da prevenção geral é subdividida em negativa e positiva. A prevenção geral negativa diz respeito à “capacidade dissuasiva dos castigos legais”494, cuja intimidação é voltada ao homem considerado homo aecomicus, aquele que sabe calcular as vantagens e as desvantagens da sua conduta495. E a prevenção geral positiva ou prevençãointegração que justifica a pena a partir da concepção de que essa é um instrumento de estabilização do sistema social496. Ambas compõem os argumentos que defendem a necessidade da existência da reincidência, seja como necessidade de inibir as pessoas que já cometeram delitos como também para confirmar a vigência da norma na sociedade por meio de uma pena agravada. Perceber-se-á, mais adiante, que a teoria da prevenção geral passou por uma modificação com o intuito de combater os inconvenientes das teorias mistas ou unificadoras, surgindo, pois a prevenção geral positiva. Antes, porém, é preciso abordar o conteúdo da teoria da prevenção especial, que se volta ao criminoso com a preocupação latente de que ele não volte a cometer delitos. Defende-se que deve haver um bom modo de aplicar a sanção penal em prol da disciplina do delinquente. De acordo com Massimo Pavarini e André Giamberardino497, “quando a finalidade do castigo legal é impedir a reincidência e, portanto, o destinatário é quem violou a lei penal, falase em prevenção especial.” Essa teoria influencia de forma veemente a justificativa da necessidade do instituto da reincidência. Dentre os defensores da prevenção especial498, Franz Von Liszt499 foi o penalista que enraizou a ideia dessa corrente apresentando três pressupostos para a aplicação da pena: ressocialização e reeducação do 494 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da pena e execução penal: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.146. 495 Defende Claus Roxin, ao analisar a prevenção geral negativa, que a execução da pena que visa à mera intimidação não se volta ao autor do delito, mas apenas à comunidade e, por isso, incitará mais a reincidência e prejudicará mais a luta contra a criminalidade. (ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, t.I. Tradução da 2.ed. alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Editorial Civitas, S. A.,1997, p.93). 496 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da pena e execução penal: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.147. 497 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da pena e execução penal: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.148. 498 São várias as correntes voltadas à prevenção-especial da pena. Bitencourt destaca na França, a teoria da Nova Defesa Social, de Marc Ancel, na Espanha a Escola Correcionalista e na Alemanha, a de Von Liszt . (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.92). 499 LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal alemão. Atual. e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Comentários e tradução de José Higino Duarte Pereira. Campinas, SP: Russel, 2003. 152 delinquente, intimidação daqueles que não precisam se ressocializar e neutralização dos incorrigíveis. Tese resumida em três palavras: intimidação, correção e inocuização500. Conforme Oswaldo Henrique Duek Marques501, “essa crença no poder intimidativo das sanções penais tem servido de arrimo aos aumentos de penas até os dias de hoje, inclusive, à manutenção da pena capital em diversos Estados.” Interessante notar que por meio dessa teoria, o delinquente pode de fato ser ressocializado, portanto, a pena é extremamente útil para evitar a reincidência, ao corrigir a pessoa condenada. De acordo com Oswaldo Henrique Duek Marques502, para Lizst a execução penal pode converter o delinquente num membro útil à sociedade (adaptação artificial), como também segrega o delinquente retirando a possibilidade dele cometer novos delitos. Ainda que a teoria da prevenção especial, atenta ao delinquente, pareça palpável, argumentos contrários são levantados a esta tese. Em primeiro lugar, há casos em que o delinquente não tem a menor probabilidade de reincidir, ainda que tenha cometido um crime grave503. Em segundo, é possível chegar a penas desproporcionais e indefinidas ao caso concreto, considerando que o delinquente apenas será recolocado ao convívio social depois de emendado504. As teorias da prevenção especial se subdividem em negativa e positiva. De forma concisa, a teoria da prevenção especial negativa 505 pode ser 500 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.93. 501 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.120. 502 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.122. 503 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.134. 504 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito penal do inimigo: a terceira velocidade do direito penal. Curitiba: Juruá, 2009, p.149. 505 “[...] a prevenção especial negativa se encontra em grande antinomia interna: se por um lado é, entre as funções da pena, a que mais atende aos anseios populares por uma maior eficiência no âmbito punitivo, posto que empiricamente comprovado o seu poder neutralizador; por outro lado é a função que encontra maior dificuldade de legitimação na órbita de um Estado Constitucional e Democrático. (GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista. Rio de Janeiro: Renavan, 2007, p.161). 153 traduzida por uma palavra: neutralização ou inocuização. Já a teoria da prevenção especial positiva, remete à ideia de ressocialização506. Relacionando esses aspectos à reincidência, nega-se o caráter ressocializador da reincidência, pois seria contraditório acreditar que o cumprimento de uma pena agravada atingiria esse fim, quando a anterior já não alcançou. De outra banda, se nem a pena consegue a intimidação, tampouco a reincidência traz esse efeito. E a neutralização por meio da reincidência colidiria com a proporcionalidade da pena, deixando o condenado à mercê dos falhos métodos inseridos na execução penal. Gustavo Octaviano Diniz Junqueira507 analisa a prevenção especial a partir da seguinte classificação: a) prevenção especial negativa de inocuização; e b) prevenção especial positiva, subdividida em quatro espécies – intimidadora, curativa, ressocializadora (programa máximo) e de fortalecimento de condições de não reincidência (programa mínimo). Destaca-se essa última, por reforçar a necessidade de serem adotadas medidas a fim de evitar a reincidência, contudo, a realidade mostra a ausência de respeito dos direitos do sujeito submetido ao poder punitivo estatal. “Apenas o respeito – ainda que não a concordância – por parte do agente, em face dos bens jurídicos alheios, é o verdadeiro e legítimo objetivo particular da pena para com o criminoso”508. Por isso, longe de prevenir a reincidência, o atual sistema penitenciário caminha em descompasso com a ressocialização, pois não fornece meios eficazes para transmitir ao preso valores supremos como dignidade e liberdade. Já as teorias mistas ou ecléticas tentam unificar os argumentos mais coesos das teorias absolutas e das relativas, diferenciando o fundamento da finalidade da pena. O fundamento deve se voltar apenas ao crime e dessa forma não pode ultrapassar além do merecido pelo fato praticado. Já a finalidade da pena estava relacionada à forma de prevenção. As teorias 506 GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista. Rio de Janeiro: Renavan, 2007, p.154). 507 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. A necessidade de um fim preponderante para a pena no direito brasileiro. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002, p.75. 508 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. A necessidade de um fim preponderante para a pena no direito brasileiro. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002, p.84. 154 unificadoras, então, “aceitam a retribuição e o princípio da culpabilidade como critérios limitadores da intervenção da pena como sanção jurídico-penal. A pena não pode, pois, ir além da responsabilidade decorrente do fato praticado”509. Neste contexto, urge esclarecer que no grupo das teorias mistas são encontradas duas propostas bem diferentes. A primeira é considerada como ecletismo puro, pois se mescla à concepção retributiva com os fins preventivos, gerais ou especiais da pena. E a segunda, chamada de neorretributivismo, volta-se à “similitude entre a prevenção geral positiva, enquanto exemplaridade – reafirmação da norma –, e à ideia de retribuição como exigência de sua própria limitação, que não pode prescindir da culpabilidade”510. Nesse sentido, consoante Cezar Roberto Bitencourt: Enfim, tais teorias centralizam o fim do direito penal na ideia de prevenção. A retribuição, em suas bases teóricas, seja através da culpabilidade ou da proporcionalidade (ou de ambas ao mesmo tempo), desempenha um papel apenas limitador (máximo e mínimo) 511 das exigências de prevenção . Interessante mencionar a perspectiva de que essa junção se mostra coerente ao se considerar que a pena como retribuição pode ser justa se “calcada no injusto culpável e matizada pelos fins da prevenção geral e especial”512, com o resgate da dignidade humana, já que configura-se uma retribuição jurídica, que pode ter os efeitos relativizados pelos fins da prevenção. Desta forma, a retribuição está na essência da pena, não sendo um fim em si mesmo513. Nesse contexto, a reincidência poderia ser considerada uma retribuição maior pelo fato cometido, porém, dentro da proporcionalidade da pena, com fundamentos da prevenção geral e especial para limitá-la. Na sequência, a teoria da prevenção geral positiva surge como uma tentativa de sanar os inconvenientes da junção das proposições retributivas e preventivas. Tem-se, inicialmente, uma confusão entre direito e moral ou direito 509 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.96. 510 LOPES, Cláudio. Delinquência ambiental: os limites do direito penal. Birigui: Boreal, 2014, p.67. 511 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.143. 512 LOPES, Cláudio. Delinquência ambiental: os limites do direito penal. Birigui: Boreal, 2014, p.68. 513 LOPES, Cláudio. Delinquência ambiental: os limites do direito penal. Birigui: Boreal, 2014, p.68. 155 e natureza na fusão das teorias retributivista e utilitarista da prevenção especial, o que leva à conclusão de que o delito e o delinquente são um mal em si mesmo, um pecado514. Conforme Oswaldo Henrique Duek Marques: Essa nova teoria não vê na pena a ameaça destinada a intimidar possíveis delinquentes, nos termos preconizados pelos defensores da chamada “coação psicológica”, ou segundo os teóricos do absolutismo, que propõem a reafirmação do poder soberano por meio do exemplo do castigo. Ela a vê, antes, como possibilidade de reafirmar a consciência social da norma ou confirmar sua vigência, 515 mediante a imposição de sanções penais. (grifo nosso) Desta feita, desenvolveu-se um modelo para dar explicação legitimadora do direito penal com foco ideológico e prevenção geral positiva fundamentadora, tendo como principais representantes Welzel516 e Jakobs517. E, em contrapartida, outro modelo da prevenção geral limitadora, destacando-se o expoente Roxin518 519. Para Welzel a pena tem um papel ético-social, ou seja, deve garantir a vigência real dos valores de ação da atitude jurídica. A pena deveria buscar o fortalecimento ético-social do cidadão e, ainda, influenciar na atitude interna deste frente ao Direito520. O castigo representa, como consequência da prática do ilícito, a maneira de fortalecer a fidelidade ao Direito, mantendo a vigência de valores fundamentais521. 514 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer e outros. 3.ed. São Paulo: RT, 2010, p.255. 515 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.141. 516 WELZEL, Hans. Derecho penal: parte general. Tradução de Carlos Fontan Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma, 1956, p.8-9. 517 JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. Tradução de André Luis Callegari; Lucia Kalil. São Paulo: RT, 2003, p.12. Conforme Jakobs, “a pena deve ser necessária para a manutenção da ordem social – sem esta necessidade, seria por sua vez um mal inútil”. 518 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. t.I. Madrid: Civitas,1997. 519 Conforme Duek, a limitação exposta na teoria da prevenção geral positiva fundamentadora é defendida por Roxin, Silva Sánchez e Mir Puig. (MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.144). Cezar Roberto Bitencourt observa que Hassemer também é seguidor dessa teoria. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.99). 520 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. A necessidade de um fim preponderante para a pena no direito brasileiro. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002, p.65. 521 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.97. 156 Günther Jakobs522, inspirando-se nas ideias sistêmicas de Niklas Luhmann523, entende que a pena pode reestabelecer a confiança da população atingida pelos crimes, trazendo estabilidade ao ordenamento. “A pena deve restabelecer/confirmar na sociedade a confiança na ordem normativa” 524. É, pois, um fator de coesão do sistema político525, ou seja, o direito penal garante a função orientadora das normas jurídicas. A pena dá credibilidade à norma. Sobre a reafirmação da vigência da norma, Jakobs entende que a “pena vai de encontro ao projeto do mundo do infrator e da regra: este afirma a não vigência da norma para o caso em questão, mas a sanção confirma que esta afirmação é irrelevante”526. (tradução nossa). A teoria de Jakobs, contudo, permite a aplicação da pena quando desnecessária a proteção dos bens jurídicos, negando a função limitadora, inclusive, do princípio da proporcionalidade, de acordo com Santiago Mir Puig527. Conforme Gustavo Octaviano Diniz Junqueira528, Jakobs não faz qualquer referência a limites ou a bens jurídicos. Ele não adota limites como o da culpabilidade na aplicação da pena. Sobre a teoria da prevenção geral positiva fundamentadora, portanto, “é criticável também sua pretensão de impor ao indivíduo, de forma coativa, determinados padrões éticos, algo 522 JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. Tradução de André Luis Callegari; Lucia Kalil. São Paulo: RT, 2003. 523 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópoles, RJ: Vozes, 2009, p.121. 524 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. A necessidade de um fim preponderante para a pena no direito brasileiro. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002, p.66. 525 “Na verdade, referido autor apresenta uma formulação um pouco diferente da prevenção positiva fundamentadora. Embora coincida com Welzel em buscar na coletividade sua manutenção fiel aos mandamentos do Direito, nega que com isso se queira proteger determinados valores de ações e bens jurídicos.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.98). A diferença da concepção de Jakobs em relação à de Welzel é que para aquele “a missão do Direito Penal será a reafirmação do próprio Direito Penal (ordenamento jurídico)”. (MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito penal do inimigo: a terceira velocidade do direito penal. Curitiba: Juruá, 2009, p.158). 526 “Desde el final del Derecho natural, la pena ya no se impone a sujetos irracionales, sino a sujetos refractarios. La sanción contradice el proyecto del mundo del infractor de la norma: éste afirma la novigencia de la norma para el caso em cuestión, pero la sanción confirma que esa afirmación es irrelevante.” (JAKOBS, Günther. Sociedad, norma y persona em una teoria de um derecho penal funcional. Madrid: Civitas Ediciones, S. L., 2000, p.28). 527 PUIG, Santiago Mir. El derecho penal em el estado social y democrático de derecho. Barcelona: Ariel S.A, 1994, p.139. 528 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. A necessidade de um fim preponderante para a pena no direito brasileiro. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002, p.66-67. 157 inconcebível em um Estado Social e Democrático de Direito”529. A principal crítica a essa teoria se refere, conforme Oswaldo Henrique Duek Marques530, à contrariedade ao direito penal mínimo, uma vez que por meio de seus preceitos há a possibilidade de ampliar a tendência da resposta penal diante dos problemas sociais. Por fim, a teoria da prevenção geral limitadora, a qual surge diante das críticas à fundamentadora, defende que a pena “deve manter-se dentro dos limites do direito penal do fato e da proporcionalidade, e somente pode ser imposta através de um procedimento cercado de todas as garantias jurídicoconstitucionais”531. Para Claus Roxin532, a pena tem como escopo, além do fortalecimento da consciência jurídica, tutelar bens jurídicos no caso concreto a fim de restabelecer a paz jurídica atingida e reforçar a confiança no Estado 533. A pena seria ainda considerada como a última medida para punir as lesões aos bens jurídicos, ou seja, atenderia a um direito penal mínimo, desde a escolha das cominações penais, com respeito aos limites da reprovabilidade da conduta do infrator534. A crítica em torno dessa teoria se refere aos efeitos produzidos no âmbito legislativo, de acordo com Oswaldo Henrique Duek Marques535, visto que pode levar ao arbítrio na escolha dos bens jurídicos penais com uma verdadeira simbologia do direito penal. Não obstante, afirma também que o artigo 59 do Código Penal, se interpretado de acordo com os princípios constitucionais, estabelece a pena na concepção da teoria da prevenção geral positiva limitadora. 529 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.99. 530 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.98. 531 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.100. 532 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, t.I. Tradução da 2.ed.alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Civitas, S. A., 1997, p.92-93. 533 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. A necessidade de um fim preponderante para a pena no direito brasileiro. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002, p.68. 534 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.145. 535 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.148-149. 158 A reincidência, inserida na concepção das teorias da prevenção geral positiva, pode ser entendida, na linha de Welzel, como parte da pena. É um castigo que reforça de forma mais gravosa a fidelidade à norma e mantém a mensagem de que em caso de valores fundamentais serem atingidos pelo criminoso reiteradamente, esse terá uma pena ainda maior. Já na visão de Jakobs sobre a pena, poder-se-ia fundamentar a reincidência como uma forma mais incisiva de reafirmar a norma jurídica ou de demonstrar que essa será aplicada em caso de transgressão, ou seja, enalteceria na sociedade a confiança na ordem normativa. E, dentro da limitação que fundamenta a ideia de Roxin a respeito, a reincidência deveria ser aplicada apenas nos casos em que fosse necessária a atuação do direito penal, com respeito aos limites mencionados. De todo o exposto sobre as teorias das penas, conclui-se que o fundamento da reincidência está também atrelado ao da pena. Ocorre que, diante de tantas teorias sobre a finalidade da pena, a dificuldade é identificar qual prevalece no ordenamento jurídico brasileiro e se esta é compatível com os preceitos constitucionais536. A pena, bem como a reincidência, não pode ser vista como fator isolado, mas deve integrar o sistema jurídico avençado pelo Estado Democrático de Direito. Desta forma, como circunstância agravante da pena, analisada no contexto atual, a finalidade da reincidência deve estar de acordo com os objetivos da própria pena. Em todas as teorias ora delineadas é possível encontrar um fundamento para a reincidência, contudo, entende-se que somente uma pena voltada a reintegrar socialmente o condenado, respeitando valores supremos e conservando a humanização do delinquente537, seria capaz de manter essa medida justificável dentro do panorama democrático insculpido pela Constituição Federal de 1988. Quanto à reincidência, deveria acompanhar esse modelo não sendo apenas um instrumento retributivo e prejudicial ao condenado. As restrições ao condenado oriundas de sua aplicação, justificadas 536 Sobre a necessidade da determinação de uma finalidade preponderante para a pena e que seja compatível com os princípios constitucionais, ver: JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. A necessidade de um fim preponderante para a pena no direito brasileiro. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002. 537 Para Duek, durante a execução penal, apenas a prevenção especial pela reintegração social pode conservar a humanização do delinquente. (MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.161). 159 em tese a partir da proporcionalidade, buscam um resultado de difícil concretude. Parece que a crise do direito penal, a sobrecarga dessa ramificação jurídica, atinge todos os institutos dispersos e descontextualizados no âmbito do Estado Democrático de Direito. O fato é que a pena “[...] é impotente para conjurar uma grande percentagem de reincidentes, assim como não impede a delinquência primária. A ilação a tirar-se daí não é que a pena seja ineficiente, mas, sim, em certos casos, insuficiente”538. E não no sentido quantitativo da pena, mas na qualidade da sua aplicação que poucos, quiçá, nenhum efeito prático apresenta. Da mesma forma é o instituto da reincidência, o qual é aplicado demasiadamente no decorrer do processo penal, todavia, sem critérios precisos nem resultados positivos que justifiquem todo o agravamento da pena e do maior rigor com o condenado. 4.5 Consequências desfavoráveis da reincidência A reincidência gera inúmeras restrições ou efeitos penais e processuais penais, sempre agravando a situação do réu. A partir do momento em que o réu é considerado reincidente, o tratamento processual passa a ser mais rigoroso, da investigação criminal à execução penal, seja com agravamento da pena ou com restrições de benefícios. Esses efeitos estão relacionados à própria finalidade e ao fundamento da reincidência como instrumento de política criminal no ordenamento jurídico pátrio. Desde a primeira concepção da reincidência no direito pátrio, sua finalidade transpareceu como uma tentativa de sancionar de forma mais rigorosa o sujeito que, uma vez recebendo a reprimenda, não trouxe o resultado antes esperado. A reincidência, pois, é vista como uma forma de reafirmar a função punitiva do Estado em prol da segurança pública. Contudo, na aplicação deste instituto desconsidera-se se houve ou não um erro estatal quando do exercício do seu poder de punir e ressocializar, atribuindo-se, exclusivamente, ao sujeito processado toda responsabilidade pela sua reincidência. 538 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v.III.4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p.19. 160 Parte-se, então, do pressuposto, de que apenas o condenado recidivo merece ser mais rigorosamente sancionado, sendo única responsabilidade do sujeito que cometera o novo delito. Cumpre, então, elencar, não de forma exaustiva, as consequências gravosas da reincidência na legislação pátria. O Código Penal traz a previsão basilar da reincidência. Além do conceito, dispõe sobre regras gerais que vão refletir em todo o processo penal. São elas: a) impede que o regime inicial de cumprimento da pena seja o aberto ou semiaberto, salvo tratando-se de pena de detenção (artigo 33, §2º, b e c, do Código Penal)539; b) impede a substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos ou multa, na hipótese de crime doloso (artigo 44, II, artigo 60, §2º do Código Penal)540; c) pode provocar a conversão da pena substitutiva por uma privativa de liberdade (artigo 44, §5º, do Código Penal). d) agrava a pena do condenado em quantidade indeterminada dentro dos limites da sanção cominada (artigo 61, I, do Código Penal); e) é preponderante no concurso de circunstâncias agravantes (artigo 67, última parte, Código Penal), contudo, em decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº1.341.370 – MT (2012/0180909-9) houve o entendimento de que, na segunda fase do cálculo da pena, a agravante de reincidência deve ser compensada com a confissão espontânea, uma vez que essa refere-se à personalidade do agente, sendo, portanto, 539 Destacam-se as seguintes lições “Convém ressaltar que, se a reclusão não exceder a 4 anos serão analisadas as circunstâncias judiciais do réu a fim de verificar se o regime recomendado será o fechado ou semiaberto. [...] Neste sentido, determina a Súmula 269 do STJ que “é admissível a adoção do regime prisional semi-aberto aos reincidentes condenados a pena igual ou inferior a quatro anos se favoráveis as circunstâncias judiciais.” (ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.84). 540 Informativo 793 de 2015 – “No HC 123.108/MG, o paciente fora condenado à pena de um ano de reclusão e dez dias-multa pelo crime de furto simples de chinelo avaliado em R$ 16,00. Embora o bem tenha sido restituído à vítima, o tribunal local não substituíra a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos em razão da reincidência. Nesse caso, o Colegiado, por decisão majoritária, denegou a ordem, mas concedeu “habeas corpus” de ofício para fixar o regime aberto para cumprimento de pena.” (grifo nosso). Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento>. Acesso em: 30 ago.2015. 161 igualmente preponderantes541. Já a 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS) deu provimento a recurso do Ministério Público Federal e aumentou a pena de um empresário acusado pelo crime de apropriação indébita previdenciária, entendendo que os efeitos da confissão são anulados se houver agravante e o réu for reincidente (Processo 2005.61.09.001210-0)542. f) impede a concessão do sursis, ou suspensão condicional da pena ao reincidente doloso (artigo 77, I, do Código Penal); g) aumenta de um terço a metade, o prazo de efetiva privação de liberdade para o livramento condicional (artigo 83, II, do Código Penal); h) produz a revogação obrigatória da suspensão condicional da pena na hipótese de condenação por crime doloso (artigo 81, I, Código Penal); i) faculta a revogação da suspensão condicional da pena na hipótese de crime culposo ou por contravenção penal, desde que não imposta pena privativa de liberdade (artigo 81, §1º, Código Penal); j) proíbe a concessão de livramento condicional se a reincidência é específica em crimes hediondos e assemelhados (artigo 83, V, do Código Penal); k) revoga obrigatoriamente o livramento condicional, sobrevindo condenação à pena privativa de liberdade (artigo 86 do Código Penal); l) faculta a revogação do livramento condicional, em caso de crime ou contravenção, se não imposta pena privativa de liberdade (artigo 87 do Código Penal); m) revoga a reabilitação, quando sobrevier condenação à pena que não seja de multa (artigo 95 do Código Penal); m) aumenta um terço o prazo prescricional da pretensão executória (caput do artigo 110 do CP); n) interrompe a prescrição (artigo 117, VI, do Código Penal); o) impede o perdão judicial e a aplicação de pena de multa no crime de apropriação indébita previdenciária (artigo 168-A, §3º, do Código Penal); 541 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp nº1.341.370 – MT(2012/0180909-9). Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista>. Acesso em: 15 jan. 2016. 542 Efeitos da confissão são anulados se houver agravante e o réu for reincidente. Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-set-30/efeitos-confissao-sao-anulados-houver-agravante-reincidencia>. Acesso em: 02 out. 2015. 162 p) impede o perdão judicial e a aplicação de pena de multa no crime de sonegação de contribuição previdenciária (artigo 337-A, §2º, do Código Penal); q) impede o reconhecimento de algumas causas de diminuição da pena, como nas hipóteses dos artigos 155, §2º (furto privilegiado)543; 170 e 171, §1º; 175, §2º;180, §5º do Código Penal); No Código de Processo Penal, o artigo 313, II, inserido com a Lei nº12.403 de 2001, prevê que a prisão preventiva poderá ser decretada se o réu tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do Código Penal. “A lei não distingue se o crime posterior é apenado com detenção ou reclusão, mas o anterior necessariamente deve ser doloso” 544, explica Marco Antonio Marques da Silva. Importante destacar que, “reincidente em crime doloso, para os fins da disposição, é qualquer cidadão que praticar crime, sempre crime, não se cogita de contravenção penal, com pena máxima, igual ou inferior a 4 (quatro) anos”545, reitera o desembargador. Diversas legislações especiais também enaltecem a necessidade de mais rigor aos reincidentes. Destacam-se, em seguida, algumas delas para demonstrar esta afirmação. Na Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº3.688/41), a reincidência: a) aumenta de um terço até metade a pena de contravenção penal de porte de arma se a condenação precedente for por violência contra a pessoa (artigo 19, §1º, da Lei de Contravenções Penais); b) possibilita a ocorrência da contravenção de posse não justificada de instrumento de emprego usual na prática de furto (artigo 25 da Lei de Contravenções Penais). 543 Ementa: Apelação. Furto duplamente qualificado. Sentença condenatória. Recurso defensivo. 1. Prova suficiente para a condenação. 2. Elementos dos autos suficientes à demonstração das qualificadoras de ação em concurso de agentes e mediante escalada. 3. O valor dos bens furtados e a reincidência obstam o reconhecimento do princípio da insignificância, bem como a desclassificação para a figura de furto privilegiado. Condenação mantida. 3. Penas que não merecem alteração, posto não desbordarem dos limites da proporcionalidade e mostrarem-se adequadas, tendo em conta o contexto dos fatos e a conduta criminosa. 4. Regime inicial fechado que se mostra necessário para reprovação e prevenção do crime. 5. Recurso não provido. (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo – Apelação nº0001143-28.2011.8.26.0264, Rel. Laerte Marrone, j.23-02-2015, 2ª Câmara Criminal Extraordinária. Disponível em: <http://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/TJ-SP/attachments/TJ>. Acesso em: 2 dez.2015). 544 SILVA, Marco Antonio Marques da; FREITAS, Jayme Walmer de. Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2012, p.496. 545 SILVA, Marco Antonio Marques da; FREITAS, Jayme Walmer de. Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2012, p.496. 163 O artigo 76, §2º, I, da Lei nº9.099/95 impossibilita a transação penal nas infrações de menor potencial ofensivo aos reincidentes, bem como impede a suspensão condicional do processo no artigo 89, caput. A Lei de Crimes Hediondos (Lei nº8.072/90), considerada como oriunda de uma “política criminal do terror, patrocinada pelo liberal Congresso Nacional, sob o império da democrática Constituição de 1988”546, no artigo 2º, §2º dispõe que a progressão de regime, no caso dos condenados por crimes hediondos ou equiparados, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. O Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº9.503/97, artigo 296) dispõe que se o réu for reincidente em crimes de trânsito, poderá ter a suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor. No artigo 90, §2º, da Lei nº9.504/97 determina que se dobre as penas pecuniárias previstas na lei em caso de reincidência. Em relação aos crimes ambientais, a Lei nº9.605/98 prevê que a reincidência nos crimes de natureza ambiental é uma circunstância que agrava a pena, quando não constitui ou qualifica o crime (artigo 15, I). Na Lei de Execução Penal (Lei nº7.210/84), a reincidência é visualizada nos seguintes dispositivos: a) artigo 52 – constitui falta grave e sujeita o preso, ou condenado, à sanção disciplinar, sem prejuízo da sanção penal; b) artigo 118, I – ocasiona a regressão de regime de cumprimento de pena; c) artigo 127 – revoga até 1/3 do tempo remido. A Lei de Drogas (Lei nº11.343/06) também traz regras específicas ao reincidente. O artigo 28, inserido no Capítulo III – Dos Crimes e das Penas – traz a previsão do portar droga para uso próprio e, apesar de as penas serem peculiares, medidas educativas, a condenação prévia por esse delito é capaz de gerar a reincidência. O §4º regulamenta que em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput serão aplicadas por, no máximo, 10 meses, dobro da pena aplicada aos não reincidentes. A respeito do artigo 28 da Lei de Drogas, o Supremo Tribunal Federal, por meio do RE nº635659, está apreciando a (in)constitucionalidade 546 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.48. 164 desse dispositivo, cujo julgamento foi suspenso em setembro de 2015, já com dois votos a favor da inconstitucionalidade547. Nesse aspecto, relevante observar o entendimento de que a condenação ao crime previsto no artigo 28 da Lei de Drogas não gera a reincidência, uma vez que sequer enseja pena privativa de liberdade, com medidas despenalizadoras, sendo desproporcional considerar o contrário. A reincidência, como efeito secundário da condenação, ocasionaria prejuízos exacerbados, equiparando esse delito a outros de maior gravidade, como os hediondos ou equiparados548. Porém, em sentido contrário foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC nº275.126-SP, considerando que o porte para uso foi despenalizado e não descriminalizado549. O estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a pedido do Conselho Nacional de Justiça sobre a “Reincidência Criminal no Brasil”550, divulgado no ano de 2015, demonstrou que o tráfico de drogas é o crime que tem a menor proporção de condenados reincidentes em comparação com aqueles que não têm antecedentes criminais. Enquanto 19,3% dos condenados são réus primários, 11,9% dos que já cumpriram pena e voltam a receber sentença penal praticaram a conduta do artigo 33 da Lei de Drogas. Isso é explicado por muitos especialistas551 pelo fato de diversos 547 Suspenso julgamento sobre porte de drogas para consumo próprio. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=299484>. Acesso em: 10 dez. 2015. 548 RODRIGUES, Carlos Eduardo Afonso. A condenação pelo artigo 28 da lei de drogas não gera reincidência e outros efeitos secundários. Boletim IBCCrim, São Paulo, ano 17, nº203, p.14-15, out., 2009. 549 DIREITO PENAL. REINCIDÊNCIA DECORRENTE DE CONDENAÇÃO POR PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO. A condenação por porte de drogas para consumo próprio (artigo 28 da Lei 11.343/2006) transitada em julgado gera reincidência. Isso porque a referida conduta foi apenas despenalizada pela nova Lei de Drogas, mas não descriminalizada (abolitio criminis). Precedentes citados: HC 292.292-SP, Sexta Turma, DJe 25/6/2014; HC 266.827-SP, Sexta Turma, DJe 11/4/2014; e HC 194.921-SP, Quinta Turma, DJe 23/8/2013. HC 275.126-SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 18-9-2014. Informativo 549. (Disponível em: <ww.stj.jus.br/docs_internet/informativos/RTF/Inf0549.rtf>. Acesso em: 5 dez.2015). 550 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/>. Acesso em: 9 ago.2016. 551 “O coordenador do estudo pelo Ipea, o sociólogo Almir de Oliveira Júnior, concorda com essa interpretação. Ele também supõe que a menor taxa de reincidência pode resultar do grande número de mortes de traficantes. O juiz e professor de Processo Penal da Universidade Federal de Santa Catarina, Alexandre Morais da Rosa, elenca outros dois motivos para os condenados por tráfico não voltarem a cometer este crime. Um é a perda do ponto de venda de drogas — enquanto estão presos. O outro é o ingresso no mercado formal de trabalho. ” (RODAS, Sérgio. Em grande parte usuários, condenados por tráfico têm baixo índice de reincidência. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/grande-parte-usuarios-condenados-trafico-reincidem>. Acesso em: 05 jan. 2016). 165 usuários serem enquadrados como traficantes, mas como não são delinquentes habituais, não voltam a praticar crimes. Por fim, o artigo 44, parágrafo único, da Lei nº11.343/06 dispõe que nos crimes previstos no caput, o livramento condicional será dado após o cumprimento de dois terços da pena, sendo vedada a concessão ao reincidente específico. Esta é mais uma restrição decorrente da reincidência. 4.6 Previsão legal no direito estrangeiro No estudo do direito brasileiro, relevante destacar a legislação estrangeira a fim de se comparar de que modo determinado instituto vem sendo pensado e evoluído. A partir disso, é possível extrair novas ideias positivas e excluir concepções ultrapassadas. Com essa finalidade, serão apresentadas as previsões pesquisadas sobre a reincidência em alguns países. A seleção ocorreu direcionada aos países que de alguma forma influenciaram o Brasil na previsão da reincidência ou que são mencionados pelos autores brasileiros estudados. Esclarece-se que não é nosso objetivo esgotar todos os temas envolvendo a reincidência, tampouco analisar esse instituto a partir do direito penal esmiuçado de cada país citado. Nosso objetivo é demonstrar que a reincidência existe em outros países e é aplicada de forma diferente do previsto no Brasil. 4.6.1 Itália A Itália teve uma importantíssima contribuição doutrinária para a formação da reincidência como a atualmente conhecemos nos ordenamentos de herança romano-germânica. O Código Penal Italiano é dividido em três livros (Infrações em Geral; Crimes em Particular e Dos Crimes em Particular) e cada livro é composto por diversos títulos que se subdividem em capítulos. A reincidência está inserida no Livro I – Dei reati in generale, no Título IV – Del reo e della persona offesa dal reato (artt. 85-131) – (Do infrator e da vítima do crime) e, finalmente, no 166 Capítulo II: Della recidiva, della abitualità e professionalità nel reato e della tendenza a delinquere – (Da reincidência, da habitualidade e profissionalismo no crime e da tendência ao crime), com previsões dos artigos 99 a 109. Na Itália foi adotada, como no Brasil, a reincidência ficta (artigo 99)552 no Código de Rocco (1930), antes da reforma de 2002, que depois foi mantida. Também é adotada a reincidência específica553 e o sistema da perpetuidade554, o que demonstra rigor no tratamento de recidiva: O CP italiano, acatando o critério permanente, afirma sua independência em relação ao tempo transcorrido a partir do crime precedente. A independência, porém, não é absoluta, uma vez que o tempo não é de todo irrelevante para a determinação da gravidade da 555 reincidência . Aplica-se a reincidência facultativa na Itália, assim como em 556 Portugal . Para Guilherme de Souza Nucci, a reincidência na Itália é tratada com maior severidade, pois há três formas de reincidência: a) Simples: aumenta de um sexto a pena posterior se o réu pratica crime após a condenação criminal definitiva; b) Agravada: cometimento de um novo crime da mesma natureza ou quando cometido o crime dentro de cinco anos após a condenação anterior. E, ainda, quando é cometido novo crime no decorrer da execução da pena por delito anterior ou em período de fuga, aumenta-se, então a pena em um terço; se concorrer mais de uma 557 dessas circunstâncias será de metade o aumento da pena . c) Reiterada: quando o réu que cometeu o crime já era considerado reincidente, aumentando-se a pena de até metade se reincidente simples e até dois terços se agravada e, ainda de um terço a dois terços quando reincidente em período de execução de pena ou fuga, 558 559 conforme artigo 99, parte final do Código Penal italiano . 552 “Artigo 99 – Recidiva – Chi, dopo essere stato condannato per un reato, ne commette un altro, può essere sottoposto a un aumento fino ad un sesto della pena da infliggere per il nuovo reato.” Tradução livre do autor: “Artigo 99. Quem, depois de ter sido condenado por um crime, comete outro, pode ser sujeito a um aumento de até um sexto da pena a ser imposta para o novo delito.” (Disponível em: <http://www.brocardi.it/codice-penale/titolo-iv/libro-primo/capo-ii/>. Acesso em: 2 fev. 2016). 553 Para efeitos da lei criminal, são considerados crimes da mesma natureza, não só aqueles que violam a mesma disposição de direito, mas também aqueles que, embora esperado para ser o contrário previstas no presente código ou por leis diferentes, no entanto, para a natureza dos factos que constituinte ou dos motivos que os levaram, têm, em casos concretos caracteres básicos comuns. Disponível em: <http://www.brocardi.it/codice-penale/libro-primo/titolo-iv/capo-ii/art101.html>. Acesso em: 2 fev.2016. 554 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal – parte geral. v.1. 28.ed. Saraiva: São Paulo, 2007, p.569. 555 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal – parte geral. v.1. 28.ed. Saraiva: São Paulo, 2007, p.570. 556 ASSIS, Rafael Damaceno de. Análise crítica do instituto da reincidência criminal. Revista CEJ, Brasília, ano XII, nº40, p.73-80, jan.-mar., 2008, p.76. 557 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2.ed. São Paulo: RT, 2007, p.219. 558 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2.ed. São Paulo: RT, 2007, p.213. 559 CHIQUEZI, Adler. Reincidência criminal e sua atuação como circunstância agravante. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p.63. “Artigo 99 [...] La pena può essere aumentata fino ad un terzo: 1) se il nuovo reato è della stessa indole; 2) se il 167 4.6.2 Portugal O Código Penal de Portugal regulamenta a reincidência trazendo regras um tanto interessantes para sua configuração, aparentando critérios mais detalhados que os brasileiros. Presente no conjunto de 389 artigos, a reincidência é regulamentada no artigo 75, inserido na Seção II do Capítulo IV (Escolha e medida da pena) do Título III (Das consequências jurídicas do fato), tudo do Livro I (Parte geral)560. Adota-se a reincidência ficta, porém, para configurar a reincidência deve haver o requisito formal, ou seja, o cometimento de um crime doloso com pena efetiva superior a 6 meses, após condenação transitada em julgado também com pena de prisão efetiva superior a 6 meses. Interessante, no entanto, é que o juiz não aplicará a reincidência de forma automática, como no Brasil. Há o requisito material e cabe ao magistrado analisar se a pena anterior não fora suficiente para evitar a prática de novos delitos pelo agente561. Aliás, esse requisito deve ser fundamentado, conforme nuovo reato è stato commesso nei cinque anni dalla condanna precedente; 3) se il nuovo reato è stato commesso durante o dopo l'esecuzione della pena, ovvero durante il tempo in cui il condannato si sottrae volontariamente all'esecuzione della pena. Qualora concorrano più circostanze fra quelle indicate nei numeri precedenti, l'aumento di pena può essere fino alla metà. Se il recidivo commette un altro reato, l'aumento della pena, nel caso preveduto dalla prima parte di questo articolo, può essere fino alla metà e, nei casi preveduti dai numeri 1) e 2) del primo capoverso, può essere fino a due terzi; nel caso preveduto dal numero 3) dello stesso capoverso può essere da un terzo ai due terzi. In nessun caso l'aumento di pena per effetto della recidiva può superare il cumulo delle pene risultante dalle condanne precedenti alla commissione del nuovo reato.” – Tradução livre: A pena pode ser aumentada de um terço: 1) se o novo crime é da mesma natureza; 2) se o novo crime foi cometido nos cinco anos após a condenação anterior; 3) se o novo crime foi cometido durante ou após a execução da pena, ou durante o tempo em que o condenado se subtrai voluntariamente a execução penal. Se concorrer mais de uma circunstância daquelas indicadas no número anterior, o aumento da pena poderá ser feito até a metade. Se o reincidente comete outro crime, o aumento da pena no caso previsto pela primeira parte deste artigo, pode ser até a metade e, nos casos previstos nos números 1) e 2) do primeiro parágrafo, pode ser de até dois terços; no caso previsto pelo número 3) do mesmo parágrafo poderá ser de um terço a dois terços. Em nenhum caso o aumento da pena para efeito da reincidência poderá superar a soma da pena resultante da condenação anterior com a cominada no novo crime. 560 PORTUGAL. Código Penal de Portugal. Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt>. Acesso em: 2 fev. 2016. 561 “Artigo 75º Pressupostos 1 – É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.” (BRASIL. Código Penal de Portugal. Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt>. Acesso em: 2 fev.2016). 168 se afere na jurisprudência portuguesa562. Não se pode deixar de citar o maior rigor nos casos de reincidência específica, tangentemente ao tráfico de drogas563 e quando a personalidade se volta ao crime de forma reiterada564. 562 “1. Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 30-05-2012: 1.Para efeitos de reincidência exige-se a verificação dos seguintes pressupostos: a) Formais: o cometimento de um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a seis meses; a condenação anterior, com trânsito em julgado, de um crime doloso, em pena de prisão superior a seis meses e o não decurso de mais de 5 anos entre o crime anterior e a prática do novo crime. b) Material: que se mostre que, segundo as circunstâncias do caso, a condenação ou condenações anteriores não serviram ao agente de suficiente advertência contra o crime; 2.O preenchimento do pressuposto material tem de assentar em factos concretos, não bastando a mera menção ao certificado de registo criminal; 3.Torna-se necessário explicitar, designadamente da motivação para a prática dos factos, de ausência voluntária de hábitos de trabalho e sobre a personalidade do arguido, que permitam concluir que entre os crimes pelos quais cumpriu prisão e o crime em apreciação, existe uma íntima conexão, nomeadamente em âmbito de motivos e forma de execução, relevantes do ponto de vista da censura e da culpa, que permita concluir que a reiteração radica na personalidade do arguido, onde se enraizou um hábito de praticar crimes, e a quem a anterior condenação em prisão efetiva não serviu de suficiente advertência contra o crime, e não um simples multiocasional na prática de crimes em que intervêm causas fortuitas ou exógenas. (grifo nosso – Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt>. Acesso em: 2 fev.2016). 563 “ Ac. STJ de 29-02-2012: I. O artigo 75.º do CP enuncia os requisitos da condenação a título de reincidência. Assim, constituem pressupostos formais da reincidência, para além da prática de um crime, “por si só ou sob qualquer forma de participação”: – que o crime agora cometido seja doloso; – que este crime, sem a incidência da reincidência, deva ser punido com pena de prisão superior a 6 meses; – que o arguido tenha sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efectiva superior a 6 meses, por outro crime doloso; – que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos, prazo este que se suspende durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coacção, de pena ou de medida de segurança. II. Além daqueles pressupostos formais a verificação da reincidência exige, ainda, um pressuposto material: o de que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. III. No caso sub judice, estão preenchidos todos os pressupostos formais da reincidência. Quanto ao pressuposto de ordem material, estando em causa uma reincidência homogénea, ou específica, é lógico o funcionamento da prova por presunção em que a premissa maior é a condenação anterior e a premissa menor a prática de novo crime do mesmo tipo do anteriormente praticado (tráfico de estupefacientes): se o arguido foi condenado anteriormente por crimes do mesmo tipo e agora volta a delinquir pela mesma prática é liminar a inferência de que foi indiferente ao sinal transmitido, não o inibindo de renovar o seu propósito de delinquir. IV. Na verdade, se o que se pretende são provas que permitam fundamentar a convicção de que a condenação anterior não teve qualquer relevância na determinação posterior do arguido, então é particularmente legítimo o apelo a uma regra de experiência comum que nos diz que a condenação anterior não produziu qualquer inflexão na opção pela prática de crimes do mesmo tipo. Se em relação a uma criminalidade heterogénea ainda se pode afirmar a possibilidade de uma descontinuidade, ou fragmentação do sinal consubstanciado na decisão anterior, pois que o contexto em que foi produzida pode ser substancialmente distinto, provocando a falência das premissas para o funcionamento da presunção, não se vislumbra onde é que a mesma afirmação se possa produzir perante crimes do mesmo tipo. V. No caso, admitindo a relevância da confissão, importa, porém, considerar a densidade da ilicitude, expressa numa actividade já com uma estrutura organizativa rudimentar com o objectivo de tráfico de droga: o arguido era o vértice, ou seja, assumia a liderança de um grupo de pessoas que, com regularidade, transportava droga em quantidades apreciáveis com o objectivo de proceder posteriormente à sua revenda. VI. Significa o exposto que o apelo aos propósitos de prevenção geral, ou especial, são condicionados pelas concretas circunstâncias de culpa e ilicitude, que se revelam com um lastro denso. Efectivamente, é toda uma actividade organizada e regular em que o arguido desempenha um papel essencial e que colide com valores fundamentais da sociedade como é a saúde física e mental dos seus cidadãos. O arguido praticava tal actividade consciente do seu significado em termos de violação da lei e queria tal resultado como forma de obter um rendimento ilícito.” (Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt>. Acesso em: 2 fev.2016). 564 “ Ac. TRC de 25-02-2015: V. Tratando-se de crimes de igual natureza, a descrição dos factos respeitantes ao percurso criminoso do arguido são, inexoravelmente, reveladores de que a sucumbência revelada pela prática do novo ilícito penal é consequência de uma qualidade desvaliosa que entronca na personalidade do agente e não já fruto de causas fortuitas/acidentais, exclusiva ou predominantemente exógenas que caracterizam a pluriocasionalidade, o que conduz à afirmação de uma culpa agravada por 169 Há também o período depurador de 5 anos para a aplicação da reincidência, computando-se após o cumprimento da medida processual, pena ou medida de segurança privativas de liberdade, consoante pressuposto 2 do artigo 75º565. É necessário comprovar nos autos a data do cometimento do crime anterior, sob pena de faltar um pressuposto formal à configuração da reincidência566. O pressuposto 3567 enumera que o crime cometido no exterior apenas servirá para a reincidência se também for crime na lei portuguesa. E o 4 menciona que “a prescrição da pena, a amnistia, o perdão genérico e o indulto, não obstam à verificação da reincidência”. O artigo 76º dispõe que em caso de reincidência a pena será aumentada de um terço, sem alteração do limite máximo. Ademais, o aumento não pode exceder a pena mais grave aplicada nas condenações anteriores. Ainda, “as disposições respeitantes à pena relativamente indeterminada, quando aplicáveis, prevalecem sobre as regras da punição da reincidência”. No que se refere à pena relativamente indeterminada, é uma regra inserida nos artigos 83 a 89 do Código Penal aplicável, por exemplo, àqueles que cometem crime doloso por tendência, com pena privativa superior a dois anos, após cometer anteriormente dois ou mais crimes dolosos com pena de prisão privativa superior a dois anos, com a avaliação conjunta dos fatos praticados e da personalidade do autor para tanto568. a condenação anterior não ter servido de suficiente advertência contra o crime e, assim, à verificação da modificativa agravante geral prevista no art. 75.º do CP. 565 “2 – O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.” (Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt>. Acesso em: 2 fev.2016). 566 “ Ac. TRP de 25-03-2015: I. Sendo a acusação e ao acórdão omissos sobre a data em que foram praticados os crimes anteriores, falta um dos pressupostos formais da reincidência: que entre a prática do crime anterior e a do crime seguinte não tenham decorrido mais de cinco anos.” (Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt>. Acesso em: 2 fev. de 2016). 567 “3 – As condenações proferidas por tribunais estrangeiros contam para a reincidência nos termos dos números anteriores, desde que o facto constitua crime segundo a lei portuguesa”. (Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt/>. Acesso em: 2 fev. 2016). 568 “Artigo 83º – Pressupostos e efeitos: 1 – Quem praticar crime doloso a que devesse aplicar-se concretamente prisão efectiva por mais de 2 anos e tiver cometido anteriormente dois ou mais crimes dolosos, a cada um dos quais tenha sido ou seja aplicada prisão efectiva também por mais de 2 anos, é punido com uma pena relativamente indeterminada, sempre que a avaliação conjunta dos factos praticados e da personalidade do agente revelar uma acentuada inclinação para o crime, que no momento da condenação ainda persista. ” (Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt>. Acesso em: 2 fev. 2016). 170 4.6.3 Alemanha A Alemanha, em 1986, extinguiu a reincidência,569 570 “por considerar contrária ao princípio da culpabilidade”571. Interessante que, quando a reincidência era prevista no ordenamento jurídico alemão, existia apenas para alguns crimes da Parte Especial e se configurava com a exigência de duas condenações anteriores, aliada à comprovação de que as admoestações formais anteriores não foram eficientes. Importante, contudo, notar que a reincidência, apesar de extinta na Alemanha, mantém-se viva e influencia na dosimetria da pena, pois é considerada quando da análise dos antecedentes do infrator no §46, II, em que a vida pregressa do agente deve ser considerada para a fixação da pena 572, o que é questionado pela doutrina alemã, pois se o réu reitera na prática delituosa demonstrando especial periculosidade, a ele deve ser aplicada a Sicherungsverwahrung – Custódia de Segurança, conforme §66 StGB573. A esse respeito, importante destacar: Em tema de medidas de segurança aplicáveis a pessoas inteiramente imputáveis, o CPA prevê a internação em um estabelecimento de desintoxicação, a detenção preventiva, que também poderia ser designada como internação em estabelecimento para delinquentes habituais, o acompanhamento de conduta, a supressão da licença para dirigir veículos automotores, e a proibição do exercício de profissão. Destinam-se todas a prevenir a reiteração criminosa e podem ser aplicadas juntamente com a pena criminal correspondente ao ilícito cometido. O rol das medidas de segurança consta do §61 do 574 CPA . 569 ASSIS, Rafael Damaceno de. Análise crítica do instituto da reincidência criminal. Revista CEJ, Brasília, ano XII, nº40, p.73-80, jan.-mar., 2008, p.76. 570 “No ano de 1986, por força da 23.ª lei de reforma de 13 de abril, BGBl. I 393, o §48, foi revogado. Entre os fundamentos para tal mudança, destacam-se, fora outros argumentos: a ausência de proporcionalidade na agravação; ausência de efeito admonitório nas condenações anteriores; falta de eficácia preventiva do instituto; indevida aplicação em crimes de bagatela e delitos sem conexão material íntima com o primeiro crime; e a presença de dúvidas quanto o aumento de culpabilidade do agente pela reincidência.” (ASSIS, Cássio Chechi de. A solvabilidade constitucional do regime da reincidência criminal. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Out.2014. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt>. Acesso em: 8 fev.2016). 571 PUIG, Santiago Mir. Derecho penal – parte geral. 6.ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2002, p.618 (nota de rodapé). 572 DECOMAIN, Pedro Roberto. O Código Penal alemão: tradução, comparação e notas. Porto Alegre, RS: Núria Fabris, 2014, p.175. 573 ASSIS, Cássio Chechi de. A solvabilidade constitucional do regime da reincidência criminal. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Out. 2014. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt>. Acesso em: 8 fev.2016. 574 DECOMAIN, Pedro Roberto. O Código Penal alemão: tradução, comparação e notas. Porto Alegre, RS: Núria Fabris, 2014, p.21. 171 A aplicação das medidas de segurança tem prazos preedeterminados pelo Código Penal, a depender da hipótese de aplicação, havendo, inclusive previsão de acompanhamento do condenado. 4.6.4 Espanha O Código Penal Espanhol – Ley Orgânica 10/1995575 – regulamenta a reincidência no artigo 22, 8ª, sendo uma circunstância agravante que sempre existiu no ordenamento jurídico espanhol576. Configura reincidência na Espanha quando o réu comete novo crime do mesmo título do Código Penal 577, sempre da mesma natureza, após o trânsito em julgado da primeira condenação. Observa-se, então, que vigora na Espanha a reincidência específica, havendo dificuldade de conceituá-la. Contudo, o Tribunal Supremo espanhol já decidiu que crimes da mesma natureza são aqueles que “não só violam o mesmo bem jurídico, mas também lançam mão do mesmo modo de ataque.” 578 A Espanha adotou a reincidência ficta, já que não exige o cumprimento total ou parcial da pena da condenação anterior. E, ainda, os efeitos da reincidência não são perpétuos, visto que os antecedentes criminais cancelados, de acordo com as regras do Código Penal, não serão considerados, nem aqueles que correspondam aos delitos leves579. O artigo 66.1, 5ª regra, dispõe sobre a multirreincidência ou reincidência qualificada ao prever que aquele reincidente que acumule três 575 O Código Penal espanhol está dividido em dois Livros: I. Disposições Gerais sobre os Delitos, as pessoas responsáveis, as penas, medidas de segurança e demais consequências da infração penal e II. e Dos Delitos e suas penas, os quais se subdividem em Títulos e esses em Capítulos. (Disponível em: <file:///C:/Users/Prof.%20Lisandra/Downloads/BOE038_Codigo_Penal_y_legislacion_complementaria.pdf>. Acesso em: 8 fev.2016). 576 “Artículo 22. Son circunstancias agravantes [...] 8.ª Ser reincidente. Hay reincidencia cuando, al delinquir, el culpable haya sido condenado ejecutoriamente por un delito comprendido en el mismo título de este Código, siempre que sea de la misma naturaleza. A los efectos de este número no se computarán los antecedentes penales cancelados o que debieran serlo, ni los que correspondan a delitos leves. Las condenas firmes de jueces o tribunales impuestas en otros Estados de la Unión Europea producirán los efectos de reincidencia salvo que el antecedente penal haya sido cancelado o pudiera serlo con arreglo al Derecho español.” (Disponível em: <file:///C:/Users/Prof.%20Lisandra/Downloads/BOE038_Codigo_Penal_y_legislacion_complementaria.pdf>. Acesso em: 8 fev.2016). 577 PUIG, Santiago Mir. Derecho penal – parte geral. 6.ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2002, p.620. Esclarece o autor que a relação exigida (mesmo título do Código e da mesma natureza) pretendeu ser qualitativa e assegurar uma certa semelhança entre os fatos em jogo. 578 ASSIS, Cássio Chechi de. A solvabilidade constitucional do regime da reincidência criminal. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Out. 2014. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt>. Acesso em: 8 fev.2016. 579 PUIG, Santiago Mir. Derecho penal – parte geral. 6.ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2002, p.618. 172 condenações anteriores transitadas em julgado por fatos da mesma natureza e compreendidos no mesmo Título, quando da quarta condenação, o juiz poderá aplicar pena superior ao limite máximo previsto em lei, desde que justifique de acordo com a gravidade do novo delito, não se computando os antecedentes cancelados. Essa espécie de reincidência foi introduzida com a reforma penal da Lei Orgânica 11/2003, com a justificativa da necessidade de fortalecer a segurança do cidadão580. Para o cancelamento dos antecedentes, o Código Penal Espanhol especifica no artigo 136 que é necessário: a) a reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo, b) transcurso do seguinte tempo, sem o cometimento de novos crimes – b.1) seis meses para penas leves; b.2) dois anos para as penas que não excedam doze meses e as cominadas a crimes culposos; b.3) três anos para outras penas menos graves inferiores a três anos; b.4) cinco anos para as penas graves, igual ou superior a três anos e b.5) dez anos para as penas graves, todos com início da contagem após o dia seguinte ao da extinção da pena. O Supremo Tribunal da Espanha decidiu em 6 de abril de 1990581 que “a pena imposta ao reincidente não pode ultrapassar o marco da culpabilidade pelo fato. Assim, fixada essa medida, atendendo-se às exigências de prevenção, pode-se elevar a pena por conta da reincidência” 582 583. A reincidência na Espanha, por fim, traz vários reflexos, pois o reincidente não tem o direito de suspensão condicional da pena, conforme previsão do artigo 80.2, regra 1ª, com exceção dos crimes culposos e dos 580 VILCHES, Daniela Sanhueza. Análisis jurisprudencial de la reincidencia impropria y quebrantamiento. Universidad de Chile Facultad de Derecho Departamento de Ciencias Penales. Santiago de Chile, 2015, p.15. Disponível em:< http://repositorio.uchile.cl/bitstream/handle/>. Acesso em: 10 fev.2016. 581 Conforme Santiago Mir Puig, o STS não admitiu abertamente a inconstitucionalidade de todo agravamento da pena pela reincidência, mas apenas considerou de acordo com a Constituição quando não superar o limite da culpabilidade pelo fato, analisada sem considerar a conduta anterior do reincidente. (PUIG, Santiago Mir. Comentarios a la Jurisprudencia del Tribunal Superior – Sobre la constitucionalidade de la reincidência em la Jurisprudencia del Tribunal Supremo y del Tribunal Constitucional. In: Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales. Madrid : Boletín Oficial del Estado, 1948-2010, t.XLVI, Fasciculo III, set.-dez.1993, p.1.140. 582 PUIG, Santiago Mir. Derecho penal – parte geral. 6.ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2002, p.619. Para o autor, é rechaçável que agrave a pena por uma atitude interna do sujeito, principalmente considerando uma menor capacidade de resistência frente ao delito (menor culpabilidade) de quem tenha passado pela experiência carcerária. 583 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2.ed. São Paulo: RT, 2007, p.219. O autor discorda, pois a culpabilidade é determinante para considerar o crime existente e a reincidência não diz respeito ao fato, e sim ao autor. Entende ser ele mais perigoso e censurável, principalmente quando tenha cumprido pena, negando a proposta de reeducação do Estado. 173 crimes leves, revoga a liberdade condicional prevista no artigo 93 e exclui a possibilidade de indulto. E, ainda, ao reincidente pode ser aplicada medida de segurança, conforme dispõe o artigo 95 e seguintes do Código Penal. 4.6.5 França O Código Penal Francês regulamenta a reincidência criminal na “Subsección 2: De las penas aplicables en caso de reincidência”, artigos 132-8 a 132-16-2584. Nesses artigos é possível extrair que a França adota a reincidência ficta e genérica, com aumentos diferenciados aos reincidentes, considerando a quantidade da pena privativa de liberdade aplicada no primeiro crime e a pena máxima prevista para o segundo585. De acordo com o artigo 132-8, se a pessoa física é condenada por sentença transitada em julgado por um crime com pena de 10 anos de prisão e comete outro crime com pena máxima de 20 e 30 anos, terá os efeitos da perpetuidade e a prisão perpétua decretada. Ademais, quando a pessoa sentenciada por um crime com pena de dez anos de prisão, comete outro delito, no prazo de dez anos a contar do cumprimento ou da prescrição da pena deste, com a mesma pena, essa será duplicada ao máximo das penas de prisão e multa aplicáveis. Se a pessoa for condenada a dez anos de prisão, ao cometer um novo delito, no prazo de cinco anos, o qual tenha pena superior a um ano e inferior a dez, a pena será duplicada no máximo das penas de prisão e da multa aplicável586. 584 Código Penal Francês. Disponível em: <http://www.juareztavares.com/textos/codigofrances.pdf>. Acesso em: 8 fev. 2016. 585 CHIQUEZI, Adler. Reincidência criminal e sua atuação como circunstância agravante. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p.62. 586 “O critério da temporariedade da reincidência é acolhido no caso de a infração posterior ter pena igual ou inferior a dez anos, visto que se transcorrido o prazo superior a dez anos entre a extinção da pena anterior e o novel crime, não haverá reincidência; esse lapso temporal será diminuído para cinco anos na hipótese de a pena do crime posterior for de um e inferior a dez anos. Nessas hipóteses, as penas de prisão máxima e de multa são duplicadas. (CHIQUEZI, Adler. Reincidência criminal e sua atuação como circunstância agravante. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p.61-62). 174 4.6.6 Argentina Na Argentina também está previsto o instituto da reincidência criminal nos artigos 50 a 53 (Título VIII do Primeiro Livro) do Código Penal 587, destacando-se algumas regras que serão aqui abordadas. O sistema adotado é o da temporariedade588, com a regra de que não haverá reincidência após o mesmo tempo da pena executada, com o limite mínimo de cinco anos e máximo de dez anos589. A esse respeito, ressalta-se: O que possui limite temporal é a eficácia da condenação anterior como exigência necessária para o sujeito adquirir a qualidade de reincidente. É que se contém na Exposição de Motivos dos deputados argentinos que modificaram o Projeto de 1906, que não previa limite temporal da condenação para efeito de reincidência: “Aplicando o Projeto de 1906, condenado o delinquente uma vez, deverá estar perpetuamente submetido às suas consequências, ainda que sua vida posterior tenha sido honesta. O direito de acusar prescreve, as penas também. Por que não há de prescrever o antecedente do crime, quando uma vida posterior honrada demonstrou o reajustamento do sujeito? Propomos, para que essa prescrição se opere, os mesmos prazos que regem a extinção das 590 penas pelo transcurso do tempo . Outrossim, o Código Penal Argentino adota o critério da reincidência real, já que para configurá-la o autor deve já ter cumprido, total ou parcialmente, pena privativa de liberdade em crime anterior. A pena de multa isolada não é considerada para fins de reincidência, tampouco a condenação por contravenção penal. 587 O Código Penal argentino é organizado por dois Livros: Disposições Gerais e Dos Delitos, os quais se dividem em Títulos, compondo o total de 316 artigos. Disponível em: <http://www.infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/15000-19999/16546/texact.htm>. Acesso em: 08 fev. 2016. 588 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal – parte geral. v.1. 28.ed. Saraiva: São Paulo, 2007, p. p. 569. 589 CÓDIGO PENAL COMENTADO Y ANOTADO – parte general (artigo1º ao 78). Director: Andrés José D’Alessio, Coordinador: Mauro A. Divito. Buenos Aires: La Ley, 2005. Disponível em: <http://www.ues.flakepress.com/>. Acesso em: 10 fev. 2016. “Articulo 50 – Habrá reincidencia siempre que quien hubiera cumplido, total o parcialmente, pena privativa de libertad impuesta por un tribunal del país cometiere un nuevo delito punible también con esa clase de pena. La condena anterior no se tendrá em cuenta a los efectos de considerar al reo como reincidente, cuando hubiere transcurrido outro término igual al de la condena extinguida, que nunca excederá de diez anos ni será inferior a cinco”. (Disponível em: <http://www.ues.flakepress.com>. Acesso em: 10 fev.2016). 590 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal – parte geral. v.1. 28.ed. Saraiva: São Paulo, 2007, p.570. 175 É admissível a reincidência internacional, desde que por força do delito praticado seja possível a extradição, segundo a lei argentina 591. Não há reincidência de delitos políticos, militares próprios, anistiados e cometidos por menores de 18 anos de idade592. O artigo 51 regulamenta o direito de registro penal, com regras sobre o resguardo de informações com a existência de processos penais, a fim de que a divulgação de certos dados prejudique a vida dos indivíduos. O artigo 52593 dispõe sobre a reclusão por tempo indeterminado em caso de reincidência múltipla ou multirreincidência, ou seja, quando o sujeito acumula reincidências. Isso ocorre quando o sujeito pratica quatro crimes em que pelo menos um tenha pena privativa de liberdade superior a três anos ou quando comete cinco crimes punidos com pena privativa de liberdade, com três anos de pena ou menos. Vale destacar que “un ponto discutido es la reclusión por tiempo indeterminado, ya que vulneraría los princípios de legalidad y porporcionalidad”594. O parágrafo final do artigo 52 traz a possibilidade da suspensão dessa medida acessória uma única vez, e de acordo com o que dispõe o artigo 26. 591 CÓDIGO PENAL COMENTADO Y ANOTADO – parte general (artigo1º ao 78). Director: Andrés José D’Alessio, Coordinador: Mauro A. Divito. Buenos Aires: La Ley, 2005. Disponível em: <http://www.ues.flakepress.com/>. Acesso em: 10 fev. 2016. “ARTICULO 50 [...] “La condena sufrida en el extranjero se tendrá en cuenta para la reincidencia si ha sido pronunciada por razón de un delito que pueda, según la ley argentina, dar lugar a extradición”. (Disponível em: <http://www.ues.flakepress>. Acesso em: 10 fev. 2016). 592 CÓDIGO PENAL COMENTADO Y ANOTADO – parte general (artigo1º ao 78). Director: Andrés José D’Alessio, Coordinador: Mauro A. Divito. Buenos Aires: La Ley, 2005. Disponível em: <http://www.ues.flakepress.com/>. Acesso em: 10 fev. 2016. “ARTICULO 50 [...] “No dará lugar a reincidencia la pena cumplida por delitos políticos, los previstos exclusivamente en el Código de Justicia Militar, los amnistiados o los cometidos por menores de dieciocho años de edad”. (Disponível em: <http://www.ues.flakepress.com>. Acesso em: 10 fev.2016). 593 CÓDIGO PENAL COMENTADO Y ANOTADO – parte general (artigo1º ao 78). Director: Andrés José D’Alessio, Coordinador: Mauro A. Divito. Buenos Aires: La Ley, 2005. Disponível em: <http://www.ues.flakepress.com/>. Acesso em: 10 fev. 2016. “ARTICULO 52. Se impondrá reclusión por tiempo indeterminado como accesoria de la última condena, cuando la reincidencia fuere múltiple en forma tal que mediaren las siguientes penas anteriores: 1. Cuatro penas privativas de libertad, siendo una de ellas mayor de tres años; 2. Cinco penas privativas de libertad, de tres años o menores. Los tribunales podrán, por una única vez, dejar en suspenso la aplicación de esta medida accesoria, fundando expresamente su decisión en la forma prevista en el artículo 26.” (Disponível em: <http://www.ues.flakepress.com>. Acesso em: 10 fev. 2016). 594 VILCHES, Daniela Sanhueza. Análisis jurisprudencial de la reincidencia impropria y quebrantamiento. Universidad de Chile. Facultad de Derecho. Departamento de Ciencias Penales. Santiago de Chile, 2015, p.22. Disponível em: <http://repositorio.uchile.cl.> Acesso em: 10 fev.2016. 176 O artigo 53595 traz a possibilidade de o juiz conceder a liberdade condicional ao réu, depois de transcorridos cinco anos do cumprimento da reclusão acessória (pena indeterminada), sempre que o condenado tenha mantido boa conduta, demonstrando aptidão e hábito para o trabalho e as demais atitudes que revelem que ele não será um perigo à sociedade. Depois de 5 anos de liberdade condicional, o condenado poderá alcançar a liberdade definitiva. Se violar qualquer das condições estabelecidas no artigo 13 – condições da liberdade condicional – (como por exemplo: não cometer novos delitos), terá revogado o benefício e reintegrado ao regime carcerário anterior e, apenas, após 5 anos poderá solicitar novamente a liberdade condicional. Por fim, registra-se que a reincidência na Argentina foi objeto de análise da Corte Suprema de Justicia de la Nación decidindo esta pela constitucionalidade do instituto, com apenas o voto divergente do Ministro Zaffaroni596. 4.6.7 Colômbia “Por último, existem legislações que eliminaram o conceito de reincidência, como o fez o Código da Colômbia597, de 1980”598. Um dos 595 CÓDIGO PENAL COMENTADO Y ANOTADO – parte general (artigo1º ao 78). Director: Andrés José D’Alessio, Coordinador: Mauro A. Divito. Buenos Aires: La Ley, 2005. Disponível em: <http://www.ues.flakepress.com/>. Acesso em: 10 fev. 2016. “ARTICULO 53 – En los casos del artículo anterior, transcurridos cinco años del cumplimiento de la reclusión accesoria, el tribunal que hubiera dictado la última condena o impuesto la pena única estará facultado para otorgarle la libertad condicional, previo informe de la autoridad penitenciaria, en las condiciones compromisorias previstas en el artículo 13, y siempre que el condenado hubiera mantenido buena conducta, demostrando aptitud y hábito para el trabajo, y demás actitudes que permitan suponer verosímilmente que no constituirá un peligro para la sociedad. Transcurridos cinco años de obtenida la libertad condicional el condenado podrá solicitar su libertad definitiva al tribunal que la concedió, el que decidirá según sea el resultado obtenido en el período de prueba y previo informe del patronato, institución o persona digna de confianza, a cuyo cargo haya estado el control de la actividad del liberado. Los condenados con la reclusión accesoria por tiempo indeterminado deberán cumplirla en establecimientos federales. La violación por parte del liberado de cualquiera de las condiciones establecidas en el artículo 13 podrá determinar la revocatoria del beneficio acordado y su reintegro al régimen carcelario anterior. Después de transcurridos cinco años de su reintegro al régimen carcelario podrá en los casos de los incisos 1º, 2º, 3º y 5º del artículo 13, solicitar nuevamente su libertad condicional.” (Disponível em: http://www.ues.flakepress.com/. Acesso em: 10 fev.2016). 596 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.154. Nota: Recurso de Hecho, causa 6457/2009, j.05-02-2013. 597 Lei 599 de 2000, composta por dois livros – Parte Geral e Parte Especial dos Delitos em Particular, com um total de 476 artigos, divididos em títulos e capítulos. (BERNAL, José Fernando Botero (Compilador y quien actualiza). Código Penal Colombiano – Ley 599 de 2000. Disponível em: <http://perso.unifr.ch>. Acesso em: 12 fev. 2016). 598 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.716. 177 argumentos que levou o país a eliminar a reincidência foi a ausência de um fundamento que não ferisse o princípio do ne bis in idem. Apesar do apontamento de que a reincidência na Colômbia foi extinta, observa-se na Parte Especial do Código Penal a menção da recidiva, como, por exemplo, no crime de contrabando (artigo 319599), a qual aumenta da metade até três quartos a pena do reincidente, devendo ser específica. Mesmo assim, a reincidência não é aplicada, pois a doutrina colombiana vem afirmando que há uma nítida afronta ao princípio da legalidade inserido no artigo 6º600 do mesmo Código e que esse deve prevalecer sobre a regra da parte especial. Da mesma forma, mencionada interpretação está em consonância com o artigo 29-2601 da Constituição da Colômbia que trata também da legalidade. A reincidência nesse país também aparece no Código Penitenciário e Carcerário (Lei nº65/93), como um dos critérios de separação dos internos (artigo 63)602. 4.6.8 Estados Unidos da América Os Estados Unidos da América (EUA) possuem uma política criminal altamente repressiva603 e mesmo assim o índice de reincidência criminal é de 77%, de acordo com os dados estatísticos levantados pelo Departamento de 599 Lei 599 de 2000, composta por dois livros – Parte Geral e Parte Especial dos Delitos em Particular, com um total de 476 artigos, divididos em títulos e capítulos. (BERNAL, José Fernando Botero (Compilador y quien actualiza). Código Penal Colombiano – Ley 599 de 2000. Disponível em: <http://perso.unifr.ch>. Acesso em: 12 fev. 2016). 600 “Artículo 6. Legalidad. Nadie podrá ser juzgado sino conforme a las leyes preexistentes al acto que se le imputa, ante el juez o tribunal competente y con la observancia de la plenitud de las formas propias de cada juicio. La preexistencia de la norma también se aplica para el reenvío en materia de tipos penales en blanco. La ley permisiva o favorable, aun cuando sea posterior se aplicará, sin excepción, de preferencia a la restrictiva o desfavorable. Ello también rige para los condenados. La analogía sólo se aplicará en materias permisivas.” (BERNAL, José Fernando Botero (Compilador y quien actualiza). Código Penal Colombiano – Ley 599 de 2000. Disponível em: <http://perso.unifr.ch>. Acesso em: 12 fev. 2016). 601 “Artículo 29. [...] Nadie podrá ser juzgado sino conforme a leyes preexistentes al acto que se le imputa, ante juez o tribunal competente y con observancia de la plenitud de las formas propias de cada juicio.” Constituição da Colômbia. (Disponível em: <http://www.jurisciencia.com/vademecum/constituicoesestrangeiras/a-constituicao-da-colombia-constitucion-de-colombia/582/>. Acesso em: 12 fev.2016). 602 VILCHES, Daniela Sanhueza. Análisis jurisprudencial de la reincidencia impropria y quebrantamiento. Universidad de Chile. Facultad de Derecho. Departamento de Ciencias Penales. Santiago de Chile, 2015, p.25. Disponível em: <http://repositorio.uchile.cl/>. Acesso em: 10 fev.2016. 603 ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.105. 178 Justiça que acompanhou, durante 5 anos, a vida de 404.638 ex-detentos que deixaram o sistema prisional em 2005604. De acordo com essa pesquisa, destaca João Ozorio de Melo: O levantamento feito para o estudo revelou que, nesse período de cinco anos, a polícia realizou cerca de 5,5 milhões de prisões de membros dessa população de 404.638 prisioneiros, que representam 75% de todos os prisioneiros libertados no país em 2005. Muitas dessas prisões podem envolver mais de um tipo de acusação, como 605 um crime violento e tráfico de drogas — ou delitos menores . Para conter a criminalidade, diversos modelos de repressão foram criados nos EUA. A Teoria das Janelas Quebras (Broken Windows Theory), conforme Loïc Wacquant606, criada em 1982 por James Q. Wilson (papa da criminologia conservadora nos Estados Unidos) e George Kelling, traduz o ditado popular de “quem rouba um ovo, rouba um boi”, para defender que é combatendo os pequenos delitos que se evita as grandes patologias criminais. Seguindo a mesma linha repressiva, surge na década de 1990 a política de Tolerância Zero (Zero Tolerance), em Nova York, elaborada por Rudolph Guiliani, prefeito da época, e por Willian Bratton, chefe de polícia, com a promessa de conter a criminalidade, reforçando veementemente as medidas de prevenção delitiva. Essa política alimentou uma sensação de insegurança para se justificar e apresentou reflexos sociais vultosos, como a superlotação de presídios e a sobrecarga do Poder Judiciário. Com certeza, esses movimentos desenfrearam a reincidência criminal, com a punição em demasia dos pequenos delitos. É a Three Strikes and You´re Out, todavia, que mais reflete na produção da reincidência criminal. Foi criada pela lei californiana Proposition 184, em março de 1994, após o sequestro e assassinato de Polly Hannah Klaas, de 12 anos, cometido por um reincidente, Richard Alle Davis, e teve 604 DUROSE, Matthew R; SNYDER, Howard N., Ph.D., and Alexia D. Cooper, Ph.D., BJS Statisticians. Multistate Criminal History Patterns of Prisoners Released in 30 States. U.S. Department of Justice Office of Justice Programs Bureau of Justice Statistics. Special Report, september 2015, NCJ 248942. Disponível em: <http://www.bjs.gov/content/pub/pdf/mschpprts05.pdf>. Acesso em: 29 set.2016. 605 MELO, João Ozorio de. Baixa ressocialização. Estudo mostra que índice de reincidência no crime é de 77% nos EUA. Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-out-02/estudo-mostra-indicereincidencia-crime-77-eua.> Acesso em: 29 set.2016. 606 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 179 como escopo trazer a perpetuidade da reincidência. Daniel Silva Boson607 faz uma análise econômica dos efeitos da reincidência nos Estados Unidos da América. No ano de 2000 a lei sofreu alterações, pela Propositon 36, no sentido de trazer menos rigor aos usuários de drogas, permitindo o seu tratamento no lugar de prisão perpétua; no ano de 2011, foi permitida a possibilidade de liberdade condicional e de penas menos severas aos condenados por crimes não violentos ou graves e, no ano de 2012, limitou a prisão perpétua em razão da terceira condenação em crimes graves ou violentos. É possível aferir a preocupação com os altos custos gerados pelo sistema prisional em contrapartida a baixa efetividade. 4.7 Discussão sobre a (in) constitucionalidade da reincidência Em controle difuso de constitucionalidade, em 4 de abril de 2013, o Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso Extraordinário nº453.000/RS, em sede de repercussão geral, analisou o instituto da reincidência criminal, com o julgamento unânime a favor da sua constitucionalidade. O Recurso Extraordinário foi interposto pela Defensoria Pública Estadual contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que considerou válida a incidência da agravante de reincidência na dosimetria da pena, mantendo a pena do condenado, Volnei da Silva Leal, pelo crime de extorsão (artigo 158, caput, do Código Penal) em quatro anos e seis meses608. Os argumentos apresentados pela Defensoria Pública foram os seguintes: violação da regra do bis in idem, já que o réu seria punido duas vezes pelo mesmo fato, ofensa ao princípio da individualização da pena, a estigmatização do réu, o prejuízo na sua ressocialização e a criação de obstáculos para uma diversidade de benefícios legais. O Ministério Público Federal suscitou a tese de constitucionalidade da regra com o argumento de que o sistema penal brasileiro adota a pena com a dupla função de reprovar e prevenir o crime. Por isso, a reincidência teria 607 BOSON, Daniel Silva. Three strickes and you´re out: uma análise econômica das penas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. nº116, v.23, 2015, p.20. 608 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=235084>, Acesso em 08 de ago. de 2013. 180 como escopo censurar com maior rigor aquele que reitera na prática criminosa. Não se trata de uma dupla punição, já que são fatos diferentes e o que se leva em consideração é a história de vida do criminoso. A matéria teve a repercussão geral reconhecida em outro recurso, em 3.10.2008 (RE 591563/RS, Relator Ministro Cezar Peluso). Posteriormente, em 29.06.2012, foi julgado prejudicado em razão do provimento do recurso especial no Superior Tribunal de Justiça. Em 07.03.2013, esse último foi substituído pelo RE 732.290, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, com a aplicação do entendimento firmado a todos os processos semelhantes em trâmite nos demais tribunais e, ainda, a possibilidade de decisão monocrática pelos ministros em habeas corpus sobre o mesmo tema. No RE 591563/RS, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) requereu sua inclusão como amicus curiae, porém o pedido foi negado, uma vez que o processo já estava incluído em pauta para julgamento. No entanto, o instituto publicou sua manifestação e se posicionou pela não recepção da agravante de reincidência pela Constituição Federal609. Em decorrência da decisão do RE nº453.000, foram negados pelos ministros quatro habeas corpus: HCs nº93411, nº93815, nº94361 e nº94711 que levantavam a mesma matéria. A partir da decisão da Suprema Corte, com relatoria do Ministro Marco Aurélio, podem ser extraídos vários fundamentos que consideraram a reincidência criminal constitucional. A seguir, serão abordados, conforme a decisão de cada Ministro. a) Relator Ministro Marco Aurélio: a.1 ) A reincidência criminal traz múltiplas repercussões no decorrer do processo, com reflexos em vários institutos penais, por isso compõe o sistema de política criminal de combate à delinquência. a.2) Trata-se de um fato de discriminação que se mostra razoável, já que leva em consideração o perfil do réu; 609 A questão da agravante da reincidência e a vedação de bis in idem: subsídios do IBCCrim para o debate constitucional no âmbito do RE 591.563/STF. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/docs/amicus_curiae/RE_n._591563-8_Reincidencia.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2016. 181 a.3) É inadmissível o desmonte do sistema criminal diante do aumento sem igual da prática criminosa; a.4) A reincidência, que existe desde a época do Império, é proporcional tendo em vista a política normativa criminal e envolve mais de vinte institutos penais. b) Ministra Rosa Weber: b.1) A reincidência não implica dupla valoração; b.2) Não é uma nova punição, mas resulta de maior juízo de censura. b.3) Não se trata de direito penal do autor, pois o que é valorado negativamente é a conduta criminal pretérita, o que o agente fez e não uma condição pessoal dele. b.4) A reincidência não interfere no momento de cognição e decisão, apenas na exasperação da pena, não violando o princípio da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, Constituição Federal de 1988). b.5) Faz parte da tradição do Direito brasileiro, sendo também prevista no direito comparado e, se reputada inconstitucional, traria um significativo impacto na legislação brasileira. c) Ministro Luiz Fux: c.1) A análise da reincidência deve ser tratada como uma tese biopsicológica (“saber se o Estado teleológico, que tem a finalidade de recuperar o imputado, ele fracassa nessa sua promessa, em razão de o acusado ter delinquido”). E, o Supremo Tribunal Federal não tem como saber sobre as condições da personalidade do agente. Se há a volta, a delinquência está relacionada ao sistema carcerário. c.2) A reincidência revela que a condenação transitada em julgado restou ineficaz no seu efetivo preventivo. d) Ministro Dias Tóffoli: acompanhou o voto do relator. e) Ministra Cármen Lúcia: a reincidência é uma forma de tratar igualmente os iguais, deixando as desigualdades para os desiguais. Acompanhou, desta forma, o voto do relator. f) Ministro Ricardo Lewandowski: a reincidência é justificável na exacerbação da pena do segundo crime pela maior culpabilidade do agente e 182 pela maior reprovabilidade que sobre ele recai, nas palavras de Aníbal Bruno. Acompanhou o voto do relator. g) Ministro Gilmar Mendes: g.1) a discussão da reincidência remete à falência do próprio modelo penal prisional. g.2) São necessárias medidas positivas de reinserção social para afetar a reincidência. g.3) Poucas são as respostas satisfatórias de enfrentamento da reincidência. h) Ministro Joaquim Barbosa: o condenado que comete novo crime não cumpriu a missão ou as finalidades da pena. Diante disso, importa a análise dos argumentos que fundamentam e defendem a existência do instituto da reincidência e, em contrapartida, dos que a rechaçam com respaldo constitucional. 4.7.1 Fundamentos favoráveis e a constitucionalidade da reincidência Vários são os argumentos que embasam a existência e a manutenção da reincidência criminal no ordenamento jurídico brasileiro. A origem da reincidência, como visto, está impregnada desde as primeiras legislações penais e nunca foi excluída no Brasil, passando apenas por algumas alterações. Com tantos anos de aplicação desse instituto, diversas são as razões que o fundamentam. Um primeiro argumento é o de que a reincidência constitui a prova de que o criminoso tem maior periculosidade, já que reiterou na prática delituosa610, por isso a reincidência pode ser “entendida como maior possibilidade de o indivíduo praticar novamente um ilícito, sendo, pois, necessária em defesa da sociedade contra o infrator”611. Esse argumento 610 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.717. 611 ASSIS, Rafael Damaceno de. Análise crítica do instituto da reincidência criminal. Revista CEJ, Brasília, ano XII, nº40, p.73-80, jan.-mar., 2008, p.74. 183 exposto está relacionado também como da prevenção especial da pena 612, que se subdivide em especial positiva e especial negativa. É muito criticado por se entender que a periculosidade deve ser analisada em cada caso prático, não podendo ser presumida. 613 Conforme Eugenio Raúl Zaffaroni614, essa explicação, que se afasta do direito penal de garantias, reduz o homem a uma “coisa” dirigida mecanicamente, retirando sua qualidade de pessoa, além de cair no julgamento por meio de presunções. A presunção de que o agente irá cometer mais crimes, apenas poderia ser mantida se houvesse a investigação de fatores atrelados tanto à personalidade do agente como sua história de vida (emprego, relações familiares, sociais, etc.). Esse método ultrapassaria o campo da culpabilidade, pois seria a expectativa de como o réu deve ser levada em consideração para a aplicação da pena e não o que ele fez615. Além disso, a atual situação do sistema carcerário brasileiro vai de encontro à ressocialização, já que a pena privativa de liberdade possui um caráter muito mais destrutivo do que edificante na vida do condenado616. De acordo com Paulo Queiroz: É de reconhecer, portanto, que a reincidência já não constitui uma prova segura de maior perigosidade, não se justificando, também por essa razão, sua existência. Por isso não é exato dizer que a reincidência é um sinal de periculosidade, como a febre é sinal de infecção, como a putrefação é sinal de morte (Hungria). Além disso, a reincidência não passa, como assinala Munõz Conde, de uma pena tarifada, na medida em que ela atua como causa de agravamento da 612 “O argumento de prevenção especial que busca justificar a majorante da reincidência é simples: a reiteração do delito revela a periculosidade do agente e prenuncia que o mesmo irá cometer novos delitos no futuro. Para evitar isso, seria preciso que o Estado atue sobre o agente através da imposição da pena criminal. Esta atuação pode se dar tanto para que o autor “aprenda” como que “fez”, seja “ressocializado” – prevenção geral positiva – ou para que a maior reprimenda iniba o condenado de cometer mais delitos ou o isole por mais tempo e poupe a sociedade dos possíveis crimes que o agente poderia cometer quando em liberdade – prevenção especial negativa, incapacitação seletiva (selecitve incapacitation)”. (TEIXEIRA, Adriano. O papel da reincidência criminal na aplicação da pena – reflexões a propósito do Acórdão do RE 453.000 do STF. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2014, RBCCrim 108, p.531). 613 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. V.1. – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.717. 614 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Reincidencia. Revista de Ciencias Penales: Montevideo, v.2, 1996, p.121. 615 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.167. 616 Nas palavras do autor: “... não é necessário recorrer a nenhum estudo empírico-científico para colocar em xeque os supostos efeitos ressocializantes da pena, tendo em vista sobretudo a deplorável situação das prisões brasileiras. Hoje sabe-se que um acréscimo de pena tem o poder de promover, na verdade, uma mais forte dessocialização do condenado. Isso sem mencionar a ilegitimidade ética da pretensão de corrigir ou melhorar o indivíduo por meio de coação.” (TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.167). 184 pena fundada em fato diverso, gerado de culpabilidade e de responsabilidade próprias, de modo que o plus de gravidade decorrente da reincidência equivale à pena sem culpabilidade, estranho ao fato e que importa em dupla valoração da mesma causa, 617 constituindo bis in idem . (grifo nosso). Um segundo fundamento era o de que a reincidência demonstrava ter o autor do crime uma vontade mais forte e maior permanência. Porém, essa conclusão não podia ser demonstrada, uma vez que não respondia bem aos casos em que os delitos são completamente diferentes618. Outro fundamento leva à interpretação de que se a condenação anterior não foi suficiente para evitar que o autor praticasse um novo crime, deve-se reforçar a segunda. Na Alemanha, doutrina e jurisprudência dominantes denominam esse argumento de “teoria ou modelo do alerta” (Warnungsmodell)619. Se o réu possui uma energia criminal intensa e uma maior consciência sobre a proibição da conduta praticada, merece reprimenda mais rigorosa, eis que possui, então, culpabilidade elevada e conhecimento mais apurado da proibição620. Várias são, porém, as críticas a esses fundamentos do acréscimo de pena. A chamada “ação criminógena do cárcere” reduz as chances do condenado ter uma vida conforme às normas do ordenamento jurídico formal. Desta feita, a personalidade do agente é deformada pela prisão e o leva a maior insensibilidade da função de alerta mencionada. Eis a culpabilidade menor que justificaria a reincidência como atenuante e não agravante da pena621. Esse argumento de alerta é duramente criticado tanto na reincidência ficta quanto na real622. Na primeira, é evidente que uma mera 617 QUEIROZ, Paulo. Curso de direito penal – parte geral. v.1. 8.ed. Salvador:Jus Podivm, 2012, p.456. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.717. 619 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.159. 620 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.159. 621 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.160. 622 “Entretanto, com relação aos ordenamentos que adotam a reincidência ficta, ou seja, aquela em que é desnecessário o efetivo cumprimento da pena, como se pode inferir que o autor do ilícito se apresentará indiferente à sanção que o Estado lhe aplicará? Ainda, na reincidência real, sabe-se que a pena, que deveria desmotivar o sujeito e reinseri-lo na vida em sociedade é, antes disso, fator que seleciona e agrava na sua personalidade o rótulo de “desviado”. (ASSIS, Rafael Damaceno de. Análise crítica do instituto da reincidência criminal. Revista CEJ, Brasília, ano XII, nº40, p.73-80, jan.-mar., 2008, p.75). 618 185 intimação de uma condenação não é capaz de fazer qualquer efeito e, na segunda, há muito a pena vem demonstrando ser um desvio da pessoa sem qualquer função de reintegração do sujeito que a sofre. No mesmo fundamento adentra a reprovação da personalidade da pessoa, o que levaria a um direito penal do autor623. Outrossim, o conhecimento mais apurado da proibição não advém apenas da reincidência, visto que, a depender do caso concreto, um réu primário pode ter muito mais conhecimento do que o reincidente, como é o caso de agentes policiais, juízes, funcionários da justiça, que possuem alto grau de consciência. Isso, por si só, justificaria o aumento de pena? Crê-se que não. Da mesma forma, um reincidente que pratica um novo delito, porém com consciência da ilicitude enfraquecida, não merece maior reprimenda, a exemplo do reincidente em lesão corporal que pratica delito econômico com a dúvida sobre a proibição624. Eis a importância da análise caso a caso. Além disso, a reincidência se fundamentaria na prevenção geral positiva e negativa. A prevenção geral positiva traz a necessidade de confirmar a vigência da norma na sociedade com uma pena mais severa; e se dirige a todos os cidadãos, inclusive os que nunca cometeram delitos; e na prevenção geral negativa para inibir as pessoas que cometeram um ou mais delitos no passado, ou seja, não primários625. O grande problema apontado em relação a esses fundamentos é que a linha preventiva pode levar às últimas consequências, com aplicação de penas exorbitantes626, como por exemplo, “a punições de pequenos delitos patrimoniais com penas privativas de liberdade superiores a uma década, como 623 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.717. 624 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.160. 625 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.163. 626 Para Adriano Teixeira, o problema central da fundamentação da agravante da reincidência na ideia de prevenção geral é o risco da desproporcionalidade das penas em relação à gravidade do delito cometido. Contudo, entende que esse fundamento não é de todo descabido se a reincidência for aplicada de forma racional e moderamente, a exemplo, quando a pena tem o caráter de um “preço facilmente pagável”, como é o caso de multa ou penas restritivas de direito em crimes ambientais ou financeiros, em que seria possível pensar na aplicação de pena mais grave (detenção, v.g.) no lugar da pena de multa. Desta forma, é interessante seu entendimento, que a partir dessa concepção, a reincidência poderia ser restringida a algumas espécies de delitos, deslocando-se da Parte Geral para a Especial. (TEIXEIRA, Adriano. O papel da reincidência criminal na aplicação da pena – reflexões a propósito do acórdão do RE 453.000 do STF. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2014, RBCCrim 108, p.529-530). 186 infelizmente sói ocorrer nos EUA e no Reino Unido”. Soma-se a isso, o fato de o fim da prevenção por meio da pena e, consequentemente, do aumento da reincidência, não ser alcançado, o que coloca em xeque a eficácia empírica dessa agravante627. Por fim, a reincidência possui como fundamento a necessidade de manter a imagem do Estado enquanto provedor de segurança pública. Desta forma, o reincidente merece uma pena mais gravosa por ter violado a norma penal e obstado a função estatal, havendo, portanto, um maior conteúdo do injusto no delito posterior628. Esse fundamento parte da premissa de que a conduta criminosa reiterada “intensifica a gravidade do injusto atual”, porém, deve-se analisar o conceito de injusto. Se injusto penal significar dano à validade da norma ou perturbação da paz jurídica, a reiteração de delito exigiria uma resposta mais contundente do Estado629. Por isso afastar-se-ia qualquer violação ao princípio do ne bis in idem, exposto no capítulo anterior. Nessa senda, na tentativa de fundamentar a reincidência sem violar esse princípio, foi elaborada uma teoria por Armin Kaufmann, ao entender que cada tipo penal tutelaria dois bens jurídicos. A reincidência estaria ofendendo bem jurídico diverso do segundo delito cometido. O autor do crime estaria violando o segundo delito e o primeiro que proíbe cometer o segundo630. Eugenio Raúl Zaffaroni631, ao abordar a justificação da reincidência pela dupla lesão, observa que: “Por la misma senda puede ubicarse la tesis que ve em todo tipo dos normas: uma que prohibe la conducta típica y outra que impone la abstención de cometer otros delitos em el futuro (Armim Kaufman)”. 627 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.164. 628 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.718. 629 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.161. 630 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.162. 631 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Reincidencia. Revista de Ciencias Penales: Montevideo, v.2, 1996, p.121. “Da mesma forma, pode localizar a tese de que vê em todo tipo duas normas: uma proibindo a conduta típica e outra impondo a abstenção a de cometer outros crimes no futuro (Armin Kaufmann).” (Tradução livre). 187 A reiteração criminosa configura-se, nesse sentido, à desconsideração dos bens jurídicos em geral e dos especificamente selecionados na conduta criminosa, havendo, pois, uma dupla violação: do delito que se pune e da proibição de reiteração da prática criminosa. Contudo, a difícil compreensão dessa teoria também a afastou: Esta estaria ligada à pergunta sobre qual seria esse outro bem jurídico, e a conclusão que se chegaria é de que não pode ser outro que não o geral sentimento de segurança jurídica, mas, o geral sentimento de segurança jurídica provém da efetiva segurança jurídica de todos os bens jurídicos, que não é nenhum bem jurídico independente e nem concreto, mas a somatória de todos os bens 632 633 jurídicos . Vale, ainda, ressalvar que “afronta a ideia de legalidade postular um dever de obediência ou uma proibição adicional, para além do bem ou do direito protegido pela norma do tipo penal realizado”634. Além disso, “não existe, de forma autônoma, uma metanorma jurídico-penal ‘não se deve violar norma”635 e a proibição de violar norma aplica-se de forma igual para todos os cidadãos. Assim, os fundamentos que mantém a reincidência no ordenamento jurídico são questionáveis e abrem a reflexão sobre a reformulação da forma como vem sendo aplicada. A partir dessa concepção, a reincidência vem destoada do direito penal e processual penal de garantias ao pretender a aplicação de forma cega e indiscriminada, sem medir as consequências processuais, como fortemente debatido pela doutrina, o que se abordará a seguir. 632 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.719. 633 E ainda: “Esta duplicidade de normas, aparte de ser uma figura bastante atormentada, deriva necessariamente de un nuevo bien jurídico que sei ala mera voluntad estatal. Es incuestionable que em este planteamiento la disciplina se convierte em um bien jurídico, pues em modo alguno puede sostenerse que la segunda norma se limita a tutelar el bien jurídico afectado por el segundo delito, dado que en este caso no se explicaria el plues de penalidade”. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Reincidencia. Revista de Ciencias Penales: Montevideo, v. 2, 1996, p.121). 634 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.162. 635 TEIXEIRA, Adriano. O papel da reincidência criminal na aplicação da pena – reflexões a propósito do acórdão do RE 453.000 do STF. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2014, RBCCrim 108, p.528. 188 4.7.2 A ilegitimidade da reincidência: violação aos princípios constitucionais e o direito penal do autor Mesmo diante da decisão de constitucionalidade da reincidência pelo Supremo Tribunal Federal, baseada em diversos fundamentos, indispensável nessa tese de doutoramento apresentar a corrente que entende ser este instituto contrário aos preceitos do Estado Democrático de Direito brasileiro. Desde muito tempo a reincidência é contestada pela doutrina. Em obra de Edgard Magalhães Noronha de 1963, o autor menciona: Juristas há que contestam a legitimidade da reincidência, visto quebrar a proporcionalidade entre a pena e o crime, já que exacerbando a pena, o réu está pagando por circunstância de todo estranha ao delito por que está sendo punido. Maior é, entretanto, o número dos que a aceitam, legitimando-a, seja por se ter revelado ineficiente a primeira pena, seja por manifestar patentemente o criminoso sua inadaptação ou rebeldia à ordem constituída, donde a 636 necessidade de repressão mais severa . Nelson Hungria637, ao abordar a medida de segurança aplicável aos reincidentes em crimes dolosos, já observara que “uma das maiores preocupações da política criminal moderna tem sido o combate à reincidência.” Justifica que a aplicação da pena para certos criminosos é insuficiente, pois eles saem da prisão e já retornam à prática do crime. Desta feita, como o aumento de pena para os reincidentes em geral não teve o êxito esperado, seria necessário um tratamento especial de readaptação. A reincidência, a propósito possuía presunção de periculosidade. Após a Reforma de 1984, essa presunção foi vedada, já que a reincidência passou a ser apenas uma forma de agravar a pena, considerando, então a responsabilidade penal com base na culpabilidade. Contudo, mantevese implícito o “fundamento periculosita, típico do sistema de direito penal do autor”638. 636 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. v.1.2.ed. São Paulo: Saraiva, 1963, p.326. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v.III.4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p.109. 638 A questão da agravante da reincidência e a vedação de bis in idem: Subsídios do IBCCrim para o debate constitucional no âmbito do RE 591.563/STF. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/docs/amicus_curiae/RE_n._591563-8_Reincidencia.pdf>. Acesso em: 14 jan.2016, p.08. 637 189 Salo de Carvalho639 entende que a teoria que melhor explicita nosso modelo justificador da reincidência é o da teoria criminológica derivada do positivismo, embora essa justificativa seja ocultada no discurso oficial. Como a reforma do Código Penal realizada pela Lei nº7.209/84 extinguiu a medida de segurança para o imputável, viu-se a necessidade de reforçar o sistema com penas mais longas àqueles indivíduos de alta periculosidade. Basta analisar o §59 da Exposição de Motivos da referida lei. Contudo, outras justificativas explicam a existência da reincidência. Amparado na jurisprudência alemã, Adriano Teixeira640 esclarece que há duas teorias que justificam a existência da reincidência neste país. Para os adeptos da dupla construção indiciária (doppelspurige indizkonstruktion) analisando os comportamentos pré- e pósdelitivos para a fixação da pena de modo geral, ou seja, a vida pregressa do autor, os atos praticados pós crime são importantes para aferir a valoração do fato delituoso, a personalidade do agente sob a perspectiva da prevenção especial. Para outra posição doutrinária, concepção que postula um conceito normativo de fato ampliado, os comportamentos pré- e pós-delitivos seriam parte integrante do injusto culpável. A partir dessas concepções o autor desenvolve o raciocínio em torno da reincidência criminal, mas já de plano entende que não é convincente. Os argumentos relativos à rejeição da reincidência são a violação dos princípios da individualização da pena, do ne bis in idem, da proporcionalidade, e, ainda, a acusação de direito penal do autor. No que se refere ao princípio da individualização da pena 641 (artigo 5ª, XLVI), que proíbe penas absolutas, desde a fixação abstrata pelo legislador até a dosimetria no caso concreto, é obedecido por meio de instrumentos como 639 CARVALHO, Salo de. Reincidência e antecedentes criminais: abordagem crítica desde o marco garantista (Comentário de Jurisprudência). Revista de Estudo Criminais n.1, 2001, p.113-114. “Demonstra o §59 da Exposição de Motivos da Lei 7.209/87 que “[...] com a extinção, no Projeto, da medida de segurança para o imputável, urge reforçar o sistema destinando penas mais longas aos que estariam sujeitos à imposição de medida de segurança detentiva e que serão beneficiados pela abolição da medida. A política criminal atua, neste passo, em sentido inverso, a fim de evitar a liberação prematura de determinadas categorias de agentes, dotados de acentuada periculosidade”. E ainda: “O fato de abandonar a imposição complementar da medida de segurança (sistema do duplo binário) ao reincidente e substituí-la pela majoração da pena não ameniza o substrato ideológico que conforma o sistema, pelo contrário, demonstra claros sinais de sua presença.” 640 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.152. 641 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.156. 190 as agravantes, atenuantes, causas de aumento e de diminuição, “pois permitem mensurar distintamente realizações típicas de diferentes intensidades.” Por isso, a reincidência nem sempre poderia indicar uma agravante, podendo funcionar como redução de pena642. Nessa senda, Alberto Silva Franco643 entende que a reincidência até pode ser valorada penalmente, contudo, não pode ser mantida no Estado Democrático e Social de Direito como uma agravante obrigatória. Deveria ser analisada pelo juiz caso a caso, na individualização da pena, “nada obstando que em determinadas situações seja até considerada como circunstância atenuante inominada (artigo 66 do Código Penal)”644. A proibição de dupla valoração do mesmo fato é um dos argumentos mais fortes para os que rechaçam a reincidência, pois a pena é agravada por conta de um crime já julgado e que o autor já recebeu a punição, o que caracteriza o fundamento pelo que o autor é e não a conduta praticada, verdadeiro direito penal do autor, incompatível com nosso modelo estatal, já que a incriminação de simples estados ou condições existenciais é proibida pelo princípio da lesividade. Nesse sentido, “o direito penal só pode ser um direito penal da ação, e não um direito penal do autor, como frequentemente se pretende”645. Não é admissível punir alguém pelo que é/ser, mas apenas pelo que fez. Por isso, na visão de Alberto Silva Franco646, a reincidência é “um desvio pessoal que não afeta, em si mesmo, nenhum bem jurídico ou, de forma mais sintética, ‘é um modo de ser mais do que um modo de atuar’.” Destaca-se, ainda, que para o mesmo autor a reincidência como agravação da pena consagra um tipo penal do autor, o que é rechaçável num direito penal de conteúdo garantístico. 642 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.156. 643 O autor defende ser evidente a relação conflituosa entre a reincidência e esses princípios, constitucionais: princípios do ne bis in idem, da legalidade, proporcionalidade, do direito penal do fato, da culpabilidade, da igualdade, presunção de inocência. (FRANCO, Alberto Silva. Reincidência: um caso de não-recepção pela Constituição Federal; Boletim IBCCrim nº209. abr. 2010. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/>. Acesso em: 13 jul. 2014, n/p. 644 FRANCO, Alberto Silva. Reincidência: um caso de não-recepção pela Constituição Federal. Boletim IBCCrim nº209, abr.2010. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/> Acesso em: 13 jul. 2014, n/p. 645 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12.ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011, p.91. 646 FRANCO, Alberto Silva. Reincidência: um caso de não-recepção pela Constituição Federal. Boletim IBCCrim nº209, abr.2010. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/> Acesso em: 13 jul. 2014, n/p. 191 De acordo com Eugenio Raúl Zaffaroni647, há uma pretensão de justificar a reincidência por meio de um direito penal do autor, com o julgamento do que o homem é e não pelo que fez, por um caminho materialista da periculosidade e pela culpabilidade do autor. A reincidência seria um antecedente das tristes construções do “inimigo do povo” stalinista, do “inimigo do estado” fascista, do “inimigo da nação” nazista e do subversivo da “segurança nacional”. Um discurso jurídico-penal que pretende legitimar a sanção do homem pelo que é e não pelo que fez ofende um princípio fundamental do direito penal de garantias: a inviolabilidade da consciência moral da pessoa e desconsidera que todo ser humano é pessoa, princípio matriz da elaboração da teoria dos direitos humanos. Nesse contexto, Cândido Furtado Maia Neto648 esclarece: “A criminologia aplicada deveria ser unicamente a sócio-política, porque a criminologia clínica (positivista, lombrosiana, ferriana e da doutrina da defesa social, para citar algumas) se enquadra ao direito penal de autor”. Adriano Teixeira649 adverte que a tese da violação do bis in idem “só pode ser refutada caso se consiga fundamentar que a reincidência afeta a gravidade do novo delito, seja aumentando-lhe a culpabilidade ou o injusto, ou ainda indique uma maior necessidade de prevenção.” O princípio do ne bis in idem seria um dos corolários da violação constitucional causada pela reincidência, já que traz um gravame configurando dupla punição, ao condenado. Referida proibição também tem referência no Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), no artigo 8º, item nº4 650. Em defesa da extinção do instituto da reincidência em respeito ao princípio ne bis in idem no Estado Democrático de Direito, Cândido Furtado Maia Neto651 afirma: “seja a reincidência de direito ou de fato, ambas são 647 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Reincidencia. Revista de Ciencias Penales. v.2. Montevideo, 1996, p.125. (tradução livre). 648 MAIA NETO, Cândido Furtado. Direitos humanos e justiça penal. Revista de Ciência Jurídica e Sociológica da Unipar. Toledo-PR, v.58, nº2, p.203-211, jul.-dez. 2002, p.210. 649 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.157. 650 “O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.” (BRASIL. Decreto-lei nº678, de 6 de novembro de 1922). 651 MAIA NETO, Cândido Furtado. Direitos humanos e justiça penal. Revista de Ciência Jurídica e Sociológica da Unipar. Toledo-PR, v.58, nº2, p.203-211, jul.-dez. 2002, p.210. 192 incompatíveis com os princípios reitores de Direitos Humanos”, eis que se cria um plus na sentença penal condenatória. Para Alexandre Morais da Rosa652, a reincidência serve para fixar a pena necessária à recuperação do condenado, com forte influência da ‘Escola Positiva’; e fundamentada na periculosidade, viola escancaradamente o princípio do ne bis in idem e da ‘intangibilidade da coisa’. Segundo Paulo Rangel, a reincidência é a instituição do bis in idem em afronta clara à Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, artigo 8º, item 4)653. Essa violação se estenderia à coisa julgada, garantia constitucional prevista no artigo 5º, XXXVI, pois se há um agravamento da sentença posterior devido a uma condenação anterior, a intangibilidade da coisa julgada cairia por terra. De acordo com Salo de Carvalho654, “existe profunda antinomia entre o instituto e a intangibilidade da coisa julgada.” Zaffaroni655 entende que a reincidência não é compatível com os princípios de um direito penal de garantias, e sua constitucionalidade é veementemente discutível. Para ele, “a reincidência decorre de um interesse estatal de classificar as pessoas em “disciplinadas” e “indisciplinadas”, e é óbvio não ser esta função do direito penal garantidor.” Santiago Mir Puig656, ao analisar a jurisprudência da Espanha sobre a reincidência, expõe o posicionamento assumido em sua obra La reincidência em el Código penal, de 1974, com o entendimento de que a agravante é pouco coerente com o espírito da Constituição e considerou insuficiente os fundamentos da reincidência pelo direito positivo. Por isso, considerando 652 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como bricolage de significantes. Tese de Doutorado. Ciências Jurídicas e Sociais. Universidade Federal do Paraná, Paraná. Disponível em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br> Acesso em: 15 mar.2016, p.366. 653 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.814. 654 CARVALHO, Salo de. Reincidência e antecedentes criminais: abordagem crítica desde o marco garantista (Comentário de Jurisprudência). Revista de Estudo Criminais n.1, 2001, p.116. 655 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.719. 656 PUIG, Santiago Mir. Comentarios a la Jurisprudencia del Tribunal Superior – Sobre la constitucionalidade de la reincidência em la Jurisprudencia del Tribunal Supremo y del Tribunal Constitucional. In: Anuário de derecho penal y ciencias penales. Madrid: Boletín Oficial del Estado, 1948-2010, t.XLVI, Fasciculo III, set.-dez.1993, p.1144-1145. 193 insuficiente o fundamento próprio da reincidência, acredita que essa agravante deveria ser eliminada ou, ao menos, se tornar facultativa no direito vigente657. Na mesma linha, Lenio Streck658 há muito defende a tese de que a reincidência deve ser discutida, mormente em termos de ser ou não inconstitucional. Para ele trata-se de um “bis in idem e uma violação da secularização que deve haver, no direito penal, entre direito e moral. O Estado não pode punir a sua própria incompetência”: [...] esse duplo gravame de reincidência é antigarantista, sendo, à evidência, incompatível com o Estado Democrático de Direito, mormente pelo seu conteúdo estigmatizante, que divide os indivíduos em ‘aqueles que aprendem viver em sociedade’ e ‘aqueles que não 659 aprendem e insistem em continuar delinquindo . Para o autor, o direito penal não pode querer “melhorar” o indivíduo. Observa que durante um considerável período, a 5ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) aplicava sua tese, porém, foi derrotado no Supremo Tribunal. Lenio Streck problematiza a situação: Não será dito, por óbvio, que a reincidência é, “em si”, inconstitucional. Mas pode ser que será dito — como já o foi pela 6ª Turma do STJ — que, em determinados casos, ela não se aplica. Como venho sustentando, toda aplicação de princípio no processo 660 penal é uma hipótese de nulidade parcial sem redução de texto . Para Débora de Souza Almeida: Nota-se que o instituto da reincidência, por entrelaçar direito e moral ou direito e natureza, constitui-se numa norma discriminatória, posto que visa, na sua essência, a punição da personalidade, do modo de ser ou da conduta de vida do indivíduo. Logo, a agravante é inconciliável com a axiologia garantista, pois ao fundar-se em critérios 661 metafísicos que propiciam o juízo de valor, impede a refutação . 657 PUIG, Santiago Mir. Comentarios a la Jurisprudencia del Tribunal Superior – Sobre la constitucionalidade de la reincidência em la Jurisprudencia del Tribunal Supremo y del Tribunal Constitucional. In: Anuário de derecho penal y ciencias penales. Madrid: Boletín Oficial del Estado, 1948-2010, t.XLVI, Fasciculo III, set.-dez.1993, p.1151. 658 STRECK, Lenio. Senso incomum. Direito penal do fato ou do autor? A insignificância e a reincidência. Disponível em: <http://www.conjur.com.br>. Acesso em: 15 nov.2015. 659 STRECK, Lenio. Tribunal do júri: símbolos e rituais. 3.ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, p.66. 660 STRECK, Lenio. Senso incomum. Direito penal do fato ou do autor? A insignificância e a reincidência. Disponível em: <http://www.conjur.com.br>. Acesso em: 15 nov.2015. 661 ALMEIDA, Débora de Souza de. Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas. Curitiba: Juruá, 2012, p.158. 194 Argumento bastante difundido na crítica da reincidência também é a desproporcionalidade da pena aplicada e da gravidade do delito cometido, mais expressiva nos crimes de bagatela662, em que a pena agravada não se justifica considerando o grau de lesividade ao bem jurídico protegido, a exemplo dos furtos de objetos de pequenos valores, em que o Supremo Tribunal Federal já afastou a insignificância em caso de reincidência. O Supremo Tribunal Federal uniformizou a jurisprudência no sentido de que deve ser analisado caso a caso para a aplicação ou não do princípio da insignificância, com a publicação do acórdão em 01.02.2016663. Os princípios da legalidade e da proporcionalidade também são violados, uma vez que pela legalidade há a limitação da pena no mínimo e no máximo e a cada delito, proibindo a sanção de um delito se estender ao outro. A reincidência, nesse viés, provoca uma espécie de ultra-atividade das consequências do delito anterior já julgado, além de representar uma reação penal desproporcional por que não guarda relação com a infração cometida.664 Ademais, se o autor é punido mais severamente no segundo delito em virtude de condenação anterior transitada em julgado, há uma agravante obrigatória que considera o autor do fato (reincidente) e não o fato praticado. Nesse sentido, defende René Ariel Dotti que a aplicação obrigatória da reincidência ofende o princípio nulla poena sine culpa, ou seja, da culpabilidade em relação ao fato concreto. Para ele, “não se pode exigir do agente a compreensão da ilicitude por um fato que já ocorreu e, 662 TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p.158. 663 Ementa: PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME DE FURTO SIMPLES. REINCIDÊNCIA. 1. A aplicação do princípio da insignificância envolve um juízo amplo (“conglobante”), que vai além da simples aferição do resultado material da conduta, abrangendo também a reincidência ou contumácia do agente, elementos que, embora não determinantes, devem ser considerados. 2. Por maioria, foram também acolhidas as seguintes teses: (I) a reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto; e (II) na hipótese de o juiz da causa considerar penal ou socialmente indesejável a aplicação do princípio da insignificância por furto, em situações em que tal enquadramento seja cogitável, eventual sanção privativa de liberdade deverá ser fixada, como regra geral, em regime inicial aberto, paralisando-se a incidência do artigo 33, §2º, c, do CP no caso concreto, com base no princípio da proporcionalidade. 3. No caso concreto, a maioria entendeu por não aplicar o princípio da insignificância, reconhecendo, porém, a necessidade de abrandar o regime inicial de cumprimento da pena. 4. Ordem concedida de ofício, para alterar de semiaberto para aberto o regime inicial de cumprimento da pena imposta ao paciente. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo. Acesso em: 10 fev.2016). 664 FRANCO, Alberto Silva. Reincidência: um caso de não-recepção pela Constituição Federal. Boletim IBCCrim nº 209 . Abr. 2010. Disponível em <http://www.ibccrim.org.br/> Acesso em 13 jul 2014, n/p. 195 eventualmente, tenha sido julgado. O ideal será reconhecer a agravante da reincidência como uma hipótese de aplicação facultativa”665. Também a ilegitimidade da reincidência é apontada pela afronta aos preceitos dos princípios da igualdade, da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana. O primeiro é entendido como violado, pois penas diversas são aplicadas a fatos idênticos666, considerando-se a vida pregressa do sujeito em seu desfavor por meio da interpretação deturpada desse princípio. Pela igualdade não é permitido aplicar penas iguais a criminosos diferentes – primário e reincidente. Contudo, releva-se o argumento de que “a culpa não altera o resultado se praticado ora por um reincidente, ora por um primário”667. Viola-se, ainda, o princípio da presunção de inocência, visto que a reincidência é aplicada de forma automática, sem analisar se realmente o condenado é perigoso668, criando-se uma presunção absoluta de periculosidade do agente669. Por fim, a ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana se torna concreta por denigrir a pessoa do condenado670 com forte lastro de estigmatização, conforme será tratado no último capítulo desta pesquisa. 4.8 Rumo ao processo penal democrático Diante de todos esses fundamentos, contrários e favoráveis à reincidência, o ponto nevrálgico do presente estudo é se o instituto da reincidência, diante da constitucionalidade atribuída pelo Supremo Tribunal Federal, não poderá sofrer qualquer alteração que venha a refletir no âmbito do 665 DOTTI, René Ariel. Algumas alterações propostas para a parte geral – o problema penal da reincidência. Disponível em: <http://www.professordotti.com.br/a-reforma-do-codigo-penal-xv/>. Acesso em: 2 fev.2015. 666 FRANCO, Alberto Silva. Reincidência: um caso de não-recepção pela Constituição Federal. Boletim IBCCrim nº209, abr.2010. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/>. Acesso em: 13 jul. 2014, n/p. 667 SILVA, Suzane Cristina. Reincidência e maus antecedentes: crítica a partir da teoria do labelling approach. Revista Liberdades nº16, maio-ago., Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2014, p.63. 668 FRANCO, Alberto Silva. Reincidência: um caso de não-recepção pela Constituição Federal. Boletim IBCCrim nº209, abr.2010. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/>. Acesso em: 13 jul. 2014, n/p. 669 PEIXOTO, Marcos Augusto Ramos. Há motivos para reincidir na reincidência. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v.16, nº62, p.231-250, abr.-set., 2013. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br>. Acesso em: 15 jan. 2014, n/p. 670 PEIXOTO, Marcos Augusto Ramos. Há motivos para reincidir na reincidência. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v.16, nº62, p.231-250, abr.-set., 2013. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.brf>. Acesso em: 15 jan. 2014, n/p. 196 sistema processual penal. Ou seja, é possível rediscutir e redimensionar a reincidência? A decisão do Supremo Tribunal Federal encerrou a discussão de vários anos sobre as finalidades da reincidência e sua compatibilidade com os preceitos constitucionais? Tendo em vista as dimensões alcançadas pelo controle de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal e os diversos estudos e posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, não é tarefa fácil responder a essas questões. Inicialmente, relevante lembrar que no controle difuso a arguição de inconstitucionalidade ocorre de modo incidental, sendo, portanto, uma questão prejudicial. Em princípio, seria possível afirmar, conforme Ada Pellegrini Grinover, que a coisa julgada material produzida é exclusivamente da questão principal, ou seja, a constitucionalidade não se projeta para fora do processo nem faz coisa julgada, o que significa que pode ser reapreciada a qualquer momento671. Partindo-se da ideia de que o controle realizado foi difuso com efeitos erga omnes, com repercussão geral, porém sem efeito vinculante, é possível afirmar que não houve conclusão definitiva a respeito. 671 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle difuso da constitucionalidade e a coisa julgada erga omne das ações coletivas. Disponível em: <http://amdjus.com.br/doutrina/constitucional/32.htm>. Acesso em: 1 abr.2016, n/p. A autora explica a coisa julgada em ações coletivas e deixa clara a possibilidade de rediscussão da matéria apreciada em controle difuso: “Na verdade, nas ações coletivas que se fundamentam numa questão de inconstitucionalidade, o controle é evidentemente difuso, nada apresentando de especial em relação ao controle difuso exercido numa ação individual. A questão da constitucionalidade, tanto numa ação coletiva como na individual, é colocada como questão prejudicial, a ser enfrentada pelo juiz antes do julgamento da causa, e não faz coisa julgada, nem mesmo entre as partes. O que faz coisa julgada é exclusivamente o julgamento da questão principal, e nenhuma diferença faz que a sentença que passa em julgado tenha eficácia inter partes ou erga omnes. Exemplifique-se: num processo individual, o cidadão "A" pede a condenação ao pagamento da diferença da correção monetária, que lhe foi creditada numa caderneta de poupança, fundamentando-se na inconstitucionalidade de um determinado plano econômico do governo que adotou determinados índices. Procedente a demanda, a questão prejudicial da inconstitucionalidade, que foi apreciada incidenter tantum, não se projeta fora daquele processo, não fazendo coisa julgada. O que faz coisa julgada (inter partes, por tratar-se de processo individual) é simplesmente a condenação ao pagamento da diferença devida a título de correção monetária. A situação não muda num processo coletivo, em que o legitimado pede a condenação ao pagamento da diferença devida a toda a categoria dos poupadores, fundamentando-se na questão prejudicial da inconstitucionalidade dos índices fixados no referido plano. Aqui, também, a questão da constitucionalidade é resolvida incidenter tantum, e por isso não se projeta fora do processo nem faz coisa julgada, podendo ser reapreciada a qualquer momento, em outros julgamentos. O que faz coisa julgada erga omnes é exclusivamente a condenação ao pagamento da diferença da correção monetária. Não há, portanto, como afirmar a usurpação da competência privativa do Supremo Tribunal Federal para o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade por juízes e tribunais que se limitaram ao controle difuso, em que a questão da inconstitucionalidade é apreciada incidenter tantum, podendo a ela se voltar em qualquer processo futuro.” 197 Interessante notar que o Supremo Tribunal Federal na ADI 4.071AgR 672 , julgada em 22.04.2009, entendeu que é manifestamente improcedente a ação direta de inconstitucionalidade que verse sobre norma cuja constitucionalidade foi expressamente declarada pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo que em recurso extraordinário, salvo na hipótese a seguir mencionada. Desta forma, a decisão considera a concretização da coisa julgada dentro do RE com efeitos externos. Isso deriva da maior objetivação do recurso extraordinário, no sentido de assumir certa função de defesa da ordem constitucional objetiva. Nesse contexto, apenas poder-se-ia alterar a jurisprudência se ocorressem significativas modificações de ordem jurídica, social ou econômica, ou quando da superveniência de argumentos nitidamente mais relevantes do que aqueles antes prevalecentes. A estabilidade das decisões da Suprema Corte constitui uma inequívoca exigência de segurança jurídica, conforme a decisão referida. Não é permitida uma nova discussão sobre o mesmo tema, pouco tempo depois de ter sido referendado. Não é demais lembrar que a mudança de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ocorre, a exemplo da recente decisão do HC 126.292673, julgado em 17.02.2016, no qual se entendeu que havendo decisão confirmatória de sentença penal condenatória em segunda instância, é possível a execução provisória da pena. Pela decisão, foi revisado o entendimento no sentido de harmonizar o princípio da presunção de inocência com o da efetividade da função jurisdicional do Estado, ao se considerar os diversos recursos de caráter protelatório, que acabavam gerando a impunidade de vários delitos por conta da prescrição se consumar ao longo do trâmite processual nas instâncias superiores. O entendimento firmado no HC 84078/MG674, julgado em 5 de fevereiro de 2009, era de que, apesar de não existir previsão legal de efeito 672 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://jurisprudencia.s3.amazonaws.com>. Acesso em: 11 abr. 2016, n/p. 673 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br>. Acesso em: 11 abr. 2016, n/p. 674 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 11 abr. 2016, n/p. 198 suspensivo nos Recurso Especial e Extraordinário, pelo contrário, o §2º do artigo 27 da Lei nº8.038/90 dispõe que esses recursos serão recebidos apenas no efeito devolutivo e o artigo 637 do Código de Processo Penal expressa que o RE não tem efeito suspensivo. Assim, o cidadão não poderia ser recolhido à prisão pelo simples fato dessa ausência, o que só poderia acontecer se houvesse a necessidade de prisão cautelar. Excluída esta hipótese, somente em caso de sentença condenatória transitada em julgado o réu poderia ser preso, em respeito ao princípio da presunção de inocência inserido na Constituição Federal de 1988, artigo 5º, LVII. Desta feita, resta clarividente a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal rever suas decisões e alterar posicionamento antes firmado, sempre com o objetivo de atender, em tese, a uma exigência social ou jurídica contemporânea. Considerando a matéria de reincidência, como será delineado e concluído no próximo capítulo, não se trata de uma rediscussão dos argumentos já empossados no RE 453.000, mas de uma nova dimensão dessa agravante e sua forma de aplicabilidade, em virtude dos reflexos ocasionados no processo penal. Ainda que constitucional, é necessária uma remodelagem da reincidência para atender às exigências sociais, políticas e jurídicas em prol de um processo penal democrático atual. Desta forma, a discussão em torno da constitucionalidade da reincidência pode ser novamente aventada em controle concentrado, desde que com novos argumentos que perpassam os da decisão do RE 453.000. A reincidência pode ainda ser objeto de alteração dos Códigos Penal e de Processo Penal. Outra questão a ser levantada envolve a relativização da coisa julgada, em voga sempre quando há uma mudança de entendimento pelo Supremo Tribunal Federal. No RE 730.462675, julgado em 28.05.2015, a Corte Suprema decidiu que em caso de decisão que afirma a constitucionalidade ou 675 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 11 abr.2016, n/p. 199 a inconstitucionalidade de preceito normativo, a consequência é manter ou excluir a referida norma do sistema de direito. Dessa sentença decorre também o efeito vinculante e a eficácia executiva, por ter como termo inicial a data da publicação do acórdão do Supremo Tribunal Federal no Diário Oficial (artigo 28 da Lei nº9.868/1999). Além disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a reforma automática ou a rescisão das sentenças anteriores que adotaram entendimento diferente, com a indispensável interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria . Essa decisão reflete no processo penal, pois se houvesse a declaração de inconstitucionalidade de norma que favoreceu o réu, impossível alterar a situação, tendo em vista que não é possível revisão criminal pro societate, conforme se depreende dos artigos 621 e seguintes do Código de Processo Penal. Portanto, “há empecilho legal à eficácia executiva ex tunc dessa declaração, por falta de instrumentação processual para tanto indispensável”676. A contrario sensu, se houvesse a declaração de inconstitucionalidade de norma que prejudica o réu, essa decisão, em regra, alcançaria fatos pretéritos, já que favorável ao réu, salvo se o Supremo Tribunal Federal entender que em razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social é necessário atribuir efeito ex nunc677. Nesse sentido, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes: Os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem insuscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de constitucionalidade. Vislumbra-se uma exceção a esse entendimento na sentença condenatória penal, uma vez que aqui inexiste prazo para a propositura da revisão. Nos termos do artigo 621 do Código de Processo Penal, a revisão pode ser proposta a qualquer tempo se a sentença condenatória for contrária a texto expresso da lei penal. Esse fundamento abrange, inequivocamente, a sentença penal condenatória proferida com base na lei 678 inconstitucional . 676 TEODORO, Renata. STF julga alcance de declaração de inconstitucionalidade a sentenças. Disponível em: <http://www.conjur.com.br> Acesso em: 11 abr. 2016, n/p. 677 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 17 ed.São Paulo: Saraiva, 2013, p.365. 678 MENDES, Gilmar Ferreira. A nulidade da lei inconstitucional e seus efeitos. In: (Orgs.) CLÈVE, Clèmerson Merlin; BARROSO, Luís Roberto. Doutrinas essenciais. Direito constitucional. v.V. Defesa da Constituição. São Paulo: RT, 2011, p.623. 200 Assim, superada a possibilidade de reapreciação dos problemas em torno da reincidência e de sua modificação, avança-se a discussão para analisar os efeitos desse instituto no âmbito processual penal e a almejada modificação em sua forma de aplicação. 201 5 OS REFLEXOS DA REINCIDÊNCIA CRIMINAL NO PROCESSO PENAL O processo penal é uma das expressões mais típicas do grau de cultura alcançado por um povo no curso da sua história, e os princípios de política processual de uma 679 nação não são outra coisa que segmentos da política estatal em geral . Em torno da problemática de qual deveria ser a real finalidade do processo penal, sua falta de efetividade e necessidade de maior compatibilidade constitucional, a reincidência criminal deve ser analisada em cada etapa processual a fim de se verificar se esse instituto surte os efeitos pretendidos. A reincidência criminal traz diversas consequências ao apenado que, muitas vezes, carrega o título de reincidente ad eternum, ainda que exista na dogmática um período depurador. Por isso, analisá-la em cada fase separadamente é imperioso para demonstrar como a pessoa reincidente é tratada processualmente e, posteriormente, a quê espécie de política criminal atende. Dentro do sistema processual penal há que se questionar se os fundamentos desse instituto, criado antes da Constituição Federal de 1988, estão totalmente compatibilizados com essa e com a política criminal aventada. Considerando que o que se busca é um verdadeiro processo penal constitucional e a sua efetividade, inócuo seria o papel do jurista nesse objetivo se deixasse imobilizados institutos simbólicos, seletivos e destoantes do que verdadeiramente pregam como finalidade. Assim, nesse último capítulo, far-se-á uma análise da reincidência criminal no referido contexto para, então, defender a ideia de uma nova interpretação e sugestão de alteração legislativa, tudo para o fim de demonstrar que é possível transformar uma regra de técnica legislativa que a faz automática para a aplicação criteriosa e que de fato componha uma política criminal tangente à efetividade do processo penal. 679 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.40. 202 5.1 Fase investigatória: o prejulgamento do reincidente e a participação da mídia Desde a investigação criminal a valoração da reincidência criminal é considerada, ainda que implicitamente. Quando do cometimento de um crime e o início da persecução penal, seja com a atuação da polícia ostensiva como da repressiva680, não é raro o reincidente ser tratado de forma hostil. Nos casos das abordagens policiais, que em regra se pergunta se o abordado tem passagem policial681, apesar da carência, ou quiçá, ausência de dados estatísticos, é notório que inúmeros abusos são cometidos. Basta lembrar-se dos diversos programas televisivos – conhecidos como policialescos – que acompanham os policiais nas diligências e exibem as abordagens sem qualquer consideração aos direitos constitucionais do abordado682. Tanto é assim que, em 20 de janeiro de 2016, foi novamente identificada a necessidade de se orientar a população sobre abordagem policial. Desta forma, foi lançada no estado de São Paulo pelo Conselho 680 Resumidamente, cabe à polícia militar, precipuamente, o papel ostensivo de prevenir a prática de futuras infrações penais, enquanto que à polícia judiciária civil, também de forma precípua, o papel investigativo. (GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 2.ed. Niterói, RJ: Impetus, 2010, p.4) 681 “Quando das abordagens policiais perante os indivíduos que lhes parecem suspeitos, por exemplo, um questionamento frequente é se estes já “possuem passagem”. Os efeitos estigmatizantes da seleção são, pois, atribuídos pelo sistema para seu próprio funcionamento”. (SILVA, Suzane Cristina. Reincidência e maus antecedentes: crítica a partir da teoria do labelling approach. Revista Liberdades nº16, maioago.2014. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, p.66. 682 A Carta Capital divulgou dados e observações bastante interessantes a respeito desses programas: “Pesquisa realizada pela Andi, em parceria com o Intervozes: Artigo 19 de Ministério Público Federal revelou os principais tipos de violação de direitos praticados pelos policialescos: desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime, à violência, à desobediência às leis ou às decisões judiciárias; exposição indevida de pessoas e famílias; discurso de ódio e preconceito; identificação de adolescentes em conflito com a lei; violação do direito ao silêncio; tortura psicológica e tratamento desumano ou degradante. (...) Ou seja, não estamos falando de episódios isolados, que geram algum tipo de comoção nacional, como quando a repórter Mirella Cunha, da TV Bandeirantes na Bahia, em 2012, humilhou um suspeito de estupro por ele desconhecer o tipo de exame a ser feito no corpo da vítima. Ou quando a TV Cidade, retransmissora da Record no Ceará, exibiu por cerca de 20 minutos cenas de uma menina sendo estuprada. Ou, ainda, quando, no mês passado, os dois líderes de audiência do gênero – Brasil Urgente, do apresentador José Luiz Datena (Bandeirantes), e Cidade Alerta, do apresentador Marcelo Rezende (Record) – transmitiram uma perseguição policial, ao vivo, que terminou com um PM atirando quatro vezes à queima-roupa em dois suspeitos. Trata-se de uma postura editorial cotidiana, que não tem limites entre canais ou redes de televisão, regiões do País ou horário na grade. Vale tudo, a qualquer momento e em qualquer lugar (mesmo com as crianças na sala), em um modelo de negócios que já se tornou para lá de lucrativo para as empresas de comunicação.” (CARTA CAPITAL. Programas policialescos: a legitimação da barbárie. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/programaspolicialescos-a-legitimacao-da-barbarie-1735.html>. Acesso em: 20 maio 2016). 203 Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) uma cartilha683 com orientações do que pode ou não ser realizado durante a abordagem policial. E não é a primeira. Várias outras foram criadas para evitar o desconhecimento diante de abusos policiais. Em 2006, foi elaborada uma cartilha pelo Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (CDHS), com a colaboração do Observatório das Violências Policias (OVP-SP)684. O Conselho Nacional do Ministério Público, em 2013, também elaborou uma cartilha diante de diversas denúncias de abusos na abordagem policial685. Quando esse abordado responde ter “passagem pela polícia”, ou seja, deve ser reincidente ou portador de maus antecedentes, não importando nesse momento o tecnicismo do direito, passa a ser tratado com maior rigor, com um prejulgamento de sua culpabilidade. Durante o transcorrer da investigação policial, o fato de a pessoa ser reincidente influencia diretamente na condução desse procedimento, ainda que esse dado não conste como fundamentação explícita. O princípio da presunção de inocência deve nortear a investigação policial, de acordo com o manual de formação em direitos humanos para as forças policiais, editado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas686. Nesse sentido, a polícia não pode conduzir a investigação com o equívoco de eleger um suspeito e a todo custo provar sua tese, sob pena de gerar erros irreparáveis687. Mesmo não sendo tarefa fácil, “a autoridade que preside o inquérito policial deve envidar esforços no sentido de apurar o que efetivamente ocorreu”688, sem deixar que a anotação de reincidente forme um juízo antecipado nessa apuração. 683 O ESTADO DE S.PAULO. Abordagem policial: o que pode e o que não pode ser feito. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,abordagem-policial-o-que-pode-e-o-que-nao-pode-serfeito,10000012942>. Acesso em: 25 abr.2016. 684 CARTILHA. Abordagem policial. Disponível em: <http://www.ovpsp.org/cartilha_abordagem_policial.htm>. Acesso em: 1º maio 2016. 685 CARTILHA. Seguranca Final WEB.pdf. Cidadão com segurança: respeito mútuo entre cidadão e polícia. Disponível em: <http://www2.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/CNMP__Cidadao_com_S6>. Acesso em: Acesso em: 25 abr. 2016. 686 GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 2.ed. Niterói, RJ: Impetus, 2010, p.57. 687 GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 2.ed. Niterói, RJ: Impetus, 2010, p.59. 688 GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 2.ed. Niterói, RJ: Impetus, 2010, p.59. 204 O objeto da investigação preliminar é o fumus comissi deliciti, que enseja a investigação e sobre o qual recai a totalidade dos atos desenvolvidos nessa fase. A investigação deve esclarecer o fato e a autoria, “sendo que esta última (autoria) é um elemento subjetivo acidental da notícia-crime. Não é necessário que seja previamente atribuída a uma pessoa determinada” 689. Nesta senda, o ato que dá causa à instauração do inquérito policial por meio da portaria da autoridade policial não pode se fundamentar na condição de reincidente daquela pessoa a quem foi atribuída a autoria. Devem os elementos de informação fornecer à autoridade policial a autoria dos fatos. Nos atos de desenvolvimento dos artigos 6º e 7º do Código de Processo Penal, a oitiva do indiciado deve respeitar a disposição do artigo 5º, LV (direito ao silêncio) e LXIII (ampla defesa), e não deve a reincidência funcionar como um argumento para extrair a confissão. No reconhecimento de pessoas, a autoridade policial deve observar os requisitos dos artigos 226 e seguintes, sem qualquer tratamento diferenciado à pessoa reincidente, tampouco induzimento a ser ela a reconhecida. Bastante criticado é o artigo 6º, IX, ao estipular que autoridade policial deverá averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter, visto que é impossível o juiz se pautar no processo de racionalização por ele desenvolvido. Da mesma forma, é temerária a avaliação da “personalidade do agente”, e não tem qualquer valor jurídico690. Considerando essa observação, a reincidência comporá o processo de averiguação, o que não se pode admitir. Nesses atos da fase investigativa, extrai-se a influência da reincidência desde a instauração do inquérito policial, por isso a necessidade de requisitos mais objetivos para que a pessoa reincidente não se transforme 689 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.285. “De acordo com Aury Lopes Jr., “não existe a menor possibilidade (salvo os casos de vidência e bola de cristal) de uma avaliação segura sobre a personalidade de alguém, até porque existem mais de 50 definições diferentes sobre a personalidade.” (LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.312). 690 205 numa qualidade automática na persecução penal e sofra os mais demasiados induzimentos de formação antecipada de culpa. Além disso, é evidente que a taxatividade e o prejulgamento da pessoa recidiva estão relacionados ao populismo penal midiático. Não por acaso crescem os números de programas de reportagens policiais, com acompanhamento ao vivo de operações e abordagens policiais. Para o pesquisador Marcus Gomes, “a notícia sobre crimes também passou a constituir um interessante comércio para as empresas de comunicação e a mídia transformou a violência em um dos seus principais produtos de venda”691. Além disso, “o sensacionalismo tornou-se, assim, o principal combustível da mídia mercantilista”692, observa. Nilo Batista693, em artigo publicado sobre mídia e sistema penal, chama a atenção para a vinculação de ambos não apenas como função comunicativa, mas como legitimadora de um novo credo criminológico que tem como núcleo irradiador a própria ideia de pena, ou seja, a pena é verdadeiramente uma solução de conflitos. E nesse contexto, não importa o fundamento legitimante. Consoante Rogério Greco, os meios de comunicação, na busca incessante de aumentar os percentuais de audiência, “perceberam o ‘filão’ do direito penal, ou seja, passaram a reconhecer o fato de que notícias ligadas ao crime, ao criminoso e à vítima caíram no gosto popular. As pessoas possuem uma atração mórbida por notícias dessa espécie”694. Esse processo é bem explicado por Niklas Luhmann na obra A realidade dos meios de comunicação, ao demonstrar que “os meios de comunicação divulgam a ignorância na forma de fatos que precisam ser 691 FELETTI, Vanessa Maria. Vende-se segurança: a relação entre o controle penal da força de trabalho e a transformação do direito social à segurança em mercadoria. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p.138. Interessante notar que em pesquisa realizada por Glassner (199, p.27), Feletti destaca que de 1990 a 1998 o número de assassinatos nos Estados Unidos caiu 20%, enquanto subiu para 600% o número de reportagens sobre assassinato na TV (p.139). 692 GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p.59. 693 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf>. Acesso em: 19 jul.2016. 694 GRECO, Rogério. Sistema prisional: colapso atual e soluções alternativas. 2.ed. Niterói, RJ: Impetus, 2015, p.72. 206 continuamente renovados e para que aquela não seja notada” 695. Ou seja, “segundo Luhmann, os meios de comunicação contribuem para a construção da realidade promovida pela sociedade”696. Ora, os meios de comunicação, aqui em destaque programas policiais, sabem da necessidade de manter interessados pela informação. Com o costume e o volume de notícias diárias, espera-se cada vez mais o anúncio de um fato impressionante, novo e interessante, por isso, a fórmula é sempre mudar o formato do que já foi noticiado ou acrescentar algo novo. Isso se torna preocupante considerando a suposição de que as informações são corretas. Evidente que existe uma cota de erros. Isso se torna mais gravoso quando os jornalistas que atuam em programas de exclusividade de pauta no tema da criminalidade desconhecem tecnicamente a sua área, ou seja, não entendem os fundamentos da doutrina penal, processual penal, execução penal ou política criminal, emitindo opiniões sem conhecerem profundamente o que está sendo transmitido697. Além disso, a busca pelo verdadeiro é fortemente restritiva, diferenciando-se claramente daquela verdade alcançada por meio de pesquisa científica. Segundo Niklas Luhman, “o problema, portanto, não está na verdade, mas na seletividade, que é inevitável, mas também desejada e regulamentada”698. Desta forma, a verdade transmitida pelos programas policiais é selecionada e demonstra apenas a criminalidade em uma camada da sociedade. Passa-se a utilizar a mídia para hostilizar uma camada social estigmatizada, atuando de forma significativa em prol de uma política criminal da opressão. Consoante Marcus Alan Gomes: 695 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução de Ciro Marcondes Filho. São Paulo, 2005, p.53. 696 GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p.67. 697 GRECO, Rogério. Sistema prisional: colapso atual e soluções alternativas. 2.ed. Niterói, RJ: Impetus, 2015, p.72. 698 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução de Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005, p.56. 207 [...] o discurso midiático sobre o crime contribui para a instituição, no campo penal, de um sistema repressivo máximo e imediato, e no campo processual penal, de um sistema de garantias processuais 699 mínimas e maleáveis . Nesse contexto, a doutrina ou projeto ideológico da Lei e Ordem é diariamente disseminado pela mídia, a qual defende de forma indiscriminada várias medidas em prol da segurança pública. De acordo com Ranieri Mazzili Neto, outros sinais também podem ser identificados com a doutrina da Lei e Ordem, quais sejam: inflação legislativa no campo do direito penal; participação intensa da mídia denunciando a “escalada” do crime e frisando a necessidade de “ações efetivas”; construção do consenso, 700 propiciando a declaração da “guerra” aos criminosos . O que precisa ser consignado é que a verdade nos programas policiais é seletiva e tendenciosa e, muitas vezes, sem embasamento em dados científicos, o que traz reflexos gravíssimos à sociedade. A quantidade de programas nesse sentido e, da mesma forma, a de reportagens criminais incute na sociedade a insegurança e o pavor oriundos de uma crescente onda de criminalidade acompanhada diariamente e, em alguns canais, ao vivo. Insegurança e medo que permitem a expansão do binômio pena-crime como solução, o que é falacioso, considerando que neste sentido há uma inflação penal fundada na expansão de informações selecionadas com um viés claramente circundante de uma realidade que comporta outros e importantes dados sociais. Nesse aspecto, o forte atrativo da mídia, ou um dos “seletores” como chama Luhmann701, é a veiculação das transgressões à norma. Sua exposição possui o caráter de escândalo e incute na sociedade um sentimento de que todos foram atingidos, um verdadeiro inconsciente coletivo. Para Octávio Ianni, a grande corporação da mídia realiza a metamorfose da mercadoria em 699 GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p.141. 700 MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.22. 701 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005, p.60. 208 ideologia, do mercado em democracia, do consumismo em cidadania, ou seja, opera na formação de “mentes” e de “corações”, de maneira global702. A partir disso, surgem também os julgamentos morais entoando a função na manutenção ou reprodução da moral dos meios de comunicação 703. Logicamente, os meios de comunicação não alteram as bases legais, de competência do sistema jurídico, contudo, considerando as mais diversas funções que desempenham têm o poder de causar uma autoirritação na sociedade a ponto de gerar uma reprodução da sensibilidade envolvendo a moral704. Na mesma linha, a comunicação intensa banaliza a violência e deixa o espectador insensível ao sofrimento alheio. À violência é atribuída uma notória importância, torna-se lucro fácil para a mídia, “além de se constituir como um elemento discursivo imprescindível para o Estado, eis que justificante das políticas repressivas adotadas”705. Tendo em vista que a própria divulgação de manifestações de opiniões é também um dos seletores dos meios de comunicação, às vezes, essas opiniões públicas se impõem a ponto de ocasionar uma adaptação da mídia a elas. Nesse aspecto, os meios de comunicação podem se abastecer de opiniões públicas e delas girarem várias notícias. Os meios de comunicação selecionam o que deve ser realmente lembrado, significativo no momento e o que deve permanecer na lembrança, ou seja, “dão uma coloração especial àquilo que noticiam e à forma como noticiam”706. O fato de os programas policiais mencionarem incisivamente que o réu é reincidente, sem verificar a verdade da informação, demonstra que os meios de comunicação não seguem o código verdade/não verdade, mas o código informação/não informação. Isto significa que o não verdadeiro não é 702 IANNI, Octávio. O príncipe eletrônico. Perspectivas, São Paulo, 22, p.11-29, 1999. Disponível em: <http://seer.fclar.unesp.br/perspectivas/article/viewFile/2079/1701>. Acesso em: 19 maio 2016. 703 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005, p.62. 704 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005, p.63. 705 GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Constituição, Ministério Público e direito penal: a defesa do estado democrático no âmbito punitivo. Rio de Janeiro: Renavan, 2010, p.153. 706 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005, p.67. 209 utilizado como valor reflexivo (valor de contraste) diferente da ciência, a qual exclui a inverdade para afirmar a verdade707. Para Luhmann, porém, o problema não está nessa regra, mas na seleção das informações transmitidas sem o cuidado de excluir o que é inverdade, pois “isso tem consequências de grande alcance para aquilo que se poderia denominar “criação de um clima” mediante os meios de comunicação”, os quais manipulam a opinião pública e perseguem interesses que não são veiculados juntos708. O clima criado pelos referidos programas é de terror e insegurança e exige do Estado medidas penais e processuais drásticas. As existentes são brandas e muito favoráveis aos criminosos. Levanta-se, diariamente, a bandeira da defesa da pena de morte, da prisão perpétua, da redução da maioridade, a violência policial e os justiçamentos, ou seja, a necessidade de medidas mais rigorosas, como se as existentes não fossem suficientes ao cenário atual. No que tange à reincidência, o inconsciente coletivo influenciado pela mídia forma a convicção de que o castigo deve também servir para evitar que o criminoso reitere o ato criminoso. A população, então, defende cada vez mais castigos duros, restrição de direitos e garantias fundamentais, ou seja, atende ao populismo punitivo que quer a pena a título vingativo 709. A mídia exerce, portanto, uma forte influência na mudança comportamental dos cidadãos ao transmitir a falsa ideia de que a lei penal irá salvar a sociedade contra os criminosos: [...] através da mídia cria-se um mecanismo de controle do próprio instrumento de controle social, retirando-se o direito penal da esfera dos juristas e dos próprios juízes e alçando uma espécie de manto 707 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005, p.70. 708 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005, p.71;75. 709 GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora e Souza. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. Alice Bianchini, Ivan Luís Marques e Luiz Flávio Gomes (Coords.). Coleção saberes monográficos. São Paulo: Saraiva, 2013, p.65. “Para se alcançar o rompimento do modelo (político criminal) fundado no populismo punitivista, impõe-se tanto a construção de um sistema social e organizacional prioritariamente preventivo (Ferreyra, Lussich e Cabano: 2011, p.11 e ss., especialmente p.136-137) como a transformação das práticas midiáticas bem como dos poderes executivo e legislativo, sem prejuízo da responsabilidade que compete a cada um dos cidadãos que, para não serem idiotas (no sentido grego), deveriam assumir suas responsabilidades junto à polis, visando ao melhor e mais racional equacionamento da (demonizada) questão criminal” (p.56). 210 sagrado, uma panaceia, pela qual se vai “curar” a sociedade do 710 crime . Outrossim, torna natural o desprezo dos direitos humanos pela sociedade e o tratamento indigno recebido pelo condenado, como se esse deixasse de ser humano pelo fato de ter cometido um crime711. Ainda mais, por ser supostamente reincidente, aos olhos dos meios de comunicação. Mesmo se possuidor de condenação que configure a reincidência, não cabe à mídia realizar o prejulgamento ou entregar à sociedade a decisão de fazê-lo. 5.2 O fundamento exclusivo da reincidência na decretação de medidas cautelares de natureza pessoal A tutela jurisdicional cautelar é aplicada no processo penal por meio de diversas medidas cautelares previstas tanto no Código de Processo Penal como em legislação especial. Essas medidas podem ser decretadas na fase investigativa e na judicial e têm como objetivo assegurar a finalidade do processo e evitar que efeitos oriundos do tempo possam obstar a prestação jurisdicional. A imposição das medidas cautelares exige requisitos específicos, uma vez que são exceções às regras constitucionais da presunção de inocência e da liberdade. Esses requisitos, quando presentes, devem ser constatados na decisão que decreta a medida. A motivação é indispensável, sob pena de nulidade por afronta à previsão constitucional do artigo 93, IX. Desta forma, a fundamentação em caso de decretação de cautelares não pode ser algo automático, ex lege, já que o juiz deve além de pontuar os requisitos legais exigidos atentar-se à proporcionalidade da medida e a efetividade. Ocorre que, em muitos casos, como a seguir será demonstrado, torna-se automática a decretação de medida cautelar quando envolve reincidente, com base neste fundamento exclusivo. 710 MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.90. GRECO, Rogério. Sistema prisional: colapso atual e soluções alternativas. 2.ed. Niterói, RJ: Impetus, 2015, p.74. 711 211 Tratando-se da prisão preventiva, esta pode ocorrer em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, representação da autoridade policial ou ainda de ofício pelo juiz também apenas na fase judicial, conforme previsão do artigo 311 do Código de Processo Penal. Como requisitos são necessários o fumus commissi delicti e o periculum libertatis, ou seja, a probabilidade da ocorrência de um delito e o perigo que decorre do estado de liberdade do investigado ou denunciado – risco para ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal (artigo 312 do Código de Processo Penal)712. Além desses requisitos, o artigo 313 abarca as infrações que comportam a medida, destacando-se o inciso II, o qual preceitua que será admitida a decretação da prisão preventiva se o sujeito tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do artigo 64 do Código Penal713. Desta feita, quando o réu for reincidente em crime doloso, não importa se o novo crime é punido com reclusão ou detenção ou tenha pena igual ou inferior a quatro anos, caberá a decretação da prisão preventiva. Observa-se que a preventiva terá, então, cabimento em crimes dolosos menos expressivos. Apesar de a Lei nº12.403/2011, a qual alterou toda a sistemática das prisões e incluiu medidas cautelares diversas da prisão, ter apresentado um caminho para a redução na utilização da prisão714, “seguindo a tendência mundial consolidada pelas diretrizes fixadas nas regras mínimas das Nações Unidas sobre medidas não privativas de liberdade, as conhecidas Regras de Tóquio de 1990”715, em relação à disposição sobre a reincidência nada alterou, seguindo a linha de raciocínio de regra automática na redação anterior. 712 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.854. Renato Marcão observa que “cuida o dispositivo da reincidência dolosa.” (MARCÃO, Renato. Prisões cautelares, liberdade provisória e medidas cautelares restritivas: de acordo com a Lei n.12.403 de 45-2011. São Paulo: Saraiva, 2011, p.134). 714 De acordo com Paulo Rangel, a nova redação do artigo 311 diminuiu o rol de crimes que, a princípio, admitem a prisão preventiva, atentando-se para a superlotação carcerária. (RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.813). 715 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 4.ed. Salvador: JusPodvim, 2016, p.807. 713 212 Contudo, considerar que o sujeito reincidente pode ser preso preventivamente pelo único fato dessa condição vem dividindo opiniões e provocando discussões nos Tribunais Superiores. Atentando-se à política do direito penal do autor e ao etiquetamento716 penal que estigmatiza o reincidente, estão sendo rechaçadas decisões que decretam a cautelar da preventiva com a justificativa única da reincidência. No HC nº124180/RS717, apreciado inicialmente pelo Supremo Tribunal Federal em 03.02.2015, o relator Ministro Gilmar Mendes considerou que a prisão preventiva decretada no caso concreto havia sido mantida em todo o decorrer do processo e na sentença condenatória com base na gravidade abstrata do delito de roubo e na garantia da ordem pública, contudo o único elemento aventado que se referiria especificamente ao caso objetivo seria a reincidência do réu. Portanto, expôs que a prisão preventiva, para ser decretada, deveria estar embasada na conduta concretamente realizada, nas circunstâncias que a envolvessem, e não num modelo genérico de periculosidade. No entanto, em divergência, os Ministros Cármen Lúcia e Celso de Mello denegaram a ordem; a Ministra Cármen Lúcia consignou que a prisão preventiva estaria motivada na reincidência; o Ministro Celso de Mello registrou haver dados concretos que revelariam que o réu se tornara um delinquente habitual; e o Ministro Teori Zavascki pediu vista. Nesse caso, em 01.03.2016 o pedido foi considerado prejudicado, uma vez que o réu já estava cumprindo pena definitiva, em razão do trânsito em julgado da sentença condenatória 718. Interessante que a mera suposição da reincidência também não pode ser fundamento para decretação de prisão preventiva, conforme o 716 O labelling approach ou teoria da rotulação ou do etiquetamento, desenvolvido pela Criminologia Crítica, bem explica esse fator. O sistema penal é seletivo e desigual, e a sociedade enxerga de forma desvirtuada o criminoso. Essa seletividade é explicada pela falta de estrutura do sistema penal, uma vez que apenas uma baixa percentagem de infrações são punidas, caso contrário, ocorreria uma “catástrofe social” e não restaria praticamente habitante que não fosse criminalizado. Por outro lado, “a impunidade e criminalização são orientados pela seleção desigual de pessoas de acordo com seu status social, e não pela incriminação igualitária de condutas objetiva e subjetivamente consideradas em relação ao fatocrime, conforme preconiza a Dogmática Penal.” (ANDRADE, Vera Regina de. Sistema penal x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.51). 717 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo nº773. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 27 fev.2016. 718 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acompanhamento processual. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/>. Acesso em: 6 ago. 2016. 213 entendimento do Supremo Tribunal Federal no HC nº100959 719 de relatoria do Ministro Celso de Mello. É inidônea a mera suposição desacompanhada de indicação de fatos concretos. O juiz não pode exercer uma avaliação puramente subjetiva de que a pessoa investigada ou processada, caso permaneça em liberdade, poderá delinquir, conforme consta no voto do Ministro. O Superior Tribunal de Justiça, em 2012, no HC nº149.922/PR de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, concedeu a ordem em virtude de motivação inidônea para a segregação cautelar. Interessante que nesse caso, o paciente foi preso em flagrante e posteriormente teve liberdade provisória concedida pelo Superior Tribunal de Justiça no HC nº86.027⁄PR. Porém, ao ser condenado foi decretada a prisão provisória. Então, impetrado novo habeas corpus, não fora concedido sob o argumento de que constitui fundamentação suficiente o fato do réu ser reincidente e portador de maus antecedentes. Desta feita, com o HC 149.922/PR, o Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem por unanimidade. Destaca-se que o voto da relatora foi incisivo no sentido de que não basta declinar apenas a reincidência para frustrar a liberdade720. No entanto, relevante destacar outro julgamento do Superior Tribunal de Justiça cujo entendimento é o de que a reincidência é um argumento idôneo para a manutenção da prisão preventiva, conforme se observa abaixo: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. PRISÃO PREVENTIVA. REINCIDÊNCIA. REITERAÇÃO DA CONDUTA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. LIMINAR INDEFERIDA. PARECER ACOLHIDO. 1. Diz a nossa jurisprudência que toda prisão imposta ou mantida antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, por ser medida de índole excepcional, deve vir sempre baseada em fundamentação concreta, isto é, em elementos vinculados à realidade. Nem a gravidade abstrata do delito nem meras conjecturas servem de motivação em casos que tais. É esse o entendimento reiterado do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no HC n. 122.788/SP, Ministro Nilson Naves, Sexta Turma, DJe 16/8/2010). 719 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Gravidade do crime e mera suposição de reincidência não podem justificar prisão preventiva. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal>. Acesso em: 9 mar.2016. 720 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acompanhamento processual. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/>. Acesso em: 3 maio 2016. 214 2. As instâncias ordinárias, ao manterem a custódia preventiva, fizeram-no com base na probabilidade concreta de reiteração da conduta delituosa, visto que o acusado é reincidente. Circunstância que demonstra sua insistência em permanecer na vida criminosa, a justificar a não revogação da prisão cautelar. 3. Recurso em habeas corpus improvido. (RHC 56438 RS 2015/0025685-8, Relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Julgamento: 16/06/2015, Órgão Julgador: T6 – SEXTA TURMA, Publicação: DJe 29/06/2015) O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por meio da Terceira Câmara, determinou a imediata expedição de alvará de soltura do indivíduo mantido preso preventivamente com o argumento de preservar a ordem pública e garantir a instrução criminal e aplicar a lei penal. Contudo, observou-se que o único elemento concreto referido pelo magistrado era a existência de condenações anteriores. Por isso, o entendimento firmado foi o de que a reincidência não justifica a prisão preventiva, quando ela compuser o único fundamento concreto a justificar a custódia cautelar (Processo 2014.0256514)721. A doutrina também diverge quanto à previsão do inciso II do artigo 313 do Código de Processo Penal. Aury Lopes Júnior722 lamenta o fato de o legislador ter optado em seguir na linha de máxima estigmatização do reincidente, em flagrante bis in idem. Para o autor, a autorização de prisão preventiva com base, exclusivamente, no fato de ser o réu ou indiciado reincidente é uma interpretação equivocada. Já Paulo Rangel723 defende que “a reincidência com causa, exclusivamente de majoração da pena é inconstitucional, mas nada impede a decretação da prisão preventiva do acusado reincidente.” Renato Brasileiro de Lima se posiciona pela constitucionalidade do artigo 313, II, do Código de Processo Penal, diante da decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal do RE 453.000/RS 724. 721 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Acompanhamento processual. Disponível em: <http://app6.tjsc.jus.br/cposg/>. Acesso em: 3 maio 2016. 722 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.860. “É verdade que o STF no Recurso Extraordinário RE 453000, julgado em 04 de abril de 2013, afirmou a constitucionalidade da agravante da reincidência, mas isso não basta por si só como fundamento de uma prisão preventiva. O artigo 313 somente tem aplicação quando presentes o fumus commssi delicti e o periculum libertatis do artigo 312. Pensar-se uma prisão preventiva com base, exclusivamente, no fato de ser o agente reincidente, poderia constituir uma violação do princípio da proporcionalidade.” 723 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.814. 724 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 4.ed. Salvador: JusPodvim, 2016, p.949. 215 No que tange à prisão temporária, a reincidência não compõe explicitamente o rol dos requisitos autorizadores da Lei nº7.960/89. Porém, a mera suposição da reincidência pode influenciar a decisão do juiz, e será enquadrada no artigo 1º, I – imprescindibilidade para as investigações do inquérito policial, principalmente levando em consideração que a folha de antecedentes é anexada ao procedimento. Acresce-se a esse raciocínio o fato de apesar da Lei nº12.403/11 não ter modificado diretamente a prisão temporária, o artigo 282 do Código de Processo Penal se aplica a qualquer medida cautelar. O inciso I desse artigo prevê que as medidas cautelares deverão ser aplicadas observando a necessidade para a aplicação da lei penal, a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais725. Como se trata de uma prisão que visa “satisfazer o interesse da polícia”726, considerando a imprescindibilidade para as investigações do inquérito, ou seja, “possui cautelaridade voltada para a investigação preliminar e não para o processo”727, a reincidência constitui argumento tendente a evitar a prática de infrações. No entanto, deve ser aplicado o mesmo entendimento relativo à prisão preventiva, qual seja, o fato de o réu ser reincidente não pode constituir o argumento principal para a decretação da prisão temporária. Além, é claro, da presença de uma das infrações previstas no inciso III da Lei nº7.960/89, a combinação com o inciso I não pode se resumir ao apontamento da reincidência. É mais frequente a decretação de prisão preventiva, eis que não possui limitação de prazo e requisitos mais específicos como a temporária. Importante destacar a preocupação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a qual elaborou em 2013 um Relatório sobre o uso da prisão preventiva nas Américas com diversas recomendações, dentre as quais, destacam-se: 725 Artigo 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se: I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penas; II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. 726 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.903. 727 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.905. 216 a) Desenvolva programas de capacitação, supervisão e aplicação para garantir o uso de outras medidas cautelares diferentes da prisão preventiva, em conformidade com as normas internas e internacionais. b) No marco de um processo penal deverão existir elementos de prova suficientes que vinculem o acusado aos fatos investigados, com a finalidade de justificar uma ordem de privação de liberdade preventiva. Não deverá ser solicitada a imposição da prisão preventiva com base unicamente nos relatos produzidos pelas autoridades policiais. Em todo caso a solicitação deve estar devidamente fundamentada. c) Como estratégias concretas para reduzir a superpopulação das penitenciárias recomenda-se as seguintes linhas de ação: [...] (h) fortalecer as medidas para prevenir a reincidência, como os programas de atividades produtivas (educativas e de trabalho). d) As autoridades judiciais competentes deverão adotar as decisões nas quais se ordena a aplicação da prisão preventiva a uma pessoa quando houver uma análise exaustiva, e não meramente formal, de cada caso, de acordo com os padrões internacionais aplicáveis desenvolvidos no presente relatório. A resolução que imponha a prisão preventiva deverá individualizar o acusado, enunciar os fatos que se atribuem de sua autoria, expressar as circunstâncias que dão fundamento à medida e fixar o prazo pelo qual se estabelece, 728 determinando claramente a data de vencimento do prazo . Infelizmente, mesmo após essas recomendações, pouco foi o avanço no Brasil, sendo crescente a população carcerária (607.731pessoas), conforme contagem de junho de 2014 feita pelo Conselho Nacional de Justiça729, e com cerca de aproximadamente 40% de presos provisórios. É o quarto país com maior contingente de pessoas presas, atrás dos Estados Unidos, China e Rússia. Entretanto, considerando as prisões domiciliares e em regime aberto, está em terceiro lugar. Entre 1990 e 2013, o crescimento da população carcerária no Brasil foi de 507%, a segunda maior taxa de crescimento prisional do mundo, mas ainda com um déficit de 231.062 vagas o 728 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OAS). Relatório sobre o uso da prisão preventiva nas Américas. Disponível em: <www.oas.org/pt/cidh/ppl/pdfs/Relatorio-PP-2013-pt.pdf>. Acesso em: 26 maio 2016. 729 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Levantamento nacional de informações penitenciárias. Infopen 2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politicapenal/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 26 maio 2016. 217 sistema carcerário730. O Brasil possui ainda 19 cidades consideradas as mais violentas do planeta731 e cujos índices de reincidência são elevados732. Em 5 de abril de 2016, foi realizada uma audiência pública sobre a redução da prisão preventiva nas Américas, no 157º Período Ordinário de Sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos733, abordando diversos aspectos e medidas desenvolvidas a partir de 2013, quando da divulgação do relatório mencionado. O Brasil foi representado por Letícia Aleixo, da Clínica de Direitos Humanos e Divisão de Assistência da Universidade Federal de Minas Gerais, e destacou a decisão emblemática do Supremo Tribunal Federal de 16.02.2016, que determinou em caso específico a possibilidade de execução provisória antes mesmo do trânsito em julgado da sentença penal condenatória (HC 126.292). Esse entendimento vem sendo aplicado por diversos juízes e agrava o aumento do número de presos provisórios e o déficit de vagas carcerárias. Salientou ainda que em 2015 foram implantadas as audiências de custódia, mas de maneira inexpressiva, pois na maioria dos casos o réu é mantido preso preventivamente. Estava presente o comissário Paulo Vannuchi que destacou também o problema em debate no Brasil. Em comentário sobre a mudança de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Celso de Mello apontou que pelo menos 25% dos recursos extraordinários criminais que chegam ao Supremo Tribunal Federal interpostos por réus condenados são acolhidos inteiramente, ou seja, as condenações decretadas anteriormente são revertidas pelo colegiado: “houve 730 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Levantamento nacional de informações penitenciárias. Infopen 2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politicapenal/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 26 maio 2016. “Entre 2000 e 2014, a taxa de aprisionamento aumentou 119%. Em 2000, havia 137 presos para cada 100 mil habitantes. Em 2014, essa taxa chegou a 299,7 pessoas. Caso mantenha-se esse ritmo de encarceramento, em 2022, a população prisional do Brasil ultrapassará a marca de um milhão de indivíduos. Em 2075, uma em cada dez pessoas estará em situação de privação de liberdade” (p.16). 731 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-eexecucao-penal/audiencia-de-custodia/perguntas-frequentes>. Acesso em: 25 abr.2016. 732 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Acesso em: 9 ago.2016. 733 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OAS). Relatório sobre o uso da prisão preventiva nas Américas. Disponível em: <www.oas.org/pt/cidh/ppl/pdfs/Relatorio-PP-2013-pt.pdf>. Acesso em: 26 maio 2016. 218 uma inflexão conservadora do Supremo constitucional de estado de inocência” na restrição do postulado 734 . Diante desse cenário, as medidas cautelares de prisão não podem ser aplicadas como uma forma de antecipar a sanção penal. Devem deixar de ser prioridade, principalmente pelo fato de agravarem os altos níveis de superlotação penitenciária735. Lembra-se que o fenômeno do “sistema penal cautelar” é responsável por dois terços da população prisional latino-americana estarem em regime de prisão cautelar736. Nesse contexto, o fato de o réu ser reincidente não deve por si só fundamentar a decretação da prisão preventiva ou justificar a temporária. Caberá mais uma vez ao magistrado analisar as particularidades do caso sub judice e ponderar a real necessidade de uma segregação. Por fim, as medidas cautelares diversas da prisão, previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, também exigem a observância de critérios pré-estipulados, ainda que sejam mais brandas, pois também restringem de algum modo a liberdade do sujeito. São consideradas um avanço no processo penal e seguem a recomendação da CIDH. Todavia, sustenta-se o mesmo entendimento de que a reincidência não pode ser fundamento exclusivo a justificar a aplicação dessas medidas. 5.3 Fase judicial: a reincidência na valoração das provas e na dosimetria da pena A reincidência na fase judicial possui reflexos importantíssimos na vida do processado. É analisada em praticamente todos os momentos processuais e constitui óbice a muitos benefícios penais. Na valoração das provas, é possível afirmar que a reincidência influencia na subjetividade desenvolvida pelo juiz. Apesar de compor a segunda fase da dosimetria ou quantificação da pena, conforme será visto, o 734 Presunção de inocência. Celso de Mello e Marco Aurélio comentam mudança na jurisprudência do STF. Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-fev-18/decanos-supremo-comentam-viradajurisprudencia-corte>. Acesso em: 18 jun.2016. 735 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen 2014). Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politicapenal/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 26 maio 2016, p.40. 736 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p.293. 219 fato de o réu ser reincidente influencia na conclusão do juiz pela sua condenação ou absolvição. Evidentemente, é inadmissível que as decisões judiciais sejam imotivadas, todavia o desenvolvimento do raciocínio jurídico e fático do juiz no julgamento percorre cognições que destoam da simples fundamentação legal e concreta da decisão. Nesse sentido, a reincidência compõe um fator que influencia nesse processo, visto que induz ao pensamento de que réu reincidente, portanto, já uma vez condenado definitivamente, tem grande tendência a novamente praticar outro delito, atrelando-se a isso os dados estatísticos da reincidência, os quais serão abordados mais adiante. Por isso, o juiz ao valorar as provas processuais não está isento de se contaminar por uma taxatividade ex lege que, antes de elaborar qualquer fundamentação, traz a presunção de uma culpabilidade inconsciente. Conforme Roberto Lyra737, “a sentença não se gera espontaneamente numa cabeça. Resulta de um mundo de causas e condições.” O juiz recebe, de acordo com o autor, “desde o conhecimento do fato, as influências de notícias e comentários dentro e fora do lar.” Desta forma, a neutralidade do julgador compõe o cerco subjetivo a que submete a decisão. E nessa senda, o juiz ao concretizar o abstrato deve se ater de forma mais fidedigna às regras penais e processuais penais. Ao exercer seu papel, o juiz deve socializar o individual, “[...] aprofundando-se para elevar-se, projetando-se pelo social e, portanto, pelo humano”738. A neutralidade é distinta da imparcialidade, esta “é inerente, é essencial ao ofício do juiz, como garantia sine qua non do justo processo legal”739. Já a neutralidade é impossível de ser alcançada por parte do julgador, pois a interpretação estará influenciada, inconscientemente, por ideologias e paixões740. Cesare Beccaria alertava: 737 LYRA, Roberto. Como julgar, como defender, como acusar. Belo Horizonte: Líder, 2003, p.15. LYRA, Roberto. Como julgar, como defender, como acusar. Belo Horizonte: Líder, 2003, p.18. 739 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. São Paulo: RT, 2011, p.121. 740 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. São Paulo: RT, 2011, p.121. 738 220 Cada homem tem seu ponto de vista, e o mesmo homem, em épocas diferentes, pensa de modo diferente. O espírito da lei, seria, então, o resultado da boa ou da má lógica de um juiz; de uma fácil ou difícil digestão; dependeria da violência de suas paixões, da fraqueza de quem sofre, das relações do juiz com a vítima e de todas as mínimas forças que alteram as aparências de cada objeto no espírito indeciso 741 do homem . No entanto, não é admissível que o juiz legalmente exponha suas preferências e emoções, que podem demonstrar suas simpatias e antipatias pessoais, caso contrário, a imparcialidade estaria comprometida742. De acordo com Lenio Luiz Streck743, o juiz deve interpretar a norma a partir de um ato de filtragem hermenêutico-constitucional. Acontece que, o imaginário jurídico leva o jurista em direção à tentativa solipsista, forjada no paradigma da subjetividade. Além disso, “a sobrevinda de um texto jurídicoconstitucional democrático transformador encontra um jurista ainda arraigado ao paradigma anterior”, prejudicando a postura que deve assumir de defesa da lei (Constituição)744. Por outro lado, na dosimetria da pena e na análise do regime prisional, a reincidência penal é um fator, em muitos casos, decisivo na vida do condenado. Na primeira fase da dosimetria na qual são analisadas as circunstâncias judiciais, a reincidência não integra explicitamente o seu rol, porém, pode ser valorada em prejuízo do réu, conforme construção jurisprudencial. Consoante Ricardo Augusto Schmitt745, “é lícito ao juiz, havendo duas condenações com trânsito em julgado, considerar uma delas como antecedentes criminais e outra como agravante genérica da reincidência”. Entende o autor que isso não configura bis in idem, porque são utilizadas duas condenações distintas e com trânsito em julgado, portanto sem dupla valoração. 741 BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. 2.ed. São Paulo: RT, 1999, p.33. SUECKER, Betina Heike Krause. Pena como retribuição e retaliação – o castigo no cárcere. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p.103. 743 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2009, p.368. 744 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2009, p.359. 745 SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença penal condenatória: teoria e prática. 9.ed. Salvador: Juspodvm, 2015, p.190. 742 221 Esclarece que essa regra também não afronta o enunciado da Súmula 241 do Superior Tribunal de Justiça746. E a jurisprudência é pacífica nesse sentido (Supremo Tribunal Federal – HC 96771/SP, HC 99044/SP, HC 94846/RS, HC 94236, RHC 92611, RHC 115994; Superior Tribunal de Justiça – HC 83965/RJ, AgRg no RESp 70741/RS, HC 60407/DF, RESp 702844/RS, REsp 1437411/SP). Desta feita, é clarividente o prejuízo do réu pela valoração da reincidência em duas fases distintas da dosimetria da pena. Apesar de a lei prever apenas a hipótese de reincidência, a jurisprudência ampliou o conceito de reincidência para o de multirreincidência ou reincidência qualificada e criou a consequência legal para isso. Seria melhor que houvesse previsão legal desse efeito, como é na Espanha, considerando, principalmente, que a quantificação do aumento da pena em ambas as fases também não está prevista na lei, ficando ao livre arbítrio do juiz. Na mesma linha, tudo o que não configurar reincidência serve como maus antecedentes na primeira fase. Condenação definitiva anterior que não configure reincidência servirá na dosimetria da pena. Nesse ponto, Amilton Bueno de Carvalho747 entende que o critério “representa o injusto modelo penal de periculosidade, paradigma que legitimou a atuação dos Estados totalitários, onde vigora o repulsivo e antidemocrático direito penal do autor”. Entende que essa valoração “representa bis in idem inadmissível em processo penal garantista e democrático, pois, a cada nova condenação, impõe-se ao cidadãoréu um novo apenamento em virtude de fato pretérito, do qual já prestou contas”748. Na preponderância da reincidência no concurso entre circunstâncias agravantes, merece destaque a possível compensação com a confissão. No entanto, não está pacificado o entendimento jurisprudencial a respeito. O Superior Tribunal de Justiça possui vários julgados com o entendimento de que a reincidência e a confissão devem se neutralizar, 746 Súmula 241: “A reincidência penal não pode ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como circunstância judicial”. 747 CARVALHO, Amilton Bueno de. Garantismo penal aplicado. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.103. 748 CARVALHO, Amilton Bueno de. Garantismo penal aplicado. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.104. 222 compensando-se os seus efeitos749 (HC 250821/RS, HC 236227/DF, HC 251566/ES e REsp 1.154.752/RS). No entanto, segundo o Supremo Tribunal Federal, não é possível incluir a confissão como circunstância preponderante (HC 112.774/MS, HC 112.830/AC, HC 111.454/MS, HC 111.849/SP), pois é ato posterior ao cometimento do crime e não tem relação com este, tampouco tem caráter subjetivo dos motivos determinantes do crime ou faz parte da personalidade do agente750. A questão está longe de ser pacificada e requer uma análise dos efeitos desse impasse na vida do condenado. Ricardo Augusto Schmitt observa que a confissão deve integrar a personalidade do agente, porém no concurso com a reincidência não pode ser compensada. Isto porque a reincidência é um “fator de discriminação penal, pois merecedor o condenado de maior repreensão porque voltara a delinquir a despeito de condenação definitiva havida anteriormente”751. O condenado poderia ter adotado outra postura perante a sociedade, entretanto, a reincidência demonstra que a “condenação anterior do acusado não foi capaz de fazê-lo refletir sobre sua atitude a ponto de escolher um novo caminho diverso da criminalidade”752. É contra o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao rechaçar a confissão como parte da personalidade do agente, mas concorda pela não compensação, contrariando o Superior Tribunal de Justiça. Todavia, o melhor posicionamento é o adotado, na sua maioria, pelo Superior Tribunal de Justiça. Assim como a reincidência criminal, a confissão do réu também compõe a política criminal desenvolvida pelo legislador brasileiro. Se o intuito da confissão como atenuante de pena é a colaboração 749 Conforme julgado do Superior Tribunal de Justiça: “[...] 4. A prisão em flagrante, por si só, não constitui fundamento suficiente para afastar a incidência da confissão espontânea. 5. É adequada a aplicação da atenuante prevista no artigo 65, III, alínea “d” do Código Penal, se verificada a confissão do agente, sendo irrelevante se foi esta total ou parcial, ou mesmo se houve retratação posterior. 6. É possível, na segunda fase da dosimetria da pena, a compensação da atenuante da confissão espontânea com a agravante da reincidência”. (REsp 1341370/MT, Rel. Min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, j.10/04/2013, DJe 17/04/2013). 7. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para restabelecer a pena fixada em 1º grau. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça; HC 362.296; Proc. 2016/0180765-5; SP; Quinta Turma; Rel. Min. Ribeiro Dantas; DJE 24/08/2016). 750 SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença penal condenatória: teoria e prática. 9.ed. Salvador: Juspodvm, 2015, p. 212, 213. 751 SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença penal condenatória: teoria e prática. 9.ed. Salvador: Juspodvm, 2015, p.214. 752 SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença penal condenatória: teoria e prática. 9.ed. Salvador: Juspodvm, 2015, p.214. 223 do réu com a investigação ou a instrução criminal, revelando a verdade dos fatos, essa deve perpassar uma mera estratégia de defesa para abrandar a pena e servir como uma benesse ao denunciado. Mesmo sob o manto de diversas críticas doutrinárias753, a justiça negocial há anos já é uma realidade no Brasil e vem ganhando a cada dia mais força e espaço no processo penal. Sendo a confissão uma peça fundamental desse modelo negocial, deve-se atentar ao perigo enraizado pela cultura inquisitorial de sobrepô-la às demais provas. Considerando que a confissão traz a benesse de encurtar o procedimento da pretensão acusatória estatal, ela deve ser valorizada a ponto de favorecer o réu quando da aplicação da pena na sentença condenatória. Deve-se, porém, rechaçar a valorização extrema da confissão, como forma de a todo custo embasar a condenação, sob pena de violação do próprio sistema processual tão fortemente defendido na esfera democrática. Conforme Vinícius Gomes de Vasconcelos, A estética da confissão consolidada por meio da economia psíquica, que permeia os mecanismos premiais, acarreta a sedimentação do reconhecimento da culpabilidade como prova irrefutável para a condenação, o que remete a um discurso processual em que o contraditório e a defesa são totalmente inviabilizados pelo poder 754 alucinatório da evidência (a confissão inquestionável) . Desta feita, com respeito à voluntariedade e à análise de todo arcabouço probatório para testar a possibilidade de absolvição ou extinção da punibilidade do réu, a confissão deve integrar a personalidade do agente para ser compensada com a reincidência criminal. 753 Para Vinícius Gomes de Vasconcellos, a barganha e os mecanismos negociais violam preceitos basilares do Estado Democrático de Direito, como o devido processo legal, presunção de inocência, ampla defesa. No que tange à confissão: “Assim, com a aceitação dos acordos entre acusação e defesa para o reconhecimento de culpabilidade do acusado, desvela-se o ressurgimento da confissão como rainha das provas e fundamento único capaz de sustentar uma condenação.” (VASCONCELOS, Vinícius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2015, p.175). 754 VASCONCELOS, Vinícius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2015, p.177. 224 Aliás, a confissão única e exclusivamente jamais pode servir para fundamentar uma condenação criminal. O juiz deve analisar se há mais provas nos autos que corroboram a versão do réu755. Quanto ao regime de cumprimento da pena, na sentença penal condenatória o fato de o réu ser reincidente impede, em regra, que o regime inicial seja o aberto ou semiaberto. As regras previstas no §2º do artigo 33 do Código Penal não se aplicam aos reincidentes, pois não farão jus ao benefício com base na quantidade da pena aplicada, já que serão consideradas a natureza do crime e as circunstâncias judiciais. Se a pena privativa de liberdade for superior a 4 anos e inferior a 8 anos, regra geral, o regime seria semiaberto (artigo 33, §2º, “b”, do Código Penal). Contudo, se o condenado for reincidente, o juiz deverá fixar sempre o regime mais gravoso, ou seja, se o crime for punido com detenção será o semiaberto e se punido com reclusão será o fechado. “Portanto, o regime inicial de cumprimento da pena para os apenados com detenção, mesmo reincidentes, não pode ser o fechado”756. 755 FURTO QUALIFICADO. Subtração, em concurso de pessoas e mediante escalada, de pia, cuba e sifão do interior de posto de saúde municipal em construção. Configuração. Materialidade e autoria demonstradas. Prova. Confissão judicial da acusada CRISLAINES. Negativa isolada do corréu. Acusados presos em flagrante em poder da res furtiva. Depoimentos dos policiais militares que efetuaram a apreensão do bem. Suficiência para a procedência da ação penal. CRIME DE BAGATELA. Inocorrência. Conduta penalmente relevante. Bem avaliado em R$200,00. Inaplicabilidade do princípio da insignificância. Corré já condenada por outros furtos. Pretendido reconhecimento do furto privilegiado. Inadmissibilidade. Acusados reincidentes. CONSUMAÇÃO. Bem retirado da esfera de vigilância da vítima. Qualificadora da escalada. Afastamento sem efeito na concretização da pena. Circunstância não descrita na denúncia. PENA. Acréscimo de 1/6 por força dos maus antecedentes. Atenuante da confissão espontânea. Admissibilidade. Condenação fundada na confissão judicial. Compensação com a agravante da reincidência. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Redução da reprimenda da corré para 2 anos e 4 meses de reclusão, mais 11 dias-multa. Regime semiaberto. Apelos defensivos parcialmente providos, com redução tão somente da pena da corré CRISLAINES. (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. APL:00034418820108260082 SP 0003441-88.2010.8.26.0082, Rel. Otávio de Almeida Toledo, j.14-01-2014, 16ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 15/01/2014). Disponível em: <http://tjsp.jusbrasil.com.br/>. Acesso em: 5 jun.2016. APELAÇÃO CRIMINAL – PENAL – FURTO – CONDENAÇÃO FUNDADA TÃO SOMENTE NA CONFISSÃO JUDICIAL – AUSÊNCIA DE TESTEMUNHAS – ABSOLVIÇÃO – PROVIMENTO DO APELO DEFENSIVO E PREJUÍZO DO APELO MINISTERIAL. Em que pese o fato de a confissão judicial, em muitos dos casos, ser utilizada como um dos fundamentos para justificar a condenação, tal circunstância não permite sua utilização isolada como meio de prova pela prática de determinado crime, mais ainda quando o órgão acusador dispensa a oitiva da vítima e das testemunhas. Na falta da mínima instrução judicial, a absolvi ção do réu é medida imperativa, julgando-se prejudicado qualquer argumento ministerial. Apelação criminal defensiva a que se dá provimento, para absolver o acusado; e apelo ministerial que se julga prejudicado, em face da não observação dos princípios constitucionais do devido processo legal e do contraditório. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. ACR: 20893 MS 2008.020893-0, Rel. Des. Carlos Eduardo Contar, j.23-03-2009, 2ª Turma Criminal, Data de Publicação: 06/04/2009). Disponível em: <http://tj-ms.jusbrasil.com.br>. Acesso em: 5 jun.2016). 756 TRISTÃO, Adalto Dias. Sentença criminal: prática de aplicação de pena e medida de segurança. 6.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.46. 225 Já se a pena privativa de liberdade estiver sido fixada igual ou inferior a 4 anos, o regime que seria aberto (artigo 33, §2º, “c”, do Código Penal), no caso de reincidente será semiaberto. O crime será punido com detenção, e se punido com reclusão, o regime será semiaberto ou fechado. Nessa última hipótese, aplica-se o regime semiaberto aos crimes punidos com reclusão se as circunstâncias judiciais forem favoráveis, do contrário, será o fechado757. Esse é o teor da Súmula 269 do Superior Tribunal de Justiça. Desta forma, denota-se uma regra automática prejudicial ao réu pelo fato de carregar o título de reincidente: de plano é fixada a regra do regime mais gravoso. O mais ponderável, atendendo ao critério da individualização da pena, seria analisar elementos concretos para fixar o regime de pena. E, embora o Projeto de Lei do Senado nº236, de 2012 (projeto do novo Código Penal), sugira uma alteração a respeito da obrigatoriedade da aplicação da reincidência, deverá ser complementada com demais requisitos objetivos no critério da faculdade do juiz aplicar ou não a reincidência758. A pena de multa, seja própria ou em substituição, não implica em reincidência. E é o entendimento predominante na jurisprudência. Para Ricardo Augusto Schmitt759, no entanto, deveria implicar, pois se trata de uma condenação. Na mesma linha, Guilherme de Souza Nucci760 argumenta que pouco importa se a pena é privativa de liberdade, restritiva de direito ou multa para gerar a reincidência, pois o artigo 63 do Código Penal não faz qualquer distinção. Explica que dois argumentos sustentam o fato de a pena de multa não gerar reincidência: a) como o artigo 77, §1º do Código Penal preceitua que a pena de multa não impede a concessão de sursis, também não pode gerar a reincidência, pois não é cabível a suspensão condicional da pena ao 757 SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença penal condenatória: teoria e prática. 9.ed. Salvador: Juspodvm, 2015, p.311. 758 Artigo 79. Para efeito de reincidência: I – não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos; II – não se consideram os crimes militares próprios e políticos e os punidos com pena restritiva de direitos e/ou multa; Paragrafo único. O juiz poderá desconsiderar a reincidência quando o condenado já tiver cumprido a pena pelo crime anterior e as atuais condições pessoais sejam favoráveis à ressocialização. (Disponível em: <http://www25.senado.leg.br.> Acesso em: 6 jun.2016). 759 SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença penal condenatória: teoria e prática. 9.ed. Salvador: Juspodvm, 2015, p.280. 760 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2.ed. São Paulo: RT, 2007, p.213. 226 reincidente (artigo 77, I, Código Penal); b) como a pena de multa é aplicada aos crimes mais leves não pode gerar os efeitos gravosos da reincidência. O autor761 discorda desses argumentos. Segundo ele, a exceção do artigo 77, §1º do Código Penal é apenas uma medida de política criminal para a concessão do sursis a quem foi condenado a um crime de menor gravidade. E mesmo sendo a pena de multa mais branda, não é possível desconsiderar o fato de o réu ser reincidente. Outro efeito na fase judicial é o impedimento da substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos ou multa, na hipótese de crime doloso (artigo 44, II, artigo 60, §2º do Código Penal). Nesse ponto, uma regra mais específica cumpriria melhor o papel da pena restritiva de direitos e contribuiria para a descarga do sistema penitenciário. Não é o melhor caminho proibir a substituição referida ao réu reincidente e abrir uma exceção apenas à reincidência genérica. O §3º do artigo 44 do Código Penal dispõe que a substituição pode ser aplicada ao reincidente, desde que em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude de prática do mesmo crime. Não é demais salientar, que há uma verdadeira relativização da reincidência que demonstra o seu caráter exacerbador. Basta analisar que o artigo 44, §3º do Código Penal prevê a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos e que a Lei nº9.714/98 proíbe esse benefício aos reincidentes específicos, mas que a jurisprudência relativiza essa regra, dependendo da análise do caso concreto, e quando considera a medida socialmente recomendável762. Desta forma, ao proibir plenamente a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito à pessoa com reincidência específica, o legislador se esquiva da difícil tarefa de individualização da pena, já que nem sempre essa espécie de reincidência é mais gravosa. Já que o legislador permitiu a análise do juiz quando a medida for socialmente recomendável, a restrição não faz sentido, pois àquele também 761 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2.ed. São Paulo: RT, 2007, p.214. ASSIS, Rafael Damaceno de. Análise crítica do instituto da reincidência criminal. Revista CEJ, Brasília, ano XII, n.40, p.73-80, jan.-mar., 2008, p.76. 762 227 cabe verificar se há relação entre o crime anterior e o analisado, da mesma forma como os demais requisitos que justificam a aplicação dos efeitos da reincidência, se for o caso. Basta exemplificar: imagine-se um reincidente específico pelo crime de portar cédulas falsas (Código Penal, artigo 289, §1º); a este não caberia a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos; enquanto que para um reincidente que cometera anteriormente o referido crime e, depois, tráfico de drogas, seria plenamente possível763. Em sentido contrário ao defendido aqui, há o entendimento de que nenhum tipo de reincidente possui o direito à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, “sendo aplicável, então, o §3º, do artigo 44 do Código Penal unicamente ao não reincidente em crime doloso, pois do contrário, tornaria letra morta a proibição anterior”764. No que tange à revogação da reabilitação prevista no artigo 95 do Código Penal, importante observar que apenas poderá ocorrer se sobrevier condenação por pena privativa de liberdade ou restritiva de direito, ou seja, a pena de multa não é capaz de ensejar esse efeito. Essa revogação pode ser decretada de ofício ou a requerimento do Ministério Público e será apreciada pelo juiz da condenação, isto porque apenas será concedida após o término da execução da pena. No Projeto de Lei do Senado Federal nº236 de 2012 (Novo Código Penal) não existe dispositivo semelhante à reabilitação. Essa ausência se justifica, pois a reabilitação, “declaração judicial de que estão cumpridas ou 763 Supremo Tribunal Federal/531 – Substituição da Pena e Reincidência Genérica. A Turma deferiu habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de condenado por portar cédulas falsas (Código Penal, artigo 289, 1º), cujo pleito de conversão da pena corporal por restritiva de direitos fora denegado em virtude da existência de condenação anterior pelo crime de tráfico de drogas (Lei nº6.368/76, artigo 12). Na ocasião, o magistrado de 1º grau entendera que a condição de reincidente do réu obstaria a concessão desse benefício legal, nos termos do artigo 44, II, do Código Penal (“Artigo 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: [...] II – o réu não for reincidente em crime doloso;”). Asseverou-se que, na espécie, tratar-se-ia de reincidência genérica, na qual cabível, em tese, a substituição pretendida, tendo em conta o disposto no §3º do mencionado artigo 44 do Código Penal (“§3º Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.”). Ordem concedida para que o juízo monocrático profira nova decisão, desta feita, fundamentada, no que tange à reincidência genérica do paciente e, consequentemente, à eventual possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. (BRASIL. HC 94990/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2.12.2008. (HC-94990). Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo531.htm>. Acesso em: 20 jul.2016). 764 AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Execução penal: esquematizado. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015, p.340. 228 extintas as penas impostas ao sentenciado, que assegura o sigilo dos registros sobre o processo e atinge outros efeitos da condenação”, configura uma ‘pena’ a mais ao réu. Com os requisitos do decurso do prazo de 2 anos da extinção da pena, audiência admonitória no caso do sursis ou livramento condicional, além da presença de bom comportamento público e privado, domicílio no país e reparação dos danos, a reabilitação exige uma amostra da total reintegração do condenado, porém, destoa da própria finalidade de reinserção social que justifica a sanção penal e, ainda, o total descaso do Estado com o egresso. No mais, o artigo 202 da Lei de Execução Penal já prevê que uma vez cumprida ou extinta a pena, não poderá constar da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação. A reincidência, ainda, aumenta um terço o prazo prescricional da pretensão executória765 (caput do artigo 110 do Código Penal), ou seja, depois do trânsito em julgado a prescrição é regulada pela pena aplicada, salvo a pessoa reincidente a qual terá o aumento mencionado. Esse aumento não é da condenação anterior, mas da nova condenação, portanto, do novo crime. Importante registrar que a reincidência é causa interruptiva da prescrição, conforme prevê o artigo 117, VI, do Código Penal. De acordo com Rogério Greco, “como marco interruptivo da prescrição da pretensão executória, tem o poder de gerar tal efeito a partir da data do trânsito em julgado da sentença que condenou o agente pela prática de um novo crime”766. Essas regras são uma clarividência de bis in idem. Os efeitos da condenação anterior atingem diretamente uma condenação futura, deixando o réu por mais tempo no constrangimento do processo penal, pelo fato de ser reincidente. Nada justifica essa regra, por ora mantida no projeto do novo Código Penal. Isto, porque, além da pouca eficácia do rigor da regra da reincidência, ultrapassa os limites constitucionais da individualização da pena, pois o réu já teve a pena agravada com a reincidência e todos os demais efeitos mencionados aplicados. 765 De acordo com o teor da Súmula 220 do Superior Tribunal de Justiça: a reincidência não influi no prazo da prescrição da pretensão punitiva. 766 GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 10.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p.750. 229 5.4 Fase de execução penal: o círculo vicioso da reincidência criminal O processo de execução penal, conforme é de amplo conhecimento, se dá em razão da sentença emanada do processo de persecução penal e tem por escopo o cumprimento daquela determinação. O juízo da execução tem por finalidade cumprir os dispositivos da Lei nº7.210/84 (Lei de Execução Penal – LEP). Suas principais finalidades estão emanadas na previsão da retribuição e reinserção do apenado. É igualmente de conhecimento a natureza mista de tal procedimento: se a questão do processo de execução é de competência do Poder Judiciário, o espaço de cumprimento das penas (estabelecimentos penitenciários) é de natureza administrativa do Poder Executivo. As normas deste processo são então igualmente mistas, as relações de cumprimento devem ser a da mencionada lei que se amoldam às normas de funcionamento do sistema prisional, onde a relação do sentenciado primário e reincidente igualmente se diferencia. Tais normas do Poder Executivo visam garantir o bom funcionamento do sistema prisional. Se de um lado o reincidente conhece as normas de caráter geral de convivência no sistema penitenciário, por outro é considerada tal situação para as funções internas como o exercício de trabalho e a remição da pena. Apenas para constar, o trabalho, que se configura como direito do apenado, não está disponível a todos. O direito previsto na LEP acaba se tornando uma escolha interna da administração que enseja o benefício da redução da pena. Nesse contexto, a execução penal brasileira está fadada ao fracasso, e não há quem discorde disso diante dos dados estatísticos, que serão analisados no próximo tópico, os quais demonstram o aumento da população carcerária, da situação deplorável em que vive e da criminalidade enraizada intramuros. O desafio atualmente é identificar as causas desse caos e desenvolver medidas que possam trazer mudança ao cenário. Não é possível encontrar uma medida imediata e de rápida solução ao problema, contudo, 230 compor o projeto de mudança apontando pequenas e valoradas nuances pode contribuir para a evolução legislativa e eficácia prática. Desta forma, analisar a reincidência inserida no contexto do sistema penitenciário é de suma importância, pois ambos estão atrelados. A reincidência é considerada o termômetro da ineficácia da execução penal. Nesse ponto, merecem destaques alguns aspectos da execução penal que possuem relação direta ou indireta com a reincidência criminal. Inicialmente, importante lembrar que o sistema penitenciário já teve seu nascedouro na falência, pelo fato de ter como fundamento o castigo, ao invés, da educação racional. De acordo com Nelson Hungria767, “conjugando fins antagônicos, quais sejam castigo e reforma, redundou num hibridismo infecundo.” Para Nelson Hungria: Verifica-se que há irremediavelmente, na sua técnica, qualquer coisa que esteriliza, deforma e encrua a alma dos seus hóspedes forçados. O rigor de sua disciplina extirpa o que ainda existe de aproveitável e de bom no criminoso. Longe de conseguir o objetivo de 768 reabilitação, é uma incubadeira de reincidente (grifo nosso). A crítica à prisão e aos seus métodos, de acordo com Foucault, surgiu muito cedo, nos anos de 1820-1845: “ela, aliás, se fixa num certo número de formulações que – a não ser pelos números – se repetem hoje sem quase mudança nenhuma”769, argumenta Michel Foucault. Os dados estatísticos apresentados no item seguinte são diferentes daqueles mencionados por Foucault770 ao analisar a reincidência, mas levam a mesma conclusão de que a detenção provoca a reincidência, um verdadeiro 767 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v.III.4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p.15. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v.III.4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p.15. 769 FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p.251. 770 “[...] 38% dos que saem das casas centrais são condenados novamente e 33% são forçados; de 1828 a 1834, de cerca de 35.000 condenados por crime, perto de 7.400 eram reincidentes (ou seja, um em cada 4,7 condenados); em mais de 200.000 contraventores, quase 35 mil o eram também (1 em cada 6); no total, um reincidente para 5,8 condenados; em 1831, em 2.174 condenados por reincidência, 350 haviam saído dos trabalhos forçados, 1.682 das casas centrais, 142 das 4 casas de correção submetidas ao mesmo regime que as centrais. (FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p.251). 768 231 círculo vicioso: “a prisão, consequentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinquentes perigosos”771. O fato é que “a simples custódia dos indivíduos se opõe aos nossos conceitos de humanidade e proporcionalidade”772, pondera Winfried Hassemer. Apesar de a Constituição Federal no artigo 5º, XLVII proibir determinadas espécies de penas, como a pena de morte, de caráter perpétuo justamente por que optou pela regeneração do ser humano, abandonando a possibilidade de exclusão definitiva de qualquer pessoa do convívio social, a execução penal caminha de forma oposta, eis que enfatiza apenas o caráter opressor, com uma prévia “desculturação” responsável pela “desadaptação às condições necessárias para a vida em liberdade”, e posterior “aculturação” ou “prisionalização”, quer seja, “assunção das atitudes, dos modelos de comportamento, dos valores característicos da subcultura carcerária”773. É preciso ainda pautar que a Constituição Federal tem por princípio fundamental a dignidade humana, que se perfaz com a efetividade das normas, entre elas as da execução penal, atendendo à natureza das normas infraconstitucionais e sua necessária vinculação. Sobretudo, tem-se ainda a inescusável prevalência dos direitos humanos. Considerando os inumeráveis fatores negativos existentes no cárcere (superlotação, maus-tratos, falta de higiene, ociosidade, tortura, dentre outros), a ressocialização774 do criminoso torna-se uma utopia. Ao deixar a prisão, o egresso terá adquirido novas experiências do mundo do crime. Somase a isso o sentimento de desvalorização, impotência e de desprezo social, o qual reforça implicitamente no sujeito o caráter criminoso. De acordo com Bitencourt775, as condições materiais e humanas podem exercer efeitos destrutivos na personalidade dos reclusos. Contudo, 771 FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p.252. 772 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005, p.376. 773 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6.ed.Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2013, p.184-185. 774 Utiliza-se como sinônimo de reeducar, emendar, recuperar, reintegrar socialmente, aquele que violou a legalidade penal. (PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da pena e execução penal: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.34). 775 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 232 tem-se procurado, ao longo do tempo, atribuir ao condenado, exclusivamente, a culpa pela eventual reincidência, ignorando o fato de que é pouco provável alguém ingressar no sistema penitenciário e não sair de lá pior do que entrou. Nas palavras de Eugenio Raúl Zaffaroni: Los sistemas penales, com demasiada frecuencia, no son más que aparatos que fabrican reincidência, y sus instituciones totales, verdaderos campos de entrenamiento para candidatos a reincidentes y “habituales”. Sólo un discurso jurídico-penal alucinado pude ignorar esta realidade, sin perjuicio de que abunden las tentativas metodológicas y espistemológicas que se esfuerzan por construir 776 discursos de este tipo . Sobre o tema, Isael José Santana e Marianny Alves sublinham: Em suma, o Estado retira, por determinado tempo, o indivíduo de postura não cidadã da sociedade, remete-o a uma instituição “reeducativa”, na qual ele não aprende a viver em sociedade, e depois, cumprida a pena, ele volta ao convívio social, onde também não poderá exercer seu direito de cidadania, quer seja pelo preconceito por ser um ex-detento, quer pelo simples fato de pertencer a este Estado, onde os direitos são meras positivações. Trata-se, desta forma, de um ciclo vicioso no qual a não efetivação da cidadania, garantia e fundamento do Estado Democrático de Direito, é apontada com um dos fatores contribuintes à inclusão do indivíduo entre os apenados em regime fechado, e de sua exclusão social, ao 777 cumprir a pena na suposta finalidade (res)socializadora . Nas palavras de Louk Hulsman778, “as regras de vida na prisão fazem prevalecer relações de passividade-agressividade e de dependênciadominação.” Dentro das prisões o desprezo pela pessoa cresce incessantemente e a opressão onipresente desvaloriza a autoestima. Por todo o processo de despersonalização e de dessocialização, quando em liberdade, o egresso tem dificuldades de ter atitudes e comportamentos socialmente aceitáveis. Tem fins antagônicos a proposta da norma positiva que prevê segregar como forma de ressocializar. 776 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Reincidencia. Revista de Ciencias Penales: Montevideo, v.2, 1996, p.125. “Os sistemas penais, com demasiada frequência, não são nada mais do que aparatos que fabricam a reincidência, e suas instituições totais, verdadeiros campos de treinamento para os candidatos a reincidência e "habituais". Apenas um discurso jurídico-penal alucinado poderia ignorar esta realidade, não obstante as tentativas metodológicas e epistemológicas que se esforçam para construir discursos deste tipo.” 777 SANTANA, Isael José; ALVES, Marianny. Notas sobre a prisão e a (res)socialização: fins antagônicos. Revista USCS, Direito, ano XI, n.23, jul.-dez. 2012, p.10. Disponível em: <http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_direito/article/viewFile/1605/1349>. Acesso em: 7 ago.2016. 778 HULSMAN, Louk; CELIS, Jaqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de Maria Lúcia Karam. Niterói, Rio de Janeiro: LUAM, 1993, p.63. 233 A finalidade da pena de prisão pautada nos preceitos constitucionais – lembra-se que as teorias da pena já foram abordadas com um paralelo à reincidência nesta pesquisa – destoa por completo da sua aplicação na prática. A prisão exerce, evidentemente, uma forte influência no fracasso do tratamento do recluso. A Lei de Execução Penal prevê no artigo 1º o objetivo de “efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Ocorre que o método para alcançar esse objetivo é ineficaz, pois desconsidera o primeiro fator social, ou seja, que os presos, em quase a totalidade, já viviam esquecidos socialmente. Portanto, considerando o objetivo estampado na LEP, logo de início a execução penal se depara com um problema maior que a própria ineficácia da pena de prisão, pois nas masmorras legalizadas dificilmente será, sequer, iniciada a almejada ressocialização, uma vez que “toda técnica pedagógica de reinserção do detido choca contra a natureza mesma desta relação de exclusão. Não se pode, ao mesmo tempo, excluir e incluir”779.. Na obra de Thompson fica evidenciado que se a pena alcançasse sua finalidade, deveria atingir vários objetivos ao mesmo tempo: Propõe-se, oficialmente, como finalidade da pena de prisão, a obtenção não de um, mas de vários objetivos concomitantes: – punição retributiva do mal causado pelo delinqüente; – prevenção da prática de novas infrações, através da intimidação do condenado e de pessoas potencialmente criminosas; – regeneração do preso, no sentido de transformá-lo de criminoso em não-criminoso. Assim, punição e tratamento deveriam ser vistos como os extremos de uma série contínua, com variações intermediárias, as mais 780 diversas partes a se imbricarem harmoniosamente, sem fraturas . Segundo o autor, “é difícil encontrar outra justificativa para a admissão pacífica de tão formidável paralogismo: julgar que o criminoso, por submisso às regras intramuros, comportar-se-á como não criminoso, no mundo livre”781. 779 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6.ed.Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2013, p.186. 780 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.03. 781 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.11. 234 Sem embargo da ilogicidade do raciocínio, está ele endossado até pela lei, entre nós. Com efeito, os dados fundamentais exigidos para a concessão do livramento condicional – autorização de regresso do condenado à vida livre, antes de completar o total da pena – são: ter cumprido mais de um terço, se primário, ou mais da metade, se reincidente, da sanção imposta; e que tenha observado ‘bom comportamento durante a vida carcerária’. A aferição deste requisito repousará sobre ‘minucioso relatório’, a ser fornecido pelo diretor do estabelecimento penal a que estiver recolhido o condenado. O que significa, obviamente, sinonimizar ‘adaptação à prisão a adaptação à vida livre. Com a devida vênia, insisto, nada me parece mais 782 incongruente . Mesmo sabendo do fracasso da pena e, por conseguinte, da sua aplicação no sistema penitenciário, a cultura punitivista está cada vez mais fortalecida ora por meio de legislações mais rígidas, ora por interpretações e consolidações jurisprudenciais, a exemplo do emblemático julgamento em 17 de fevereiro de 2016 do HC 126.292, em que por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu ser possível o início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau, alterando o entendimento da Corte que, desde 2009 (HC 84078), exigia o trânsito em julgado da condenação, com ressalva da possibilidade de prisão preventiva783. A divergência apontada no voto do HC referido perdura no Supremo Tribunal Federal. No início de agosto de 2016, no julgamento do HC 135.752, o Ministro Luiz Edson Fachin determinou a prisão do prefeito de Marizópolis (PB), que o presidente do tribunal, ministro Ricardo Lewandowski, havia mandado soltar há uma semana, entendendo que, quando o Supremo decidiu que a prisão pode ser decretada antes do trânsito em julgado, o Plenário contrariou a “jurisprudência consolidada” da corte segundo a qual só depois de esgotados todos os recursos é que se pode executar uma pena. No entanto, conforme 782 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.11-12. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 126292 – Habeas Corpus. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo>. Acesso em: 5 ago.2016. O relator do caso, ministro Teori Zavascki, ressaltou em seu voto que, até que seja prolatada a sentença penal, confirmada em segundo grau, deve-se presumir a inocência do réu. Mas, após esse momento, exaure-se o princípio da não culpabilidade, até porque os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal, não se prestam a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito. E, ainda, que houve divergência de votos. A ministra Rosa Weber e os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, presidente da Corte, ficaram vencidos. Eles votaram pela manutenção da jurisprudência do Tribunal que exige o trânsito em julgado para cumprimento de pena e concluíram pela concessão do habeas corpus. 783 235 Fachin, a prisão decretada depois da decisão de segundo grau não é preventiva, mas “tão somente o cumprimento do título condenatório”784. Essa decisão, além de violar o princípio da presunção de inocência colabora para a superlotação carcerária, a qual só aumenta em todo mundo e no Brasil, eis que “nas últimas duas décadas se revela exponencial, ultrapassando o percentual de 400%”785. Outro ponto preocupante diz respeito aos casos em que a decisão de primeira instância é absolutória e a da segunda instância condenatória. Caberia assim mesmo a execução provisória? Conforme mencionado, pelo menos 25% dos recursos extraordinários criminais são acolhidos pelo Supremo Tribunal Federal inteiramente, o que significa que condenações decretadas anteriormente são revertidas pelo colegiado 786. No dia 1º de agosto de 2016, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do HC 135.100-MC/MG, em decisão monocrática do Ministro Celso de Mello, foi concedida a ordem ao paciente com o entendimento de que é inconciliável com o nosso ordenamento positivo a preconizada execução antecipada da condenação criminal, não obstante sujeita esta a impugnação na via recursal excepcional (RE e/ou REsp), pelo fato de a Lei de Execução Penal impor, como inafastável pressuposto de legitimação da execução de sentença condenatória, o seu necessário trânsito em julgado787. A preocupação atinente à prisão cautelar permanece em torno da antecipação da pena, ofensa à presunção de inocência, inversão do estado de liberdade em estado de detenção com o uso excessivo dessa medida, o que configura uma verdadeira “violência institucional que deve ser combatida por um direito processual penal garantista”788. 784 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 135.752 – Habeas Corpus. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo>. Acesso em: 6 ago.2016, p.06. 785 Punição antecipada: Fachin revoga HC e determina prisão de réu antes do trânsito em julgado. Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-04/fachin-revoga-habeas-corpus-concedidoevitar-prisao-antecipada#top>. Acesso em: 5 ago.2016. 786 Celso de Mello e Marco Aurélio comentam mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-fev-18/decanos-supremo-comentam-viradajurisprudencia-corte>. Acesso em: 15 ago.2016. 787 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 135.100. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo>. Acesso em: 15 ago.2016. 788 GENTIL, Plínio Antonio Brito; SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini. A teoria do garantismo e a proteção dos direitos fundamentais no processo penal. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI. Brasília – DF em 20, 21 e 22 de novembro de 2008. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/16_654.pdf>. Acesso em: 08 ago. 2016. 236 Vários fenômenos podem explicar esse fato social, os quais devem ser avaliados a partir do contexto no qual a taxa carcerária é analisada. Porém, um contexto de maior evidência e que explica esse aumento no Brasil é a política penal de maior repressão, com a criação de inúmeros delitos e a restrição massiva de benefícios processuais e penais. E é nessa política que se insere a reincidência, baseada nas mais diversas justificativas. Se a pretensão era desempenhar uma função social de prevenção geral ou desestimular novos atos criminosos, os efeitos têm sido o contrário, já que 7 em cada 10 presos volta ao crime: uma das maiores taxas de reincidência do mundo, de acordo com a exposição do ex-Ministro Cezar Peluso, em 2011, então Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça789. A respeito dos principais efeitos explícitos causados na execução, tem-se que impede a concessão do sursis, ou suspensão condicional da pena ao reincidente doloso (artigo 77, I, do Código Penal), com exceção feita pela Súmula 499 do Supremo Tribunal Federal pela qual “não obsta a concessão de sursis condenação anterior à pena de multa.” Cabe ressaltar que a reincidência em crime culposo e na prática de contravenção também não impede o benefício. Mesmo considerando essas exceções, há um prejuízo considerável ao réu sem a análise do bem jurídico ligado à reincidência e análise ao caso específico. Proibir de forma indiscriminada o sursis pela reincidência fere a individualização da pena e demonstra uma taxatividade a favor do rigor penal. Além disso, a reincidência é causa de revogação obrigatória da suspensão condicional da pena na hipótese de condenação por crime doloso (artigo 81, I, Código Penal). Não importa o momento em que o crime fora cometido, considera-o se praticado durante, ou antes, do prazo de suspensão: “nesse caso, a relação de obrigatoriedade é tamanha que se entende desnecessária a oitiva do condenado, uma vez que não haveria o que 789 Disponível em: <http://www.valor.com.br/legislacao/998962/indice-de-reincidencia-criminal-no-pais-ede-70-diz-peluso>. Acesso em: 5 ago. 2016. 237 justificar”790. Mais uma amostra de que o fato de ser reincidente prejudica o condenado no processo “ressocializador”. Outro efeito da reincidência é o de que aumenta de um terço a metade o prazo de efetiva privação de liberdade para o livramento condicional (artigo 83, II, do Código Penal), proíbe a concessão de livramento condicional se a reincidência é específica em crimes hediondos e assemelhados (artigo 83, V, Código Penal) e revoga obrigatoriamente o livramento condicional, sobrevindo condenação à pena privativa de liberdade (artigo 86 do Código Penal). Essas regras demonstram que o legislador claramente entendeu ser o condenado reincidente de maior periculosidade, e acreditando na crença de que a pena anterior não foi suficiente para reprimir a prática de novo delito, posterga um benefício da execução penal, considerando a reincidência uma circunstância de caráter pessoal. Isto significa que não é analisada separadamente, caso a caso, mas de forma global791. Destaca-se, ainda, o exame criminológico diretamente vinculado à potencialidade do condenado em reincidir. O artigo 8º da LEP dispõe: O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas a individualização da execução. Em caso de condenado ao cumprimento da pena privativa de liberdade em regime semiaberto, o parágrafo único do mesmo artigo faculta a realização do exame. De acordo com Renato Marcão792, “o exame criminológico é realizado para o resguardo da defesa social, e busca aferir o estado de temibilidade do delinquente”. Com a reforma da Lei nº7.210/84 pela Lei nº10.792, de 1º de dezembro de 2003, dentre elas a que alterou as regras da progressão de regimes e suprimiu o antigo parágrafo único do artigo 112 (“Parágrafo único. A 790 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; FULLER, Paulo Henrique Aranda. Legislação penal especial. v.1. 4.ed. São Paulo: Premier Máxima, 2007, p.150. 791 AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Execução penal: esquematizado. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015, p.293. 792 MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. 12.ed. De acordo com a Lei nº12.850/2016. São Paulo: Saraiva, 2014, p.43. 238 decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário”), surgiu a discussão sobre a obrigatoriedade do exame criminológico. Depois de muito debate, houve um avanço importante com a edição da Súmula 439 do Superior Tribunal de Justiça: “admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”. Não há, pois, a obrigatoriedade da sua realização, todavia poderá ser realizado quando necessário e por decisão fundamentada. Também é assim no caso de crimes hediondos, conforme se afere da Súmula Vinculante nº26: Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico. O problema é observado justamente na dificuldade de manter a imparcialidade do julgador nos casos de requerimento facultativo da realização do exame criminológico quando o réu é reincidente. A complexidade desse exame é tamanha que exige muita cautela para se alcançar a objetividade, sem deixar que a subjetividade interfira nas conclusões que dele serão extraídas. Para Alvino Augusto de Sá793, os referenciais teóricos garantem a objetividade, mas para alcançar esse processo ocorre a interação entre a subjetividade primária e a secundária, as quais criarão a compreensão. A subjetividade primária é a do senso comum e a secundária se verifica quando o profissional se abstrai da teoria, que passa a fazer parte do seu pré-consciente. Para chegar à objetividade, o profissional deve utilizar ambas subjetividades, pois, do contrário, suas conclusões serão arbitrárias e inválidas: “é a subjetividade secundária, o fator que distingue o profissional técnico bem preparado, enquanto examinador, de um entrevistador leigo, mesmo que cheio de boas intenções”794. 793 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. São Paulo: RT, 2011, p.112-113. 794 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. São Paulo: RT, 2011, p.113. 239 Desta forma, acredita-se que é possível confeccionar um bom exame criminológico, porém, se realizado por equipe disciplinar altamente qualificada nesse processo de conclusão informativa ao Poder Judiciário. Se o próprio juiz estiver contaminado pela subjetividade primária ao requerer o exame criminológico, com a concepção de senso comum de que todo reincidente é perigoso, o restante do procedimento estará comprometido, sobretudo, a execução penal. Não se defende a exclusão do exame criminológico, pois o juiz não possui conhecimento técnico para aferir as individualidades de cada detento. O próprio Foucault795 já advertia que, como o castigo visa impedir a reincidência, é importante considerar o “criminoso em sua natureza profunda, o grau presumível de sua maldade, a qualidade intrínseca de sua vontade.” Por isso, defende a necessidade de uma classificação paralela dos criminosos e dos castigos e a individualização das penas, conforme as características singulares de cada criminoso. O que se pretende demonstrar é que o título de reincidente interfere também em cada etapa da execução penal, por isso se não houver requisitos precisos e uma preparação técnica apurada, principalmente formação atenta aos preceitos constitucionais, a reincidência sempre será um óbice à pretendida execução penal constitucional. Não é uma mudança que tornará a execução penal hoje conhecida naquele pretendida, mas a soma de componentes contribuirá rumo à alteração do quadro assim resumido: a execução penal é a escancarada aplicação da legalidade de forma ilegal. 5.5 A reincidência como resultado estatístico da seletividade arraigada Não é novidade a alta desenfreada dos índices de reincidência796. A história demonstra que desde o nascedouro da fracassada pena de prisão, a reincidência é uma constante que alimenta o sistema penitenciário, “apesar da 795 FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p.94. 796 Para estudo dos índices, adotou-se como referência: IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Acesso em: 9 ago.2016. 240 presunção de que durante a reclusão os internos são submetidos a tratamento reabilitador”797. Além de perceber a falha do sistema prisional, dos dados estatísticos tangentes à reincidência798 também é possível extrair que aquela está presente na sua maioria, em casos envolvendo indivíduos de estratos inferiores, com a nítida reprodução de exclusão social. O criminólogo Alessandro Baratta799 expõe a existência de um código social (second code) – que impõe aos indivíduos socialmente mais débeis, além de uma relação precária com o mundo do trabalho e da população – referente ao direito penal, uma reprodução das relações sociais com a marginalização de uma população criminosa dos setores socialmente mais desiguais. Para Edmundo Oliveira e Eugenio Raúl Zaffaroni, “a função natural do sistema penal é de conservar e reproduzir a realidade social existente”800. Esse processo conduz à constituição de uma população criminosa como minoria marginalizada, cujo efeito de estigmatização penal sobre a identidade social traz a própria definição de si mesmo. Há uma mudança de identidade social através das sanções estigmatizantes, que conduz o indivíduo à dependência causal da delinquência a partir da primeira condenação. Desta feita, não existe função reeducativa da pena. Conforme Alessandro Baratta: 797 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.161. 798 Sobre as cifras da reincidência, interessante trazer as seguintes ponderações apresentadas por Bitencourt: a) Seria interessante olhar o problema sob outra ótica, ou seja, questionar se o pequeno número de êxito obtido pela pena de prisão é o único possível; b) As causas responsáveis pelos altos índices não são estudadas cientificamente, sendo questionável se está relacionada a falência da pena de prisão ou a acontecimentos posteriores à libertação; c) Deve ser considerado que a sensibilidade a respeito da pena pode variar, trazendo efeitos distintos aos perseguidos; d) O percentual de reincidência não leva em consideração a situação dos internos, como a alta periculosidade e a superlotação, não sendo a reincidência o fator exclusivo do fracasso dos métodos penitenciários; e) A reincidência não é o fator mais importante e responsável pelo fracasso do sistema penal. A responsabilidade é do sistema penal como um todo, das condições sociais de injustiças promovidas. Dessa forma, considera que a reincidência não pode ser atribuída apenas ao fracasso da prisão, mas também a fatores pessoais e sociais. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.162-164). 799 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6.ed.Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2013, p.179. 800 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; OLIVEIRA, Edmundo. Criminologia e política criminal. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p.436. 241 A teoria das carreiras desviantes e do recrutamento dos “criminosos” nas zonas sociais mais débeis encontra uma confirmação inequívoca na análise da população carcerária, que demonstra a extração social da maioria dos detidos dos estratos sociais inferiores e o elevadíssimo percentual que, na população carcerária, é 801 representada pelos reincidentes . Conforme observado, a concepção é de que o crime se configura uma construção social com destinatário pré-constituído, “ou seja, para a criminologia crítica o crime é uma construção social para determinada classe social”802. Há uma negociação no direito penal por expressar relações de subordinação e não de coordenação. Essa característica negocial é apontada no direito penal desde o princípio, em que se visualizam leis arbitrárias para atingir uma minoria em prejuízo do ser humano como um todo803. “É perigoso quem tem “menos”, ou seja, quem tem um “déficit”. Déficits físicos, psíquicos, afetivos, culturais, sociais. Eliminando ou reduzindo o déficit, eliminada ou reduzida a periculosidade social”804. Basta visitar as prisões para encontrar sempre e em toda parte sujeitos com tais “déficits”. Desta forma, a saída só pode ser reduzir as diferenças sociais, principalmente os déficits socioeconômicos. As estatísticas da reincidência em diversos países, dos mais variados parâmetros políticos, econômicos e' culturais, são pouco animadoras, além de não apresentarem índices confiáveis, na maioria dos casos, ou sequer existir estudo em torno dessa problemática. Contudo, quando apurados e analisados detidamente, esses dados desvendam pela reincidência à seletividade penal. Nas palavras de Raúl Zaffaroni: A seletividade do sistema penal atinge as classes sociais mais vulneráveis, geralmente os presos são os mais pobres, que têm menos tempo de estudo e, portanto, praticam os crimes mais grosseiros, que são mais fáceis de ser descobertos. O sistema penal 801 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6.ed.Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2013, p.179. 802 FELETTI, Vanessa Maria. Vende-se segurança: a relação entre o controle penal da força de trabalho e a transformação do direito social à segurança em mercadoria. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p.104. 803 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.224. 804 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da pena e execução penal: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.36. 242 é seletivo sempre, é estrutural, no Brasil, Argentina ou China, no 805 mundo todo . Desta feita, “as prisões brasileiras têm uma clientela específica” ou “clientela por excelência”806, composta por “pessoas vulneráveis e sempre pertencentes aos estratos sociais mais desfavoráveis da comunidade”807. Nas palavras de Vera Andrade808, “nada simboliza melhor a seletividade do que a clientela da prisão.” Aliás, “os índices de reincidência mostram que o sistema penal selecionou de forma eficaz, desde o início, a própria clientela” e, o cárcere, nesse sentido, “pode ser útil na gestão da criminalidade e da reincidência se e enquanto for capaz de operar segundo a finalidade de neutralização seletiva”809. Conforme esclarece Vera Regina Pereira de Andrade810, os pobres (minoria criminal) não são propícios ao crime, mas estão na mira da criminalização, com maiores chances de serem etiquetados como delinquentes. Por vulnerabilidade entende-se “uma decorrência direta da condição de exclusão social”811. Essa condição também está atrelada ao paradigma das inter-relações sociais, havendo duas formas de entender a relação da vulnerabilidade com o comportamento problemático. Alvino Augusto de Sá812 explica que é por meio da inovação que o vulnerável encontra uma alternativa para se satisfazer pessoalmente. Alguns tornam ilesos seus desejos e outros reagem socialmente. Nesse último caso, o indivíduo afronta as normas socialmente vigentes e tais condutas passam a ser criminalizadas pelas 805 Vício do sistema. É mentira dizer que a corrupção será derrotada com o direito penal. Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-nov-01/entrevista-raul-zaffaroni-jurista-ministroaposentado-argentino>. Acesso em: 3 nov.2015. 806 SUECKER, Betina Heike Krause. Pena como retribuição e retaliação – o castigo no cárcere. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p.166. 807 GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista. Rio de Janeiro: Renavan, 2007, p.210. 808 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p.137. 809 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da pena e execução penal: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.66; 64. 810 ANDRADE, Vera Regina de. Sistema penal x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.54. 811 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. São Paulo: RT, 2011, p.281. 812 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. São Paulo: RT, 2011, p.281. 243 instâncias de controle: “trata-se de um processo de, não mais de prática de uma conduta definida como crime, mas de criminalização da mesma e de criminalização de seu autor, que tem como sujeito as instâncias de controle”813. A seletividade do direito penal e na aplicação de determinados institutos limita-se a eleger pessoas de classes vulneráveis, não apenas socialmente, mas também biologicamente. Com tantos déficits o sistema penal se incumbe de nutrir a deterioração do indivíduo, o que explica a reincidência, já que irá ocasionar “um processo de condicionamento e vai tornar a pessoa uma vítima de um sério prejuízo em sua capacidade de autodeterminação, fácil candidata a novas criminalizações”814. Elege-se, pois, os inimigos do sistema penal mantidos sob a violência estrutural e combatidos com uma luta rigorosa, não importando se legal ou ilegal815. Por isso, Zaffaroni816 mencionou que o direito penal do inimigo sempre é aplicado nos tribunais e o inimigo é encontrado nas prisões. Além disso, o instrumento preferido dessa política é a prisão provisória à espera de julgamento817. A identificação do “inimigo” é realizada por meio de critérios objetivos, dentre eles, o da reincidência818. Não se pode negar que o direito penal do inimigo existe em contraposição ao direito penal do cidadão819. Ignorar esse fato é o mesmo que silenciar-se diante da violência silenciosa já aplicada em muitos Estados de Direito820. 813 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. São Paulo: RT, 2011, p.281. 814 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. São Paulo: RT, 2011, p.282. 815 GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista. Rio de Janeiro: Renavan, 2007, p.211. 816 Vício do sistema. É mentira dizer que a corrupção será derrotada com o direito penal. Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-nov-01/entrevista-raul-zaffaroni-jurista-ministroaposentado-argentino>. Acesso em: 3 nov.2015. 817 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; OLIVEIRA, Edmundo. Criminologia e política criminal. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p.303. 818 PEREIRA, Claudio José Langroiva. Proteção jurídico-penal e direitos universais – tipo, tipicidade e bem jurídico universal. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.208. 819 Para Manuel Monteiro Guedes Valete essa expressão é um pleonasmo, pois o direito penal já deve se respaldar na dignidade da pessoa humana, com a limitação de possíveis abusos dos detentores do ius puniendi e obedecer às garantias processuais penais de todos. (VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Direito penal do inimigo e o terrorismo: o progresso ao retrocesso. São Paulo: Almedina, 2010). 820 JAKOBS, Günther. Direito penal do inimigo. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 244 Com o desmonte do Welfare State, houve a descartabilidade do valor da pessoa humana, ou seja, considera-a supérflua e projeta-se nela um meio de coação direto com a maximização do poder policialesco821. Segundo Salo de Carvalho, “compreende-se, neste quadro político, a formação de condições de irrupção de políticas criminais igualmente sustentadas na exclusão, para determinadas pessoas, do status de cidadão – direito penal do inimigo”822. Com o fundamento de que a proteção dos bens jurídicos deve ser substituída mediante a proteção da vigência da norma823, Jakobs argumenta que não é possível desconsiderar o fato de que há no direito penal dois polos ou tendências em suas regulações. Um deles está destinado ao cidadão, o qual não oferece perigo futuro, podendo vir obedecer ao direito novamente e outro ao inimigo, aquele que reitera nas práticas criminosas e ignora de forma duradoura as regras do ordenamento jurídico. Nas palavras de Jakobs, “um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa”824. Mesmo diante de infindáveis críticas ao direito penal do inimigo, principalmente a de que toda a teoria é contrária aos preceitos de um Estado Democrático de Direito, merece reconhecimento o fato de Jakobs ter apenas teorizado uma nova fase evolutiva da política criminal autoritária e divulgar de forma científica a coisificação que alguns seres humanos, os perigosos, estão sofrendo com a privação de certos direitos fundamentais, num verdadeiro processo de exclusão, eliminação ou neutralização825. Os reincidentes compõem esse cenário velado do direito penal do inimigo, pois os efeitos da reincidência são aplicados automaticamente, 821 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.102. CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.102. 823 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução e organização de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2.ed. Porto Alegre/RS: Livraria do Advogado, 2013, p.58. Roxin entende duvidosa essa concepção e questiona o fato de para Jakobs o fundamento de punição da tentativa ser o mesmo que o da consumação, considerando tudo como ataque perfeito contra a vigência da norma. Para Roxin a punição da tentativa está no perigo que foi colocado o bem jurídico. 824 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Canio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Tradução e organização de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre/RS: Livraria do Advogado, 2009, p.35. 825 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo do direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2.ed. Rio De Janeiro: Revan, 2007, p.162. 822 245 considerando-se acima de tudo o que a pessoa é (recidiva) e, mais, segregada, excluída socialmente, tudo com a confirmação pelo sistema penal. A reincidência é um fator preocupante e precisa ser alterada tanto normativamente como estatisticamente. Considerar apenas a periculosidade do reincidente para puni-lo mais gravemente e obstar sua saída do sistema prisional, sem levar em conta os fatores sociais diretamente relacionados à sua vida e, principalmente, a falha do Estado ao tomar para si, com a promessa de ressocialização826, a responsabilidade da aplicação da promissora pena, apenas revigora a desproporção na punição daqueles que foram realmente ‘selecionados’ pelo sistema penal. Observa-se, então, pelos dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), apresentados no relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil827, em 2015, fruto de um acordo de cooperação técnica entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ipea (001/2012), a seletividade estampada nos índices apurados. Antes, porém, importante registrar que os dados estatísticos não podem retratar a realidade por completo, mas ao menos dela se aproxima. Nesse sentido, Hassemer828 faz um alerta. Para o autor, é muito difícil alcançar um conhecimento fidedigno pelos dados estatísticos sobre o êxito da ressocialização. Entende ser inutilizável o argumento das cifras de reincidência para desautorizar a ideia de ressocialização, pois por esses dados somente se estampa a criminalidade manifesta, investigada e condenada. A cifra negra permanece obscura, não se aferindo a real criminalidade. Além disso, não é possível provar todos os fatores que cooperam produtivamente para modificar os índices de reincidência. 826 De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 65,9% dos reincidentes cumpriram a pena integralmente. Do restante: 1,1% é absolvido; 1,6% recebeu graça, anistia ou indulto; 11,5% morrem antes do cumprimento da pena; e 19,7% dos casos ocorre prescrição. (IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Acesso em: 9 ago.2016). 827 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Acesso em: 9 ago.2016. 828 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005, p.377. 246 No mesmo sentido, segundo Claudio José Langroiva Pereira829, denominada cifra negra da criminalidade demonstra que “qualquer pesquisa ou estudo técnico, realizado com fundamento na criminalidade conhecida, fica a cargo de supostos acertos ou previsões inconsistentes”. Mesmo assim, deve-se considerar o valor de uma pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil, seja pelas poucas existentes seja pela importância de se dar um passo inicial na identificação e possíveis medidas de solução a esse problema. Nela serão destacados os principais índices e aspectos relacionados à situação. Inicialmente, é possível verificar que o sistema prisional possui um alto déficit de vagas e o número de presos só aumenta a cada ano. O Brasil é o quarto país que mais encarcera no mundo. Em contrapartida, as taxas de criminalidade não param de subir, fato diretamente relacionado à falha ressocializadora das prisões e à reincidência830. A taxa geral de reincidência varia muito a depender da pesquisa, dos critérios utilizados e da região em estudo, contudo, é sempre alta, indicando as menores estimativas em torno de 30%. Conforme aponta o relatório do IPEA, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já mencionou que o índice de reincidência era de 70% em 2011. Adorno e Bordini (1989) chegaram a uma taxa de 46,03% em estudo realizado com sentenciados libertados da penitenciária do estado de São Paulo entre 1974 e 1976. Em outro estudo (1991), considerando somente os detentos já condenados pelo sistema de justiça criminal paulista, revelou-se uma taxa de reincidência de 29,34%. O Censo Penitenciário Nacional de 1994 concluiu que 34,4% dos apenados no Brasil eram reincidentes. Kahn (2001) produziu uma pesquisa sobre reincidência penal para o estado de São Paulo e apontou que a taxa era de 50% em 1994; 45,2% em 1995; e 47% em 1996. Em 1998, o Depen citou que a reincidência era de 70% e que sua meta era reduzi-la, até 2003, para 50%. No entanto, nesse ano, considerou o número de reincidências igual ao de presos recolhidos no ano 829 PEREIRA, Claudio José Langroiva. Política criminal e os fins do direito penal no Estado Social e Democrático de Direito. In: (Org.) SILVA, Marco Antonio Marques da. Processo penal e garantias constitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p.96. 830 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Acesso em: 9 ago.2016. 247 com passagem anterior pelo sistema (condenados ou não). O próprio Depen, em junho de 2008, divulgou que 43,12% dos apenados de todo o país no primeiro semestre daquele ano eram réus primários com uma condenação; 23,87% eram primários com mais de uma condenação e 33,01% eram reincidentes831. Esclarece-se, contudo, que algumas formas de considerar a reincidência se destacam nas pesquisas estatísticas: a) reincidente como qualidade do agente, independentemente do número de condenações que gerou esse rótulo ou o manteve e; b) a contagem dos índices a partir de cada condenação que gerou a reincidência (“multirreincidência”); c) reincidência penitenciária, caso em que considera apenas o recolhimento novamente no estabelecimento penal do sujeito que já cumpriu pena, sem a necessidade de condenação transitada em julgado. A pesquisa apresentada adota a primeira descrição832. Além do objetivo de levantar dados sobre a taxa de reincidência legal, a pesquisa do IPEA visou traçar o perfil dos apenados reincidentes. Para tanto, estudou 817 apenados de cinco estados. Entre esses processos válidos para o cálculo da taxa de reincidência, foram constatadas 199 reincidências, então, a taxa de reincidência, calculada pela média ponderada, totalizou 24,4%833. 831 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Acesso em: 9 ago.2016. 832 “A pesquisa ocupa-se, portanto, da reincidência em sua concepção estritamente legal, aplicável apenas aos casos em que há condenações de um indivíduo em diferentes ações penais, ocasionadas por fatos diversos, desde que a diferença entre o cumprimento de uma pena e a determinação de uma nova sentença seja inferior a cinco anos. A reincidência legal atém-se ao parâmetro de que ninguém pode ser considerado culpado de nenhum delito, a não ser que tenha sido processado criminalmente e, após o julgamento, seja sentenciada a culpa, devidamente comprovada”. (IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de Pesquisa sobre a Reincidência Criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. p.09. Acesso em: 9 ago.2016. 833 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de Pesquisa sobre a Reincidência Criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Esclarece-se que a pesquisa inicial iria ocorrer também no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo, mas não foi possível prosseguir nesses estados por ter sido constatado pelos pesquisadores que a listagem de processos fornecida pelos respectivos Tribunais não estava de acordo com o solicitado pela equipe. A pesquisa fora então realizada nos estados do Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Alagoas e Pernambuco. Já os estudos de caso, com a finalidade de aprofundar a investigação e exemplificar os problemas existentes, foram realizados em localidades restritas. Foram visitadas três UFs, cujo critério de escolha pautou-se pela possibilidade de explorar analiticamente diferentes dimensões que compõem a problemática da reintegração social do apenado (p.17-18;23). Acesso em: 9 ago.2016. 248 Quanto à faixa etária, a pesquisa demonstrou que a maioria dos reincidentes são pessoas jovens (18 a 24 anos), representando 42,1% do total dos casos analisados: A literatura internacional tem apontado que, quanto menor a idade do primeiro delito, maiores as chances de reincidência (Martinez, 1992; Nagin, 1992 apud Mariño, 2002). Nos dados coletados podemos perceber que a faixa mais jovem tem maior proporção na amostra de não reincidentes, já na faixa dos 25 anos em diante, a proporção de reincidentes tende a ser maior que a de não reincidentes, o que significa dizer que há algum crime pelo qual o réu foi condenado em 834 uma idade inferior àquela em que se encontra nessa amostra . Em relação ao sexo, os dados revelam que 91,9% é do sexo masculino, contra 8,1% do sexo feminino. Em cada dez não reincidentes, um é do sexo feminino. A grande maioria dos crimes praticados, de acordo com a referida pesquisa, é de crimes contra o patrimônio, furto e roubo, que no total de processos somam 40,9%, Entre os reincidentes, o crime de furto só cresce e chega a ultrapassar os 50%. O tráfico de drogas ocupa a terceira espécie de crime mais praticada pelos reincidentes835. Por esses dados, é possível vislumbrar a seletividade penal arguida, pois o envolvimento nessas espécies de crimes, salvo uma ou outra exceção, é de pessoas com baixa condição econômica. Além disso, em nenhum dos dados apresentados pelo relatório do IPEA foram identificados crimes como, por exemplo, contra a ordem econômica, tributária ou sistema financeiro, fato que pode ser explicado pela teoria do etiquetamento ou labelling approach. Por essa teoria, o crime deve ser estudado como o centro de uma teoria da criminalidade, analisado, então, a partir de duas instâncias: “da definição do comportamento delitivo por normas abstratas” e da “reação das instâncias oficiais contra esse comportamento delitivo definido anteriormente”836. O crime, nesse viés, não é um dado preestabelecido, mas construído com o etiquetamento de determinados comportamentos e 834 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Acesso em: 9 ago.2016. 835 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de Pesquisa sobre a Reincidência Criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>, p. 29, Acesso em 09 de agosto de 2016. 836 BRETAS, Adriano Sérgio Nunes. Fundamentos da criminologia crítica. Curitiba: Juruá, 2010, p.68. 249 indivíduos. Há uma dupla seleção: a primeira é a dos bens jurídicos protegidos penalmente e dos comportamentos que os ofendem, e uma segunda seleção é a dos indivíduos estigmatizados837.. Portanto, a teoria do labelling approach questiona por que certas condutas são criminalizadas e outras não, ainda que potencialmente lesivas, e por que apenas um grupo de pessoas mais vulneráveis é selecionado pelo sistema penal. Conforme Francisco Muñoz Conde e Winfried Hassemer838, o acerto dessa teoria foi demonstrar a atuação das instâncias formais de controle na seletividade dos criminosos e na eleição dos bens jurídicos que devem ser protegidos. Desta forma, pela teoria do etiquetamento é possível entender que a reincidência gira em torno de uma seletividade já estabelecida no sistema penal, tanto na criminalização primária como na secundária. Por esse viés, tem-se que o objetivo maior da manutenção da reincidência no ordenamento jurídico é a “individualização das pessoas perante os sistemas de controle, assegurando a existência de uma classe delitiva e a perpetuação das relações de poder”839. A pesquisa ainda demonstra a porcentagem de reincidentes que já estavam presos no momento da condenação. Deles, 54,3% estavam presos pelo crime referente ao processo pesquisado e 4,5% por outro crime. A prisão, portanto, vem sendo utilizada como o mecanismo central do funcionamento do sistema de justiça criminal, com baixa efetividade na prevenção da criminalidade e forte impacto na construção de carreiras delinquenciais840. Quanto ao conteúdo da decisão definitiva, os apenados reincidentes foram mais condenados a penas privativas de liberdade. Entre os reincidentes, 837 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6.ed. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2013, p.161. 838 CONDE, Francisco Muñoz; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia. Tradução, apresentação e notas de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.117. Os autores apontam como o principal desacerto dessa teoria o fato de não propor propostas de polícia-criminal e social, limitando-se a contrariar o etiquetamento. Outras críticas são também expostas (p.117-121). Pondera-se, contudo, que os autores entendem que essa teoria tem razão, em parte, segundo o setor ou âmbito de criminalidade a que se refere. O valor explicativo depende do contexto em que será analisada. (p.123). 839 SILVA, Suzane Cristina. Reincidência e maus antecedentes: crítica a partir da teoria do labelling approach. Revista Liberdades nº16, maio-ago.014. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, p.65. 840 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Acesso em: 9 ago.2016. 250 apenas 6,6% foram condenados a penas alternativas, enquanto 89,3%, a penas privativas de liberdade. Esse fato se explica, pois uma das condições para a aplicação de penas alternativas é justamente a não reincidência 841. Muitos outros dados foram abordados pela pesquisa, como as principais causas da reincidência apontada tanto pelos presos como pelos agentes penitenciários, juízes, porém, nesse item pretendeu-se elencar os dados capazes de apontar o motivo de o instituto da reincidência ser considerado oriundo da seletividade penal. 5.6 A política criminal contemporânea: a reincidência no contexto da crise do sistema penal e processual penal Ao contrário do que muitos afirmam, a política criminal não se refere apenas a reformas no âmbito jurídico. Ela alcança conteúdos de cunho social e, consequentemente, atinge o direito penal e processual penal. Da mesma forma, não é algo novo no contexto histórico, uma vez que há séculos ocupa a discussão em torno do cenário de controle social842 pelo Estado e seus abusos através do sistema punitivo. Nessa senda, destaca-se a obra Dos delitos e das penas843 de Cesare Beccaria (1738-1794), o conhecido Marquês de Beccaria, a qual foi um marco crítico contra as barbáries do cárcere. Publicado em 1764, o livro representou o início do “período humanitário” da ciência criminal. A obra emblemática de Beccaria já representava “um breviário de política criminal de base iluminista”844. Para Beccaria, a pena teria como escopo proporcionar o bem à sociedade com a segurança pública845. 841 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório de pesquisa sobre a reincidência criminal no Brasil. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_cri minal.pdf>. Acesso em: 9 ago.2016. 842 Interessante a definição de Winfried Hassemer: “Norma, sanção e processo formam juntos o que nós denominamos de “controle social”. O controle social é uma condição fundamental irrenunciável da vida em sociedade. [...] Ele é um instrumento de desenvolvimento cultural e de socialização dos membros dos grupos e sociedades.” (HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005, p.414). 843 BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. 2.ed. São Paulo: RT, 1999. 844 MARAT, Jean-Paul. Plano de legislação criminal. Tradução: João Ibaixe Jr. e Carmensita Ibaixe. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p.41. 845 BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria geral da pena. São Paulo: Saraiva, 2010, p.90. 251 Na mesma linha, contudo, com algumas diferenciações, Jean-Paul Marat em Plano de legislação criminal, publicada definitivamente em 1790, denunciava a desumanidade dos castigos e os suplícios penais, além de se revoltar contra as falsas construções que embasaram o iluminismo e o derrubaram ao longo da história846: [...] não se pode negar o descortino de Marat, ao estabelecer em seu projeto de legislação criminal a fixação de garantias para os principais valores burgueses: a vida e a propriedade. Isto, de modo breve, para indicar o caráter negocial da fixação das normas que regerão a penalização das condutas tidas por nocivas a uma determinada organização do Estado e, para evitar delongas, sem explorar a fascinante rede negocial presente nas relações entre Poder Público e 847 defesa dos réus . Desta feita, a política criminal sempre se constituiu nitidamente por dois polos, um de maior incremento punitivista e outro de diminuição da pressão punitivista, conforme ainda permanece. Segundo Vera Regina P. de Andrade, [...] o horizonte de projeção da política criminal é hoje, portanto, no contexto do capitalismo globalizado neoliberal, um campo complexo e ambíguo, atravessado por respostas contraditórias que invocam tanto a maximização da luta contra a criminalidade (maximização eficiente da criminalização) quanto a minimização e a abolição da própria criminalização, oscilando entre mais pena, menos pena, ou nenhuma 848 pena . Da forma oficial como concebida, surgiu na modernidade no final do século XIX, no marco do modelo integrado de ciências penais, formulado por Franz Von Listz849, para o qual os três pilares interdependentes voltados ao controle do crime e da criminalidade são a criminologia (ciência da criminalidade), a dogmática penal (ciência do direito penal) e a política criminal, conforme explica Vera Regina Pereira de Andrade850. Nesse viés, a criminologia tem por objeto o fenômeno da criminalidade, suas causas e a 846 MARAT, Jean-Paul. Plano de legislação criminal. Tradução: João Ibaixe Jr. e Carmensita Ibaixe. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.41. Marat luta pela conservação das ideias iluministas, já Beccaria planta ideias humanistas. 847 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.224. 848 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p.295-296. 849 LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal alemão. Atual. e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Comentários e tradução de José Higino Duarte Pereira. Campinas, SP: Russel, 2003. 850 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p.276. 252 partir de conhecimentos antropológicos e sociológicos embasa a política criminal; já a dogmática do direito penal preocupa-se com as normas penais, interpretando-as e sistematizando-as para a segurança jurídica na sua aplicação851. Para Salo de Carvalho: Perceptível que a questão no campo criminal fica agudizada em face de fazer parte do modelo integrado de ciências a política criminal, cuja função seria a de, a partir dos diagnósticos realizados pela dogmática penal e pela criminologia, produzir discurso de inserção no âmbito da política. A política criminal, portanto, seria a produção de 852 convicção a partir dos julgamentos objetivos das ciências criminais . Nesse contexto, a política criminal pode ser conceituada como a luta do Estado contra a criminalidade (império do “mal”) por meio de um conjunto de estratégias e ações, em defesa da sociedade (o “bem”), respaldada pela ciência853. Nilo Batista854 denomina política criminal como o conjunto de princípios e de recomendações para reformar ou transformar a legislação criminal e os órgãos encarregados de sua aplicação. E essa é identificada em cada etapa do sistema penal: política de segurança pública (instituição policial), política judiciária (instituição judicial) e política penitenciária (instituição prisional). A política criminal é uma das políticas desenvolvidas pelo Estado visando executar projetos por vários órgãos estatais contra a criminalidade, para prevenção ou repreensão. Nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli, “se por política se entende a ciência ou arte de governo, por política criminal pode-se entender a política relativa ao fenômeno criminal, o que não seria mais que um capítulo da política geral”855. 851 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p.276. 852 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.23. 853 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p.277. 854 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12.ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011, p.33. 855 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. v.1 – parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 2004, p.129. 253 Franz V. Liszt , conforme observa Roxin856, destaca: En la Política criminal incluye los métodos adecuados, en sentido social, para la lucha contra el delito, es decir, la Ilamada misión social del Derecho penal; mientras que al Derecho penal, em el sentido jurídico de la palabra, debe corresponder la función liberal del Estado de Derecho, asegurar la igualdad em la aplicación del Derecho y la 857 libertad individual frente al ataque del “Leviathan”, del Estado . Ademais, a política criminal pode ser definida, conforme Santiago Mir Puig858, como um setor da política que trata da delinquência, contendo um conjunto de critérios voltados ao tratamento da criminalidade. Entende ainda que cada ordenamento jurídico-penal responde a uma determinada orientação política criminal, a qual é uma orientação prática. Na mesma senda, considerando a estrutura tridimensional do direito (norma, fato e valor), pode ser compreendida como um desses componentes na dogmática jurídico-penal, ou seja, o direito penal simboliza a norma, a criminologia o fato e a política criminal o valor859. Não se pode desprezar que política criminal deve ser norteada pelos preceitos constitucionais. Isso quer dizer que a Constituição Federal é a linha mestra da execução de todos os métodos de combate e prevenção da criminalidade. Sendo assim, não pode ser dúbia a resposta sobre a forma de política criminal adotada no Brasil. Ao analisarmos os direitos e garantias fundamentais, os princípios penais e processuais penais constitucionais, a conclusão é de que o país adotou o modelo minimalista da política criminal. Entretanto, não o fez com viés abolicionista, mas reformista e com um fim em si mesmo, ou seja, mediante a Constituição Federal de 1988 tende ao movimento reformista com o enfoque despenalizador, o princípio da intervenção mínima e o uso da prisão como última ratio. Sustenta-se um direito penal mínimo 856 ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. 2.ed. Traducción Francisco Muñoz Conde. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p.32. 857 À política criminal assinala ele os métodos racionais, em sentido social global no combate à criminalidade, o que na sua terminologia era designado como a tarefa social do direito penal, enquanto ao direito penal, no sentido jurídico do termo, competiria a função liberal-garantística de assegurar a uniformidade da aplicação do direito e a liberdade individual em face da voracidade do Estado “Leviatã”. (Tradução livre). 858 PUIG, Santiago Mir. Derecho penal – parte geral. 6.ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2002, p.58. 859 PUIG, Santiago Mir. Derecho penal – parte geral. 6.ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2002, p.58. 254 pautado na proteção das garantias tanto dos criminosos como dos não criminosos. Nessa senda, a política criminal brasileira possui como alicerce os princípios, os direitos fundamentais e os direitos humanos, os quais considerase “o único instrumento de defesa contra os excessos estatais”860. Porém, a prática é incisiva ao demonstrar justamente o contrário, o crescimento do movimento “Lei e Ordem”, negando qualquer deslegitimação do poder punitivo. Nesse sentido, conforme observa Vera Regina Pereira de Andrade a respeito do discurso da “Lei e Ordem”: É necessário incrementar mais e mais a engenharia e a cultura punitivista, fechar cada vez mais a prisão e suprimir cada vez mais as garantias penais e processuais básicas, rasgando cotidianamente a Constituição e o ideal republicano. De última, a prisão retorna à prima 861 ratio . Ocorre que, a política criminal de modelo maximalista, a exemplo do direito penal do inimigo, já arguida, é totalmente incompatível com as projeções de criminalização no âmbito político-criminal minimalista (teoria garantista)862, em consequência, ao modelo insculpido na Constituição Federal. A projeção da política criminal atual é afetada pela crise do sistema penal e processual penal. Conforme Zaffaroni863, a política criminal autêntica somente alcança seu objetivo por meio da atualização do sistema ao qual ela se aplica e tem o papel de atualizar o sistema penal, atendendo às necessidades e aos valores da sociedade moderna. Dentro da crise mencionada localiza-se a reincidência criminal como um componente da dogmática normativa. A reincidência criminal foi declarada constitucional sob o forte argumento de compor o sistema de política criminal brasileiro, com diversas repercussões no decorrer do processo. 860 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2.ed. jan. 2012. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p.66. 861 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p.271. 862 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.24. 863 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; OLIVEIRA, Edmundo. Criminologia e política criminal. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p.425. 255 Ocorre que, dos resultados práticos extraídos do sistema penal e de seus efeitos negativos sobre as pessoas mantidas sob o controle do poder punitivo, o meio da reincidência criminal tem muito mais a característica de uma política de eficientismo penal, acompanhando a saga do MAIS, consoante Vera Regina: “[...] mais leis penais, mais criminalizações e apenamentos, mais polícias, mais viaturas, mais algemas, mais vagas nas prisões [...]”864. Percebe-se logo que por meio da distorcida política criminal aplicada, institutos considerados componentes do método repressivo também são mantidos sem qualquer adaptação para serem compatíveis ao modelo constitucional. Sob a justificativa da necessidade de impor uma sanção mais contundente àquele que se negou à ressocialização, a reincidência criminal não passa de mais um exemplo explícito do simbolismo penal, visto que longe de combater ou amenizar o fenômeno da criminalidade. Marco Antonio Marques da Silva observa que “o sistema penal, como estrutura de sustentação do poder social, por meio da via punitiva, é, assim, simbólico”, atingindo os segmentos sociais marginalizados, como aqueles pertencentes aos setores hegemônicos865. Consoante Baratta866, a “política criminal” é uma espécie do gênero “política pública”, ao qual pertencem outras espécies. Todavia, a política criminal está engessada em velhos preceitos e é mais punitiva, “colonizando e criminalizando a política social, e cada vez mais distanciada de uma interação orgânica com uma política de transformação social e penal”867. A política criminal é “a prima pobre da política social, mas está indissoluvelmente ligada a ela”868. Aliás, o direito penal e o direito processual penal deveriam ser o último recurso da política social869. 864 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p. 271. 865 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p.10. 866 BARATTA, Alessandro. Política criminal: entre la política de seguridad e la política social. In: (Org.) ELBERT, Carlos Alberto. Criminología y sistema penal: compilación in memoriam. Buenos Aires: Editorial B de F, 2004, p.154-164. 867 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p.289. 868 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12.ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011, p.34. 869 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3.ed. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz. Lisboa: Vega, 2004, p.58. 256 A reincidência já foi considerada o ponto principal da mira da política criminal. Já expunha Nelson Hungria, quando o Código Penal aplicava ao reincidente doloso medida de segurança, que o legislador não poderia atribuir ao juiz a apreciação para cada caso concreto do caráter de reincidência, uma vez que faltariam elementos de elucidação com os cadastros criminais ineficientes e, ainda, os meios seriam ineficazes para o juiz indagar sobre a personalidade do acusado. O juiz chegaria a afastar sintoma de periculosidade deixando a sociedade desarmada contra os reincidentes. E defendia: “a reincidência não pode, portanto, deixar de ser considerada, juris et de jure, uma presunção de defesa social”870. Por ora, contudo, a reincidência criminal vem tão somente compor a arquitetura de conceitos justificadores da prisão, ao lado da personalidade, da classificação dos criminosos, dos antecedentes e do verdadeiro direito penal do autor, como ápice do caráter preventivo. O princípio da legalidade é preexistente, limitador e garantista no uso da política criminal. Porém, diante da crise pela qual atravessa o direito penal atual, a opção de prevenção vem superando as garantias individuais 871. A verdade é que surgiu uma política criminal proveniente da ação intensiva das corporações midiáticas, “verdadeiras condicionantes da aplicação das garantias penais e processuais, que ao nível do discurso estão asseguradas em pactos e tratados internacionais sobre direitos humanos”872. O grande desafio é lutar pelo delineamento claro e preciso de uma política criminal que semeie alternativas que possam causar uma retenção na expansão do poder punitivo estatal. É necessário defender uma “política criminal consequente, forte, empenhada, de uma luta efectiva e real contra a criminalidade” 873 ilesa da cultura de controle, da proliferação de leis de emergência874, da exaltação à 870 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v.III.4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p.112. PEREIRA, Claudio José Langroiva. Política criminal e os fins do direito penal no Estado Social e Democrático de Direito. In: (Org.) SILVA, Marco Antonio Marques da. Processo penal e garantias constitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p.86. 872 PRADO, Geraldo. A transição democrática no Brasil e o sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.geraldoprado.com> Acesso em: 10 jan. 2016. 873 COSTA, José de Faria. Direito penal e globalização: reflexões não locais e poucos globais. Portugal: Coimbra, 2010, p.67. 874 “Em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela Administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais 871 257 tolerância zero, da diminuição de garantias processuais, do aumento de prisões – uma política criminal de geometria variável –, capaz de diminuir as leis penais, torná-las claras, límpidas e precisas, aplicar penas de forma mais rápida e alterar alguns pontos da arquitetura processual penal875. Nesse cenário, a reincidência penal deve ser vista aos olhos da verdadeira política criminal brasileira traçada com respaldo constitucional. Em caso de continuar sendo um mal necessário, juntamente com a pena que instiga o direito penal e reflete diretamente no processo penal, deve ser remodelada para que tenha de fato seja compatível com o modelo de processo penal constitucional. Da forma como vem sendo tratada e aplicada, a reincidência penal aparenta estar inserida num sistema fechado (penal e processual penal). Porém, o sistema jurídico precisa de abertura em prol de evoluções a favor da sociedade. Essa crise no sistema penal e no sistema processual penal é retratada, em síntese, por René Ariel Dotti: No campo da administração da justiça penal os seus operadores estão sofrendo a amarga experiência da inflação legislativa, responsável por um tipo de direito penal do terror que, ao contrário de seu modelo antigo, não se caracteriza pelas intervenções na consciência e na alma das pessoas, tendo à frente as bandeiras do preconceito ideológico e da intolerância religiosa. Ele se destaca, atualmente, em duas perspectivas bem definidas: a massificação da responsabilidade criminal e a erosão do sistema positivo. A primeira fomenta o justiçamento social determinado pelos padrões sensacionalistas da mídia que subverte o princípio da presunção de inocência e alimenta a fogueira da suspeita que é a justiça das paixões, consagrando a responsabilidade objetiva; a segunda, anarquiza os meios e métodos de controle da violência e da criminalidade, estimula o discurso político e revela a ausência de uma 876 Política Criminal em nível federal . O sistema processual penal, atingido por uma crise expansionista e mantenedora de uma cultura inquisitiva, retrata a dificuldade de quebrar severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente. Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como uma espécie de panacéia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias.” (TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.05) . 875 COSTA, José de Faria. Direito penal e globalização: reflexões não locais e poucos globais. Portugal: Coimbra, 2010, p.67. 876 DOTTI, René Ariel. A reforma do Código Penal I. Disponível em: <http://www.dotti.adv.br/artigosjp_431.htm>. Acesso em: 15 ago.2016. 258 barreiras e se constituir um verdadeiro processo penal constitucional, como abordado no segundo capítulo. Infelizmente, “práticas autoritárias emergem e submergem, conforme o ciclo político, mas não desaparecem. E no campo da Justiça Criminal, no Brasil, não é sequer correto afirmar que tais práticas tenham perdido fôlego com o fim da ditadura”877, reitera Geraldo Prado. A reincidência criminal no sistema processual penal analisada nas mais diversas fases de aplicação neutraliza o delinquente oriundo da seletividade penal. O alerta de Jesús-Maria Silva Sánchez878 se enquadra na análise ora realizada, pois a neutralização seletiva tem o condão de manter a prisão pelo maior tempo possível aqueles considerados responsáveis pela maior parte dos fatos delitivos. E, a partir de dados estatísticos (reincidência), é possível predizer que continuarão na vida do crime. É como se ocorresse uma quase operação matemática de regra de três simples: quanto mais tempo o reincidente permanecer sob o comando estatal penal, mais economia de delitos para a sociedade. Quase, pois, há a fórmula, mas o resultado nunca é alcançado. A instrumentalidade do processo penal se perde nesse percurso de maciça perseguição a ‘escura’ do reincidente estagnando-se num processo com um fim exclusivamente jurídico, quando deveria ir além, “pois o processo deve também atender às finalidades sociais e políticas”879, segundo Aury Lopes Júnior. Desta forma, será incessante a batalha para mudar e inovar, para muito além do aspecto apenas normativo envolvendo a reincidência criminal. É necessário avançar para mudar a cultura ideológica e punitiva, “promovendo a mudança cultural dos operadores do direito, do senso comum midiático, que nos doutrina todos os dias com uma ideologia punitivista separatista e extremista”880, conforme verifica Vera Andrade. 877 PRADO, Geraldo. A transição democrática no Brasil e o sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.geraldoprado.com> Acesso em: 10 jan. 2016. 878 SILVA SANCHÉZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal. Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 2.ed. São Paulo: RT, 2011, p.170171. 879 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 880 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p.326. 259 Toda reforma inovadora, é claro, pretende modificar o que está errado, voltando-se para o futuro. Por outro lado, não tem a pretensão de remendar ou camuflar os males do passado, os quais serão cicatrizados no decorrer do tempo, mas nunca esquecidos. Constitui-se, pois, “em boa parte, um projeto de modificação da realidade que tem por insuportável, apesar de brasileira (sem qualquer orgulho)”881. Acredita-se que uma mudança ao redor do instituto da reincidência, a partir da visão sistêmica do direito processual penal constitucional, poderá contribuir para alterar uma realidade jurídica paradoxal. Ao mesmo tempo que brada por socorro, centra-se na luz do holofote do maximalismo penal, que ofusca o sentimento que deve sobrepor a saga punitivista, qual seja: o valor do ser humano acima de tudo. 5.7 Por uma nova interpretação à luz da efetividade do processo penal Seguindo a linha de tudo que se expôs em torno da reincidência penal, não resta dúvida de que esse instituto merece ser remodelado no ordenamento jurídico brasileiro. Como forma de maximizar a reprimenda, as regras em torno da reincidência não apresentaram evoluções significativas no decorrer histórico. Poucas foram as alterações, e as discussões a respeito ainda são tímidas. Deve-se considerar que o entendimento de muitos institutos jurídicos requer atenção ao que esse representou no passado e a partir disso também é possível compreender os reflexos no presente. Faltou, pois, um olhar mais atento a esse passado que carregou a reincidência quase que imodificável para o presente, sendo possível reconhecer claramente a carga repressiva que perdura até hoje. Os índices de reincidência, nos mais diversos países e no Brasil, são apontados praticamente em todos os estudos criminais, porém os efeitos processuais penais causados pelas regras voltadas à pessoa recidiva continuam produzindo a visão ludibriada de que algum efeito positivo produz. 881 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.78. 260 Desta forma, nesse último item da presente tese de doutoramento, será apresentada, além de uma nova interpretação da reincidência criminal à luz da efetividade do processo penal, determinadas sugestões de aprimoramento legislativo, entendidas como um dos passos rumo ao verdadeiro progresso do direito penal e processual penal. De antemão, importante insistir que, no contexto do sistema jurídico, o direito processual penal deve ser pautado nas diretrizes constitucionais, e a efetividade do processo penal está relacionada a esse conjunto organizado de normas em prol da proteção do ser humano. De nada adiantaria as normas processuais penais ou penais senão para alcançar a finalidade a que foram criadas. O processo penal deve ser efetivo a ponto de proporcionar uma resposta que o justifique. Por isso, a reincidência criminal deve sair do campo estático de aplicação e passar a ser aplicada de forma dinâmica, obedecendo ao princípio da individualização da pena, o qual enaltece também a função do juiz. Nesse sentido, conforme Nucci, importante destacar que o papel do julgador é valoroso: [...] a finalidade e importância é a fuga da padronização da pena, da “mecanizada”, que prescinda da figura do juiz, como ser pensante, adotando-se em seu lugar qualquer programa ou método que leve à pena pré-estabelecida, segundo um modelo unificado, empobrecido 882 e, sem dúvida, injusto . As regras oriundas da reincidência são hoje aplicadas automaticamente e sem quaisquer critérios que atendam à proporcionalidade e individualização da pena. A efetividade da reincidência criminal em âmbito processual e pelo viés sistemático do direito processual penal é ínfima, quase nula. Não resulta o esperado (contenção criminosa) e prorroga a submissão do condenado no perverso sistema penitenciário. Apesar da ineficácia da reincidência, diferentemente do entendimento de alguns autores que propõem a abolição pura e simples do instituto, ou que defendem que a reincidência deva funcionar como uma atenuante da pena em caso de reincidência real, pois o sistema carcerário deforma, entende-se que esse instituto, já que agregado à finalidade da pena, 882 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: RT, 2005, p.31-32. 261 deve permanecer como uma agravante, porém com regras mais específicas e claras, as quais serão agora sugeridas. Pauta-se diretamente no Projeto de Lei do Senado nº236, de 2012 (projeto do novo Código Penal), visto que neste já existem modificações voltadas ao instituto em comento. Primeiramente, em todas as justificativas nas quais pairam a manutenção da reincidência, não se extrai qualquer argumento justificável da aplicação dos seus efeitos em caso de crimes culposos. Essa regra contém uma exacerbada presunção de periculosidade e sobreposição de um direito penal do autor. Desta feita, entende-se que ao artigo 78 do Projeto de Lei do Senado nº236, de 2012 (projeto do novo Código Penal) deveria ser acrescentada essa ressalva: Artigo 78. Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime de natureza dolosa depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime 883 anterior . Outra regra que deveria ser modificada é a que se refere ao prazo depurador de 5 anos, aplicado indistintamente. Não é coerente os efeitos da reincidência perdurarem pelo mesmo tempo a todos os tipos de delitos. Assim, sugere-se prazos depuradores diferenciados, considerando a gravidade do delito, com a seguinte redação ao artigo 79, I: Art. 79. Para efeito de reincidência: I – não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo: a) superior a 5 (cinco) anos, em caso de condenação anterior a pena privativa de liberdade superior a 8 (oito) anos; b) superior a 3 (três) anos, se a condenação anterior a pena privativa de liberdade for superior a 4 (quatro) anos e não exceder a 8 (oito) anos e; c) superior a 1 (um) ano, em caso de condenação anterior a pena 884 privativa de liberdade igual ou inferior a 4 (quatro) anos . 883 Artigo 78. Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. 884 Artigo 79. Para efeito de reincidência: I – não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos; II – não se consideram os crimes militares próprios e políticos e os punidos com pena restritiva de direitos e/ou multa. 262 Observa-se que os critérios elencados sobre a gravidade do delito são compatíveis com aqueles já escolhidos pelo legislador quando definiu as regras do regime prisional a ser fixado pelo juiz na sentença penal condenatória (artigo 33, § 2º, Código Penal). Equitativamente, o artigo 80 do projeto deveria ter a redação a seguir: Art. 80. A sentença condenatória que não gera a reincidência mas pode ser considerada como antecedente para fins de dosimetria da 885 pena perderá esse efeito, observadas as regras do artigo 79, I . Em relação à aplicação de forma facultativa da reincidência, entende-se ser um método que direciona uma análise mais precisa pelo julgador do caso concreto. Essa opção já esteve presente nas reflexões dos rumos do direito penal na América Latina. Em abril de 1967, a Terceira Reunião da Comissão Redatora do Código Penal Tipo para a América Latina, realizada em Lima, no Peru, orientou as legislações modernas no sentido de tornar temporário o efeito da condenação anterior e torná-la facultativa, vista como um fato que não é relevante na dosagem da pena886. Conforme abordado no decorrer da presente tese, nem sempre o reincidente se mostra mais propício à prática de novo ilícito, não há nada que comprove de forma acertada a sua maior periculosidade e culpabilidade887. Em outra senda, se o réu foi submetido ao cumprimento de pena anterior e não houve o tratamento necessário a sua reintegração social, o Estado deve sopesar esse fato na dosimetria de futura pena. 885 A sentença condenatória que não gera a reincidência mas pode ser considerada como antecedente para fins de dosimetria da pena perderá esse efeito no prazo de cinco anos contados da extinção da punibilidade. 886 “O Código Penal poderia ir mais longe no terreno da reincidência, tornando-a de agravação facultativa. Não o fazendo, atendeu-se em parte ao princípio aceito pela Comissão Redatora do Código Penal Tipo para a América Latina, segundo o qual a reincidência não é um fator relevante na aplicação e dosagem da pena, não podendo ser de aplicação obrigatória.” (JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal – parte geral. v.1. 28.ed. Saraiva: São Paulo, 2007, p.572). 887 Argumentar com a reincidência do réu para obter sua condenação é reconhecer a falência da sociedade na recuperação do condenado. “Criminoso ontem, criminoso sempre – eis o triste princípio que se esconde sob aquela argumentação. Nada obstante, o contido no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o já condenado seria sempre autor presumido de novas infrações, desonerandose, desta forma, o Ministério Público, de seu dever, de provar, em cada processo, a acusação que faz”. (TACRIM-SP-AC- Rel. Adauto Suannes – RT 273/373). (FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui; SILVA JÚNIOR, José; NINNO, Wilson; FELTRINI, Oscar; BETANHO, Luiz Carlos; GUASTINI, Vivente Celso da Rocha. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. v.1. t.1: parte geral. 6.ed. São Paulo: RT, 1997, p.1.026). 263 O Projeto de Lei do Senado nº236, de 2012 (projeto do novo Código Penal) caminha nesse sentido ao prever no parágrafo único do artigo 79: “O juiz poderá desconsiderar a reincidência quando o condenado já tiver cumprido a pena pelo crime anterior e as atuais condições pessoais sejam favoráveis à ressocialização”. No entanto, ainda que essa inovação oriente o juiz a analisar a reincidência diretamente no caso concreto, entende-se que o dispositivo deveria ser complementado para também passar pelo crivo daquele os seguintes itens: a) se a pena anterior foi cumprida e dentro das condições legais previstas voltadas à reintegração do condenado; b) se existe relação entre os crimes cometidos, ainda que não sejam idênticos. Desta feita, a redação poderia ser da seguinte forma: Artigo 79 [...] Parágrafo primeiro: O juiz analisará a necessidade de aplicação ou não da reincidência, quando houver o cumprimento da pena por crime anterior em desacordo com os preceitos legais propulsores da ressocialização; inexistir relação entre os crimes praticados capaz de justificar o agravamento da pena e se as condições pessoais do réu forem favoráveis à ressocialização. Por fim, deve existir um dispositivo que traga a necessidade de o juiz analisar se a reincidência realmente é contundente para impedir e revogar benefícios penais e processuais penais e outro que exija a motivação da aplicação dos efeitos gravosos da reincidência. Destarte, a sugestão é no sentido de serem inseridos mais dois parágrafos no artigo 79, por isso constou acima §1º. Esses teriam a seguinte redação: Artigo 79 [...] Parágrafo segundo: O juiz zelará para que a reincidência não obste ou revogue, automaticamente, os benefícios penais e processuais penais. Parágrafo terceiro: Em todos os casos envolvendo a reincidência criminal, o juiz decidirá motivadamente a aplicação de seus efeitos e indicará a(s) circunstância(s) que o(s) fundamenta(m) no caso concreto. De todo o arguido, acredita-se que as alterações sugeridas e um novo olhar em torno da reincidência criminal poderão trazer mais efetividade ao 264 processo penal. “A delinquência é diátese cancerosa para a qual ainda não se encontrou, nem talvez se encontrará jamais, remédio específico e universal”888, porém, é papel do pesquisador buscar respostas e possíveis soluções para que o direito seja executado da forma que mais se compatibilize com as necessidades do presente, numa constante evolução em prol da humanidade. A reincidência criminal, instituto na maioria das vezes abordado de forma tímida nas doutrinas brasileiras, continua expressando uma vultosa agressão jurídica na vida do réu e precisa ser alterada. Não se está num caminho solitário de embate de paradigmas, todavia o percurso é árduo e apresenta desafios dignificantes. Assim, ainda que venham a ser realizadas alterações legislativas em torno da reincidência constitucionalizada 888 889 criminal, o mais precioso é a concatenação das leis e da prática jurisdicional. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v.III.4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p.20. “Quando os juristas não percebem, ou não querem aceitar uma mudança de paradigma, pode ocorrer que, embora o processo de adaptação da legislação se realize rapidamente, essa rapidez não é acompanhada por uma mudança de paradigma na aplicação da legislação “constitucionalizada”. Muitas vezes a prática jurisprudencial se mostra refratária a mudanças e se mantém presa a paradigmas superados não somente pela constituição, mas também pela legislação ordinária diretamente aplicável ao caso.” (SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p.41). 889 265 6 CONCLUSÃO Por toda a pesquisa exposta, deveras afirmar que a reincidência criminal, da forma como vem sendo aplicada, está descompassada com os ditames do processo penal constitucional. Desde o advento do Estado Democrático de Direito, não é viável a interpretação isolada dos institutos penais e processuais, sem a sistematização de acordo com os valores supremos insculpidos na Constituição Federal. Para se alcançar, contudo, essa afirmação, deve-se volver as seguintes premissas: 1. O estudo a partir da concepção de sistema jurídico proporciona uma melhor compreensão do direito, já que estabelece uma visão ordenada, coerente e atenta às exigências sociais. 2. O enfoque sistêmico para solucionar um problema está presente em todos os ramos da Ciência. Por isso, houve a tentativa de unificar a ciência por meio da aplicação de princípios gerais do sistema, conforme se depreende da teoria geral dos sistemas. 3. Como não foi possível alcançar o isoformismo das ciências, várias teorias surgiram apresentando modelos de sistema para explicar o direito, merecendo destaque aquelas ligadas ao tema em estudo. 4. Pela Teoria pura do direito visualiza-se o sistema jurídico por meio de uma organização lógica, oriunda da ciência do direito, fechado na normatividade. 5. A teoria tridimensional do direito possui o mérito de considerar o estudo do direito como uma experiência, ligando-se também à cultura a importância da análise do direito a partir da relação do fato, norma e valor. 6. A defesa de um sistema como referência tem o condão de enaltecer a importância de um princípio que dê unidade ao sistema, qual seja, a Constituição Federal ou uma proposição do direito internacional. E, ainda, de reiterar que o sistema jurídico é aberto, pois se relaciona com outros subsistemas sociais. 7. A análise do sistema perpassa a área jurídica, pois é também objeto de estudo da sociologia, a exemplo da definição do direito como referência à sociedade e atenta à sua complexidade, o que leva à construção 266 da autopoiese do direito, com a noção de abertura cognitiva em relação ao ambiente (sociedade) e fechamento operacional do sistema. Nessa linha de pensamento, o sistema jurídico seria um subsistema funcional e autopoiético que integra o sistema social. 8. Pelo pensamento sistêmico voltado à concepção de valores supremos, como o princípio da justiça e da segurança jurídica, o direito é considerado um conjunto de valores jurídicos elevados, cuja missão é solucionar problemas. O sistema jurídico é oriundo de uma ordem axiológica de princípios gerais do direito. 9. O direito processual penal, interpretado sistematicamente e, considerado um ramo da ciência jurídica, é ordenado por valores reitores tangente à aplicação como ultima ratio da persecução penal, visando à proteção dos direitos e garantias fundamentais e atento à política criminal proposta pela Constituição Federal. 10. A perspectiva sistemática do direito processual penal exclui a interpretação isolada de institutos, como a reincidência criminal, que irradia efeitos negativos ao sujeito, seja no decorrer da investigação, do processo ou da execução penal. Requer que seja alcançada a própria essência do direito processual penal para, posteriormente, desvendar a compatibilidade ou não da aplicação de determinadas regras no processo penal. 11. O direito processual penal deve ser analisado como um sistema suscetível de abertura a fim de se compatibilizar aos valores fundamentais. 12. A partir da inauguração do Estado Democrático de Direito houve a necessidade de uma releitura das normas anteriores à Constituição Federal. Portanto, o sistema processual penal passa pela válvula constitucional a fim de conciliar eficiência e garantismo no processo penal, o qual deve servir como um instrumento democrático, promovendo um processo justo com a aplicação da pena, sobretudo, como efetivo instrumento de garantias e limitando o jus puniendi do Estado. 13. O direito processual penal deve seguir a interpretação sistêmica a partir da Constituição Federal. 14. O atual sistema processual penal, traçado na Constituição Federal, é regido pelo princípio unificador da democraticidade, o qual é mais 267 amplo que o princípio acusatório, pois desvenda o caráter de instrumentalidade do processo como uma garantia da própria democracia. 15. É por meio dos princípios constitucionais orientadores do direito penal e do direito processual penal que o sistema processual penal democrático se consolida, superando o modelo puramente de regras, proporcionando uma interpretação humanista do processo. 16. A reincidência criminal sempre esteve presente na legislação brasileira como uma forma de agravar a pena do condenado e apresenta regras bastante peculiares, as quais ensejam discussões doutrinárias e jurisprudenciais. 17. A finalidade da reincidência criminal no ordenamento jurídico brasileiro está relacionada à própria finalidade da pena, identificada a partir do estudo das teorias da pena. A pena como reintegração social do condenado, respeitando os valores supremos e a humanização do condenado, é a melhor forma de se aplicar a política criminal constitucional. Além disso, afasta a reincidência criminal como mera retribuição e sua aplicação desproporcional. 18. A reincidência criminal não é tratada de forma unívoca internacionalmente. É prevista no ordenamento jurídico de outros países, a exemplo dos destacados nesse estudo, cada qual com requisitos próprios, que ora se assemelham ora se diferenciam da legislação brasileira, e em alguns países foi extinta. Dessa forma, a discussão sobre os alcances desse instituto e os efeitos produzidos não é isolada e também repercute em decisões dos Tribunais de diversos países. 19. A reincidência criminal foi julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, no RE 453.000. Vários são os argumentos que sustentam a sua constitucionalidade, como a necessidade de defesa social devido ao alto grau de periculosidade do condenado, a insuficiência da condenação anterior, o alerta social e maior periculosidade do condenado, além daqueles ligados à prevenção geral. Por outro lado, não faltam argumentos que rechaçam a legitimidade da reincidência criminal, baseados no entendimento de violação a diversos princípios constitucionais: individualização da pena, ne bis in idem, legalidade, proporcionalidade, igualdade, presunção de inocência e dignidade da pessoa humana. 268 20. A constitucionalidade da reincidência pode ser novamente discutida, para uma remodelagem de sua aplicação e efeitos, principalmente considerando as exigências de um processo penal democrático. 21. São inúmeros os reflexos da reincidência criminal no processo penal. Desde a fase de investigação se extrai a valoração da qualidade de reincidente na persecução penal, inclusive quanto à decretação de medidas cautelares. Na fase judicial os efeitos são notados até mesmo quando da valoração da prova, na dosimetria da pena, fixação do regime prisional, substituição da pena privativa por restritiva de direitos e influência nas regras da prescrição. Na fase de execução penal, reafirma o fracasso do sistema penitenciário e maior rigor com o reincidente na concessão de benefícios penais, como o sursis, o livramento condicional e a progressão de regimes. 22. Os dados estatísticos sobre a criminalidade apontam que a grande maioria alvo do sistema penal pertence a estratos sociais inferiores, configurando uma verdadeira reprodução da exclusão social. Em relação à reincidência criminal, pelos dados extraídos no presente trabalho, é possível afirmar a baixa efetividade do caráter preventivo da pena e uma nítida construção de carreiras de delinquência pelo sistema penitenciário. 23. As regras atinentes à reincidência criminal devem obedecer aos ditames constitucionais da política criminal firmada pela Constituição Federal. 24. Da maneira como vem sendo aplicada, de forma automática e a todos os casos indistintamente, sem qualquer reflexão sobre a real finalidade e resultados, demonstra ser apenas um instituto de neutralização e mantenedor de uma cultura punitivista, trazendo consequências apenas negativas ao condenado, sem a observância da nova vertente processual penal, de proteção aos direitos e garantias do processado ante o poder punitivo estatal. 25. A reincidência criminal deve ser alterada em prol da maior compatibilidade com o sistema processual constitucional. Desta forma, sugerese que seja configurada apenas quando houver o cometimento posterior de crimes dolosos; prazos depuradores diferenciados, conforme a gravidade do delito, estendendo-se essa regra a consideração dos antecedentes criminais; aplicação facultativa e não automática, com a obrigatoriedade do juiz motivar a aplicação dos efeitos de acordo com cada caso concreto. 269 26. O caminho em busca da efetivação de um verdadeiro processo penal constitucional não se resume apenas a alterações legislativas; além dessa medida é necessário mudar o paradigma com a efetiva prática constitucional. 270 REFERÊNCIAS ADORNO, Sérgio. Crime, justiça penal e desigualdade jurídica. In: FALCÃO, Joaquim; SOUTO, Cláudio. Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5.ed.São Paulo: Malheiros, 2008. ALMEIDA, Débora de Souza de. 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