XX Encontro de Iniciação à Pesquisa Universidade de Fortaleza 20 à 24 de Outubro de 2014 Elo afetivo entre a pastelaria Leão do Sul e o fortalezense. Áquila Matheus de Souza Oliveira¹* (IC), Alice Nayara dos Santos (PQ).² 1. Universidade Federal do Ceará – PIBIC/CNPQ. 2. Universidade Federal do Ceará – Doutoranda em educação. Palavras-chave: Comida, Identidade, Tradição. Resumo O artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa de campo na pastelaria Leão do Sul localizada no centro da cidade de Fortaleza. Utilizou-se dos fundamentos da história oral para relatar as experiências dos comensais além do relato etnográfico dos pesquisadores da experiência em campo. O texto descreve a relação afetiva entre o ambiente citado e seus frequentadores, valores construídos a partir do princípio da tradição relatada pelos comensais, para eles comer o pastel com caldo de cana na pastelaria é a reafirmação dos valores de ser da cidade de Fortaleza. Constatou-se que a comida além de marcar identidade e território, ela faz gerar relações topofilosóficas, ou seja, relações entre comensais e o lugar onde comem. Introdução O texto apresenta resultados parciais sobre a relação afetiva entre a pastelaria Leão do Sul em Fortaleza-Ce e seus comensais. A pastelaria Leão do Sul foi fundada em 1926, se aproxima da realização dos 90 anos e é considerada a pastelaria mais tradicional do estado. A pesquisa buscou responder os seguintes questionamentos: Por que os comensais decidem por comer no Leão do Sul? Com que frequências os comensais frequentam a pastelaria? Há lembranças da primeira vez no local, como essa ocorreu, com quem e o motivo? Qual a relação da ação de comer na pastelaria com a sua identidade fortalezense? Partiu-se do pressuposto que comer é uma prática que vai muito além do ato de ingerir alimento e satisfação da fome, revela a cultura de um povo, suas escolhas e suas histórias. Pois, “muitos antropólogos já sublinharam o fato de que nenhum aspecto do nosso comportamento, à exceção do sexo, é tão sobrecarregado e ideias”. (CARNEIRO, 2003, p.01). A comida, por sua vez “envolve emoção, trabalha com memória e com sentimentos. [...] pode marcar territórios, um lugar, servindo como marcador de identidade e ligado a uma rede de significados” (MACIEL, 2001, p.151). Com isso, concorda-se com Santos (2005, p.12) na qual reflete que o alimento, constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudança dos hábitos e práticas alimentares têm referência na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. Dessa feita, o onde se come também apresenta valor simbólico marcante, Yi-Fu Tuan relaciona em sua obra “Topofilia” o ser humano e o meio ambiente em que o homem está inserido, em um de seus capítulos o autor faz uma relação que ajuda na compreensão dessa relação, para ele: Compreender a preferência ambiental de uma pessoa, necessitaríamos examinar sua herança biológica, criação, educação, trabalho e os arredores físicos. No nível de atividades e preferência de grupo, é necessário conhecer a história cultural e a experiência de um grupo no contexto de seu ambiente físico.” (TUAN, 1980, p.68). ISSN 18088449 1 Nesse sentido, o lugar escolhido para “o comer” torna-se não só uma escolha por preferências gustativas, mas também por marcas de diferenciação fazendo com que se transfiram valores existentes no espaço privado para o público. Com base nas reflexões de Woodward (2009) pode-se afirmar que existe uma relação entre a identidade do indivíduo e os ambientes que esse frequenta. Metodologia A metodologia utilizada na pesquisa foi a da história oral, “um tipo de fontes com o qual o historiador trabalha, a saber, os testemunhos orais.” (BARROS, 2004, p. 132). Primeiramente foi realizado um estudo bibliográfico objetivando o contato com o que já está disponível sobre o assunto e assim seguiram-se as visitas a campo. Assim, realizaram-se observações no local alternando-se dias da semana e o sábado, foram realizadas entrevistas com os comensais da pastelaria, buscando aqueles que possuíssem mais de 40 anos sem preferência por gênero, nas entrevistas pretendeu-se analisar os critérios que levam os comensais a irem comer o pastel com caldo de cana no Leão do Sul, a constância com que o estabelecimento é frequentado pelos consumidores e suas primeiras lembranças no local. Elaborou-se também um relato no campo etnográfico que consiste em: O trabalho de campo etnográfico propicia ao pesquisador o conhecimento direto e experiencial de outras culturas. Para descrever o sistema de significados culturais em seus termos próprios, o etnógrafo realiza uma análise cultural dos dados. Essa análise refere-se a uma investigação sistemática para determinar suas partes e as relações entre as partes e destas com o todo. O conhecimento cultural dos informantes é organizado em categorias e todas elas estão relacionadas com a totalidade da cultura. (MICHEL e LENARDT, 1979, p.376) O relatório etnográfico em conjunto com as entrevistas realizadas propiciou resultados acerca da pesquisa que serão aprofundados em outro momento. Resultados e Discussão A pastelaria Leão do sul localiza-se na Rua Pedro Borges de frente a Praça do Ferreira no centro da cidade de Fortaleza, o estabelecimento não é muito grande e tem a fachada semelhante aos prédios antigos do centro, a porta de entrada é larga e o cheiro de pastel e o fluxo intenso independente da hora chamam a atenção dos transeuntes, ao entrar vê-se a esquerda um banco preto de mármore que acomoda os que com muita sorte conseguiram uma vaga, o banco proporciona uma inter-relação entre os comensais que interagem e participam das conversas um dos outros, do lado direito bem perto da entrada também ficam dois pequenos bancos em forma de “L” que também podem acomodar os que se sentirem a vontade em sentar. São poucos os assentos, mas o fato não afasta de jeito nenhum a clientela fiel que se arranja em pé de qualquer forma para poder não só comer pastel e beber caldo de cana, mas para conversar com os funcionários que ultrapassam a relação profissional e passam a ser amigos dos comensais. A parede do lado esquerdo é repleta de fotos da Praça do Ferreira expostas em molduras fortalecendo a relação entre a praça e a pastelaria, do lado direito fica o balcão de atendimento onde o cliente se dirige para pegar o pedido que sai com muita rapidez independente do fluxo, é destaque as placas que alertam “a azeitona do pastel tem caroço”, que de alguma forma parecem estranhas ou cômicas, mas o aviso é levado a sério no estabelecimento. Outro atrativo e diferencial é o elevador que trás da parte de cima do edifício, o pastel, quentinho, sequinho e muito bem recheado. ISSN 18088449 2 A crocância do pastel deixa-o quebradiço e faz seus farelos caírem ao chão, porém cabe a um funcionário o dever de está sempre atento para higienizar o local, sempre pedindo licença para varrer próximo a quem está comendo. É notória também a frequente doação de pastel com caldo de cana por parte dos comensais, em sua maioria mais idosos, aos pedintes que ficam na calçada fora do comércio. È comum a demonstração de talentos como um jovem flautista que cotidianamente pede a contribuição de quem está no estabelecimento em troca da sua arte, é também conhecido dos consumidores mais frequentes do Leão do Sul e tem autorização do gerente para realizar seu trabalho. Segundo o gerente no período de início do mês, do dia primeiro ao dia dez, o fluxo dos clientes é dos mais idosos, pois é o período de pagamento dos salários, notadamente dos benefícios sociais. Assim o local torna-se o lugar oficial da “merenda” daqueles que estão no centro para receber suas remunerações. Nas entrevistas isso ficou evidente. Está no Leão do Sul traz uma sensação de aconchego, por mais desconfortável que pareça comer em pé ou apertado em um banco, faz parte da representatividade que é comer junto da pastelaria mais tradicional do Estado. Pois, em nenhum momento durante a pesquisa houve reclamação da falta de lugar para sentar. Fato constatado através das entrevistas. Das entrevistas pode-se averiguar que a qualidade do produto é o principal critério escolhido pelos comensais na hora de se decidir por comer no Leão do Sul, foi relatado também o bom atendimento e a tradição do local. A primeira frase dos comensais era sempre a tradição. A marca vinculada entre a própria população pela data de fundação do estabelecimento tem um peso social significativo nas escolhas alimentares dos freqüentadores da pastelaria. Já quanto à frequência, a maioria dos comensais respondeu que quando tem a oportunidade de ir ao centro da cidade é quase que obrigatório parar para comer no Leão do Sul, seja no lanche da manhã ou da tarde. Sobre as lembranças das primeiras vindas ao Leão do Sul os comensais relatam que foram trazidos pelos pais quando criança ou trabalham no centro ou nas proximidades e desde então transformaram esse costume em tradição (HOBSBAWM, 1997). Isso marca notadamente a construção de suas identidades. Os sujeitos da pesquisa demonstravam sentir-se conduzindo o costume de ser da cidade de Fortaleza. Comer no Leão do Sul significa mais que a simples degustação do pastel com caldo de cana, que é vendido comumente em outros estabelecimentos do centro da cidade. Para eles o momento na pastelaria é o momento da recordar outros tempos, outros modos de viver, outros tratamentos pessoais. A relação emocional com os funcionários revela isso de forma sensível. Foi mencionado “veja tem funcionário aqui de muitos anos, que trabalha há muito tempo.. se está até hoje é porque o lugar é bom, tem sensibilidade assim como eles tratam a gente” ( Dona Augusta, entrevista concedida em 2014). Assim, o estabelecimento ultrapassa o sentido de fornecedor de alimentos, para um lugar que marca as formas de se relacionar com a cidade de Fortaleza. Conclusão A pastelaria Leão do Sul deixa de ser um ponto comercial e constrói nos comensais mais frequentes um elo de afetividade, construindo a identidade cultural dos frequentadores através da comida e assim passam a trazer seus filhos e parentes, agregando um valor simbólico e hereditário a uma atividade que pode parecer comum, comer um pastel com caldo de cana. A comida então circunda memórias, experiências de vida, mas também relações topofilosóficas. A partir das entrevistas foi possível constatar que as marcas da tradição são tão estreitas entre Leão do Sul e seus comensais podendo afirmar que isso denota simbologias que possam explicar a identidade do ISSN 18088449 3 fortalezense ao comer no Leão do Sul. Elementos esses que serão trabalhados futuramente na pesquisa e nas análises das entrevistas. Ademais, espera-se que a pesquisa possa proporcionar reflexões sobre o comer e como isso se relaciona com o processo de construção da identidade de um povo, como também registrar a partir das falas dos entrevistados, como é a sua relação com essa tradição existente na capital cearense, que resiste ainda hoje à chegada dos grandes polos comerciais e grandes redes de restaurantes. Com isso deseja-se inspirar os pesquisadores a buscarem a investigação sobre a cultura imaterial da cidade, demonstrando a imagem de Fortaleza como uma cidade rica de cultura e tradições, avivar a fala dos mais antigos e evidenciar a importância de suas experiências vividas. Referências BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Rio de Janeiro: vozes, 2004. CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. HOBSBWN, E; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1997 MACIEL, Maria Eunice. Horiz. antropol. [online]. 2001, vol.7, n.16, pp. 145-156. MICHEL, Tatiane e LENARDT, Maria Helena. O trabalho de campo etnográfico em instituição de longa permanência para idosos. Esc. Anna Nery [online]. 2013, vol.17, n.2, pp. 375-380. SANTOS, Carlos. História da Alimentação no Paraná. Curitiba, PR: Juruá, 200. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz da Silga (org.). Stuart Hall, Katheryn Woodward. 9 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. SPRADLEY, J.P, MCCURDY, D.W. The ethnographic interview. New York(USA): Holt, Rinehart and Winston; 1979. TUAN, Yi-fu, Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Rio de Janeiro: DIFEL, 1980. Agradecimentos Agradeço especialmente aos meus orientadores, José Arimatea Barros Bezerra e Alice Nayara dos Santos pelo suporte teórico e formação na pesquisa. E ao programa de Iniciação a pesquisa da Universidade Federal do Ceará pela bolsa que propicia o financiamento dos estudos. ISSN 18088449 4