Crítica do jovem Sartre à psicologia experimental Leandro Cardoso Marques da Silva Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas [email protected] Resumo Trata-se de estudar a crítica destinada à psicologia contida em alguns dos primeiros textos de Sartre. Tal crítica se refere à concepção de consciência constituída pela psicologia experimental do final do século XIX e início do século XX. Segundo a visão de Sartre, a partir de uma metodologia positivista, estas psicologias tratam da consciência humana como se esta fosse um ente material. Pois, para os teóricos criticados por Sartre, a consciência sofreria causalidade por parte de eventos psicofísicos. Desta forma, a capacidade imaginativa é atribuída à sucessão associacionista de elementos reminiscentes da impressão sensível. Enquanto que as emoções são entendidas como fenômenos acidentais que pouco tem a ver com a subjetividade. Sem significado para a consciência que as vive, as emoções seriam o efeito automático de alguma perturbação do ser psíquico ou psicofísico. Em suma, nestas teses a consciência seria um ser mecanizado. Sartre acredita que estas teses são equivocadas, pois a consciência se define pela intencionalidade. Isto significa que ela seria uma atividade de visar o mundo e constituir sentido para suas próprias vivências. Deste modo, a consciência sartreana é uma espontaneidade imaterial. Sendo assim, em sua crítica à psicologia, Sartre afirma que longe de sofrer causalidade mecânica, a consciência é um ente significante que age por motivação. Palavras Chaves: Sartre, consciência, intencionalidade, psicologia, sentido. Abstract The present work has as it´s goal the study of the criticism of psychology, found in some of Sartre´s early writings. Such criticism refers to the conception of conscience constituted by experimental psychology in the end of the 19th and beginning of 20th century. According to Sartre´s view, from a positivist methodology, psychology deals with the human consciousness as if it were a material entity, one thing among other things in the world. That´s because for theorists criticized by Sartre, consciousness suffers causality from psychophysical events. Thus, the imaginative capacity is assigned to the associationistic succession of elements coming from impressions of the senses, while emotions are understood as accidental phenomena that have little to do with subjectivity. Without meaning to the consciousness that lives them, emotions would be the automatic effect of some disturbance of the psychical or psychophisical being. In summary, in these theses consciousness would be a mechanized being. Sartre believes that these theses are wrong, for consciousness is defined by intentionality. This means that it would be an activity of targeting the world and building a meaning to it´s own experiences. Thus, Sartre´s consciousness is an immaterial spontaneity. So, in his criticism of psychology, Sartre argues that far from suffering mechanical causality, consciousness is a significant entity that acts by motivation. Key words: Sartre, consciousness, intentionality, psychology, SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP sense Introdução Sabe-se que durante a década de 30 o jovem Sartre foi admirador da fenomenologia de Husserl, considerando-se a si mesmo como um seguidor desta escola de pensamento. Dentre os temas husserlianos estudados pelo autor francês, pode-se dizer que o conceito de intencionalidade da consciência é aquele que lhe foi o mais caro. De fato, durante tal período, Sartre produziu uma série de obras e ensaios nos quais sua concepção de consciência intencional é um tema sempre presente. E todas as problemáticas com as quais o autor trabalhou neste período estão sempre relacionadas com a concepção de consciência defendida por ele. Desta forma, o conceito sartreano de consciência intencional irá acompanhar a evolução dos estudos deste autor, sofrendo aprofundamentos e transformações. Intencionalidade é a regra da fenomenologia segundo a qual toda consciência é consciência de alguma coisa. Em outras palavras, toda consciência só pode ser consciência de algum objeto, um ato de visar o mundo, e não uma substância metafísica que apreende conteúdos. Sendo assim, entender a consciência como consciência intencional significa compreendê-la como um direcionamento, um estar dirigida a, que determina o seu modo de ser, em relação a seus objetos. A consciência intencional é uma atividade, atividade de visar o mundo e constituir seu sentido. Na medida em que é consciência do objeto, a consciência não é o objeto. Consequentemente a consciência é completamente distinta da coisa material. Sendo imaterial ela também não é espacial, não possui exterior ou interior, tampouco centro. Deste modo não é possível pensar a consciência da mesma maneira que estamos acostumados a pensar na existência dos objetos materiais que circundam nosso mundo. Em outras palavras, a forma de existência da consciência é radicalmente diferente daquela dos objetos físicos, espaciais e temporais, estes que estão submetidos às leis mecanicistas da física e das ciências naturais. Ora, acontece que no início do século XX Sartre estava diante de um mundo científico profundamente influenciado pelo positivismo (que preconizava um fazer científico baseado na experiência a partir da observação objetiva de fatos). As ciências psicológicas experimentais constituídas no século XIX não escaparam desse movimento. De maneira que o filósofo testemunhou a tentativa de um fazer psicológico a partir dos mesmos métodos usados nas ciências naturais. A adoção deste tipo de método, por parte da psicologia, é claramente uma tentativa de se aproximar das ciências da natureza e compartilhar da exatidão da qual elas gozam. No entanto, há de se perguntar se o objeto estudado pela psicologia permite este tipo de metodologia. Para Sartre isto não é possível, e o resultado disso é uma reificação da consciência, pois, dessa forma, ela estaria submetida à causalidade, uma concepção extremamente afastada daquilo que é descrito pela fenomenologia. Em A imaginação, Sartre revisa a psicologia da imagem constituída no século XIX. O autor constata que esta psicologia possui uma concepção da imagem mental herdada das metafísicas da modernidade que, respeitadas as diferenças de cada sistema, partilham da ideia comum de que a imagem é uma reminiscência da percepção. Em outras palavras, a imagem da tradição é um ser de base sensível, portanto, material. Para manter sua concepção de consciência intencional, Sartre propõe uma noção renovada da imagem, na qual ela seja um fenômeno homogêneo ao pensamento e não um elemento material sujeito a leis mecânicas de aparição e sucessão. Ora, aqui conceito husserliano de intencionalidade vai abrir caminho. Isto significa que se pensarmos em termos de consciência intencional, podemos supor que “...a imagem também é imagem de alguma coisa” (id., ibid., 124). Deste modo, a imagem não é uma cópia de menor intensidade sensível de algum objeto, mas sim, mais uma forma de a consciência se relacionar com tal objeto. Para Sartre, a imagem é algo pelo qual a consciência se transcende, intencionando certo objeto ausente. Isto significa que quando se mostra, ela já é ultrapassada pela consciência intencionante. A imagem é “...uma relação intencional de uma certa consciência a um certo objeto” (id., ibid., p.124). Para o autor, isto faz com que a imagem deixe de ser entendida como um conteúdo psíquico, pois o objeto por ela suscitado é algo que está fora da consciência. Em outras palavras, a imagem é relação a um objeto transcendente e não um conteúdo material na consciência. Esta concepção psicológica, da imagem como um conteúdo material, é o resultado da metodologia adotada pela linha criticada por Sartre. Na segunda metade do século XIX, com o advento do positivismo, a ideia de que ciência significa determinismo e mecanicismo passou a dominar. Neste entendimento positivista, fazer ciência sobre qualquer coisa (como a consciência, por exemplo) significa observar “invariantes inertes que mantêm entre si relações externas”, “Desde então, todo esforço para constituir uma psicologia científica SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP deveria necessariamente concentrar-se numa tentativa de reduzir a complexidade psíquica a um mecanismo” (Sartre 2, p.25). Deste modo, pode-se supor que a divergência da fenomenologia com a psicologia científica não se limita a seus resultados, mas antes, existe aqui um problema de método. Sartre afirma que estabelecer um método a priori significa delimitar o objeto e o submeter a responder apenas àquilo que tal método pode supor. A psicologia não fez outra coisa com a consciência ao adotar o método das ciências naturais. No Esboço para uma teoria das emoções, o autor prossegue com esta mesma crítica à metodologia da psicologia científica. “A psicologia é uma disciplina que pretende ser positiva, isto é, quer obter seus recursos exclusivamente da experiência.” (idem 4, pag. 13). Nesta obra é mostrado que, além dos equívocos em relação à imagem, a psicologia também vai apresentar problemas no domínio do estudo das emoções. Isto ocorre, pois ao estudar a emoção de maneira exclusivamente objetivista (isto é, apenas observando as manifestações fisiológicas), os psicólogos acabam apartando a emoção da subjetividade que a vive. O resultado disto é que alguns psicólogos irão buscar a explicação das emoções a partir de um sistema causal de alterações fisiológicas ou de inadequações psíquicas. Em todos os casos apresentados e criticados por Sartre, o advento das emoções se da de maneira automática, sem a atuação da subjetividade. Deste modo, ao tratar da emoção, a psicologia experimental continuaria advogando uma concepção mecanizada da consciência. Mas, para Sartre, a emoção não pode ser uma mera resposta a um estímulo ou uma disposição pré-dada. A emoção não é o efeito de uma causalidade mecânica, pois ela tem um sentido, ela significa alguma coisa; “Significar é indicar outra coisa; e indicá-la de tal modo que, ao desenvolver a significação, se encontrará precisamente o significado. Para o psicólogo a emoção nada significa porque ele a estuda como fato, isto é, separando-a de todo o resto.” (id., ibid., p.25-6). Relembrando o que dissemos sobre a intencionalidade, a consciência é um movimento de transcendência em direção ao objeto. Intencionar significa, aqui, precisamente se direcionar a, apontar para algo. Desta forma, pela intencionalidade a consciência identifica a emoção com outra coisa, que não ela mesma. Por exemplo, se odeio Pedro, este sentimento não seria uma reação subjetiva. Para minha consciência é Pedro que aparece com a qualidade objetiva de ser odiável. Daí este sentido intencional não poder ser redutível ao processo fisiológico correspondente, ou poder ser captado como um comportamento observável, por mais que a vivência corporal possa parecer demonstrar. A emoção não é um fenômeno que se esgota em si mesmo. O sentido intencional depende do contexto que dá significado para cada emoção. Como um ato subjetivo e intencional, a emoção em Sartre visa a alguma coisa no mundo, esta coisa dará sentido a emoção na medida em que será seu fim. Sendo assim, o autor francês entende a emoção como um ser possuidor de sentido, movido por finalidade, o que a compreenderia como “tipo organizado de consciência” (id., ibid., p.22). Deste modo, a emoção é uma forma de consciência e não um mero distúrbio, seja fisiológico, seja comportamental. A emoção, para Sartre, é uma forma particular pela qual a consciência encontra e apreende o mundo, sempre atrelada a seu sentido intencional, isto é, o objeto da emoção. Seguindo este raciocínio, entendemos que a emoção “é na estrita medida em que significa” (id., ibid., p.26). Para que se possa a compreender, é fundamental a compreensão do contexto intencional, isto é, o objeto que suscita a emoção, bem como da subjetividade que esteja mergulhada neste contexto. Sendo assim, a emoção não será entendida como uma desordem de fatos fisiológicos, mas lhe será atribuída um caráter existencial. Ela não será nenhum efeito da realidade humana, mas será esta própria realidade se realizando na forma de emoção. Portanto, ignorar aqui fatos fisiológicos, ou a causalidade mecânica, significa estabelecer um sentido profundamente humano para a consciência emotiva. Ela é significado. Indo mais além no texto, Sartre concluirá que a emoção é parte essencial do funcionamento da consciência, afirmando a impossibilidade de que haja uma consciência sem emoção. “A emoção não é um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das maneiras como ela compreende (no sentido heideggeriano de ‘verstehen’) seu ‘ser-no-mundo’.” (id., ibid., p.26). Deste modo, diferentemente da tese reificante da psicologia experimental, Sartre oferece uma concepção de consciência que compreende o caráter existencial da realidade humana. Objetivos Nosso objetivo é apresentar a crítica de Sartre à psicologia experimental que se encontra nas obras A imaginação e Esboço para uma teoria das emoções. Esta crítica acontece pois, para Sartre, tal psicologia trabalha com uma noção mecanizada da consciência humana. Para se contrapor a esta tese, nosso autor desenvolve uma concepção de consciência intencional, constituída a partir de sua leitura da fenomenologia SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP de Husserl. Pretendemos mostrar que com o conceito de intencionalidade Sartre desenvolve uma concepção de consciência que restitui o aspecto propriamente humano da consciência. Pois, este autor entende que a consciência não sofre causalidade por parte da impressão sensível ou do corpo. Assim, a consciência é compreendida como uma atividade de visar seus objetos e constituir sentido no mundo, conferindo, desta maneira, significado para suas próprias vivências. Materiais e Métodos A metodologia desta pesquisa constituiu-se, de modo geral, na leitura crítica e no desenvolvimento de fichamentos e comentários da bibliografia primária (que está discriminada no final deste documento) e, concomitante e convenientemente, da bibliografia secundária. Nosso recorte principal foram as obras A imaginação e Esboço para uma teoria das emoções. Analisamos uma crítica à metodologia da psicologia experimental que ocorre de maneira muito semelhante nestes dois textos. Em ambos os casos, para se contrapor às teses que critica, Sartre faz uso do conceito de intencionalidade para propor uma concepção fenomenológica da consciência que superaria os problemas apontados nas teses criticadas. Conclusões A partir de seu estudo da fenomenologia de Husserl, Sartre inicia sua carreira filosófica. Em sua primeira fase, o autor francês trabalha, à sua própria, maneira com o conceito de intencionalidade da consciência. Sartre não limita o uso deste conceito à esfera da epistemologia, mas expande os domínios da fenomenologia também para temas da psicologia. O resultado do estudo fenomenológico sartreano sobre psicologia se constitui numa nova maneira de se entender a consciência humana. Em oposição às teorias mecanicistas de inspiração positivista, Sartre elabora uma concepção de consciência intencional que preza pelo aspecto livre e criador da consciência humana. Livre, pois indeterminada. Criador, pois é a própria consciência que constitui o sentido de suas vivências. Portanto, a consciência não sofre causalidade, mas segue apenas a motivação de seus próprios fins. Temos aqui, as perspectivas de um sujeito que age segundo projetos que ele mesmo pode constituir para si, o caminho existencialista está aberto. Referências Bibliográficas Bibliografia primária 1. Sartre, J. P. “Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl: L’intentionnalité”. In Coorebyter, V. (ed). La transcendance de l’Ego et autres textes phénoménologiques. Paris: Vrin, 2003. 2. ___________. A imaginação. Rio de Janeiro: L&PM Pocket, 2008. 3. ___________. O imaginário. São Paulo: Editora Ática, 1996. 4. ___________. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM pocket, 2006. Bibliografia secundária 5. Sartre, J. P. “La transcendence de l’Ego: Esquisse d’une description phénoménologique”. In Coorebyter, V. (ed). La transcendance de l’Ego et autres textes phénoménologiques. Paris: Vrin, 2003. 6. Coorebyter, V. de. “Introduction”. In Coorebyter, V. (ed). La transcendance de l’Ego et autres textes phénoménologiques. Paris, Vrin, 2003. 7. _______________. Sartre face à la phénoménologie: Autour de “L’intentionnalité” et de “La transcendence de l’Ego”. Bruxelles: Ousia, 2000 8. Husserl, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1986. 9. ________. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida: Ideias & Letras, 2006. 10. Moutinho, L. D. S. Sartre: psicologia e fenomenologia. São Paulo: Brasiliense, 1995. 11. _______________. Sartre: existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP