Viagem nas ideias A fotografia da contra-capa da edição de 23 de Maio do Barlavento chamou-me à atenção. O seu título era: “Viagem no tempo”. A legenda esclarecia: “Na várzea de Aljezur, o tempo parece não ter passado. Os trabalhos agrícolas, naqueles campos que mais parecem uma minuciosa manta de retalhos, ainda se fazem com recurso à velha e paciente mula. É um pedaço do passado, que aqui (re)vive todos os dias”. Era uma fotografia de uma coisa do passado que ainda existe, ou seja de um passado presente ou talvez de um presente que nós, homens e mulheres “do presente” consideramos “do passado”. Aquela legenda que eu não escreveria melhor e que como aljezurense agradeço, obrigou-me a viajar no tempo e nas ideias. Obrigou-me a questionar-me se aquilo é passado ou é presente. Como docente universitário na área da agronomia, é suposto que eu ensine aos meus alunos que aquilo é passado; que a agricultura já não se pode fazer com mulas; que aquela agricultura ainda existe, é certo, mas tem os dias contados. Mas deveria também saber recomendar àquele agricultor uma alternativa à mula; uma alternativa actual e moderna que fizesse daquele homem “do passado” um homem “do presente”. Então, vejamos. Para mecanizar a gradagem que aquele agricultor tinha acabado de fazer, ele compraria um tractor. Mas a mula também serve para destruir infestantes ou abrir regos dentro das culturas. Nesses casos, o tractor não serve e o agricultor teria que comprar também um motocultivador. Mas a mula também puxa um carro que faz os transportes necessários na actividade agrícola. Por isso, necessitamos ainda de um reboque para o tractor. Feitas estas recomendações de homem dos tempos de hoje, politicamente correcto, algumas questões se colocam. Em primeiro lugar, quem é que paga essa modernização? É que o equipamento recomendado custa muito mais que uma mula… Ora o homem não tem dinheiro para aquilo tudo e a candidatura a um subsídio não é possível porque a exploração é pequena, não atinge a dimensão que lhe permita ser viável… Mas há mais um senão. É que o homem não tem carta de condução. Pode até acontecer que não saiba ler. Como é que vai tirar a carta e ler as instruções (que até poderão estar em inglês) de todo aquele equipamento? A mula vende-se sem livro de instruções. Mas, ao comparar a mula com as suas alternativas, podemos dizer que a mula não polui o ambiente, ao contrário do tractor. A mula não se alimenta de petróleo importado mas sim da forragem que o agricultor produz. Ao contrário do óleo queimado do tractor, os excrementos da mula são o estrume que fertiliza os campos. Até depois de morta, a mula não fica a aumentar os montes de sucata. Assim, meus amigos, eu não sei se a mula é do passado ou do presente. O que eu sei é que, ao contrário das suas alternativas poluidoras e consumidoras de energias não renováveis, a mula não hipoteca o futuro. Por isso, numa época em que as preocupações ambientais aumentam, encontrar uma boa alternativa para a mula não é tão fácil como poderia parecer. Considerá-la como algo do passado é, portanto, algo arriscado. Eu não sei se (o uso d)a mula é do passado ou do presente. Do que eu tenho a certeza é de que o homem que a usa é do presente e merece ser tratado como tal. Ora isso não acontece porque as pessoas que usam técnicas “do passado” são também consideradas “do passado”. Assim, há pessoas que vivem hoje e que são consideradas “do passado”. O que é grave é que essa ideia é generalizada e aceite pelos próprios agricultores que se acomodam a ela. Por isso, eles perderam a capacidade de reivindicar os seus direitos de gente de hoje. O que eu reclamo é o direito à indignação por esses factos. O que eu considero é que nós, os que sabemos ler e escrever, temos não apenas o direito mas também o dever de lutar para que os pequenos agricultores tradicionais sejam alvo de uma atenção que merecem mas a que eles já renunciaram. A mula (que até pode ser um macho) da fotografia tem muitas utilidades e até serve para puxar um dos carros que transportam as altas individualidades no desfile que abre todos os anos o Festival da Batata Doce e dos Perceves, em Aljezur. A pobre mula faz isso pelos políticos que visitam a nossa terra. E eu pergunto: o que é que esses mesmos políticos fizeram ou fazem pela mula ou pelo(s) seu(s) dono(s)?…. Será que não é tempo de a mula perder a “paciência” e dar “dois coices no telhado”? Amílcar Duarte Engenheiro Agrónomo [email protected]