e a recusa dos regionalismos na cena Pós

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“EU NÃO SOU UM CARAGUEJO” E A RECUSA DOS REGIONALISMOS NA
CENA PÓS-MANGUE RECIFENSE
Cynthia de Lima Campos
(Professora - Instituto Federal da Paraíba – campus Picuí)
[email protected]
1 MAGUEBEAT: O PREÂMBULO
A chamada cena pós-mangue pernambucana viu a sua produção musical alcançar
reconhecimento nacional a partir do Movimento Mangue encabeçado por Chico Science e
Nação Zumbi e por Fred Zero Quatro e Mundo Livre S/A. Contudo, ao invés de perpetuar e
incorporar o “cânone” instaurado pelo movimento que o antecedeu, apresenta características
bem específicas quanto à sonoridade musical, negando, inclusive, esta sonoridade.
O Manguebeat originado no início da década de 1990 é resultado de uma série de
eventos que, para alguns, começaram ainda no final da década de 1970 e início da década de
1980, com o relaxamento da censura no Brasil por parte do Governo Militar. Relaxamento
este que possibilitou a entrada de produtos culturais oriundos da Europa/Estados Unidos,
como a literatura beatnik e a entrada de bandas do pós-punk, por meio da Stilleto, como Joy
Division, Smiths, New Order, Bauhaus, PIL (Public Image Ltd.), o que permitiu, segundo
Galinsky (1999, p. 53) afirma em sua tese de doutorado, um tímido renascimento da cultura
pop no Brasil. E, por menos evidente que possa parecer, os pioneiros do manguebit1 foram
influenciados pelo pós-punk (TELES, 199?; GALINSKY, 1999).
Segundo Teles (199?), crítico musical, havia um programa na Rádio Universitária
chamado Décadas, do qual participavam Renato L., Herr Docktor Mabuse e Fred 04, que
1
Inicialmente o movimento foi batizado de manguebit, com referência aos bits de informática, sendo substituído
logo depois por manguebeat, por uma falsa interpretação da mídia, beat referindo-se à batida. Ver: TELES, José
(Org.). Meteoro Chico. Recife: Bagaço, 199?; TELES, José. A onda do Manguebeat. Continente
Multicultural: Documento, ano 3, n. 26, p. 30-34, 2004. Alquimia Sonora; SILVA, Glaucia Pires da. “Maracatu
Atômico: síntese da transformação contemporânea expressa no “Mangue”. In: ENCONTRO ANUAL DA
ANPOCS,
21.,
2007,
Caxambu.
Anais...
Caxambu,
2007.
Disponível
em:
<http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_
ocman&task=doc_iew&gid=2911&Itemid=231>.;
ARAÚJO, João Mauro. Mangue Beat: a arte que veio da lama. Problemas Brasileiros. São Paulo: SENAC. V.
45, n. 381, p. 2-9, maio-jun./2007. LEÃO, Carolina Carneiro. A maravilha mutante: batuque, sampler e pop no
Recife dos anos 80. 2002. 129 fls. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Programa de Pós-Graduação em
Comunicação, CAC, UFPE. 2002.
1
sofria influência direta dessas bandas. A importância desse programa reside no fato de que
mostrava haver um espaço potencial para a execução de músicas não absorvidas pelas rádios
comerciais e pelas majors. Sobretudo porque Recife afundava na mais profunda monotonia e
estagnação, sendo possuidora do título da quarta pior cidade do mundo para se viver.
Alguns outros eventos concorreram para sedimentar o terreno para eclosão do
movimento mangue: a proliferação de bandas de heavy metal e hard core, por volta do ano de
1987, que sem lugar para tocar, passaram a fazer seus shows num espaço chamado Arte Viva;
Paulo André Pires, que foi produtor e empresário da Chico Science e Nação Zumbi (CSNZ), e
hoje responde pelo Abril pro Rock, havia recém chegado dos Estados Unidos e aberto uma
loja de discos, a Rock Xpress, além de começar a promover shows com bandas estrangeiras
na cidade.
Por meio desta loja, bandas como a CSNZ, a Mundo Livre S.A., a Loustal e o
Lamento Negro pretendiam lançar um CD, intitulado “Caranguejos com Cérebro”, cujo pressrelease, foi entregue à imprensa pelo próprio Paulo André, tendo sido publicado como
Manifesto Mangue.
A despeito de toda a história que se conta sobre o surgimento do Movimento e da
discussão do que vem a ser mangue, Galinsky aponta que: enquanto uns defendem que
mangue eram apenas as bandas Chico Science e Nação Zumbi, outros – e é esse o status pelo
qual é reconhecido – defendem que o Manguebeat compreende a cena musical e cultural que
se instaurou em Recife a partir do início da década de 1990. Qualquer que seja a perspectiva
adotada, não se pode negar o fato de que o manguebeat, representado pela CSNZ, incluiu a
música pernambucana no circuito internacional, exatamente porque ressignificou gêneros
oriundos do pop como o soul, o funk e a música eletrônica, ao mesmo tempo em que
revitalizou os ritmos folclóricos pernambucanos, como o maracatu, o caboclinho e a ciranda,
numa época em que se encontravam no ostracismo.
A partir de então, esses ritmos passaram a ser incorporados no cotidiano das classes
médias recifenses. E, para citar Galinsky (1999), o Manguebeat trouxe novas perspectivas às
necessidades da cidade do Recife, tirando a cultura popular da marginalização.
Outro legado do Manguebeat foi a inserção de jovens pertencentes às classes menos
privilegiadas na cena musical da cidade. Como aponta Leão (2002) em sua dissertação de
2
mestrado, se antes o espaço do lazer eram as salas de concerto, os teatros, as casas de show, a
partir do manguebeat, a rua passou a ser ocupada por jovens ávidos por diversão, haja vista o
exemplo da revitalização do Bairro do Recife Antigo.
Do ponto de vista sociológico, o Manguebeat inseriu Recife e a música pernambucana
e brasileira no debate sobre globalização, exatamente por fomentar a fusão de ritmos e o
encontro do pop com o folk, permitindo o afloramento de uma discussão em torno das
identidades locais, em que a cidade do Recife passa a ser reconhecida como uma metrópole
latino-americana, com todos os seus hibridismos.
O Manguebeat inaugurou uma linguagem musical que deu espaços para hibridismos e
bricolagens inusitadas, incentivando centenas de jovens a formar a sua própria banda, o que
desencadeou um desenfreado aparecimento de novas bandas, impossíveis de serem contadas e
citadas, tamanha foi a renovação da cena musical na cidade.
Mas o Manguebeat, como produto de consumo, numa sociedade do consumo, também
foi apropriado pela mídia como “rótulo de prateleira”, convertendo-se numa fórmula de
sucesso, o que em muitas situações tem tolhido a criatividade dos músicos, em outras, tem
repetido o sucesso. Exatamente porque, numa interpretação errônea, a diversidade tão
defendida no Manifesto Mangue acabou por se tornar em bairrismo em defesa de um fator
regional, ao ponto de bandas que cantam em inglês ou não dialogam com os ritmos regionais
passaram a ser relegadas pelos produtores musicais da cidade, o que rendeu até uma canção
da banda The Playboys.
Uma vez que o foco de análise deste texto é a linguagem musical, utilizamos a
expressão “sonoridade de alfaia” para nos referirmos à inclusão de ritmos que ajudaram a
edificar o Manguebeat, o que necessariamente não implica a presença de uma alfaia como
instrumento musical utilizado pela banda/músico. Aqui funciona como sinônimo para
regionalismos a que recorre a música pernambucana, como o uso da rabeca, da alfaia, do
pandeiro, como também uma sonoridade que mescla os ritmos regionais como o forró, o
baião, o frevo com a música pop, que optamos por indexar na expressão sonoridade da alfaia.
A sonoridade da alfaia ficou muito marcada nas preferências musicais do público
local. Assim muito do que vem integrando a programação dos festivais pernambucanos tem
uma referência a elementos regionais.
3
2 PAULO ANDRÉ NÃO ME OUVE
A música: Paulo André Não me Ouve, em referência ao produtor do Abril pro Rock e
empresário da Chico Science e Nação Zumbi, foi bastante divulgada no que ficou conhecido
como o Palco 32 da edição de 2005 do Festival Abril Pro Rock quando a banda The Playboys
alugou um stand com a desculpa de “vender coisas” e levou os amplificadores. Acabou por
fazer três shows numa noite, um dos quais contou com a participação de Wander Wildner. O
hit da noite, é claro, foi Paulo André Não me Ouve.
Fazendo uso do deboche, e sem qualquer compromisso ideológico, a The Playboys se
queixava da falta de oportunidades para as bandas que não aderiram aos ritmos regionais. A
música que começa como um frevo logo se torna um punk bem acelerado, com direito a
teclado e vozes sampleadas, inclusive a de Rogê de Renor (Paulo André foi ontem pra Nova
Iorque).
Paulo André não me ouve/ Paulo André não me ouve/Não presta atenção
no release e CD [...] A gente faz uma música de vanguarda para você / Se
você quiser eu compro uma alfaia / Me visto de caboclo de lança / Eu até
arrumo uma calunga do maracatu.
Crítica explícita ao ufanismo pernambucano que se instalou entre os produtores
musicais da cidade, dos quais Paulo André Pires é o mais influente, porque o Abril pro Rock
era vitrine para a MTv, no auge desta.
A banda já havia feito esta crítica mais diretamente na primeira faixa do álbum
Vivendo Cada Dia Mais Lindos e Perfumados (2000), Monólogo aos Ouvidos dos Imitadores,
uma paródia à música da CSNZ, Monólogo ao Pé do Ouvido, do álbum Da Lama ao Caos
(1993):
Imitar um finado é uma transação comercial / É moda imitá-lo por aqui / O
medo de criar é o mal / O caranguejo sem cérebro sente a necessidade de
chupar / A grana / o status / a fama enche os olhos dos imitadores / São
imitadores baratos, sem qualidade / Milk-Sheik Tosado, TODA, Baião de
Quatro, Caiçara / Todos os imitadores de Chico Science possuem sua
imagem e semelhança / Eu tenho certeza, eles também chuparam um dia!
2
O festival possui um formato de dois palcos, um dos quais é o palco principal.
4
A The Playboys constitui uma evidência de que em Recife, no final dos anos 1990 e
início deste século, existiam outras pessoas e músicos interessados em outras sonoridades.
Usa-se a expressão pós-mangue para se referir a essas iniciativas. Em matéria publicada na
Revista Continente Multicultural sobre a temática, Simone Jubert (2006, p. 75) afirma que
A Rua do Apolo e a Rua da Guia, no Recife Antigo chegaram a ser reduto
de encontro daqueles que não se encaixavam ou não queriam ser
encaixados no mangue, e a Non Stop, festa que reunia de indies a clubbers,
viu os primórdios do que hoje é considerado pela imprensa como cena
indie da cidade.
3 A POÉTICA DO PÓS-MANGUE
Tomemos duas bandas fundadoras do pós-mangue: Parafusa e Preofiterolis. A
primeira com influência nítida da Banda Los Hermanos e sob influência do álbum Bloco do
Eu Sozinho (2003), uma marchinha de carnaval intitulada Carnaval integra o único álbum da
banda, Meio dia na Rua da Harmonia (2009). A segunda banda, por sua vez, apresenta-se
mais livre de padrões estéticos, mas igualmente autoral, com foco em um pop dançante.
Outras bandas também mantiveram o mesmo padrão de influência, cada uma ao seu
modo, sem seguir, de fato combinações ou modelos predefinidos, e sem necessariamente
utilizar elementos sonoros regionais. Se há hibrismos, nem sempre é com sonoridades
pernambucanas. Vinda de uma geração que já nasceu sob o legado cultural do manguebeat, e,
oriundos da classe média, principalmente dos bairros da zona norte recifense, a Mombojó é
tratada pela imprensa como a banda que melhor personifica o pós-mangue pernambucano,
com participação em festivais importantes no Brasil e no mundo, sendo consagrada tanto pelo
público quanto pela crítica.
O que a coloca nessa posição é justamente a sua sonoridade, tão próxima à sonoridade
da Banda Los Hermanos, que mescla inúmeros ritmos. Mas esta fórmula não é uma fórmula
acabada, definida e imutável, até porque o pop se renova todo o tempo sempre propondo
novos “formatos”, na ausência de uma palavra que melhor defina estéticas sempre em
emergência. A própria banda em release publicado no site afirma-se uma banda “insatisfeita
5
com os formatos tradicionais do mercado de música”. E continuam: “Nos interessa a busca
por novas formas de composição e distribuição da música, nos anima a contínua imersão no
nos meios de interação e cultura digital (queremos ser personagens de um videogame!)”.
Com mais de dez anos de existência – a banda foi fundada em 2000 – os três álbuns
caracterizam três momentos distintos quanto à sonoridade, sem que se tenha deixado de lado a
possibilidade de mix de sonoridades. O primeiro álbum, intitulado Nadadenovo, foi lançado
em 2004, um ano após o Bloco do Eu Sozinho da Los Hermanos, de quem emprestou a
sonoridade com fortes elementos de brasilidade como o samba e a bossa-nova, música
eletrônica, hip hop, jazz, e o uso de samplers, ao contrário dos maracatus do Manguebeat
como nas faixas A Missa e Adelaide.
O segundo álbum, Homem Espuma, lançado em 2006, embora inicie com canções que
misturam bossa-nova com jazz e música eletrônica, dá uma virada a partir da quarta canção. A
sonoridade da banda fica mais pesada, próxima do hardcore, com os versos “Eu preciso sair
daqui / Eu preciso parar de mentir” gritados sob um pano de fundo de guitarra e bateria,
finalizando com “Tô te explicando pra te confundir / Tô te confundindo pra esclarecer / Tô
iluminando pra poder cegar / Estou ficando cego pra poder guiar” em hip-hop. A partir daí o
álbum fica bem mais dançante e com acordes de guitarra. Até Tempo de Carne e Osso, que
parece uma bossa-nova, com direito a vocal feminino, se tranforma numa canção de rock da
metade para o final. O mesmo vai se repetindo com as faixas subsequentes, que ora se tornam
pesadas, ora suingadas, com direito a teclado (Vazio e Momento), sonoridade da música brega
e repetições de xá-lá-lás como em Novo Prazer.
O terceiro álbum, Amigo do Tempo (2010) é aquele que consagra o Mombojó como
uma das principais referências pop pernambucanas, até porque se torna até arriscado falar em
referência, em padrão, em modelo, tamanha é a diversidade de sonoridades entre as
bandas/músicos. Se pela maturidade alcançada pela banda ao longo de dez anos, se pelo cada
vez maior acesso e barateamento das tecnologias de gravação, se pela posição que a banda já
vinha consolidando junto ao público, ou se por todos os fatores reunidos, mas o disco é
considerado o mais elaborado contando com a participação de convidados, como a Orquestra
Jovem do Conservatório Pernambucano de Música e da Orquestra Sinfônica do Recife. O
disco foi sucesso de crítica e de público e consolidou cada vez mais a linguagem
6
contemporânea na música pop pernambucana, ao incluir uma faixa intitulada Papapa, com
direito a videoclipe que faz referência ao universo dos seriados japoneses.
Do ponto de vista da sonoridade, a banda adotou misturas inusitadas de ritmos e
experimentalismos. Dá-se vazão aos sons dançantes, a acordes pesados de guitarras e baterias,
da mesma forma que não se abandona o samba. Recebeu uma infinidade de referências
positivas e elogios da crítica, do mesmo modo que repercutiu tão bem entre o público
recifense ao ponto de ter se tornado nome de prato em restaurante japonês.
Outro músico a ser analisado foi o cantor China, que é também tomado como
referência do pós-mangue. China também é vocalista da Banda Del Rey, também composta
por integrantes da Monbojó e que faz novos arranjos para as canções de Roberto Carlos. Além
das parcerias nas composições: “China é um desses tecelões, compositor parceiro em todos os
três discos” (MOMBOJÓ, s.d.).
Remanescente do Manguebeat, China participou ativamente da cena como vocalista da
já criticada pelos The Playboys, Sheik Tosado, banda de hardcore. O trabalho solo de China
passa bem longe dessa sonoridade. O seu primeiro álbum, Simulacro (2007) possui
sonoridade dançante, com bastantes recursos da música eletrônica, além do uso de samplers,
como na canção Colocando Sal na Ferida, que é um hip hop “com suingue”. O próprio título
do álbum já é uma referência ao estado fugidio das coisas, sobretudo dos produtos culturais,
na contemporaneidade. Às cópias sem originais. A última faixa, autorreferenciadamente
denominada Pastiche, nos define, de forma sampleada, o que é simulacro:
Ei Chico / Tu tá ligado o que é simulacro / Não / É a aparência, é a
imitação, é a reprodução imperfeita / Visão sem realidade, é mesmo que o
cara tá vendo / Mas já é outra coisa que o cara nunca vai ter na mão /
Entendesse? / Conta mais aí véi / É como se fosse falso, ao mermo tempo
original, ao mermo tempo fantástico, ao mermo tempo fantasioso, reto,
imétrico, ta ligado?/ Isso é conversa / Tá mermo que teus irmãos, sem
cérebro / É conversa pra doido, véi, num to dizendo a tu / Mas minha
criança é isso / Do mimeógrafo à máquina de Xerox / Mimeógrafo, véi?
Isso é do meu tempo / Tu num sabe meu pirraia / Eu quero é seguir
simulando o que é humano / Mas é isso véi / É fingimento, disfarce,
simulação, artificial, nada do que é concreto, ta ligado? / Bota fé / Ô... / É
plágio e ágil, minha criança, é retocando o irretocável / Tudo convergido
numa coisa só / Oxi... / Tu ta rindo, mas é super divertido, difuso,
7
irretocável / O bicho é foda vi véi / Eu num to diznedo a tu... / Fala aí porra
/ Falar o que véi? / Tu tava entendendo alguma coisa que eu disse? To
entendendo meu irmão / Fala mais alguma coisa aí...
O segundo álbum, de 2011, Moto Contínuo, é igualmente dançante. Com a proposta já
presente na segunda faixa do álbum Só Serve pra Dançar:
Não é música de carnaval / Não é tema de nenhum especial / Não é música
para entender / Só serve pra dançar / Não é hino de uma geração / Nem a
mais pedida na voz do Brasil / Sem discurso / Sem intenção / Só serve pra
dançar / Não é música de procissão / Nem melodia pra tocar o coração /
Sem festival para canção popular / Só serve pra dançar / Não é música
para dormir / Não é samba-enrredo na Sapucaí / Não é música para cantar
/ Só serve pra dançar
O álbum mais pop – do ponto de vista de audível – que o primeiro, em que aparecem
pelo menos três baladinhas românticas: Overlock, que conta com a participação da roqueira
Pitty, com apelo ao romantismo: “Costure o seu coração no meu / Abra uma casa no meu
peito / Pois você já mora em mim / Junte os retalhos com o resto que sobrou do nosso amor /
Não vamos mais nos machucar”.
Ou ainda em Mais um Sucesso pra Ninguém: “Eu que fiquei escrevendo tanto tempo
pra você / Escolhendo a melhor frase pra dizer / Que ainda tenho a esperança de fazer tocar /
Essa música no seu coração”.
Terminei Indo lida com questões existenciais e, coincidentemente ou não, as três
canções apresentam participação de vocais femininos.
Além de ter obtido sucesso de crítica, o álbum foi também sucesso de público,
sobretudo entre as tietes recifenses, como se observou no pocket show-entrevista, realizado
em dezembro de 2011, no auditório da Livraria Cultura do Paço Alfândega.
A terceira banda da nossa análise é a Volver, que já se encontra no terceiro álbum, A
Próxima Estação (2012), lançado pela Trama Virtual. A banda também possui forte tietagem
entre os fãs e as fãs recifenses. Com sonoridade power pop3 e letras em português, seu
3
Segundo o Vocabulário da Música Pop, “a origem musical para quase todo power pop são os Beatles, que
fixaram o estilo. Atribui-se o desenvolvimento do gênero nos anos 1960 a grupos como The Who, The Kinks e
8
vocalista, Bruno Souto afirma que faz rock-canção. Analisando os três álbuns, concluímos
que o Power pop esteve cem por cento presente no primeiro, Canções Perdidas num Canto
Qualquer (2005), gravado com o dinheiro ganho no Festival Microfonia. Com uma
sonoridade semelhante à de algumas bandas do rock gaúcho como Cachorro Grande, ou ainda
com a Autoramas (RJ), a banda propõe um resgate do rock clássico.
O segundo álbum, Acima da Chuva, de 2008, já apresenta um diálogo mais presente
com o chamado Novo Rock, uma mistura de Los Hermanos e The Strokes. Na canção Não
Sei Dançar é nítida a influência da Banda The Strokes. Natura, a canção seguinte lembra Los
Hermanos. A própria aparência da banda é uma fusão dos Strokes com Los Hermanos:
vocalista barbudo, calças skinnys e tênis estilo all star. A exemplo da Mombojó, é com o
terceiro disco, Próxima Estação, lançado em 2012, que a banda adere ao novo rock, o power
rock ainda aparece, mas não como protagonista. A música mais badalada, comentada em
todas as resenhas críticas lidas a respeito do álbum4, é resultado de uma parceria com o
músico Tagore Suassuna, também considerado da cena pós-mangue. Mangue Beatle é uma
recusa explícita à “sonoridade de alfaia”:
Eu não sou um caranguejo / Pra você sou percevejo então / Teu gosto é
bem melhor / Eu não sou salvação / Sou playboy tipo burguês / Fui pra
Londres canto em inglês então / Teu desprezo é maior / E eu vou na
contramão / Lembra o mangue é todo teu / Eu só quero incomodar / Mais
do que você pensa eu sou / Eu não quero mais viver / Eu não consigo viver /
Nessa lama com vocês / Só me enxergam estrangeiro / Só não faço teu
consenso
então
Eu também sou daqui / Dispenso a negação / Essa lama nos teus dedos /
Não traduz o meu desejo em vão / Meu vício é bem maior / Na minha
solidão / Lembra o mague é todo teu / Eu só quero incomodar / Mais do
que você pensa eu sou / Eu não quero mais viver / Eu não consigo viver /
Nessa lama com vocês.
Mallu Magalhães é homenageada em “Mallu quer ser mulher / Não ta pra brincadeira /
Ela só faz o que bem quer / Não sabe ser de outra maneira”.
Move, que apresentaram melodias agressivas e guitarras distorcidas e barulhentas (o power). Ver: SHUKER,
Roy. Vocabulário da Música Pop. São Paulo: Hedra, 1999. p. 218
4
Ver: ORTEGA, Rodrigo. Town sem mangue. Billboard Brasil, p. 14, jun. 2012; DIAS, Bruno. Quase um iêiê-iê. Rolling Stone Brasil, n. 19, p. 38, abr. 2008; ROSA, Fernando. Canção travestida de rock. Rock travestido
de canção. Senhor F. Disponível em: <http://www.senhorf.com.br>; FLÁVIO JÚNIOR, José; NADAL, Paula.
Próxima Estação. Revista Bravo, CDs do mês, jun. 2012; PRÓXIMA estação. Revista Veja, Veja recomenda, s
n. t.; FASE de transição. Correio Braziliense, 2012.
9
Do final da década de 1990 para cá, muitas bandas surgiram, desapareceram,
sublimaram-se, renovaram-se, misturaram-se. Algumas foram diluídas fazendo surgir um sem
número de trabalhos solo. Analisar todas essas bandas é tarefa impossível para este espaço.
Reservo, pois, este espaço para algumas bandas/músicos que, em menor medida, também
alcançaram algum destaque no circuito, por serem inusitados, despretensiosos, adorados ou
badalados demais.
Academia da Berlinda é um exemplo de caso do inusitado. Faz uma mistura de ritmos
latino-americanos como a cúmbia, a salsa, o merengue, o afrobeat e o carimbó. Surgida
também de forma inusitada quando seus membros se reuniram para tocar covers de clássicos
da música brega, a proposta da banda é abranger todos os públicos possíveis, incluindo os
bem mais velhos frequentadores do Clube das Pás5.
Johnny Hook e Candeias Rock City representam aqueles que eu chamo de badalados,
mas também inusitados, já que a banda faz referência ao glam rock. Com influências de David
Bowie e Iggy Pop, os shows do Candeias Rock City costumam ser compostos por
provocações, como a presença de duas strippers no palco.
Catarina Dee Jah, lançada inicialmente como DJ seria um exemplo de despretensão.
Não tem álbum lançado, apenas um EP, e também não pretendia ser cantora, mas já fez shows
em festivais importantes como o No Ar: Coquetel Molotov e o Rec-Beat, além de se
apresentar na casa de shows indie de São Paulo, Studio 51. Suas canções dialogam com a
música cafona, com letras debochadas e picantes, como na música Mulher Tira-Gosto, com
forte referência ao popular, como as expressões “Claudinho da codorna”, “shortinho”, “ele e
ela”, “cachaça”, “meu ponche é você” e “sai pra lá, encosto”.
É... não é mole não, tanto rapaz aí, esbanjando saúde/ trocando uma noite
de amor por uma noite de playstation, rodízio com os amigos/ E a
mulherada aí, largada, em segundo plano,pense numa racinha desunida.
VULVAS EM FÚRIA/ Tava em casa de bobeira/ Ele veio me chamar/
Claudinho da codorna/ Melhor lugar não há/ Me montei bem rapidinho/
Escolhi o melhor shortinho/ E fomos passear/ Eu pedi um ele e ela/ Que
chegou bem rapidinho/ Ele pegou a cachaça/ Eu fiquei com o caldinho/
Quando eu perguntei pra ele/ "Você não quer um pouquinho?"/ "Obrigado
princesa,/ eu sai para beber/ vou pedir mais uma cachaça,/ o meu ponche é
5
Clube localizado na zona norte da cidade, frequentado por pessoas ditas da terceira idade, que se dirigem às
festas para dançar salsa, bolero, merengue e outros ritmos relacionados à dança de salão.
10
você"/ Não sei o que/ Não sei o que, vão pensar/ Se você não quer me
lanchar/ Sai pra lá,/ Sai pra lá encosto,/ Não quero ser/ Sua mulher tiragosto/ Calma, olha o estresse gata/ Com essa latumia/ Você não emplaca/
Tu é bonitinha/ Tá fazendo calor/ Mas não é toda hora/ Que dá pra fazer
amor.
4 EPÍLOGO
O que se observou a partir desta análise foram as bandas/músicos do pós-mangue
trabalhando sob a influência de uma infinidade de linguagens sonoras. O que, para aqueles,
que acreditam que na música pop devem existir caixinhas com rótulos para tudo o que se
produz nela, é um grande incômodo.
A cena pós-mangue pernambucana é extremamente frutífera, cuja análise não deve se
limitar apenas às bandas/músicos mencionados neste trabalho. O que se quer deixar claro é
que, embora o Manguebeat mereça ser reconhecido como um movimento que revolucionou a
música brasileira, nem toda produção pernambucana limita-se à sua sonoridade, como
também a existência de públicos para apreciar aquilo que foge à sua estética.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, João Mauro. Mangue Beat: a arte que veio da lama. Problemas Brasileiros. São
Paulo: SENAC. V. 45, n. 381, p. 2-9, maio-jun./2007.
DIAS, Bruno. Quase um iê-iê-iê. Rolling Stone Brasil, n. 19, p. 38, abr. 2008.
FASE de transição. Correio Braziliense, 2012.
FLÁVIO JÚNIOR, José; NADAL, Paula. Próxima Estação. Revista Bravo, CDs do mês, jun.
2012.
GALINSKY, Philipe Andrew. “Maracatu Atômico”:tradition, modernity and postmodernity
in the Mangue Movement and “New Music Scene” of Recife, Pernambuco, Brazil. 2 v. 1999.
Tese (Philosopfy Doctor in Music). Departament of Music, Wesleyan University,
Middletown, 1999.
11
JUBERT, Simone. Pós-Mangue: a nova cena musical recifense. Continente Multicultural,
ano VI, n. 70, p. 74-79, out./2006.
LEÃO, Carolina Carneiro. A maravilha mutante: batuque, sampler e pop no Recife dos anos
80. 2002. 129 fls. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Programa de Pós-Graduação em
Comunicação, CAC, UFPE. 2002.
ORTEGA, Rodrigo. Town sem mangue. Billboard Brasil, p. 14, jun. 2012.
PRÓXIMA estação. Revista Veja, Veja recomenda, s n. t.
RIBEIRO, Lucio. O pop vai comer a si mesmo. Folha de São Paulo, 21 de abril de 2006,
Caderno Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/
fq2104200610.htm>.
ROSA, Fernando. Canção travestida de rock. Rock travestido de canção. Senhor F.
Disponível em: http://www.senhorf.com.br.
SILVA, Glaucia Pires da. “Maracatu Atômico: síntese da transformação contemporânea
expressa no “Mangue”. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 21., 2007, Caxambu.
Anais...
Caxambu,
2007.
Disponível
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<http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_ocman&task=doc_iew&gid=2911&It
emid=231>.
TELES, José (Org.). Meteoro Chico. Recife: Bagaço, 199?
______. A onda do Manguebeat. Continente Multicultural: Documento, ano 3, n. 26, p. 3034, 2004. Alquimia Sonora.
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Mombojó. Nadadenovo. 2004.
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Profiterolis. Meio dia na Rua da Harmonia. 2009.
Volver. Canções Perdidas num Canto Qualquer. Senhor F. 2005.
12
______. Acima da Chuva. Senhor F. 2008.
______. A Próxima Estação. Trama. 2012.
13
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