Gley P. Costa Gley P. Costa A relação do indivíduo com o corpo segue duas vertentes. A primeira diz respeito ao interior do corpo, ao erotismo e ao desejo. A segunda nos coloca na senda do social, da relação do indivíduo com o exterior ao corpo, com a realidade. No contexto deste artigo, interessa enfocar, especificamente, a realidade contemporânea, portanto, com o que se convencionou chamar de pós-modernidade. Pós-modernidade que Lasch (1979), com muita razão, denominou de “a cultura do narcisismo” e Debord (1992) de “a sociedade do espetáculo”. Quem sabe também pudesse ser considerada como os anos dourados da cirurgia plástica, não só pelo número de procedimentos, mas, também, pelo extraordinário avanço da técnica. Dessa forma, estou procurando enfatizar a existência de um corpo como sede do nosso erotismo, do prazer, logo, do SENTIR (a primeira vertente) e, também, como sede da nossa identidade, ou seja, do SER, correspondendo à segunda vertente, a que tem a ver com a relação do indivíduo com o exterior ao corpo, na qual se forja a identidade. Pensando assim, é fácil concluir que todas as modificações do corpo, tanto as evolutivas, relacionadas com o ciclo vital, como a adolescência e o envelhecimento, quanto as provocadas por enfermidades, as acidentais e até mesmo as estéticas, interferem em nosso SER e em nosso SENTIR. Vou iniciar abordando a questão do SER, ou seja, do sentimento de identidade, a sensação de que existimos, de que somos nós mesmos – o que constatamos em nossas relações com os outros e mediante o reconhecimento dos outros. A construção desse sentimento resulta de múltiplas identificações físicas e emocionais, principalmente daquelas que estabelecemos na infância, em particular com os pais e com as outras pessoas que os substituem ou representam. Não é sem sentido a nossa tendência a atribuir à criança uma semelhança com o pai ou com a mãe, não raro logo após o parto, antes mesmo de ela abrir os olhos pela primeira vez. Nessa linha, às vezes dizemos que a cara, quer dizer, o físico, é da mãe, mas o jeito, entenda-se, o emocional, é do pai, ou vice-versa, indicando o nosso empenho de dotar o recém-nascido de características identificatórias. Com isso, desde o início, estamos procurando ajudar o indivíduo a cunhar uma identidade, para que ele se torne um SER, em outras palavras, adquira um sentimento de existência. Mas não são apenas as identificações com os pais e com as pessoas que nos são próximas que formam a nossa identidade: também fazem parte dela nossas identificações com o ambiente em que nos criamos, nossas características familiares e, inclusive, nossas características raciais que, juntas, dizem quem somos e de onde viemos. Portanto, o sentimento de identidade resulta de trocas humanas significativas, tendo a ver com as nossas características emocionais e físicas, incluindo, como dissemos, as Gley P. Costa raciais, razão pela qual assisto com espanto a onda de cirurgias plásticas realizadas na China, visando dotar as mulheres daquela nação de características ocidentais. Esse fenômeno, observado em um país marcado por uma cultura milenar e conservadora, revela a força da propaganda no mundo contemporâneo que, ao lado da comunicação – uma comunicação fragmentada, diga-se de passagem –, configura o que de mais representativo observamos na pós-modernidade: o exibicionismo e o autocentrismo, desinvestindo as trocas humanas que reforçam o sentimento de identidade. Correspondendo a uma excentricidade da pós-modernidade, constatamos uma conjunção desse individualismo exagerado com a valorização da exterioridade, tema que nos permite ingressar na questão do SENTIR, a outra sede que habita o nosso corpo. A propósito, acentuou Birman (1998) que a característica da subjetividade na sociedade atual é a impossibilidade de poder admirar o outro em sua diferença e singularidade, já que o indivíduo não consegue se descentrar de si mesmo. Segundo suas palavras, referido sempre a seu próprio umbigo e sem poder enxergar um palmo além do próprio nariz, o sujeito da cultura do narcisismo encara o outro apenas como um objeto para o seu usufruto. Acrescenta que, na verdade, o outro lhe serve apenas como instrumento para o incremento da auto-imagem, podendo ser eliminado quando não mais servir para esse fim. Palavras duras, reconheço, mas não parecem contrariar a realidade, se levarmos em consideração que a característica do narcisismo é justamente desinvestir afetivamente o outro para investir o próprio corpo, que se torna, então, o objeto de amor do indivíduo. Nessa dimensão, o outro só nos serve para nos admirar. Portanto, vivemos um momento em que o corpo, segundo os padrões rigorosamente estabelecidos pela mídia, adquiriu um valor tão elevado que não somente o outro perdeu o seu valor, mas o próprio indivíduo, ou seja, o ex-dono do corpo de que estamos falando. Digo o ex-dono porque, na sociedade atual, o corpo modelado, siliconado, turbinado, sarado, enfim, idealizado, já não mais pertence ao indivíduo; é algo apenas para ser visto e admirado tanto pelos outros como por ele mesmo. Trata-se de um entre vários paradoxos da pós- modernidade: o corpo se tornou um valor, é verdade, mas apenas esteticamente, pois deixando de representar a sede do SER e do SENTIR, ele deixou de ser a fonte de desejo para se tornar a fonte de Narciso. Ao mesmo tempo, assumindo a feição de uma escultura apenas para ser visto e admirado, o corpo já não mais faz parte do SER que representava e, tendo também se coisificado, já nada mais sente, podendo ser cortado e costurado à vontade. O importante é o resultado: a ambicionada e valorizada perfeição corporal! Mas é interessante registrar que, nesse processo, a pessoa do cirurgião plástico, ao mesmo tempo em que é muito reverenciada, também perdeu o valor. Atualmente, serve qualquer um, não tem mais nome: pode ser aquele que apareceu na TV exibindo as maravilhosas transformações que é capaz de fazer, aquele que deixou a colega de trabalho poderosa, ou aquele que pode ser pago em dez parcelas, sem juros ou pelo consórcio em 36 meses, como verificamos nas revistas de estética. Felizmente, em muitos meios, a situação ainda não chegou a esse ponto, permitindo que a relação pessoal médico-paciente seja mantida, mas é nesse contexto do narcisismo e do espetáculo que o cirurgião plástico contemporâneo desenvolve seu trabalho, quem sabe, em muitos casos, ajudando as pessoas a se sentirem participantes deste mundo em que a linguagem perdeu a poesia e a beleza se tornou, concretamente, fundamental. De fato, provavelmente nada é mais chamativo na sociedade contemporânea do que a busca incessante de beleza através de exercícios físicos, da alimentação, da cosmética [uma das indústrias que mais geram rendimentos no mundo], da cirurgia plástica e de outros procedimentos estéticos. Trata-se de uma situação diretamente relacionada à educação, pois na atualidade esses cuidados com o corpo começam muito cedo, representando uma importante área de ajuda aos filhos. Não obstante, é também nessa área que assistimos aos pais cumprindo mais desastrosamente sua missão. Não fosse isso, não floresceriam centros de ginástica para crianças, onde elas, com três, quatro, cinco, seis, sete anos despendem um parte do seu tempo malhando, em alguns casos com a orientação de um personal Gley P. Costa children, tudo muito parecido com os seus papais e os outros adultos com os quais cruzam nos corredores de academias da moda, convencidas de estarem fazendo a coisa mais natural da vida, como comer e brincar. Se já não estava havendo diferenças no vestir entre adultos e crianças, agora elas começam a se esvanecer nos interesses, tudo em nome da juventude e de um corpo em boa forma, muito além do SER e do SENTIR. A rapidez é uma das características mais marcantes da pósmodernidade, fazendo com que tudo seja assumido, incorporado sem muita reflexão. A mídia utiliza-se de profissionais de sociologia, psicologia e de outras áreas, além de marketing e propaganda, com o objetivo de descobrir como sugestionar o público a consumir determinado produto, interessar-se por um certo assunto e impregnar-se da idéia de como deve vestir-se ou comportar-se. O alvo principal são as crianças e os adolescentes, obviamente os segmentos mais vulneráveis da população a essa pressão violenta da sociedade de consumo. O resultado é que o consumismo se tornou o maior obstáculo para impor limites aos filhos. Os pais temem que, ao priválos de algo que os amigos possuem, venham lhes provocar uma quebra da auto-estima. Quando sabemos que empresas, através de seus marqueteiros, procuram identificar crianças e adolescentes considerados formadores de opinião e os contratam para usar seus produtos, temos de reconhecer que se tornou muito difícil aos pais dizerem não aos filhos. O mais chamativo é que, entre esses produtos, atualmente, inclui-se o corpo que, do meu ponto de vista, virou um objeto de consumo, tanto de adultos como de adolescentes, rapidamente, como tudo, cada vez com menos idade. De fato, não chega a constituir um exagero dizer que, no mundo atual, o corpo, como uma peça de vestuário, é mais uma mercadoria que podemos escolher nos livros com diversos modelos de narizes, seios ou nádegas que os cirurgiões plásticos propiciam aos pacientes. Feita a escolha e combinada a forma de pagamento, nada mais resta fazer do que marcar o dia e a hora do procedimento para nos tornarmos um clone de Britney Spears, Brad Pitt, Sharon Stone, Cameron Diaz ou Jennifer Lopez, como mostra um dos programas de televisão mais vistos nos Estados Unidos por telespectadores de 18 a 34 anos. Anônimos – como os chamou uma revista de grande circulação – mas com cara de famosos. Nessa busca incessante de perfeição, até plástica das cordas vocais começaram a ser feitas para que a voz rejuvenesça. Com tudo isso, é provável que, em pouco tempo, o corpo passe a representar o principal sonho de consumo ou, como se costuma dizer na atualidade, objeto de desejo não só dos adultos, mas também dos jovens, criando-se mais uma dificuldade para os pais dizerem não aos filhos, principalmente diante do argumento de que “todos os amigos já ganharam um corpo último modelo”. A rigor, já nos encontramos nesse caminho, como sugere um flagrante recente da sala de recuperação de uma grande e famosa clínica de cirurgia plástica, que revelou um predomínio marcante de adolescentes que, com a autorização dos pais, haviam se submetido a um procedimento cirúrgico sob anestesia para corrigir pequenos defeitos. Pequenos defeitos? Foi o que a enfermeira responsável pela sala informou. E pensar que a cirurgia plástica, nos primórdios, era para corrigir grandes defeitos... Embora caiba aos pais ajudarem os filhos a não se submeterem ao consumismo, transformando o próprio corpo em um objeto esteticamente bonito mas sem vida, destituído de suas funções primordiais de sediar o SER e o SENTIR, a identidade e o desejo, na prática o que estamos observando é justamente o contrário. É o que constatamos em um caso, no qual a mãe ofereceu de presente à filha de 16 anos uma cirurgia plástica para tirá-la da tristeza em que se encontrava, devido ao rompimento com o namorado. Outra mãe, cuja filha completara 17 anos, apoiou sua decisão de aumentar os seios, os quais considerava desproporcionais para a sua altura. “Não tem porque a minha filha que é lindíssima ficar se sentindo feia só porque não tem uns seios perfeitos”, disse a mãe para justificar sua atitude, não escondendo as pretensões da filha de vir a trabalhar como modelo, ou seja, viver da exibição do corpo, ao que eu acrescentaria: permitindo a essa mãe viver uma ilusória experiência explícita de perfeição, sem saber que, O autor aborda, do ponto de vista psicanalítico, a relação com o corpo na sociedade contemporânea, na qual se observa uma busca incessante de perfeição influenciada pela propaganda. Nesse novo contexto, o corpo perdeu suas funções primordiais que conferem ao indivíduo o sentimento de identidade para se transformar em um objeto de consumo. É destacado o avanço dessa distorção no pensamento de adolescentes e crianças, dificultando o processo de educação. Corpo. Estética. Pós-modernidade. Perda da Identidade. Being And Feeling In The Current World From a psychoanalytical point of view, the author approaches the relationship with the body in today’s society, in which an incessant search for perfection, influenced by advertising, is observed. In this new context, the body has lost its primordial functions that confer upon the individual a feeling of identity to transform into an object of consumption. A focus is placed on the advance in this distorted thinking by adolescents and children, thus making the education process difficult. Body. Aesthetics. Post-modernity. Loss of identity. El Ser Y El Sentir En El Mundo Actual El autor aborda desde el punto de vista psicoanalítico la relación con el cuerpo en la sociedad contemporánea, en la cual se observa una búsqueda incesante de perfección influenciada por la propaganda. En este nuevo contexto, el cuerpo perdió sus funciones primordiales que le dan al individuo el sentimiento de identidad para transformarse en un objeto de consumo. Se destaca el avance de Gley P. Costa como disse Einstein, “os domínios do mistério prometem as mais belas experiências”... esta distorsión en el pensamiento de adolescentes y niños, dificultando el proceso de educación. Cuerpo. Estetica. Pos-modernidad. Pérdida de la Identidad. BIRMAN, J. (1998). Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as outras formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. DEBORD, G. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992. LASCH, C. The culture of narcisism. New York: Warner Bernes, 1979.