GLOSSÁRIO DE FARMACOLOGIA Matérias publicadas nas Newsletters da SBFTE ÍNDICE 1. Medicamento (vs Remédio) e Fármaco (vs droga) - Junho 2013 2. Efeito adverso vs efeito colateral - Setembro 2013 3. Sinergismo vs. aditividade e potencialização - Março 2014 4. Biodisponibilidade e absorção - Junho 2015 5. Eficácia, efetividade e eficiência - Setembro 2015 6. Doenças negligenciadas vs doenças raras e fármacos órfãos - Dezembro 2015 7. Tempo de residência do complexo fármaco-receptor - Abril 2016 8. Alosterismo, sítio ortostérico, sítio alostérico, modulador alosterico e ligante bitópico - Julho 2016 I. Medicamento (vs Remédio) e Fármaco (vs droga) - junho 2013 Iniciamos este glossário com dois termos selecionados por serem essenciais em Farmacologia (“Medicamento” e “Fármaco”) e que apesar disso ainda são frequentemente confundidos ou até preteridos por outros dois termos muito menos próprios: “Remédio” e “Droga”, respectivamente. - REMÉDIO: é qualquer substância OU RECURSO (ex. radioterapia....) usado para combater uma moléstia. Apesar de ser muito usado, sobretudo popularmente, este termo deve ser trocado por "Medicamento" quando se quer falar especificamente de uma formulação farmacêutica (contendo um ou vários princípios ativos, denominados fármacos) usada para tratar (ou prevenir...) uma doença. Neste contexto, vale a pena conferir a definição, “legal” e muito apropriada, dada pela ANVISA (RDC n0 16 de 02/03/2007): "MEDICAMENTO: produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade 1 profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico (Lei nº 5.991, de 17/12/73). É uma forma farmacêutica terminada que contém o fármaco, geralmente em associação com adjuvantes farmacotécnicos". - DROGA: é uma infeliz tradução do inglês "drug" que contaminava boa parte dos livros textos traduzidos em português e assim influenciou várias gerações de docentes (*). Em português, temos a palavra "FÁRMACO", muito melhor para distinguir o "princípio ativo" de um medicamento das "drogas ilícitas", como cocaína.......... ou seja, quando se vê "drug" em inglês, deve se usar "fármaco" em português. Da mesma forma, quando se vê "drug product" em inglês, deve se usar "medicamento" em português. (*): No caso de dois livros muito usados no ensino da Farmacologia em cursos de Graduação, houve uma notável mudança nas edições mais recentes: No “ Rang & Dale – Farmacologia”, houve uma adequação na tradução da 7ª edição (quando os revisores científicos trocaram a palavra “droga” usada até a 6ª edição pela palavra “Fármaco”, reservando a primeira para substâncias de abuso. No caso do “Katzung – Farmacologia básica & clínica”, o mesmo ocorreu na passagem da 9ª edição para a 10ª edição. 2. Efeito adverso vs efeito colateral - Setembro 2013 - EFEITO COLATERAL (do inglês “side effect”): é um efeito diferente daquele efeito principal responsável pelo efeito e uso terapêutico do fármaco: assim, um efeito colateral pode ser benéfico ou indiferente e não necessariamente adverso, indesejável (“unwanted side effect”). De acordo com esta interpretação, podemos citar o documento “Clinical Safety Management: definitions and standards for expedited reporting – E2A”, recomendado para adoção pelos órgãos regulatórios da Comunidade Européia, Japão e Estados Unidos da América (ICH-International Conference on Harmonisation of technical requirements for registration of pharmaceuticals for human use). De fato, este documento (II.A.2.) menciona claramente que “o termo antigo “side effect” (i.e. efeito colateral) foi usado de várias maneiras no 2 passado, usualmente para descrever efeitos negativos (não favoráveis), mas também efeitos positivos (favoráveis). É recomendado que este termo não seja mais usado e que, particularmente, não seja considerado como sinônimo de reação adversa”. Nota-se que pode haver controversas quanto à definição de efeito colateral, mas não quanto à necessidade de se abandonar este termo, como veremos a seguir: no Tratado de Farmacologia Clínica e Farmacoterapia (ed. Grahame-Smith & Aronson, terceira edição – Guanabara Koogan) se diz que “um efeito adverso refere-se a um efeito não desejado de um fármaco. Os efeitos adversos podem ser decorrentes de efeitos tóxicos ou efeitos colaterais. Um efeito tóxico é um efeito adverso que surge em conseqüência da intensificação do mesmo efeito farmacológico responsável pelo efeito terapêutico do fármaco; por conseguinte trata-se de um efeito relacionado com a dose. Um efeito colateral refere-se a um efeito adverso que surge através de alguma reação farmacológica distinta daquela que produz o efeito terapêutico (estes efeitos podem estar relacionados ou não com a dose”). - De qualquer forma, deve-se evitar este termo como recomendam os mesmos autores: “Como os efeitos colaterais relacionados com a dose também podem ser considerados como efeitos tóxicos, é mais apropriado evitar os termos “efeitos tóxicos” e “efeitos colaterais” e, no seu lugar, empregar o termo “efeitos adversos”, que abrange todos os tipos de efeitos não desejados”. Assim sendo, devemos usar a palavra "EFEITO ADVERSO" (ou efeito "indesejável") condizente com o termo "REAÇÃO ADVERSO AO MEDICAMENTO" (RAM), termo consagrado em Farmacovigilância ("É qualquer resposta a um medicamento que seja prejudicial, não intencional, e que ocorra nas doses normalmente utilizadas em seres humanos para profilaxia, diagnóstico e tratamento de doenças, ou para a modificação de uma função fisiológica"- ANVISA, Resolução - RDC nº 140, de 29 de maio de 2003"). Nota-se que esta definição esta plenamente de acordo com a definição dada pela Organização Mundial da Saúde (WHO. The importance of pharmacovigilance: safety monitoring of medicinal products. Geneva: WHO, 2002). 3 3. Sinergismo vs. aditividade e potencialização - março 2014 Já que a legislação brasileira restringiu o uso de combinações em dose 1 fixa , alguns das quais estariam sem fundamento racional, é importante ressaltar a existência e fundamentação de combinações (princípios ativos diferentes em uma mesma forma farmacêutica) e associações (princípios ativos diferentes em formas farmacêuticas diferentes) com eficácia comprovada. O exemplo mais conhecido é certamente o combate à AIDS 2, baseado tradicionalmente no uso de coquetéis de diferentes fármacos (associações de diferentes medicamentos). Exemplificando uma mudança de estratégia (de associações para combinações de fármacos), o FDA aprovou em 2012 um medicamento (Stribild®) sob forma de comprimido contendo a combinação em dose fixa de quatro fármacos anti-AIDS (elvitegravir, cobicistat, emtricitabine, tenofovir disoproxil fumarate)3. Em função do exposto, achamos importante rever algumas noções sobre aditividade e sinergismo, temas pouco abordados em livros textos de Farmacologia e até mesmo pela IUPHAR4, razão pela qual existe certa imprecisão no uso destes termos como demonstrado pelo título desafiador do artigo “O que é sinergismo ?” publicado numa das mais tradicionais revistas de farmacologia5. Falaremos de sinergismo quando o efeito da combinação (ou associação) de dois fármacos é superior àquele esperado baseado na simples aditividade. Portanto, o primeiro passo é de definir precisamente o que entendemos por aditividade (interação nula), o que poderia parecer uma questão simples de resolver mas que na prática se torna um pouco complicada ainda mais devido à falta de consenso. Para simplificar, podemos considerar que existem duas alternativas: aditividade de efeitos e aditividade de doses6-8. A aditividade de efeitos (utilizada pela ANVISA9, infelizmente8) significa que o efeito resultante da associação/combinação de dois fármacos é a soma aritmética dos efeitos individuais. No caso da aditividade de doses (aditividade de Loewe, geralmente utilizada em Farmacologia básica e clínica através de análise isobolográfica10), o efeito da associação/combinação é o efeito previsto baseado nas potências (e doses) dos dois fármacos: neste 4 caso, considera-se que existe aditividade quando um fármaco (o menos potente) atua como se fosse uma simples forma diluída do outro. Uma vez entendido o(s) significado(s) de tal fenômeno, podemos refletir sobre a natureza dos mecanismos envolvidos no sinergismo entre dois fármacos. Na realidade, a interação pode ocorrer tanto na etapa farmacocinética (geralmente durante o processo de metabolização) quanto na etapa farmacodinâmica. No primeiro caso, o exemplo mais frequente é de inibição enzimática quando um fármaco inibe o metabolismo do outro, como no caso da associação entre ritonavir e saquinavir. Neste caso, o ritonavir inibe a intensa metabolização do saquinavir, via a enzima CYP3A4, aumentando assim a sua concentração plasmática e o seu tempo de meia-vida. No segundo caso, podemos ter um efeito final resultante da ação de dois fármacos em alvos moleculares distintos, como no caso do intenso sinergismo observado para os efeitos antinociceptivos da fentolamina e do paracetamol 6. Finalmente, resta saber como podemos avaliar, na prática, o tipo de interação que existe quando se usa uma combinação de dois (ou mais) fármacos. Geralmente, abre-se mão de modelos empíricos que necessitam apenas de informação sobre as doses (ou concentrações) usadas e os efeitos observados dos dois fármacos além de uma relação quantitativa entre dose e resposta, selecionada empiricamente6,7. Uma vez definido o critério a ser usado para definir uma interação nula, podemos concluir que efeitos maiores do que esperados indicam sinergismo enquanto que efeitos idênticos e menores indicam aditividade e antagonismo, respectivamente 6,7. Caso se opta pelo critério de aditividade de doses, podemos usar a clássica análise isobolográfica introduzida por Loewe (um isobolograma é um gráfico bidimensional com as doses dos fármacos A e B nas coordenadas, em que diferentes linhas, os isoboles, conectam as diferentes combinações de doses que produzem a mesma intensidade de efeito)6,10. A situação é um pouco mais complexa ainda devido à necessidade de haver algum teste estatístico além da avaliação gráfica qualitativa6,10. Para terminar, é importante ressaltar que o termo “potencialização” (potenciação) deveria ser usado, somente, em caso de associação/combinação entre um fármaco A, que tem um efeito, e um fármaco 5 B sem efeito próprio, quando o efeito resultante é maior do que o efeito de A sozinho8. Referências: 1. ANVISA, Resolução - RDC Nº 210, de 2 de Setembro de 2004. 2. Sühnel J. Evaluation of synergism or antagonism for the combined action of antiviral agents. Antiviral Res. 13: 23–39, 1990. 3.http://www.fda.gov/newsevents/newsroom/pressannouncements/ucm317004.htm (consultado em: 29/02/2014). 4. Neubig R.R., Spedding M., Kenakin T., Christopoulos C. International Union of Pharmacology Committee on Receptor Nomenclature and Drug Classification. XXXVIII. Update on Terms and Symbols in Quantitative Pharmacology. Pharmacol. Rev. 55: 597–606, 2003. 5. Berenbaum M.C. What is synergism ? Pharmacol. Rev. 41: 93-141, 1989. 6. Tallarida R.J. Drug Synergism: Its Detection and Applications. J. Pharmacol. Ther. 298: 865–872, 2001. 7. Groten J.P., Feron V.J., Sühnel J. Toxicology of simple and complex mixtures. Trends Pharmacol. Sci. 22: 316-322, 2001. 8. Chou T.C. Theoretical Basis, Experimental Design, and Computerized Simulation of Synergism and Antagonism in Drug Combination Studies. Pharmacol. Rev. 58: 621– 681, 2006. 9. ANVISA, Guia para Registro de Novas Associações em Dose Fixa. 1ª edição, 2010. 10. Tallarida R.J. Revisiting the Isobole and Related Quantitative Methods for Assessing Drug Synergism. J. Pharmacol. Exp. Ther. 342: 2–8, 2012. 4. Biodisponibilidade e absorção - Junho 2015 ABSORÇÃO: Apesar de ser um termo muito usado e aparentemente sem ambigüidade, há risco de mal-entendido, sobretudo pela falta de definição pelos órgãos regulatórios do país (ANVISA) e de fora (FDA/USA; CEE; Canadá), mesmo quando eles utilizam este termo em resoluções abordando 6 os ensaios de biodisponibilidade (vide abaixo). De forma estranha, a maioria dos livros textos de Farmacologia peca também em não definir o processo de absorção de forma clara. Assim sendo, nós parece útil apresentar aqui uma definição de consenso entre as fontes consultadas (eg, Principles of Pharmacology: Basic concepts clinical applications – ed. Munson, P.L., Mueller, R.A. & Breese, G.R., 1a edição, Chapman Hall): “A absorção envolve a passagem das moléculas do fármaco através de barreira(s) existente(s) entre o sítio de administração e o compartimento vascular”. É fundamental ressaltar aqui que o compartimento vascular a ser considerado (e isso nem sempre fica claro e há controvérsia) é o da circulação local (por exemplo, as veias mesentéricas, para a absorção intestinal) e não da circulação sistêmica. Esta precisão é muito importante para não confundir os conceitos de absorção e biodisponibilidade (vide abaixo o exemplo do propranolol). Nota-se que ha controvérsia na literatura, quando vários autores consideram que o termo “absorção” reflete a chegada do fármaco até a circulação sistêmica (“absorção sistêmica”). BIODISPONIBILIDADE Apesar deste conceito ser tão importante no processo de controle de qualidade de medicamentos, entre outros para assegurar a bioequivalência entre medicamentos genéricos e similares em relação aos medicamentos de referências (RDC nº60 da ANVISA - 10/10/2014), há grande quantidade de definições errôneas ou pelo menos ambíguas na literatura especializada, quer seja em livros textos ou em resoluções das agências regulatórias. Antes de chamar a atenção sobre alguns erros conceituais encontrados na literatura, gostaríamos de apresentar uma definição que nós parece das melhores por ser simples, objetiva, completa e moderna: “A biodisponibilidade mede a velocidade e extensão com as quais um fármaco atinge a circulação sistêmica” (Canadá - Guidance for industry - Conduct and Analysis of Bioavailability and Bioequivalence Studies - Part B: Oral Modified Release Formulations). Nota-se que definição semelhante é encontrada em vários 7 tratados especializados (eg: Introdução à Farmacocinética e à Farmacodinâmica, ed. Tozer, T.N. & Rowland, M. - Artmed Editora, S.A. 2009; Applied Biopharmaceutics and Pharmacokinetics, ed. Shargel, L & Yu, A.B.C. Stanford, Connecticut, 1999; Tratado de Farmacologia Clínica e Farmacoterapia , ed. Grahame-Smith, D.G. & Aronson, J.K. – 3a edição, Guanabara Koogan). Erros conceituais mais comuns: 1. As definições apresentadas pelas agências regulatórias americana (FDA) e européia (EMEA) falam em disponibilidade do fármaco no sítio de ação, o que é impossível de se medir na prática e torna esta definição estéril e incoerente pelo menos no que diz respeito aos parâmetros avaliados para se quantificar a biodisponibilidade de um fármaco, na prática (ASC, Cmax e Tmax). Devido à força do FDA e a aspectos históricos, esta definição sabidamente confusa é repetida em vários livros textos. 2. Apesar de não ser tão comum, devemos ressaltar outro erro conceitual, desta vez encontrado na legislação brasileira que usa o termo “absorção” (vide definição acima) em vez de “absorção e disponibilidade sistêmica”. De fato, a RDC nº60 da ANVISA (10/10/2014) diz que a biodisponibilidade “indica a velocidade e a extensão de absorção de um princípio ativo proveniente de uma forma farmacêutica, a partir de sua curva concentração/tempo na circulação sistêmica ou sua excreção na urina, medida com base no pico de exposição e na magnitude de exposição ou exposição parcial”. Este “erro” de terminologia (possivelmente devido ao uso do termo “absorção” no sentido de “absorção sistêmica”) pode gerar grande confusão, já que um fármaco que sofrer importante efeito de primeira passagem hepática (como o propranolol, por exemplo) possui um baixo fator de biodisponibilidade (parâmetro que mede a extensão da biodisponibilidade, vide abaixo) apesar de ser bem absorvido: de fato, o propranolol consegue atravessar a barreira da mucosa intestinal e chegar na circulação sanguínea local, mas é intensamente metabolizado no fígado, ou seja, antes de chegar na circulação sistêmica, havendo assim baixa disponibilidade sistêmica do fármaco inalterado (não metabolizado). 3. Um terceiro erro conceitual grave, e infelizmente muito comum, é de confundir biodisponibilidade e fator de biodisponibilidade (F), um 8 parâmetro que mede, somente, a extensão da biodisponibilidade (e não a sua velocidade). Infelizmente este erro encontra-se em três livros de Farmacologia muito usados por nossos alunos de graduação, a começar pela “bíblia” do Farmacologista (Goodman Gilman`s The pharmacological basis of therapeutics – ed. Brunton, L.L., Chabner, B.A. & knollmann, B.C., 12 a edição, Mc-Graw-Hill Co; Farmacologia Básica e Clínica – ed. Katzung, B.G., Masters S.B. & Trevor, A.J. 12a edição, AMGH Editora Ltda; Rang & Dale Farmacologia - ed. Rang, H.P., Dale, M.M., Ritter, J.M., Flower R.J. & Henderson G. 7a edição, Elsevier Editora Ltda.). 5. Eficácia, efetividade e eficiência - publicada em Setembro 2015 Apesar de poder ser considerados sinônimos pelo público leigo, estes termos possuem significados diferentes para os especialistas em Pesquisa clínica. Cientes de que estas diferenças nem sempre estão bem assimilados no meio da Farmacologia básica, estamos reportando aqui definições que esperamos esclarecedoras. Nota-se que a confusão pode ser exacerbada pelo fato de uma mesma terminologia ter significado diferente na pesquisa básica e clínica, como é o caso do termo “eficácia”. De fato, na pesquisa básica, a “Eficácia” de um fármaco refere-se, freqüentemente, à sua capacidade máxima de produzir um efeito, ou seja, este termo é muitas vezes usado como sinônimo de “atividade intrínseca” (como chamado por Ariëns em 1954) ou “efeito agonístico máximo” (como atualmente recomendado pela IUPHAR1), facilmente medido no platô da curva “concentração- ou dose-efeito”. Este efeito máximo é mais bem expresso como fração () do efeito produzido pelo agonista total do mesmo tipo, atuando através dos mesmos receptores, nas mesmas condições experimentais. Um agonista total (pleno) tem = 1, enquanto um antagonista (neutro) tem = 0 e um agonista parcial 0<<1. De forma mais restrita, e de difícil avaliação na prática, o termo “eficácia intrínseca” (), introduzido por Furchgott em 1966, é atualmente reservado para representar o estímulo produzido pela interação de uma molécula do fármaco com um único receptor (este parâmetro é uma 9 característica do fármaco para um determinado receptor, não dependendo do sistema de transdução de sinal presente na célula)1. A confusão pode ainda ser maior se considerarmos um terceiro parâmetro, τ (“razão de transdução”), proposto para avaliar a eficácia de um agonista em um sistema, no modelo operacional de Black e Leff 2. - Por outro lado, na pesquisa clínica, a “Eficácia” refere-se à capacidade de um medicamento, na dose recomendada, em produzir efeitos benéficos em circunstâncias ideais, como nos ensaios clínicos randomizados 3. A eficácia é então medida pela avaliação dos resultados clínicos e estatísticos do ensaio clínico. Porém, os pacientes estudados nestes ensaios controlados são, geralmente, jovens, de sexo masculino, brancos, acometidos por uma única doença e usando um único tratamento*. A maioria dos pacientes na prática médica não se encaixa nesta descrição. - Assim sendo, o termo “Efetividade” tem outro significado, sendo utilizado para medir o efeito de um medicamento na terapêutica, ou seja, em condições “reais” da população como um todo, ao contrário do que é avaliado durante os ensaios clínicos controlados, quando os pacientes envolvidos foram rigorosamente selecionados3. Desta forma, a baixa adesão (e não aderência) do paciente a um tratamento (em função de efeitos adversos ou complicações do esquema terapêutico), pode influenciar sua efetividade, assim como a presença de comorbidades ausentes nos pacientes incluídos nos ensaios clínicos controlados. A efetividade pode ser avaliada em estudos observacionais, na prática usual da medicina. - O terceiro termo, “Eficiência”, é utilizado quando se avalia a relação custoefetividade de um tratamento para o paciente ou a sociedade 3 e é de fundamental importância para a disciplina de Farmacoeconomia e como um dos critérios para seleção de medicamentos essenciais, como na RENAME 4. * Contudo, vale ressaltar que existe uma tendência, nos estudos de fase III, de se testar o medicamento em amostras populacionais cada vez maiores, com comorbidades, e mesmo em uso de medicação diversa, visando poder extrapolar os dados para a população que irá usar o produto quando disponível no mercado. 10 Referências: 1. Neubig, R.R., Spedding, M., Kenakin, T. & Christopoulos, A. International Union of Pharmacology Committee on Receptor Nomenclature and Drug Classification. XXXVIII. Update on Terms and Symbols in Quantitative Pharmacology. Pharmacol. Rev. 55: 597–606, 2003 2. Black, J.W. & Leff, P. Operational models of pharmacological agonism. Proc. R. Soc. Lond. B 220: 141-162, 1983. 3. Marley, J. Efficacy, effectiveness, efficiency. Aust. Prescr. 23:114-115, 2000. 4. Rogério Hoefler, R. & Maluf, A.C.S. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais 2010 e Formulário Terapêutico Nacional 2010. Farmacoterapêutica, Ano XV, Número 06, nov-dez, 2010. 6. Doenças negligenciadas vs doenças raras e fármacos órfãos Dezembro 2015 Segundo o DECIT/MS1, as Doenças negligenciadas são doenças que prevalecem em condições de pobreza e para as quais há pouco interesse por parte das indústrias farmacêuticas tradicionais devido à falta de mercado significativo tendo em visto que são doenças que atingem populações de baixa renda e presentes, sobretudo, nos países em desenvolvimento. Entre as doenças negligenciadas, podemos citar: malária, tuberculose, dengue, chikungunya, esquistossomose, oncocercose, hanseníase e filaríase linfática (elefantíase), tripanossomíase africana humana (doença do sono), leishmaniose visceral (calazar) e doença de Chagas, sendo que estas três últimas são consideradas como extremamente negligenciadas. Nota-se que a OMS usa mais o termo doenças tropicais negligenciadas2 cuja lista não incluiu malária e tuberculose, por exemplo, as quais são objetos de maior investimento em pesquisa para desenvolvimento de novos fármacos. Assim sendo, as doenças negligenciadas são doenças que afetam milhões de pessoas em países do terceiro mundo onde carece capacidade financeira para pagar por novos fármacos financiados pelos mecanismos tradicionais, extremamente onerosos, que asseguram a pesquisa e o 11 desenvolvimento de novos fármacos. No caso das doenças negligenciadas, há certo consenso de que uma saída para o desenvolvimento de novos fármacos é a criação de parcerias entre instituições públicas e privadas (as famosas PPP: public-private partnership), que podem ser estimuladas por iniciativas como o DNDi (Drugs for Neglected Disease initiative), inicialmente idealizada pela ONG Médicos sem Fronteiras3, e que foca atualmente seus esforços nas doenças extremamente negligenciadas. Por outro lado, os chamados “Fármacos Órfãos”, são fármacos desenvolvidos para tratar de doenças raras (poucas vezes também chamadas de doenças órfãos4,5). Neste caso, a falta de interesse da Indústria farmacêutica se deveria ao restrito tamanho do mercado (mesmo se presente em paises ricos), caso o FDA não tiver tomado medidas de incentivo (Orphan Drug Act, FDA - 1983) que resultaram em investimentos “tradicionais” pelo mercado farmacêutico. Nota-se que existe grande divergência quanto à qualificação de uma doença rara4,5, sendo que a maioria das jurisdições (66%) adota um limiar médio de prevalência entre 40 e 50 casos / 100.000 pessoas 5. Nos Estados Unidos da América (USA), são definidas como sendo doenças que afetam menos de 200.000 pessoas (nos USA) ou para as quais não existe expectativa razoável de que a o custo de desenvolvimento de fármaco para estas doenças seja recuperado pelas vendas nos Estados Unidos 6. Apesar de “raras”, estas doenças (em torno de 7.000) acometem 6-8% da população mundial, sendo 13 milhões de pessoas no Brasil7. Como exemplos de Fármacos Órfãos (doenças raras), temos: ceredase (doença de Gaucher), dantrolene (hipertermia maligna), imatinib (leucemia mielogenosa crônica), tretinoina (leucemia aguda promielocítica), ifosfamida (câncer dos testículos), sotalol (taquicardia ventricular), miltefosina (leishmania). Referências: 1. Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Doenças negligenciadas:estratégias do Ministério da Saúde. Rev Saúde Pública 44(1):200-202, 2010. 2. http://www.who.int/neglected_diseases/diseases/en/ 12 3. Nwaka, S. & Ridley, R.G. Virtual drug discovery and development for neglected diseases through public–private partnerships. Nature Rev. Drug Discov. 2(11):919928, 2003. 4. Aronson, J.K. Rare diseases and orphan drugs. Br. J. Clin. Pharmacol. 61:243-245, 2006. 5. Richter, T., Nestler-Parr, S., Babela, R., Khan, Z.M., Tesoro, T., Molsen, E., Hughes, D.A. Rare Disease Terminology and Definitions - A Systematic Global Review: Report of the ISPOR Rare Disease Special Interest Group. Value Health 18:906-914, 2015. 6. Haffner, M.E. Focus on Research: Adopting Orphan Drugs - Two Dozen Years of Treating Rare Diseases. New Eng. J. Med. 354(5):445-447, 2006. 7. Arnold, R.J.G., Bighash, L., Nieto, A.B., de Araújo, G.T.B., Gay-Molina, J.G., Augustovski, F. The role of globalization in drug development and access to orphan drugs: orphan drug legislation in the US/EU and in Latin America. F1000Res. Feb 27;4:57, 2015. 7. Tempo de residência do complexo fármaco-receptor - Abril 2016 Dez anos após que Copeland e colaboradores (2006; Copeland, 2016) sugeriram que o fator determinante da atividade farmacológica in vivo, e da sua duração, não era a afinidade do fármaco para seu receptor, mas o tempo de vida do complexo fármaco-alvo, nós pareceu oportuno definir e discutir aqui o conceito de Tempo de Residência do complexo fármaco-receptor. Stricto senso, conforme definido originalmente (Copeland e cols., 2006), o tempo de residência do fármaco no alvo (receptor, enzima) é o recíproco da constante de velocidade de dissociação (koff, k-1), ou seja: τ = 1 / koff. De acordo com este modelo, a atividade farmacológica (pelo menos para antagonistas e inibidores enzimáticos) dependeria da ligação do fármaco ao seu alvo desejado, sendo que a atividade farmacológica persistiria somente quando o fármaco permanecer ligado. Desta forma, pode haver interesse em compostos com alto tempo de residência, sobretudo se este for maior do que o tempo de meia-vida plasmática (Copeland, 2016), sendo assim um fator importante para entender a relação Farmacocinética/Farmacodinâmica (PK/PD) destes fármacos. Como exemplo de trabalho reforçando esta ideia, Guo e colaboradores (2012) 13 mostraram que não existia nenhuma relação entre eficácia e afinidade de uma série de agonistas do receptor A2a, enquanto encontraram uma boa correlação entre eficácia e tempo de residência. Por outro lado, um tempo de residência mais curto poderia ser benéfico para evitar um bloqueio contínuo de um receptor, como no caso da clozapina no receptor D2. De fato, a teoria do "fastoff" propõe que os antipsicóticos atípicas são fracamente ligados aos receptores D2 na sinapse, e assim rapidamente libertados destes, o que explicaria sua menor propensão para induzir efeitos extrapiramidais e hiperprolactinemia, os quais seriam consequências de bloqueio prolongado destes receptores (Kapur e Seeman, 2000). Assim sendo, podemos ver que este conceito pode mudar um dos paradigmas da avaliação de novos compostos dentro do processo de descoberta de novos fármacos, tradicionalmente baseada em medidas de afinidade de ligação em condições de equilíbrio termodinâmico, condições que não são inteiramente válidas no contexto de um sistema aberta, onde as concentrações do fármaco na biofase mudam de acordo com processos farmacocinéticos (Copeland, 2016; Swinney e cols., 2015). Nota-se que desde as primeiras descrições deste modelo, numerosos compostos avançaram para ensaios clínicos com base nos esforços para incorporar o conceito de tempo de residência do fármaco no alvo, como um fator-chave para a otimização de compostos-protótipos (Copeland, 2016). Por fim, é importante salientar que este parâmetro farmacodinâmico “tempo de residência” (do fármaco no receptor), não tem nada a ver com o um parâmetro farmacocinético “tempo de residência médio” (“mean residence time”), que estima o tempo médio que um fármaco permanece no organismo. Referências Copeland RA. The drug–target residence time model: a 10-year retrospective. Nat. Rev. Drug Discov. 15:87–95, 2016. Copeland RA, Pompliano DL,Meek TD. Drug-target residence time and its implications for lead optimization. Nat. Rev. Drug Discov. 9:730–739, 2006. 14 Guo D, Mulder-Krieger T, Ijzerman AP, Heitman LH. Functional efficacy of adenosine A2A receptor agonists is positively correlated to their receptor residence time. Br. J. Pharmacol. 166:1846–1859, 2012. Kapur S, Seeman P. Antipsychotic agents differ in how fast they come off the dopamine D2 receptors. Implications for atypical antipsychotic action. J. Psychiatry Neurosci. 25(2):161–166, 2000. Swinney DC, Haubrich BA, Van Liefde I, Vauquelin G. The Role of Binding Kinetics in GPCR Drug Discovery. Curr. Top. Med. Chem. 15:1-19, 2015. 9. Alosterismo, sítio ortostérico, sítio alostérico, modulador alosterico e ligante bitópico - Julho 2016 O termo “alostérico” foi inicialmente lançado por Monod e Jacob em 1962 para descrever o fenômeno de interação entre dois sítios topograficamente distintos de uma mesma enzima, através da transmissão de modificação conformacional. Em 1980, De Lean, Stadel e Lefkowitz aplicaram este conceito de interação alostérica para explicar a transdução de sinal no caso dos receptores metabotrópicos, dentro do chamado “Modelo de complexo ternário” (agonista-receptor-proteína G). Atualmente, o alosterismo se tornou foco de muitos estudos farmacológicos, na academia e nas empresas farmacêuticas, por causa do grande potencial em se desenvolver fármacos mais seletivos e/ou mais seguros. De fato, haveria mais chance de se conseguir compostos seletivos atuando em sítios alostéricos do que em sítios ortostéricos, cujas estruturas são geralmente muito conservadas entre diferentes subtipos de um mesmo receptor, como já bem ilustrado no caso dos receptores muscarínicos. Nota-se que o maravinoc foi o primeiro fármaco alostérico aprovado para uso clínico sendo um modulador alostérico neutro, “antagonista”, do receptor CCR5 para quimiocinas. Por outro lado, um perfil mais seguro poderia decorrer do fato de um modulador alostérico ter um efeito mais fisiológico (por manter o padrão temporal e espacial associado à liberação do neurotransmissor) e limitado a 15 um determinado nível, independentemente do aumento da dose (Efeito de teto). Em função do exposto, nos pareceu oportuno lembrar algumas definições relacionadas a este tema tão importante que mereceu uma recomendação da IUPHAR quanto a sua nomenclatura (Christopoulos et al., 2014). Outra motivação para esta escolha baseia-se no papel importante do Arthur Christopoulos neste artigo da IUPHAR e na pesquisa por novos fármacos atuando alostericamente, já que ele será um dos três conferencistas de destaque do nosso próximo congresso da SBFTE celebrando os 50 anos da nossa Sociedade. Definições: Sítio ortostérico: o sítio de ligação, no receptor, que é reconhecido pelo agonista endógeno deste receptor. Sítio alostérico: um sítio de ligação, no receptor, que não tem sobreposição, é espacialmente distinta, mas conformacionalmente ligado ao sítio ortostérico. Modulador alostérico: um ligante que modifica a ação de um agonista ortostérico, um ativador endógena ou um antagonista, ao se ligar a um sítio alostérico no receptor. Um modulador alostérico positivo aumenta a ação (afinidade e/ou eficácia) de um agonista, ativador ou antagonista ortostérico. Um modulador alostérico negativo diminui a ação (afinidade e/ou eficácia) de um agonista, ativador ou antagonista ortostérico. Ligante bitópico: uma molécula híbrida que, concomitantemente, ocupe um sítio ortostérico e um sítio alostérico num receptor através de dois grupamentos farmacofóricos (um tendo o papel de um ligante ortostérico e o outro de um ligante alostérico). Referências Christopoulos A, Changeux J-P, Catterall WA, Fabbro D, Burris TP, Cidlowski JA, Olsen RW, Peters JA, Neubig RR, Pin J-P, Sexton PM, Kenakin TP, Ehlert FJ, Spedding M, Langmead CJ. (2014) International Union of Basic and Clinical Pharmacology. XC. Multisite Pharmacology: Recommendations for the Nomenclature of Receptor Allosterism and Allosteric Ligands. Pharmacol. Rev. 66:918-947. 16 Kenakin T. (2014) A Pharmacology primer. Techniques for more effective and strategic drug discovery. 4ª edição, Elsevier. Wootten D, Christopoulos A, Sexton PM. (2013) Emerging paradigms in GPCR allostery: implications for drug Discovery”. Nature Rev. Drug Discov. 12:630-641. 17