Coração assimétrico

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33 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, sábado, 26 de novembro de 2011
Técnica de induzir um ataque cardíaco para corrigir o crescimento
exagerado de parte do coração é uma alternativa à tradicional cirurgia
Um infarto “corretivo”
Ed Alves/Esp. CB/D.A Press
ofrer um infarto para tratar um problema cardíaco. A ideia, contraditória,
já foi usada em 5 mil pessoas ao redor do mundo. Foi concebida como forma de evitar a
morte súbita entre pacientes com
doenças sérias do coração, como
o consultor de informática João
Pelles Júnior, 45 anos. No início
da década de 1990, João era piloto amador e, ao fazer um exame
de saúde visando profissionalizar-se na área, descobriu que tinha uma doença no coração. Procurou diversos cardiologistas para entender o que havia, até ser
diagnosticado, em meados de
1991. João tinha cardiomiopatia
hipertrófica obstrutiva, doença
genética que atinge 0,2% da população brasileira, faz com que
uma parte do coração cresça mais
do que as outras e pode causar
morte súbita. “Até então, não tinha solução para o meu problema que não envolvesse uma cirurgia, mas, no fim de 1997, meu
médico me contou sobre um procedimento menos invasivo surgido na Alemanha, a ablação septal
transluminal percutânea”, detalha, falando do que é conhecido
atualmente também como “infarto terapêutico”.
O procedimento feito em João
em 1998 foi o primeiro realizado
em Brasília. O médico responsável foi o especialista em cardiologia intervencionista Evandro Cesar Vidal Osterne, cardiologista do Instituto do Coração
(Incor) Taguatinga. Osterne explica que o “infarto terapêutico”
inicialmente se parece com um
cateterismo, em que se insere
um cateter-balão em uma artéria
da pessoa. “O músculo do coração é irrigado pelas artérias coronárias. Um dos ramos dessas artérias, o septal, é responsável por
irrigar essa região hipertrofiada.
Durante o cateterismo, é feito
um teste para saber qual a artéria
causadora da doença que dificulta a passagem do sangue do
ventrículo para a aorta”, descreve.
“Quando identificamos a artéria,
colocamos álcool puro no vaso
sanguíneo por meio do cateterbalão — em um processo que leva de 5 a 15 minutos —, o que provoca um infarto naquela região
S
muscular, aliviando a via de saída de sangue do ventrículo.”
Ele assegura que, quando passa o efeito da anestesia geral, necessária porque a dor que o paciente sentiria seria intensa como
a de um infarto normal, a pessoa
já nota melhoras no próprio organismo. Foi o que aconteceu com
João. “Me senti melhor quase que
imediatamente. Fiquei em recuperação no hospital por dois ou
três dias e, logo em seguida, o fluxo de saída de sangue do coração
já tinha melhorado. Foi um renascimento”, garante o consultor. Osterne ressalta que, após três meses, como não há mais dificuldade para o sangue circular no coração, o músculo atrofiado diminui
notavelmente.
Antes do procedimento, ele
sentia “cansaço extremo”. “Todas
as atividades físicas eram cansativas para mim. Até andar em direção ao carro era uma situação
complexa”, lembra. “Sentia dor
no braço, dor no peito. Não podia
fazer nada que corria o risco de
sofrer uma insuficiência cardíaca.” Até um simples susto podia
se tornar algo perigoso.
“Agora, estou liberado para fazer atividades não aeróbicas, voltei a trabalhar normalmente. Digo
que tenho a síndrome de Forrest
Gump”, brinca, em referência ao
personagem interpretado por
Tom Hanks no filme homônimo.
A comparação, segundo João, se
deve à vontade de fazer dezenas
de atividades ao mesmo tempo.
Atualmente ele usa um marcapasso para evitar arritmias cardíacas.“A ocorrência de distúrbios do
ritmo cardíaco é frequente — afeta entre 10% e 20% das pessoas
que fazem o procedimento — e
recomenda-se que os pacientes fiquem assistidos por um marcapasso provisório por, pelo menos,
48 horas”, conta o coordenador de
registros cardiovasculares da Sociedade Brasileira de Cardiologia
(SBC), Luiz Alberto Mattos, que
também é chefe de pesquisa em
cardiologia invasiva do Instituto
Dante Pazzanese (SP).
Genética
O pequeno aparelho é o único
vestígio da mesma doença que
causou a morte de seu irmão, o
paraquedista José Eduardo, que
Para saber mais
Coração
assimétrico
Maria das Graças, hoje com 63 anos, passou pelo infarto terapêutico em 2003: “Pude voltar a ter uma vida normal”
Edilson Rodrigues/CB/D.A Press
João foi o primeiro paciente do DF a enfrentar o procedimento: sucesso
teve morte súbita em 1991, aos 32
anos. Como é um problema genético, atinge outros familiares. Além
de José, um primo e um tio de João
têm a versão menos agressiva da
cardiomiopatia, que pode ser tratada apenas com medicamentos.
A comerciante Maria das Graças Paula Barroso, 63 anos, descobriu em 2003 que tinha cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva,
o mesmo problema de saúde da
mãe. “Minha mãe tinha essa mesma doença, mas usava um marca-passo e viveu até os 90 anos.
Ela, porém, ficou muito debilitada. Por isso, decidi me cuidar
quando descobri a doença”, conta
Maria das Graças, que enfrentou
o infarto terapêutico no mesmo
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» THAIS DE LUNA
ano em que foi diagnosticada. Até
então, ela andava de bicicleta, dava aulas, corria, cuidava de crianças, passeava por toda a cidade.
Naquele ano, no entanto, começou a sentir mal-estar ao fazer
qualquer atividade. “Quase não
caminhava, não subia escadas,
não andava de ônibus e me sentia
muito cansada quando estava ensinando meus alunos”, recorda.
Ela afirma que, após o “infarto”, não sentiu mais nenhum dos
sintomas que atrapalhavam sua
vida. “Cerca de 30 ou 40 dias depois do procedimento tive alta e
pude voltar a ter uma vida normal. Não sou mais corredora, não
ando mais de bicicleta, mas continuo cuidando da minha casa,
trabalho em uma loja, vou à academia e ao supermercado.”
Segundo Mattos, o método considerado a primeira escolha para
tratar a doença é a cirurgia cardíaca, na qual se retira parte do músculo hipertrofiado. “A miectomia
septal, contudo, é uma cirurgia de
alta mortalidade”, pondera Osterne. O coordenador da SBC, porém,
comenta que os dois tratamentos
apresentam risco de morte semelhante,quevariade0,5%a5%.“Em
uma análise feita em 2010 com
800 pessoas que passaram pela
miectomia ou pela ablação septal,
apesar de o risco de morte ser parecido nos dois métodos, verificou-se que a cirurgia cardíaca
apresenta a vantagem de haver
menor necessidade de implante
de marca-passo definitivo após o
procedimento”, observa Mattos.
“Esse procedimento não é padronizado como um tratamento
ofertado aos clientes do Sistema
Único de Saúde (SUS). Nos relatórios dos clientes SUS (Datasus), somente existe a opção da
correção cirúrgica da doença”,
explica o especialista da SBC. Ele
ressalta que, no Brasil, cerca de
200 pessoas passaram pelo “infarto” desde 1998. Entre janeiro
de 2008 e setembro de 2011, ocorreram apenas 85 procedimentos
do tipo no país, com mortalidade
hospitalar de 7,1%.
O “infarto terapêutico” é
usado somente para tratar a
cardiomiopatia hipertrófica,
doença genética que afeta o
coração e pode causar morte
súbita entre pessoas saudáveis, principalmente em atletas. Foi esse problema de saúde que matou o zagueiro
Paulo Sérgio de Oliveira Silva, o Serginho, do time de futebol São Caetano, em 2004.
O problema causa o crescimento exagerado e não homogêneo de parte do músculo cardíaco. A região afetada,
chamada de septo interventricular, é o músculo que separa as cavidades direita e
esquerda do coração. O coordenador de registros cardiovasculares da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC)
Luiz Alberto Mattos detalha
que a hipertrofia fica localizada onde o sangue arterial é
mandado do coração para
todo o corpo. Com esse problema, ocorre um bloqueio
do envio do sangue.
A doença, em geral, não
apresentas sintomas. “Apenas
em torno de 20% dos pacientes desenvolvem a forma mais
agressiva da cardiomiopatia,
em que eles sentem falta de ar
e cansaço extremo, entre outros sintomas”, explica o cardiologia intervencionista
Evandro Cesar Vidal Osterne.
“A identificação genética dos
portadores é relativamente
simples, sendo feita por um
ecocardiograma.”
www.correiobraziliense.com.br
Leia a íntegra da entrevista com o
coordenador de registros
cardiovasculares da Sociedade Brasileira
de Cardiologia, Luiz Alberto Mattos.
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