CMYK Editora: Ana Paula Macedo [email protected] 3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155 33 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, sábado, 26 de novembro de 2011 Técnica de induzir um ataque cardíaco para corrigir o crescimento exagerado de parte do coração é uma alternativa à tradicional cirurgia Um infarto “corretivo” Ed Alves/Esp. CB/D.A Press ofrer um infarto para tratar um problema cardíaco. A ideia, contraditória, já foi usada em 5 mil pessoas ao redor do mundo. Foi concebida como forma de evitar a morte súbita entre pacientes com doenças sérias do coração, como o consultor de informática João Pelles Júnior, 45 anos. No início da década de 1990, João era piloto amador e, ao fazer um exame de saúde visando profissionalizar-se na área, descobriu que tinha uma doença no coração. Procurou diversos cardiologistas para entender o que havia, até ser diagnosticado, em meados de 1991. João tinha cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva, doença genética que atinge 0,2% da população brasileira, faz com que uma parte do coração cresça mais do que as outras e pode causar morte súbita. “Até então, não tinha solução para o meu problema que não envolvesse uma cirurgia, mas, no fim de 1997, meu médico me contou sobre um procedimento menos invasivo surgido na Alemanha, a ablação septal transluminal percutânea”, detalha, falando do que é conhecido atualmente também como “infarto terapêutico”. O procedimento feito em João em 1998 foi o primeiro realizado em Brasília. O médico responsável foi o especialista em cardiologia intervencionista Evandro Cesar Vidal Osterne, cardiologista do Instituto do Coração (Incor) Taguatinga. Osterne explica que o “infarto terapêutico” inicialmente se parece com um cateterismo, em que se insere um cateter-balão em uma artéria da pessoa. “O músculo do coração é irrigado pelas artérias coronárias. Um dos ramos dessas artérias, o septal, é responsável por irrigar essa região hipertrofiada. Durante o cateterismo, é feito um teste para saber qual a artéria causadora da doença que dificulta a passagem do sangue do ventrículo para a aorta”, descreve. “Quando identificamos a artéria, colocamos álcool puro no vaso sanguíneo por meio do cateterbalão — em um processo que leva de 5 a 15 minutos —, o que provoca um infarto naquela região S muscular, aliviando a via de saída de sangue do ventrículo.” Ele assegura que, quando passa o efeito da anestesia geral, necessária porque a dor que o paciente sentiria seria intensa como a de um infarto normal, a pessoa já nota melhoras no próprio organismo. Foi o que aconteceu com João. “Me senti melhor quase que imediatamente. Fiquei em recuperação no hospital por dois ou três dias e, logo em seguida, o fluxo de saída de sangue do coração já tinha melhorado. Foi um renascimento”, garante o consultor. Osterne ressalta que, após três meses, como não há mais dificuldade para o sangue circular no coração, o músculo atrofiado diminui notavelmente. Antes do procedimento, ele sentia “cansaço extremo”. “Todas as atividades físicas eram cansativas para mim. Até andar em direção ao carro era uma situação complexa”, lembra. “Sentia dor no braço, dor no peito. Não podia fazer nada que corria o risco de sofrer uma insuficiência cardíaca.” Até um simples susto podia se tornar algo perigoso. “Agora, estou liberado para fazer atividades não aeróbicas, voltei a trabalhar normalmente. Digo que tenho a síndrome de Forrest Gump”, brinca, em referência ao personagem interpretado por Tom Hanks no filme homônimo. A comparação, segundo João, se deve à vontade de fazer dezenas de atividades ao mesmo tempo. Atualmente ele usa um marcapasso para evitar arritmias cardíacas.“A ocorrência de distúrbios do ritmo cardíaco é frequente — afeta entre 10% e 20% das pessoas que fazem o procedimento — e recomenda-se que os pacientes fiquem assistidos por um marcapasso provisório por, pelo menos, 48 horas”, conta o coordenador de registros cardiovasculares da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), Luiz Alberto Mattos, que também é chefe de pesquisa em cardiologia invasiva do Instituto Dante Pazzanese (SP). Genética O pequeno aparelho é o único vestígio da mesma doença que causou a morte de seu irmão, o paraquedista José Eduardo, que Para saber mais Coração assimétrico Maria das Graças, hoje com 63 anos, passou pelo infarto terapêutico em 2003: “Pude voltar a ter uma vida normal” Edilson Rodrigues/CB/D.A Press João foi o primeiro paciente do DF a enfrentar o procedimento: sucesso teve morte súbita em 1991, aos 32 anos. Como é um problema genético, atinge outros familiares. Além de José, um primo e um tio de João têm a versão menos agressiva da cardiomiopatia, que pode ser tratada apenas com medicamentos. A comerciante Maria das Graças Paula Barroso, 63 anos, descobriu em 2003 que tinha cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva, o mesmo problema de saúde da mãe. “Minha mãe tinha essa mesma doença, mas usava um marca-passo e viveu até os 90 anos. Ela, porém, ficou muito debilitada. Por isso, decidi me cuidar quando descobri a doença”, conta Maria das Graças, que enfrentou o infarto terapêutico no mesmo CMYK » THAIS DE LUNA ano em que foi diagnosticada. Até então, ela andava de bicicleta, dava aulas, corria, cuidava de crianças, passeava por toda a cidade. Naquele ano, no entanto, começou a sentir mal-estar ao fazer qualquer atividade. “Quase não caminhava, não subia escadas, não andava de ônibus e me sentia muito cansada quando estava ensinando meus alunos”, recorda. Ela afirma que, após o “infarto”, não sentiu mais nenhum dos sintomas que atrapalhavam sua vida. “Cerca de 30 ou 40 dias depois do procedimento tive alta e pude voltar a ter uma vida normal. Não sou mais corredora, não ando mais de bicicleta, mas continuo cuidando da minha casa, trabalho em uma loja, vou à academia e ao supermercado.” Segundo Mattos, o método considerado a primeira escolha para tratar a doença é a cirurgia cardíaca, na qual se retira parte do músculo hipertrofiado. “A miectomia septal, contudo, é uma cirurgia de alta mortalidade”, pondera Osterne. O coordenador da SBC, porém, comenta que os dois tratamentos apresentam risco de morte semelhante,quevariade0,5%a5%.“Em uma análise feita em 2010 com 800 pessoas que passaram pela miectomia ou pela ablação septal, apesar de o risco de morte ser parecido nos dois métodos, verificou-se que a cirurgia cardíaca apresenta a vantagem de haver menor necessidade de implante de marca-passo definitivo após o procedimento”, observa Mattos. “Esse procedimento não é padronizado como um tratamento ofertado aos clientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Nos relatórios dos clientes SUS (Datasus), somente existe a opção da correção cirúrgica da doença”, explica o especialista da SBC. Ele ressalta que, no Brasil, cerca de 200 pessoas passaram pelo “infarto” desde 1998. Entre janeiro de 2008 e setembro de 2011, ocorreram apenas 85 procedimentos do tipo no país, com mortalidade hospitalar de 7,1%. O “infarto terapêutico” é usado somente para tratar a cardiomiopatia hipertrófica, doença genética que afeta o coração e pode causar morte súbita entre pessoas saudáveis, principalmente em atletas. Foi esse problema de saúde que matou o zagueiro Paulo Sérgio de Oliveira Silva, o Serginho, do time de futebol São Caetano, em 2004. O problema causa o crescimento exagerado e não homogêneo de parte do músculo cardíaco. A região afetada, chamada de septo interventricular, é o músculo que separa as cavidades direita e esquerda do coração. O coordenador de registros cardiovasculares da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) Luiz Alberto Mattos detalha que a hipertrofia fica localizada onde o sangue arterial é mandado do coração para todo o corpo. Com esse problema, ocorre um bloqueio do envio do sangue. A doença, em geral, não apresentas sintomas. “Apenas em torno de 20% dos pacientes desenvolvem a forma mais agressiva da cardiomiopatia, em que eles sentem falta de ar e cansaço extremo, entre outros sintomas”, explica o cardiologia intervencionista Evandro Cesar Vidal Osterne. “A identificação genética dos portadores é relativamente simples, sendo feita por um ecocardiograma.” www.correiobraziliense.com.br Leia a íntegra da entrevista com o coordenador de registros cardiovasculares da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Luiz Alberto Mattos.