A propósito do “parecer fundamentado” da Comissão Europeia, no processo de infracção relativamente ao disposto no art. 35.º n.º 2.b) e n.º 4 da Lei nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro A Comissão Europeia, no âmbito do processo por infracção n.º 2008/4424, aberto nos termos do artigo 226.º do Tratado CE, emitiu um “parecer fundamentado” onde se considera que o disposto na alínea b) do n.º 2 e no n.º 4 do artigo 35.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro (que estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas - RVCR), viola as Directivas 2004/17/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004 (relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais), e 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004 (relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços), e os princípios fundamentais do tratamento equitativo, da não-discriminação e da transparência, todos consagrados no Tratado CE. Se o Estado português, no prazo de dois meses, não introduzir as alterações legislativas necessárias ao restabelecimento da relação de conformidade entre o direito interno e o direito europeu, a Comissão Europeia poderá recorrer ao Tribunal de Justiça da União Europeia. Na verdade, na alínea b) do n.º 2 e no n.º 4 do artigo 35.º do RVCR, o legislador português estabelece uma solução normativa que discrimina negativamente as pessoas singulares relativamente às pessoas colectivas no que concerne à celebração de contratos de tarefa e de avença pelos serviços da administração directa e indirecta do Estado e das administrações regionais e autárquicas. Segundo aqueles preceitos, um dos requisitos de admissibilidade da celebração de contratos de tarefa e avença consiste, precisamente, em que o “trabalho seja realizado, em regra, por uma pessoa colectiva”. O requisito apenas é dispensável quando “excepcionalmente (…) se comprove ser impossível ou inconveniente [o seu cumprimento] (…)”, caso em que “(…) o membro do Governo responsável pela área das finanças pode autorizar a celebração de contratos de tarefa e de avença com pessoas singulares”1. Aos órgãos e serviços públicos a que é aplicável o RVCR é, portanto, permitido preferir uma sociedade de advogados em detrimento de um advogado em prática individual (ou de um agrupamento de advogados não colectivamente personalizado), ou escolher uma sociedade de arquitectos em prejuízo de um arquitecto singular, ainda que este se apresente a coordenar uma equipa de colaboradores sem qualquer vínculo societário. Não se sabe se a autoria deste insólito trecho de prosa legislativa é de uma pessoa singular ou de uma pessoa colectiva. O que, com segurança, se pode afirmar é que se trata de uma infeliz singularidade, capaz de concentrar em poucas linhas de texto legislativo, para além da inabilidade terminológica, a violação do direito europeu (originário e derivado), o desrespeito de direitos fundamentais, a infracção de princípios constitucionais e a desarticulação com soluções normativas adoptadas em outros diplomas legais, designadamente o Código dos Contratos Públicos (CCP). A inabilidade terminológica, reveladora do desacerto da ideia subjacente, é óbvia: para além de misturar os conceitos jurídicos de trabalho e de prestação de serviço (confusão reveladora de uma motivação interesseira, como veremos adiante), o legislador chega a falar em “trabalho realizado por uma pessoa colectiva”. É que as pessoas colectivas não trabalham! Quem trabalha são, justamente, as pessoas singulares que servem as pessoas colectivas. A violação do direito europeu é flagrante, não podendo deixar de concordar-se com a posição da Comissão Europeia. Ambas as Directivas invocadas no seu “parecer fundamentado” preceituam, expressa e inequivocamente, que os operadores económicos “não podem ser rejeitados pelo simples facto de, ao abrigo da legislação do EstadoMembro em que se efectua a adjudicação, serem uma pessoa singular ou uma pessoa colectiva”. O que, de resto, não é mais do que a concretização, no domínio da contratação pública, dos princípios fundamentais, de alcance geral, do tratamento equitativo e da não-discriminação. No plano da ordem jurídica interna, salta à vista que a inopinada solução adoptada pelo nosso legislador redunda numa grosseira infracção ao princípio 1 O Despacho n.º 16066, de 12 de Junho, do Secretário de Estado da Administração Pública, veio entretanto concretizar os pressupostos de que depende a autorização excepcional da celebração de contratos de avença e tarefa com pessoas singulares. constitucional da igualdade, na medida em que introduz uma discriminação arbitrária, sem qualquer justificação objectiva e razoável, em detrimento de uma certa categoria de sujeitos de direito. Não menos chocante é também a violação de direitos fundamentais de elevadíssima dignidade jurídico-constitucional. São postos em causa, pelo menos, o direito ao livre exercício da iniciativa privada (art. 61.º da CRP), a liberdade de associação, na sua vertente negativa (art. 46.º/3 da CRP) – na medida em que se faz depender a possibilidade de celebração de contratos de prestação de serviços com entidades públicas da prévia constituição de um sujeito colectivo personalizado –, e o direito à capacidade civil (art. 26.º/1 da CRP). Ofende particularmente a consciência jurídica a violação deste direito fundamental à capacidade civil, que consiste, precisamente, quanto às pessoas singulares, no direito de ser titular, genérica e indiscriminadamente, de quaisquer relações jurídicas, entre elas as que resultam da celebração de contratos. Trata-se, aliás, de uma inversão injustificável de um princípio estruturante do Direito Civil: o princípio segundo o qual a capacidade de gozo das pessoas singulares é genérica e a das pessoas colectivas apenas específica e limitada (limitada às relações jurídicas necessárias e convenientes à realização das suas finalidades estatutárias). O que, por outro lado, corresponde a uma perversão na ordem dos valores: a personalidade colectiva, em vez de ser um mero instrumento jurídico ao serviço da pessoa humana, capaz de potenciar e alargar a sua esfera de acção, transforma-se num obstáculo ao seu livre desenvolvimento. Incompreensível é também a desarticulação (a incompatibilidade) normativa entre o disposto no RVCR e a solução, correcta, adoptada no CCP, sendo certo que este se aplica aos contratos de tarefa e de avença previstos naquele (é o próprio RVCR que remete para o regime da contratação pública). Na realidade, os arts. 52.º e 53.º do CCP, expressamente, incluem no universo dos candidatos e concorrentes admitidos à participação em procedimentos de contratação pública quaisquer operadores económicos, independentemente da sua forma jurídica, designadamente pessoas singulares, pessoas colectivas e agrupamentos (de pessoas singulares ou colectivas) não personalizados. Temos, por conseguinte, uma situação em que aquilo que uma lei permite a outra proíbe. Finalmente, uma palavra sobre os motivos que levaram o legislador, no RVCR, a optar pela censurável discriminação em prejuízo das pessoas singulares. Motivos que, revelando talvez esperteza estratégica no plano do interesse das finanças públicas, não enobrecem o Estado, nem quem o dirige. De facto, o que o legislador pretende é munir-se de um expediente que lhe permita, segundo as suas conveniências, sem grandes complicações e despesas, pôr fim a relações de emprego público duradouro disfarçadas de contratos (ditos) de tarefa e de avença. Como uma pessoa colectiva, enquanto tal, não pode, por natureza, ser um trabalhador, nem um funcionário, não se corre o risco de um (dito) avençado ou tarefeiro vir a “transformar-se” nisso mesmo que, realmente, é: um verdadeiro empregado público. O expediente é engenhoso. Mas, funcionalmente, não difere muito da “técnica do recibo verde”, usada para (tentar) camuflar, sob a aparência de contratos de prestação de serviço, verdadeiros contratos de trabalho. Técnica que, como se sabe, o Estado muito censura aos empregadores privados. Paulo Duarte