CONSULTORIAS TERAPÊUTICAS: CUIDANDO DO PROFISSIONAL Tania Mara Marques Granato55 Tânia Maria José Aiello-Vaisberg56 Tendo sido procuradas por um grupo de psicólogas que trabalhavam no serviço público de saúde mental de nossa cidade, e estavam em busca de assessoria tanto para os problemas que enfrentavam em seu dia-a-dia quanto para a elaboração de novos projetos de trabalho, inauguramos um novo método de trabalho na área da consultoria profissional. Aquele primeiro grupo que se iniciava já apontava para uma nova necessidade, a de um espaço57 diferenciado de uma supervisão clínica ou mesmo de um grupo de estudos, formatos mais usuais do atendimento ao psicólogo, e que também não se poderia confundir com uma psicoterapia em grupo. Confessamos que a situação da psicanalista-coordenadora não era, de início, vivida como confortável, na medida em que as participantes não traziam casos clínicos específicos. Parecia também não caber a discussão de um capítulo de livro ou artigo científico, não havia um tema para apoiar nosso caminhar, já que as dificuldades trazidas pelo grupo apenas começavam a se delinear em uma demanda específica. A cada encontro um novo campo se abria, carregado de possibilidades e ansiedades, exigindo a sustentação (WINNICOTT, 1963) daquilo que ainda estava por vir e, como ainda não sabíamos de quê se tratava, voltamos nossa dedicação à tentativa de permitir que o novo surgisse a partir do estado de não-integração (WINNICOTT, 1971a) em que o grupo parecia se movimentar. Compartilhando os trabalhos que desenvolvíamos em nossa profissão, algo mais era comunicado: os pressupostos teóricos, os recortes metodológicos e as técnicas que modulavam nosso fazer clínico, expressão máxima de uma ética que perpassava cada uma de nós nas aproximações que fazíamos do sofrimento humano - o nosso e o de nossos pacientes. Do acolhimento ao sofrimento daquelas psicólogas que, chamadas a atender necessidades para as quais nossas instituições político-sociais se cegam, trabalhavam em meio às agonias em que a população carente é freqüentemente lançada, privadas de um suporte mínimo em termos de contenção institucional (por exemplo, através de supervisões clínicas), chegamos juntas a uma proposta inovadora pela voz de uma das 55 Doutoranda em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, coordenadora da Criar: Atendimento Psicológico à Gestante e à Mãe do IPUSP e membro efetivo do NEW - Ser e Nucleo de Estudos Winnicottianos de Sao Paulo. Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da USP, coordenadora da Ser e Fazer, orientadora do Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica do IPUSP, orientadora do Programa de Pós Graduação em 56 Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Diretora Presidente do NEW - Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo. 57 Espaço de trabalho criado na “Ser e Criar: Atendimento Psicológico à Gestante e à Mãe” do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, sob minha coordenação, inspirado no estilo clínico “Ser e Fazer” do IPUSP, idealizado e coordenado pela Profa. Livre Docente Tânia Maria José Aiello-Vaisberg, do mesmo Instituto. 81 participantes do grupo. Interessada em oferecer a Oficina da Boneca-flor58 a gestantes adolescentes que estavam sendo acompanhadas em uma das unidades básicas de saúde na periferia de São Paulo, uma das psicólogas manifestou o desejo de aprender a confeccionar a boneca-flor no próprio espaço da Consultoria. Sua necessidade foi acolhida com tranqüilidade pelo grupo, dando origem ao que passamos a chamar Consultorias Terapêuticas, enquadre em que espontaneamente se entrelaçavam as reflexões teóricas, a clínica, a consideração dos limites impostos por toda instituição, o direcionamento ético de nossas intervenções e, para surpresa de todas, a terapêutica pessoal que se insinuava em cada uma das participantes daquele grupo. Quando o manejo de tecidos, tesouras, agulhas, linhas e algodão foi incluído em nosso trabalho, pudemos perceber que um certo clima de formalismo e hesitação que caracterizava aqueles primeiros encontros foi prontamente rompido, dando lugar à relação espontânea que se estabelecia com a costura da boneca e com a coordenadora do grupo, favorecendo uma interlocução mais fluida entre os membros do grupo. Cumpre aqui ressaltar que a boneca-flor jamais foi tomada como talismã ou como qualquer outro objeto mágico desde sua introdução. A “magia”, que se fazia sentir durante nossos primeiros contatos com aquela atividade, parecia se ligar mais ao uso que dela fazíamos e ao cuidado com que eram acolhidos os diferentes estilos de ser e de costurar, constituindo-se ali um ambiente de holding ao profissional, o ingrediente básico daqueles encontros (WINNICOTT, 1945; 1967). As Consultorias adquiriam então as “cores” de suas participantes que se expressavam nos trabalhos que desenvolviam em outros contextos, reformulados ou enriquecidos pelas experiências naquele grupo; na maneira pessoal com que cada uma se lançava à costura da boneca, na escolha de cores, estampas e pétalas, como também pelo ritmo que marcava cada trabalho, ora freneticamente apaixonado, ora preguiçosamente realizado; no diálogo aberto que gradualmente se estabelecia entre os membros do grupo, ainda que isto significasse ficar em silêncio costurando, enquanto as outras conversavam, ou mesmo falar o tempo todo enquanto a própria boneca descansava na sacola. A boneca-flor também ganhava espaços extramuros, construindo um sonho à noite, dividindo um travesseiro, estimulando reflexões sobre a maternidade compartilhadas com o parceiro conjugal, tornando-se presente para bebês que estavam para chegar, fazendo-se encomenda da filha que em casa estava, tornando-se resgate do fazer manual que é expressão do self, ou ainda, tecendo um fim para o fazer compulsivo, que é vazio de ser. Não havia por que estranhar que surgissem sonhos com a boneca que, como objeto de self (SAFRA, 1999), apresentava um aspecto de si a ser cuidado ou quem sabe uma experiência a ser vivida. Outras sonhavam com 58 A Oficina da Boneca-flor foi inicialmente formulada para o atendimento psicológico a adolescentes grávidas, a partir de uma leitura pessoal que temos feito da obra winnicottiana, na Ser e Fazer: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação, o que nos levou ao uso de materialidades mediadoras como facilitadoras da instauração de um campo transicional de trabalho, onde o brincar é tomado como paradigma de uma clínica que busca trabalhar o profundo em campo relaxado ou não-integrado, como é o brincar infantil (WINNICOTT, 1971b). Remetemos o leitor interessado ao texto de Françoise Dolto (1993) que idealizou a Boneca-flor para uso com pacientes, crianças ou adultos, que resistiam à técnica psicanalítica clássica, descobrindo ser esse um meio apropriado para o trabalho com conflitos primitivos que urgiam elaboração. 82 o costurar que espelhava um novo fazer terapêutico, uma outra forma de tecer o encontro terapêutico, alternativo às intervenções pedagógicas ou explicativas (AIELLO-VAISBERG, 2003), envolvendo a reapropriação do ser a partir de um fazer mais autêntico. Havia ainda as que sonhavam com os tecidos, que apontavam para o início amorfo59 que pode caracterizar um novo encontro, quando a espontaneidade é permitida e a criação pessoal é aguardada. Afastando o fantasma da doutrinação as Consultorias se mostraram facilitadoras da experiência de uso (WINNICOTT, 1969) do que estava sendo oferecido em termos de holding, manejo e apresentação de objeto (WINNICOTT, 1962a), vivendo-se o continuum nãointegração/integração ao sabor das necessidades de cada um dos participantes. O holding explicitado na sustentação daquela experiência vivida em grupo era garantido pela presença da psicanalista em termos de sua humanidade, em sua recusa a assumir a posição de expert nos assuntos tratados, o que a teria tornado presa fácil da intelectualização estéril, comprometendo a viva participação daquelas psicólogas. Assim a Consultoria oferecia uma experiência a ser vivida e não algo a ser apreendido formalmente. O manejo, que aqui se confundia com o holding na medida em que estivera sempre a seu serviço, tornava-se diferenciado60 pela acolhida que dava às diferentes maneiras de costurar a boneca, aos sentimentos, às reflexões e às apresentações de alteridade, permitindo que o produto final se construísse de maneira absolutamente singular. Não podemos nos esquecer que o manejo pessoal da psicanalista, em sua ligação especial com a costura, estava também sendo oferecido ao grupo, mais como possibilidade do que imposição de um modelo. O enquadre das Consultorias Terapêuticas parecia agregar um valor psicoterapêutico na medida em que assentava suas bases no pressuposto fundamental da Psicanálise de que todo ato humano guarda um sentido (BLEGER, 1983; POLITZER, 1928), indo ao encontro do que parecia ser a demanda básica daquele grupo. A apresentação dos materiais, feita de maneira livre e desinteressada, propiciava a apropriação daqueles objetos num tempo e num espaço marcados pelo ritmo pessoal de cada participante. Importante é lembrar que, permeando a oferta dos materiais, estará sempre a presença do psicanalista, que apresenta também a si mesmo àquele que está prestes a criar o que necessita (WINNICOTT, 1960). Os objetos que eram apresentados no grupo - os sonhos, os tecidos, as preocupações, o costurar, os projetos, as bonecas, um conto, uma reportagem, uma colcha, uma almofada, o relato de um pedaço de sessão, uma história da própria vida, um objeto trazido de casa, uma palavra oferecida à colega - rapidamente deixaram de ser privilégio da psicanalistacoordenadora, reivindicando sua autoria de quaisquer das participantes do grupo. Não quero dizer com isso que o grupo tenha se tornado promíscuo ou Área da amorfia ou formlessness (WINNICOTT, 1971a; 1971c): estado de não-integração que precede as primeiras integrações do indivíduo e volta a estar presente no brincar, em momentos de relaxamento do adulto e nas demandas de pacientes para que tal experiência seja vivida na análise. Para que o self possa se constituir a partir da não-integração é preciso que o ambiente sustente tal estado no tempo, o que é garantido pela não-imposição de uma ordem ou modelo que visa mais aplacar a angústia, seja ela da mãe, do psicanalista ou do ambiente social. Se ao bebê, à criança ou ao paciente é permitida a experimentação de mundos sem-sentido, ou não-organizados, por um ambiente que dessa forma se torna confiável, poderemos testemunhar o nascimento de uma organização que é eminentemente pessoal e singular, que é fruto da criatividade e não de submissão. 60 Queremos dizer diferenciado de outras práticas tais como a terapia ocupacional, ou ainda das abordagens pedagógicas como os cursos e oficinas de artesanato. 59 83 invasivo, à semelhança dos grupos catárticos, mas que a independência já acenava com a possibilidade de que cada uma trouxesse suas próprias contribuições, rumando pouco a pouco para a finalização daquele processo que curiosamente terminava com uma questão acerca da prática do psicólogo: “É possível a conciliação, em meu fazer clínico, entre aquilo que emana de mim e as limitações que encontro no mundo?” Questionamento que nos leva ao encontro da proposição winnicottiana acerca da postura psicanalítica que, mais do que um setting de trabalho, organiza sua própria concepção de saúde mental: “Objetivo ser eu mesmo e me portar bem.” (WINNICOTT, 1962b, p. 152). Outros grupos se sucederam, imprimindo às Consultorias a marca de sua pessoalidade que configurava ora um clima intimista, em que segredos eram ou revelados, ou bem-guardados em um ambiente de confiabilidade, ora um espaço lúdico, quando realmente nos divertíamos, mas também havia momentos em que o trágico se interpunha solicitando nossa contenção, ou ainda o absurdo que pedia sentido. De estados mais tranqüilos a outros mais agitados seguíamos o ritmo dos participantes, porém sem perder o tom que acabava sendo dado pela presença da psicanalista, presença marcada por suas crenças, por sua história, por seus relacionamentos com o mundo, por sua preocupação ética, por seu cuidar e pelo impulso criativo que busca encontrar um lugar para ser. Ficamos intrigadas ao notar que assim que terminávamos o trabalho manual que dava sustentação (holding) às nossas conversas nas Consultorias, surgia uma nova proposta, na verdade um novo objeto, ao passo que o trabalhar com tecidos, lãs, linhas e agulhas se mantinha. Continuávamos a nos movimentar nos mundos que o costurar nos abria em suas possibilidades quase infinitas, na exata medida do impulso criativo que compartilhávamos, umas mais outras menos, mas a todas contagiando. Surpreendemo-nos com tanta disposição que fazia contraste com o temor da coordenadora de que estivesse a cansá-las com a repetição da mesma atividade. Mais que uma atividade ou uma brincadeira, o que ali parecia ter lugar era da ordem do brincar winnicottiano (WINNICOTT, 1971b), do diálogo que se estabelece entre o eu e o outro sobre uma base de segurança, de um “fazer-de-conta” que trata de uma coisa muito séria, do ambiente relaxado que permite o experimentar-se, promovendo integrações. Walter Benjamin (1928), tecendo suas idéias sobre o brinquedo, fez referência à apropriação pessoal que a criança faz do mundo adulto, aceitando-o ou rejeitando-o, porém sendo sempre confrontada pela apresentação que o adulto faz de seu próprio mundo. Também ele nos disse que no jogo, que se repete centenas de vezes, encontraríamos as raízes de nossos hábitos, calcados não num “fazer-de-conta-que, mas um fazer-semprede-novo, a transformação da experiência comovente em hábito, esta é a essência do jogo.” (BENJAMIN, 1928, p. 176). Se para Benjamin o adulto introduz o mundo à criança sempre de modo intrusivo, ensejando inevitavelmente uma reação infantil seja esta submissa ou rebelde, para Winnicott a apresentação de objeto feita pelo adulto guarda a possibilidade de ir ao encontro de uma necessidade da criança, situação que favoreceria uma apropriação criativa, no lugar da reação à invasão. E se, segundo Benjamin o jogo busca perpetuar as 84 experiências emocionais que nos marcaram, numa concepção aproximada do conceito freudiano de “compulsão à repetição”; em Winnicott teríamos ainda a possibilidade de repetição daquilo que nunca se deu, ou seja, a oportunidade de que algo seja vivido pela primeira vez, alçando-nos para além da mera repetição. Sabemos que à primeira vista não parece possível nem conveniente uma aproximação entre Benjamin e Winnicott, mas se tomarmos algumas de suas diferenças como apenas uma questão de estilo, sendo este último mais acolhedor enquanto aquele seria mais contestador, ambos nos parecem denunciar a delicadeza do processo criativo e a indissociação básica que existe entre aquele que cria e o ambiente que se oferece para sua criação, advertindo nosso olhar para o mundo que sustenta o indivíduo. Reação ou apropriação, repetição ou inauguração, Benjamin e Winnicott nos levam a experiências diferentes dentro de um mesmo continuum, aquele que se dá no campo da inter-humanidade, na comunicação do que é humano, na presença ou ausência da ética que garante a continuidade do ser, o surgimento da alteridade e as expressões de autenticidade. Mais para frente Benjamin (1936) nos brindaria com “O Narrador”, reinserindo-nos no espaço e tempo humanos através das mãos do artesão e da voz do narrador. Já para Winnicott iniciaríamos nossa humanidade pelos cuidados da mãe que se dedica (WINNICOTT, 1956) ao seu bebê. Estariam nossas psicólogas em busca de algo que se perdeu durante o exercício profissional? Ou pretendiam elas reinventar-se como profissionais? Não sabemos se temos aqui uma resposta, mas constatamos que, pelo tempo que as Consultorias prosseguissem, aquela espécie de brincar precisaria nos acompanhar, e que interromper esse processo seria como roubar do grupo seu potencial criativo. Façamo-nos ainda uma última pergunta: Para quê estaria lá o psicanalista? Para também brincar ou para cuidar do grupo? Talvez ele lá estivesse para cuidar e brincar ou, mais rigorosamente falando, cuidando para que o outro possa brincar. Referências Bibliográficas AIELLO-VAISBERG, Sentido e Direção: A Clínica como Prática Transformadora. In: JORNADA APOIAR: PROPOSTAS DE ATENDIMENTO, 1., 2003, São Paulo. Anais da Jornada Apoiar: Propostas de Atendimento. São Paulo, IPUSP, 2003. p. 11-15. BENJAMIN, W. (1928) O Brinquedo e o Jogo. In: ______Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Tradução de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’Água, 1992. p.171-176. BENJAMIN, W. (1936) O Narrador: Reflexões sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Tradução de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’Água, 1992. p.27-57. BLEGER, J. (1983). Psicologia da Conduta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 244p. DOLTO, F. Cura psicanalítica com a ajuda da boneca-flor. In: No Jogo do Desejo. Tradução de Albertine Santos. Lisboa: Relógio D’Água, p.133-189, 1993. POLITZER, G. (1928). Crítica dos Fundamentos da Psicologia. v.1, 2. ed. Tradução de Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Lisboa, Editorial Presença, 1975. 191p. SAFRA, G. A Face Estética do Self: teoria e clínica. São Paulo, Unimarco, 1999. 164p. WINNICOTT, D.W. (1945) Primitive Emotional Development. In: ______Through Paediatrics to Psycho-Analysis: Collected Papers. Levittown: Brunner & Mazel, 1992. p.145-156. 85 ______ (1956) Preocupação Materna Primária. In: ______Textos Selecionados: Da Pediatria à Psicanálise. 3. ed. 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Acolhendo a já pressentida necessidade daqueles profissionais por um enquadre e manejo diferenciados em relação ao que usualmente encontravam nos grupos de estudos, cursos ou supervisões. Deparamo-nos, então, com o mundo da costura como espaço transicional que potencializava novas integrações, desde nosso primeiro encontro com a Boneca-flor. Palavras-chave psicanálise - clínica winnicottiana - boneca-flor - enquadres diferenciados consultoria psicoterapêutica - estilo clínico ser e fazer THERAPEUTIC CONSULTANCIES: TAKING CARE OF PROFESSIONALS Abstract Despite a group of psychologists having made a demand for consultancies, the psychoanalyst-coordinator refused to be considered an expert. She preferred tuning her psychoanalytical sensibility to hold those first non-integration moments. That group seemed to look for an alternative setting to clinical supervisions, courses or personal psychoanalysis and during this search we found out the “sewing world” as the transitional space that would facilitate new integrations. Since we have met the flower-doll we noticed the therapeutic potential of that specific “handling” which was based on the “holding” offered by the psychoanalyst. Key-words psychoanalysis - winnicottian clinic - flower-doll - alternative frames psychotherapeutic consultancy - being and doing clinical style 86 O TRABALHO DE LUTO À LUZ DOS FENÔMENOS TRANSICIONAIS61 Karina Codeço Barone62 Introdução O presente texto tem como objetivo examinar a contribuição da teoria de Winnicott sobre a transicionalidade para a compreensão do fenômeno do luto. Esta teoria, ao apresentar uma nova maneira de compreender tanto a criatividade, quanto o contato com a realidade oferece uma contribuição para pensar o trabalho do luto, como pretendemos discutir neste artigo. Com a teoria dos objetos e fenômenos transicionais, Winnicott (1971a) desafia a manutenção ininterrupta do teste de realidade ao propor a participação de um elemento de ilusão, sem que, com isso, o contato com a realidade tenha sido inteiramente comprometido. É importante ressaltar que para Freud (1917) o teste da realidade constitui um importante elemento do trabalho do luto. Em Luto e Melancolia, Freud postula que, por intermédio do teste de realidade, há o reconhecimento de que o objeto amado não existe mais e, portanto, surge a exigência de que a libido seja retirada para ser, posteriormente, investida em novos objetos. Contudo, renunciar a um objeto não é uma tarefa realizada facilmente. Freud (1929) reconhece a dificuldade desta tarefa em uma carta, endereçada a Binswanger por ocasião da morte de seu filho, na qual Freud relembra a perda de sua própria filha. Embora nós saibamos que depois de uma perda como essa o estado agudo de luto chegará ao fim, nós também sabemos que permaneceremos inconsoláveis e nunca encontraremos um substituto. Não importa o que venha a preencher o vazio, mesmo que o complete inteiramente, isto de toda forma permanecerá outra coisa. E realmente é assim que deveria ser. Esta é a única forma de perpetuar aquele amor de que não desejamos abrir mão. (Freud, 1929, p.70) Na tentativa de negar a perda do objeto, o sujeito pode afastar-se da realidade e manter uma crença delirante de que o objeto ainda existe (Freud, 1917). Contudo, ao longo do trabalho do luto, Freud postula que o respeito pela realidade passa a ser predominante. Este trabalho é baseado em um capítulo da nossa dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Nelson Ernesto Coelho Jr. 62 Psicóloga Clínica, Mestre e Doutoranda em Psicologia pelo Depto. de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP, Mestre em Estudos Psicanalíticos pela Tavistock and Portman Clinic & University of East London. 61 87 Do ponto de vista de Winnicott, as perdas primitivas - como a perda da intimidade do corpo materno - devem ser elaboradas por intermédio dos fenômenos transicionais, com o objetivo de reconstituir um espaço de existência concomitante entre união e separação. Winnicott (1971c) afirma que o espaço relativo aos fenômenos transicionais é o espaço no qual a separação não é uma separação, mas sim uma forma de união. O modelo presente na teoria dos objetos e fenômenos transicionais poderia funcionar como outra articulação teórica ao trabalho do luto. Levando em consideração as idéias apresentadas por Winnicott com o desenvolvimento de sua teoria a respeito dos Objetos e Fenômenos Transicionais, o trabalho do luto teria como objetivo, por um lado, garantir a manutenção de uma lembrança viva de quem partiu - evitando, contudo, apelar para um estado alucinatório que faria acreditar que a separação não se deu - e, por outro, evitar abandonar-se num estado de desamparo – o qual, fiel apenas ao princípio da realidade freudiano, só registraria o espaço esvaziado. A experiência de ilusão possibilitaria encontrar uma síntese da memória com o ambiente. Ao lado disso, nossa discussão baseia-se na teoria sobre o desenvolvimento emocional primitivo (Winnicott, 1945), que capacita a criança a desenvolver uma habilidade de lidar com perda. Essa capacidade origina-se do modo como a criança elabora a separação da mãe, no início da vida, e desenvolve um sentido de vitalidade e autenticidade com seu próprio self, além de estabelecer uma ancoragem saudável na realidade. Com uma teoria a respeito do desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott (1964) percebe que o que está em jogo, do ponto de vista do bebê, é uma tentativa de lidar com perda e luto, trazidos por um maior grau de separação da mãe. Reconhecemos neste ponto a influência do pensamento de Klein a respeito da posição depressiva, que descreve o tipo predominante de angústia característica deste momento de desenvolvimento, originada de um estado de maior integração presente no bebê. A adaptação adequada da mãe às necessidades do bebê possibilita ao bebê gozar de um estado designado por Winnicott (1963) como “going on being [continuando a ser]” (WINNICOTT, 1963, p. 183). Um estado no qual não ocorram interrupções significativas na continuidade de existência do self do bebê. Falhas ambientais ocorridas durante este período precoce do desenvolvimento não levarão à frustração, mas sim a rupturas na continuidade de existência do self. Isso porque, segundo Winnicott, no início da vida, não se trata de satisfazer os impulsos do bebê, mas sim atender às suas necessidades. Como conseqüência deste período inicial de absoluta dependência, o bebê não precisa reconhecer a mãe e nem tampouco reconhecer a si mesmo. Esta concepção é absolutamente fundamental para compreender que a maneira como a perda do objeto é experimentado pelo bebê é estreitamente relacionada com o estágio de desenvolvimento em que ele se encontra no processo da absoluta dependência rumo à independência. Entendemos que a maneira como o indivíduo poderá lidar com a perda do objeto, através de um processo de luto saudável ou tomado por uma resposta melancólica, parece estar relacionada com esta fase do desenvolvimento. Esta afirmação relaciona-se com a compreensão de Freud 88 (1917) de que, na melancolia, trata-se de uma perda de algo mais ideal. A perda do objeto tem, neste caso, conseqüências mais graves para o indivíduo. Outra importante referência ao fenômeno do trabalho do luto encontra-se no livro Natureza Humana, no qual Winnicott (1988) afirma que o conhecimento a respeito do desenvolvimento emocional primitivo é de grande importância a pais e educadores de crianças de todas as idades. Contudo, Winnicott acredita que este conhecimento é ainda mais fundamental àqueles que se dedicam ao cuidado de crianças que estão na fase de serem desmamadas, ou seja, àqueles que cuidam de crianças que estão começando a tornar-se aptas para “lidar com perda sem quase perder (em um sentido apenas) o que é perdido” (WINNICOTT, 1988, p. 34-5, grifos nossos). Esta frase de Winnicott nos dá uma importante indicação de como ele compreende o processo de elaboração da perda, na medida em que aponta para uma possibilidade de manutenção do que foi perdido sem que seja preciso apelar à negação. A expressão “em um sentido apenas” aponta para o fato de Winnicott não estar se referindo à idéia de se manter o que foi perdido de maneira delirante ou mesmo fetichista. Caso algum dos dois fenômenos passem a dominar a cena, não estamos diante do fenômeno transicional63. Ainda em Natureza Humana, Winnicott nomeia o terceiro fenômeno do processo maturacional como “contato com a realidade por intermédio de ilusão” (WINNICOTT, 1988, p. 34). Este processo havia sido nomeado por Winnicott (1945) como realização e constituía um dos principais fenômenos do processo maturacional do indivíduo, qual seja o processo que permite a aceitação e o reconhecimento das propriedades da realidade. Esta idéia de Winnicott é fundamental para entender a importância dos Fenômenos Transicionais para a compreensão do luto, na medida em que ela contempla uma possibilidade de lidar com perda sem quase perder o que é perdido. Com o desenvolvimento do conceito de transicionalidade, Winnicott avança no estudo da maneira pela qual o bebê pode lidar com a ansiedade depressiva e elaborar um estado primitivo de luto. Encontramos no texto Objetos e Fenômenos Transicionais mais uma importante referência para discutir a função do objeto transicional em relação à ameaça de uma angústia depressiva ou à privação quando o Winnicott (1971a) afirma: “A necessidade de um objeto específico ou padrão de comportamento que tem início em um período bastante primitivo pode reaparecer em uma idade tardia quando privação ameaçar” (WINNICOTT,1971a, p. 4). Contudo, Winnicott enfatiza que devemos levar em consideração a maneira como o bebê metaboliza as experiências de perda, dado que a separação pode afetar os fenômenos transicionais. Levando em consideração as idéias apresentadas por Ogden (1993), entendemos que o trabalho do luto exige o estabelecimento de uma processo dialético na relação entre realidade e fantasia. Para discutir essa questão, referimo-nos às idéias apresentadas por Ogden sobre as possíveis patologias relativas ao espaço potencial. Ogden reconhece que a falência cumulativa da função materna pode vir a gerar uma quebra prematura da unidade mãe63 A complexa organização do fetichismo pode relacionar-se à teoria sobre a patologia dos objetos transicionais. 89 bebê. Quando isso acontece, de acordo com Ogden, patologias relativas ao espaço potencial podem ocorrer, gerando diversas modalidades de falência da possibilidade de criar ou sustentar processos psicológicos dialéticos. Em todas essas modalidades, está ausente a possibilidade de manutenção da sobreposição entre realidade e fantasia. Ogden afirma que a percepção prematura e, portanto, traumática pelo bebê de sua condição de separado da mãe constitui uma experiência insuportável, levando à instalação de defesas rígidas. Estas defesas levam à interrupção da atribuição de sentidos à percepção e, portanto, a própria experiência do bebê torna-se impedida64. Esta situação tem conseqüências bastante graves para o desenvolvimento do processo maturacional. Neste caso, não se trata apenas de um processo que prejudica o desenvolvimento da fantasia ou a apreciação da realidade. Na verdade, nenhuma das duas [fantasia e apreciação da realidade] chega a ser estabelecida porque há o impedimento do próprio sentido de experiência. O trabalho do luto seria justamente a manutenção do processo dialético entre realidade e fantasia, necessária ao bebê para lidar com a separação da mãe e manter a vitalidade do self, como também indispensável para que a perda do objeto não se transforme em uma resposta melancólica. Outro aspecto em relação ao trabalho do luto que pode ser discutido à luz da teoria dos objetos e fenômenos transicionais diz respeito à relação entre o trabalho do luto e criatividade, como será discutido a seguir. Luto e criatividade Várias teorias psicanalíticas já haviam demonstrado como a criatividade pode estar relacionada à elaboração da perda, (Freud 1917; Klein, 1937, 1940; Segal, 1955; Ogden, 2000). Freud (1920) foi pioneiro em chamar a atenção para as motivações que sustentam a brincadeira da criança. Freud reconhece que o aspecto econômico relacionado ao brincar da criança ainda não havia sido estudado satisfatoriamente pela psicanálise. Para tanto, Freud descreve a brincadeira do “fort-da”, e demonstra como, do ponto de vista econômico, a brincadeira de seu neto pode ser compreendida como uma tentativa da criança tornar-se ativa com relação a uma experiência que havia sofrido passivamente. Assim, a criança, com a sua brincadeira, esforça-se por elaborar a ausência da mãe. Freud reconhece que a repetição da experiência traumática da ausência materna, assim como os sonhos dos neuróticos de guerra, não poderiam apoiar-se na teoria pulsional até então desenvolvida. Este fato levou Freud a reformular sua teoria pulsional e elaborar o conceito de pulsão de morte. O tema da brincadeira é extensivamente investigado por Winnicott. Diferentemente de Freud (1920), Winnicott (1971d) não reconhece como fundamental a existência de um aspecto econômico associado à brincadeira, ao menos no que se refere à brincadeira saudável. Segundo Winnicott, se a 64 Ao referir-se à conseqüência para o bebê da súbita percepção da sua condição de separado de sua mãe, Ogden (1993) utiliza a expressão em inglês “Experience is foreclosed” (Ogden, 1993, p. 230). O termo “foreclosed” tem o sentido de impedir que alguma coisa seja considerada como uma possibilidade no futuro. (Foreclose. In: Cambridge International Dictionary of English. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 549). 90 excitação pulsional tornar-se evidente durante o momento em que a criança brinca, isto poderá levar à interrupção do brincar. A investigação de Winnicott não se limita à observação do brincar da criança, já que ele caracteriza este fenômeno como sendo a própria condição do homem saudável. Winnicott (1971d) designa o brincar como fundamental à maturidade e ao espaço terapêutico. Winnicott afirma que a função do analista é desenvolver no paciente a capacidade de brincar, ou seja, uma capacidade para criar e habitar o espaço do sonho. Winnicott (1971b) afirma que a criatividade é a base do viver saudável, e que é esta condição que faz com que a vida valha a pena. A possibilidade de viver criativamente é relacionada à qualidade da provisão ambiental recebida no início da vida. Com base na teoria de Winnicott sobre a criatividade, é possível pensar o trabalho do luto como estando vinculado à possibilidade de realizar um ato criativo, com o objetivo de reinstalar a idéia de que a vida vale a pena. A possibilidade de elaboração da perda por intermédio de um ato criativo constitui um importante campo de pesquisa para a teoria kleiniana (Klein, 1940; Segal, 1955). O processo criativo, após uma experiência de perda, aparece como uma forma de reparação, tanto do mundo interno, quanto dos objetos. Klein (1940) reconhece, ainda, que a elaboração da experiência de perda pode levar a mudanças psicológicas importantes. Estas mudanças são relacionadas à elaboração da angústia depressiva no início da vida, a qual possibilita um maior grau de integração e maturidade emocional. Esta experiência é revivida no momento de uma experiência de perda. A elaboração da perda pode estimular a capacidade criativa, decorrente da necessidade de reparar o ego e o objeto. Ogden (2000) introduz uma nova compreensão para a relação entre o trabalho do luto e a criatividade, ao afirmar que este processo não envolve apenas um trabalho psicológico de reparação. De acordo com Ogden: (…) luto (...) é um processo que envolve fundamentalmente a experiência de fazer alguma coisa, criar alguma coisa adequada à experiência de perda. O que é “feito” e a experiência de fazê-lo (...) representam o esforço do indivíduo de encontrar, de se igualar, de fazer justiça à totalidade e à complexidade da sua relação com o que foi perdido e com a própria experiência de perda. (OGDEN, 2000, p. 117-8) O ponto de vista apresentado por Ogden difere da compreensão clássica kleiniana a respeito da criatividade constituir-se em termos da reparação do mundo interno, sem que seja necessária a exteriorização da capacidade criativa. Ogden, contudo, não nega a existência de uma mudança psicológica. Porém, ao enfatizar a importância de que algo seja exteriorizado, Ogden parece apoiar-se em uma concepção de criatividade e do trabalho do luto que conduzam o indivíduo novamente a ancorar-se de maneira saudável na realidade. Este ponto de vista aproxima-se das idéias de Winnicott a respeito do brincar e da criatividade como sempre 91 relacionadas a uma ancoragem do indivíduo na realidade. Dado que ambas atividades, com base nos fenômenos transicionais, passam pela aceitação e transformação da realidade repudiada, sem que seja preciso o constrangimento das potencialidades do self. Outra contribuição da teoria dos objetos transicionais para pensar os fenômenos do luto relaciona-se com a maneira pela qual a transicionalidade interfere nas experiências dos sentidos de tempo. Esta questão pode ser explorada à luz das considerações de Safra (1999) a respeito da possibilidade do self expressar-se de acordo com diferentes sentidos de tempo. A possibilidade de experimentar o tempo a partir de diferentes modalidades constitui uma importante aquisição para o indivíduo e relaciona-se à saúde psíquica. De acordo com Safra, o tempo convencional, medido por calendários e relógios, é apenas uma das múltiplas faces do modo como o homem experimenta o tempo. Esta capacidade de orientar-se de acordo com o tempo socialmente convencionado constitui um avanço na história maturacional do sujeito, dado que é o momento em que o funcionamento psíquico deixa de sujeitar-se exclusivamente aos processos primários e submete-se à égide dos processos secundários. Além do tempo convencionado socialmente, Safra postula a existência de diferentes experiências de tempo, fundamentais à plena realização do self. Safra apresenta quatro modalidades de constituição da experiência de tempo: tempo subjetivo; tempo compartilhado; tempo transicional; e tempo das potencialidades. Safra afirma que a singularidade do bebê é expressa, no início, pelo seu ritmo peculiar. A maneira como a mãe acolhe o ritmo singular do bebê permite que um primeiro núcleo de integração sensorial que irá compor o self do bebê floresça, levando-o à constituição do tempo subjetivo. Este núcleo é enriquecido, paulatinamente, por elementos próprios às experiências sensoriais vivenciadas pelo bebê, tais como, sons, cheiros e gostos. O tempo compartilhado, de acordo com Safra, é uma conquista da crescente maturidade da criança que, tendo um self suficientemente integrado, pode reconhecer os limites de seu próprio eu e, conseqüentemente, as fronteiras relativas ao outro (não-eu). Este reconhecimento é fundamental para o estabelecimento de uma nova relação com a realidade compartilhada que inaugura uma nova forma de experiência de tempo: o tempo compartilhado. Safra sintetiza o tempo transicional como sendo o tempo do faz-deconta. A partir da entrada no tempo compartilhado, sustentada pela constituição segura do tempo subjetivo, a criança passa a poder movimentar-se entre os tempos subjetivo e compartilhado sem o risco de perder seu senso de continuidade. A característica principal da experiência do tempo transicional, aponta Safra, é a possibilidade desta movimentação entre dois tempos. É essencial que a criança não fique enredada para sempre no seu mundo de faz-de-conta, mas que tampouco fique restringida à realidade compartilhada. De acordo com Safra, o tempo das potencialidades, tendo em vista que o self está em um constante processo de mudança, compreende o que ainda 92 está por vir, “em termos das possibilidades, recursos e anseios do self” (SAFRA, 1999, p. 63). Ainda segundo Safra, a possibilidade de deslizar por diferentes experiências de tempo enriquecem o self. Conseqüentemente, fraturas no self podem manifestar-se em diversos distúrbios relativos às modalidades de constituição de tempo. Entendemos que a constituição do tempo transicional é de fundamental importância para o trabalho do luto, na medida em que é possível manter uma síntese entre a fantasia (ou a memória do que foi perdido) e a realidade. Isso porque, dada a manifestação do fenômeno transicional, o sujeito não se aliena nem na alucinação, nem tampouco na realidade esvaziada. Além disso, julgamos que a possibilidade de deslizar por diferentes sentidos de tempo pode proporcionar a reinstalação da esperança após a experiência de perda, dada a constituição do tempo das potencialidades. Considerações finais Lidar com a perda do objeto e constituir um espaço de viver criativo constituem duas tarefas fundamentais impostas ao bebê no início da vida, as quais exigem uma provisão ambiental adequada para serem realizadas satisfatoriamente. Uma das primeiras coisas que o bebê tenderá a tentar controlar do ambiente diz respeito à ausência da mãe. Assim, com o brincar, o bebê tenta fazer algo em relação a esta ausência. Do ponto de vista de Winnicott (1971d), é preciso que alguma atividade surja no repertório de experiências do bebê, que o capacite na elaboração desta ausência. Contudo, isto não significa apenas que o bebê repita de forma ativa em sua brincadeira uma experiência que sofreu passivamente. Winnicott (1971d) afirma que o desenvolvimento do brincar ocorre no espaço potencial entre a mãe e o bebê. Nesse sentido, o brincar é fundamental para a aceitação da realidade compartilhada, na medida em que, para Winnicott, o brincar não se dá em uma área interna, como tampouco se localiza na área externa ao controle onipotente do bebê. Ao lado disso, entendemos que Winnicott, por ter uma teoria original sobre o desenvolvimento emocional primitivo e criatividade, em virtude de sua teoria da transicionalidade, pode também contribuir para pensar o obscuro trabalho do luto. De uma perspectiva winnicottiana, a elaboração da perda da mãe passa pelo desenvolvimento do espaço do sonho, para que neste espaço seja possível reencontrar, em um certo sentido, o que foi perdido. Assim, o brincar configura uma forma saudável e criativa de aceitação da realidade que passa pela elaboração da perda da mãe. Em relação a este tema, Winnicott mais uma vez enfatiza a importância do gesto (e, portanto, que algo do mundo da fantasia encontre expressão na realidade) para a constituição do indivíduo, ao afirmar que: “para controlar o que está situado externamente é preciso fazer coisas, não apenas pensar ou desejar, e fazer algo leva tempo. Brincar é fazer” (WINNICOTT, 1971d, p. 41). 93 É possível pensar que Winnicott reconhece que existe uma troca valiosa em jogo, como Freud (1905, 1924) havia demonstrado com o Complexo de Édipo, em que o indivíduo que renuncia ao objeto incestuoso pode beneficiar-se das riquezas da sublimação. O bebê, ao abrir mão do controle onipotente do objeto e reconhecer a realidade repudiada, tem uma possibilidade de debruçar-se criativamente sobre a realidade. Esta possibilidade carrega em si um sentido de vitalidade, na medida em que a perda pôde ser elaborada por intermédio do desenvolvimento dos fenômenos transicionais. Freud (1911) afirma que a experiência de satisfação alucinatória do desejo, própria do Princípio de Prazer, sofre uma redução significativa a partir do contato com os limites da realidade. Este momento significa um importante passo do desenvolvimento do indivíduo, pois conduz a uma apreciação mais adequada da realidade e a um novo funcionamento psíquico (Princípio de Realidade). Por outro lado, Freud não deixa de reconhecer a relevância da experiência de satisfação alucinatória nos primórdios da formação do aparelho psíquico. Winnicott (1945, 1971a) reconhece a existência de um fenômeno semelhante ao que Freud descreveu ao apresentar a modalidade de relação que se instala entre o bebê e o ambiente. Porém, Winnicott, ao invés de enfatizar a existência de um cerceamento da criatividade primária do bebê no contato com a realidade, postula, justamente, que este contato pode enriquecer esta capacidade. Winnicott fez-nos reconhecer que uma possibilidade, alheia ao campo da psicopatologia, é a de que o bebê, ao entrar em contato com a realidade, não questione a validade de sua alucinação (criatividade primária). Winnicott entende que, ao encontrar o seio no momento e lugar em que está em ação a alucinação do bebê, este acreditará que se trata do seio que alucinou, e que, portanto, existe algo no mundo que corresponde à sua alucinação. Este fenômeno, ressalta Winnicott, só é possível graças à adaptação suficientemente boa do ambiente às necessidades do bebê. Assim, a provisão adequada oferecida pelo ambiente reforça e enriquece a experiência de ilusão, na medida em que o bebê winnicottiano acreditará que existe algo na realidade que corresponde à sua capacidade de criar. No nosso entendimento, ao enfatizar que o bebê se mantém crédulo em relação à sua capacidade de criar durante o contato com a realidade, Winnicott (1945) está postulando não apenas uma nova forma de relação entre o indivíduo e a realidade, mas também uma maneira pela qual o indivíduo constrói um sentido de enriquecimento interno de seu próprio self a partir do contato com a realidade. Este sentido, no nosso ponto de vista, relaciona-se à criatividade e à auto-estima. A maneira como a teoria apresentada por Winnicott modifica a nossa compreensão sobre a criatividade é reconhecida no meio psicanalítico. A queixa melancólica de esvaziamento e as constantes auto-recriminações parecem apontar para distúrbios no desenvolvimento desta capacidade durante o processo maturacional. É importante ressaltar que, antes do desenvolvimento proposto por Winnicott, através de suas teorias a respeito da experiência de ilusão e da 94 transicionalidade, enfatizava-se apenas os aspectos limitadores advindos do contato com a realidade. Tudo Começa na Clínica O interesse pelo tema deste trabalho foi despertado a partir da nossa experiência no atendimento psicoterapêutico a crianças gravemente enfermas, portadoras de doenças, como câncer, fibrose cística ou vítimas de severo trauma. A intervenção consistia em oferecer suporte psicoterapêutico a tais crianças, assim como a seus familiares, durante o período em que elas permaneciam internadas em uma enfermaria pediátrica, para condução de intervenções médicas de alto risco. No atendimento psicoterapêutico a crianças gravemente enfermas, nos deparamos com a demanda específica desses pacientes e sentimos a necessidade de buscar sustentação em uma teoria que, ao mesmo tempo, levasse em conta os efeitos traumatogênicos de condições adversas da realidade e não perdesse de vista a maneira pela qual o psiquismo pode elaborar as experiências de perda e alcançar crescimento emocional. Julgamos ter encontrado na obra de Winnicott uma sustentação teórica para esta prática clínica, uma vez que Winnicott, sem negar o desenvolvimento da capacidade de reconhecimento da realidade, propõe uma interpretação deste fenômeno que visa a não extinguir a capacidade criativa do self na percepção e contato com a realidade. Auxiliar o paciente a adaptar-se à sua nova realidade constituía um objetivo fundamental da nossa prática clínica, posto ser esta condição sine qua non da adesão ao tratamento e, portanto, de possibilidade da cura. Sabemos que se a dura realidade não é reconhecida, a adesão ao tratamento fica comprometida. É por intermédio de uma apreciação adequada da realidade65 que se torna possível garantir a adesão ao tratamento, uma vez que o paciente e sua família reconhecem sua necessidade. Assim, os relatos de intervenção psicoterapêutica a pacientes pediátricos, tais como Winnicott descreve ao longo de sua obra, serviram como fonte de inspiração à nossa prática clínica, dado que, em muitos deles, era possível reconhecer o respeito que Winnicott tinha não apenas pelo mundo interno do paciente mas, também, pela realidade à sua volta. Assim, Winnicott (1960) era capaz de ajudar a família de um paciente que morava longe de Londres a recuperar sua função na promoção do desenvolvimento emocional do paciente, uma vez que este não podia deslocar-se a Londres para constantes consultas. Portanto, ao buscar respostas aos enigmas da nossa experiência clínica, a obra de Winnicott pareceu-nos adequada por apresentar a maneira pela qual o ambiente pode vir a organizar-se de forma a atender às necessidades da criança, com o objetivo de favorecer o processo maturacional, posto que, muitas vezes, a intervenção psicoterapêutica visava 65 O manejo de informações relativas a doenças e tratamento médico de pacientes pediátricos leva em conta a posição da família, a idade, o estado emocional e aspectos cognitivos da criança. O vocabulário utilizado leva em conta o desenvolvimento cognitivo do paciente. O que chamamos aqui como considerar as condições da realidade significa que o paciente, tendo em vista o seu desenvolvimento cognitivo e emocional, pudesse estabelecer um contato com a sua própria condição. Assim, no entendimento de uma criança de três anos, ela podia compreender que estava no hospital para “tirar um bichinho da barriga”. Essa informação, adequada às condições maturacionais da criança, fazia com ela pudesse postar-se como sujeito do seu próprio tratamento. Além disso, o reconhecimento da realidade e a sua nomeação facilitava dar sentido às experiências, favorecendo a elaboração. 95 devolver aos pais do paciente sua capacidade de exercer sua função, tão duramente perturbada pela angústia produzida pelo adoecimento de seus filhos. Adicionalmente, ao longo da nossa experiência clínica, fomos levados à conclusão de que era apenas quando os pacientes podiam elaborar suas experiências de perda, que era possível obter a diminuição dos sintomas depressivos apresentados por eles durante o tratamento médico. Isso levou à conclusão de que além da adaptação à realidade, a intervenção terapêutica deveria auxiliar o paciente a recuperar sua capacidade para o desenvolvimento e para a expressão criativa do self na realidade. Esses pacientes encontravam-se às voltas com diversas experiências de perda, as quais deveriam ser reconhecidas e elaboradas pelos pacientes, com o objetivo de reinstalar um sentido de esperança. Entendemos que essa condição psicológica saudável passa pelo desenvolvimento do trabalho do luto. Tal condição psicológica pode ser traduzida pela sustentação de um equilíbrio entre levar a realidade em conta - mas não sucumbir diante de sua violência - e expressar-se criativamente, sem se alienar em um mundo alucinatório. No nosso entendimento, essa condição pode ser estudada à luz da teoria de Winnicott (1971a, 1988) a respeito dos fenômenos transicionais. A teoria de Winnicott, baseada em uma crença nos aspectos positivos da ilusão, parecia contribuir para a compreensão dos mecanismos de construção da esperança, caracterizada pelo equilíbrio entre a adaptação à realidade e o desejo de se tornar saudável novamente. Além disso, o elemento de ilusão favorecia a transformação do árido espaço da enfermaria pediátrica em um espaço para brincar. Os pacientes, dada a provisão ambiental oferecida pela família e/ou pelo atendimento psicoterapêutico, podiam passar a utilizar o espaço da enfermaria de maneira criativa. A teoria de Winnicott é ainda de fundamental importância na medida em que ela atribui um sentido positivo às experiências de ilusão. Winnicott (1945) acreditava que o bebê poderia superar as experiências primitivas de perda e desenvolver contato saudável com a realidade – e, ao mesmo tempo, expressar os aspectos do self individual - desde que recebesse uma provisão ambiental suficientemente boa. Cabe recordar, a esse respeito, a apreciação de Goldman (1993) sobre o trabalho de Winnicott. Goldman, ao comentar a originalidade da obra de Winnicott, ressalta a maneira pela qual ele foi capaz de re-inventar velhos conceitos psicanalíticos, conferindo-lhes novas possibilidades de sentido. Um dos exemplos desta capacidade pode ser apreciada em relação à maneira como Winnicott postula os aspectos positivos da ilusão. De acordo com Goldman, diferentemente de Freud, que via a psicanálise como uma maneira de curar as pessoas das ilusões, Winnicott valorizou “a liberdade para criar e apreciar ilusões” (GOLDMAN, 1993, p. xxiii). Por fim, entendemos que com uma teoria a respeito dos fenômenos contratransferenciais, baseada em parte em sua própria honestidade no relato clínico, Winnicott oferece uma contribuição fundamental ao psicoterapeuta. Winnicott foi, sem dúvida, pioneiro na associação entre pediatria e psicanálise. No esforço de aplicar o conhecimento psicanalítico à pediatria, Winnicott não trouxe apenas uma contribuição para a 96 compreensão dos funcionamento psíquico do paciente mas também, sobretudo, dos elementos contratransferenciais decorrentes do contato com o paciente. Assim, Winnicott constitui uma rica ferramenta ao profissional de saúde mental. Esse aspecto parece ser ilustrado por um trecho, citado Kahr (2002), de uma carta de um psiquiatra endereçada a Winnicott, em agradecimento à sua visita a um hospital psiquiátrico para aconselhar a equipe no manejo de pacientes psicóticos. Nessa carta, o psiquiatra diz que após a visita de Winnicott, um garoto psicótico, paciente da enfermaria, afirmou que Winnicott deveria voltar ao hospital. O psiquiatra então perguntou ao garoto se ele achava que a presença de Winnicott tinha sido de utilidade para ele, ao que o garoto respondeu: “sim, de grande ajuda para nós, mas ele pode ser de grande ajuda para você também” (KAHR, 2002, p. 10). Referências Bibliográficas FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Trad. Sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1972. (Edição Standard Brasileira Das Obras Psicológicas Completas De Sigmund Freud. v. 7, p.123-252). FREUD, S. (1911) Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental (1911). Trad. 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Palavras-chave Luto, Winnicott, pesquisa psicanalítica, criatividade, fenômenos transicionais THE WORK OF MOURNING IN THE LIGHT OF TRANSITIONAL PHENOMENA Abstract In this paper we will discuss the relationship between the ability to cope with loss and Transitional Phenomena. We will outline some differences between the ideas of Winnicott and Freud and Klein’s theories. We will discuss to which extent Winnicott’s ideas are relevant to the understanding of the work of mourning, and psychological maturity. Key-words mourning, Winnicott, psychoanalytic research, creativity, transitional phenomena 98 QUANDO O BRINCAR É SUBSTITUÍDO PELO ATO ANTI-SOCIAL Joaquim Gonçalves Coelho Filho66 Antonio Carlos Possa67 A tendência anti-social, presente em pacientes que apresentam egos fragilizados, foi foco de atenção em inúmeros textos desenvolvidos por D. W. Winnicott, reunidos, principalmente, no livro "Privação e Delinqüência". Na base da discussão apresentada, encontra-se toda a sua contribuição para o campo psicanalítico, que se concentra na comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê. É a qualidade dessa comunicação que determina o processo de integração do ser, sua personalização e sua relação com os objetos no tempo e no espaço. Ao estabelecer que os objetos subjetivos oferecem a oportunidade do indivíduo criar a sua identidade, Winnicott está rejeitando a teoria tradicional de relação de objeto, em que os objetos são externos e incorporados, internalizados. A teoria tradicional ocupa-se, então, com o relacionamento entre o sujeito e o objeto - um relacionamento interpessoal. A teoria winnicottiana ocupa-se com a relação do sujeito com os seus objetos. Kohon (1986) evidencia a sutileza dessas afirmações: Esta diferenciação sutil (mas complexa) e fundamental provocou muita confusão, às vezes até mesmo dentro do movimento psicanalítico britânico. Não é apenas o relacionamento real com os outros que determina a vida individual do sujeito, mas, sim, a maneira específica pela qual esse sujeito apreende seus relacionamentos com os seus objetos (tanto internos como externos). Ela implica um relacionamento inconsciente com tais objetos. (p.18). Para Winnicott, o percurso entre a dependência absoluta e a independência relativa passa por áreas diferentes, constituídas pelos objetos representados em conformidade com o estádio em que a criança se encontra. Os objetos constituídos em primeiro lugar nesse percurso são os objetos subjetivos, que, quando apoiados pelo ambiente, permitirão que o indivíduo complete esse percurso, chegando à realidade do adulto. O "nascimento" para a vida, portanto, é encontrar a mãe/ambiente como objeto subjetivo. A mãe que é capaz de se preocupar com sua função, nesse momento da sua vida, propiciará um contexto adequado para se iniciar um relacionamento excitado com o bebê. Da primeira mamada teórica, que sintetiza, na vida real, as experiências iniciais de muitas mamadas, resultará, no caso de ter sido satisfatória, o padrão das mamadas que se seguirão e que serão facilitadoras, tanto para a função materna como para o bebê, no relacionamento com o mundo. Essa mamada, quando bem sucedida, permitirá que o bebê tenha a ilusão de que todos os elementos 66 Mestrado e Doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; Professor e Supervisor do Curso de Especialização em Psicologia Clínica no IPPESP; Psicoterapeuta. 67 Mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor e Supervisor na UniFMU; Professor e Supervisor do Curso de Especialização em Psicologia Clínica no IPPESP; Psicoterapeuta. 99 nela envolvidos foram criados pelo impulso vindo da sua necessidade. É a onipotência originada pela adaptação realizada pela mãe. Como Winnicott adverte, o bebê precisa ter a ilusão de viver, para viver. Sem essa ilusão, não se consegue viver uma vinculação, que está diretamente associada à noção de continuidade da existência. Assim, o bebê não vê o seio como seio, mas como algo real e essa realidade só é conseguida pelo contato com o seio real. Mais precisamente, o bebê é pela união com a mãe e não pela existência do seio. Somente assim, o bebê, ao longo do seu desenvolvimento afetivo, vivenciará os diferentes sentidos do real. Vivenciará a qualidade dos objetos e a existência deles, a efetividade ao longo do tempo. Começa a ser, começa a estar presente no tempo. A mamada do bebê, portanto, não é uma representação, uma teorização. É uma tensão instintual, em que ele acaba por esperar alguma coisa, visando suprir a necessidade de continuar vivendo, além, é claro, de suprir a necessidade biológica. Desta forma, o bebê estará existindo, preparando-se para ocupar um lugar, um espaço. Pronto para ser criativo. Criar o mundo. E a mãe, que tem a capacidade de se identificar com o bebê, irá ao encontro desse momento criativo. Quando, porém, a primeira mamada falha, por inaptidão da mãe, ou mesmo de quem está ao seu redor, com intervenções inapropriadas, o bebê será privado de vivenciar a satisfação da sua necessidade. Mais complicado ainda será quando ele passa a acreditar que sabe o que é a satisfação de uma necessidade, por imitação ou indução de quem teve essa vivência. A criança precisa da ilusão do real, da experiência do real para poder, um dia, desiludir-se, poder morrer, poder voltar para o nada. Portanto, o bebê passa a existir como ser humano, porque é um ser criativo, já que se permite ter ilusões. Por outro lado, diante da falha da primeira mamada, o bebê poderá ter a ilusão de ter tido uma ilusão. Esta é a possibilidade da ocorrência do falso self, em que o indivíduo não consegue referir-se a sua própria história. Ela estará perdida no tempo, sem cronologia, sem sentido para ele. O real ficará comprometido. Somente diante da conexão do presente, passado e futuro é que se constituirá o seu self e o seu mundo. Uma estrutura preparada para receber os objetos e viver a integração, ter a própria história. Criar um sentido para ele. A falha na devoção da mãe pelo seu filho compromete a tendência natural da criança em se tomar uma unidade integrada. A mãe devotada oferece a "experiência da onipotência", a partir da sua principal tarefa, na direção da integração, que é o holding e que viabiliza a mãe como objeto. Um objeto bom. Um objeto que é criado pelo bebê. O bebê cria somente aquilo que está ao seu alcance, aquilo que está lá esperando para ser encontrado. A matéria prima da tendência natural ao amadurecimento é a capacidade que o bebê tem de se iludir. Ilusão de realmente encontrar aquilo que ele criou (Winnicott, 1988). Mas, esta ilusão só será possível se esse bebê puder contar com uma mãe suficientemente boa. As mães, quando insuficientes ou extremamente boas, roubarão dos seus bebês a capacidade da ilusão. Desta forma, nunca chegarão à realidade real, que nada mais é do que a ilusão que deu certo. 100 Voltando-se ao bebê saudável, isto é, maduro para a idade, e que conseguiu a sua integração, ele estará apto para se perceber como uma pessoa e perceber a existência do outro. Perceber a existência dos pais. O bebê saudável chega a esta condição por instinto. Não o instinto freudiano que está sempre lá em busca de prazer, mas o instinto que busca a satisfação de uma exigência. Quando isto ocorre de forma plena, ocorre o alívio do instinto e um período de descanso até a próxima exigência. Fala-se, aqui, de um instinto intermitente, que vem e que vai, sempre exigindo uma ação que o satisfaça. A busca de satisfação do instinto atende à função básica do bebê que é a da integração, traduzida, grosso modo, pela circunscrição do seu próprio corpo e o reconhecimento das suas necessidades. Somente o bebê que teve o desenvolvimento emocional saudável (aquele que chegou ao concernimento com a cumplicidade da mãe suficientemente boa, isto é, com a mãe ambígua - aquela que estava lá quando o bebê se encontrava excitado, permitindo ser usada por ele, mas que também continuava lá, oferecendo suas qualidades de mãe, quando o bebê achava-se em descanso) poderá experimentar o desenvolvimento instintivo, que tem em um dos extremos a fase oral e, no outro, a fase genital. Esse bebê, que tem na mãe o seu ego (ego auxiliar), apresenta em seu desenvolvimento a capacidade de se relacionar com os objetos subjetivos e, vez ou outra, relacionar-se com objetos percebidos objetivamente (não-eu). A constituição do ser, aos olhos de Winnicott, é, portanto, extremamente dependente do encontro de um ser constituído, potencialmente disposto a encontrar-se, com um ser que ainda está por vir, um ser potencialmente disposto a existir. O ser disposto a encontrar-se será aquele capaz de sustentar todas as operações necessárias para o bebê passar da solidão absoluta para a relação de objeto e desta relação ao uso de objetos. O ser disposto a existir será aquele capaz de criar, antecipadamente, o que virá a ser a realidade. Criar a si próprio. Esta criatividade primária (Winnicott, 1954) vem a ser a capacidade de projeção como criação e não como identificação projetiva defendida por Melanie Klein. É anterior a ela. Assim, o ser humano é capaz de projetar o que nunca foi ingerido, introjetado. Aqui, a mãe só assiste. É a criatividade primária que cria o senso de realidade. O material de projeção (objeto subjetivo), enquanto não destruído, servirá de ponte entre a área do objeto subjetivo e a área do objeto objetivamente percebido. Tem-se aqui o início da organização do ego, ou seja, a experiência de ser, viabilizada pela relação de objeto do elemento feminino, presente em bebês masculinos e femininos. Por outro lado, a relação do elemento masculino com o objeto viabiliza a separação (eu/nãoeu). Assim, o elemento masculino faz, enquanto o elemento feminino (em homens e mulheres) é. Se, em um primeiro momento, o elemento feminino permite a tão necessária vivência do ser, da experiência da onipotência, num segundo, são as vivências da frustração, experimentadas de forma gradativa e oferecidas pelo elemento masculino, que facilitarão a mudança do objeto de subjetivo para percebido objetivamente. A frustração "tem o valor de educar o lactente 101 a respeito da existência de um mundo que é não-eu." (Winnicott, 1979, p. 165). A clínica winnicottiana é concebida, então, sobre a relação e não sobre atos mentais (objetos objetivamente percebidos) como na clínica freudiana, que não aceita um analista como objeto subjetivo, uma vez que o jogo da associação livre não faria sentido. É por esse mesmo motivo que a maioria dos analistas freudianos não considera como adequada a terapia psicanalítica para pacientes psicóticos ou fronteiriços, já que sofrem primordialmente de uma deficiência na capacidade do ego de formar e reter representações objetais mentais. Winnicott associa diretamente o par mãe-bebê ao par psicoterapeutapaciente. Desta forma, a interpretação de um paciente com transtorno grave de personalidade soaria como uma confrontação entre eu/não-eu (objeto subjetivo). Seria uma intrusão, uma vez que este tipo de paciente não vê o profissional como objeto externo, até porque ele não o quer colocar fora da área subjetiva. Neste caso, é importante que o profissional esteja ali o tempo todo para ser usado. Melhor ainda quando ele resiste a todo o mal projetado pelo paciente. Uma retaliação do profissional ameaça a continuidade do ser do paciente. Se o psicoterapeuta puder esperar, "o paciente chegará à compreensão criativamente, e com imensa alegria" (Winnicott, 1971, p.122). Em última instância, a clínica winnicottiana acontece na sobreposição de duas áreas do brincar: a área do paciente e a do psicoterapeuta. A psicoterapia, como diz Winnicott (1971, p.59), "trata de duas pessoas que brincam juntas". É na existência de um espaço potencial, área compreendida pela realidade psíquica do indivíduo e pela realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos, que a psicoterapia assume o caráter do brincar, do brincar saudável, que facilita o crescimento, já que a comunicação entre o par terapêutico torna-se extremamente facilitada pelo brincar. Embora o brincar seja universal e decorrente da saúde do indivíduo, inúmeros jovens não possuem essa capacidade, por se encontrarem doentes, diante da falta de validação da sua existência, quer por isolamento compulsório provocado pela dinâmica familiar, quer por invasão avassaladora de uma mãe, ou de quem está exercendo a função materna, que, por não ter sido também validada, exerce a sua função não validando o seu filho, mas somente a si própria, na tentativa de se ver legitimada como pessoa, a despeito dos prejuízos psíquicos causados ao filho. Exemplos de jovens desprovidos da capacidade do 'brincar’ são encontrados em instituições governamentais, voltadas a medidas sócioeducativas. Como é amplamente divulgado pela imprensa, escrita e falada, o aumento da violência, principalmente na infância e na juventude, vem assumindo números assustadores no Estado de São Paulo, passando de 3 mil jovens privados de liberdade em 1999 para 5 mil, passados quatro anos. O governo vem tentando cumprir a sua parte, dentro do que está preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, de 1990, tendo em vista ser o Estado o tutor legal desses jovens. Entretanto, torna-se uma tarefa difícil para o governo oferecer algo mais do que medidas sócioeducativas, diante da crescente necessidade de absorver um número cada 102 vez maior de adolescentes em conflito com a lei. Assim, na tentativa de resolver o problema, criam-se mais unidades de internação, para aumentar a oferta de vagas, deixando de investir em medidas preventivas que possibilitariam a redução do número de atos infracionais. Sabemos que a violência contra a criança traz prejuízos ao seu desenvolvimento emocional. Quando este desenvolvimento é perturbado ou bloqueado pela crueza da realidade que se apresenta à criança, algum tipo de violência está em ação. O vínculo afetivo desempenha um papel fundamental na saúde mental do ser humano em desenvolvimento. Quando o seu cotidiano está submetido à intolerância ou reações agressivas imprevisíveis, a capacidade de vinculação afetiva da criança fica comprometida, bem como seu potencial de desenvolvimento emocional, pautado na confiabilidade que o ambiente lhe oferece. Inseridos em famílias desestruturadas, esses jovens partilham um ambiente imprevisível e altamente ameaçador, cuja configuração familiar sofre constantes alterações, com a saída de membros da família, ora pela conveniência de uma pessoa a menos para ser alimentada, ora pela troca de parceiro da mãe. São crianças que se vêem colocadas em planos secundários da mãe, que se encontra incapacitada para oferecer vínculos estáveis aos filhos, diante do risco de por a perder a condição de ter um companheiro que, na sua concepção, a protege e oferece a possibilidade de estabilidade financeira, mesmo que momentânea. São mães que, diante dos riscos da instabilidade conjugal, se tomam predadoras de seus próprios filhos na luta pela própria sobrevivência. Definitivamente, neste ambiente não existe a mínima possibilidade da vivência da onipotência e do controle do real, fase que, uma vez consolidada pela confiança adquirida na relação com a mãe, pode vir a ser readaptada e ajustada com a introdução de situações que venham a frustrar a criança, na dimensão suportada por ela, em contato com objetos agora percebidos objetivamente. Normalmente, esse jovem é desprovido da capacidade de brincar e a primeira tarefa do psicoterapeuta é ajudá-lo a se tomar capaz de brincar. Para Winnicott (1971, p.80), somente após o desenvolvimento da capacidade de brincar é que a psicoterapia pode começar: "o brincar é essencial porque nele o paciente manifesta sua criatividade". Ainda que se referisse a outro contexto e a crianças vitimizadas pela II Grande Guerra, Clare Winnicott, segunda esposa de Winnicott, na introdução da coletânea de artigos do marido intitulada "Privação e Delinqüência" (1984, p. 4), relata o encontro "entre os elementos anti-sociais na sociedade e as forças da saúde e da sanidade que se organizam para corrigir e recuperar o que se perdeu". Clare destaca que as crianças que eram encaminhadas para os alojamentos supervisionados por Winnicott eram aquelas que necessitavam de acompanhamento especial, uma vez que já vinham de lares desestruturados, antes mesmo da ocorrência da guerra, e que, para muitas delas, o efeito da guerra tinha um cunho benéfico, ao por fim a uma situação intolerável, abrindo a perspectiva de um acolhimento revestido de ajuda e alívio. Nas palavras de Clare Winnicott (p. 4-5): O ponto de interação entre os que prestam e os que recebem cuidados é sempre o foco para a terapia neste campo de trabalho, e 103 requer atenção e apoio constantes dos especialistas envolvidos, bem como o suporte esclarecido dos administradores responsáveis. Hoje, como sempre, a questão prática é como manter um ambiente que seja suficientemente humano, e suficientemente forte, para conter os que prestam assistência e os destituídos e delinqüentes, que necessitam desesperadamente de cuidados e pertencimento, mas fazem o possível para destruí-los quando os encontram. Para Winnicott, a criança normal, que desenvolveu confiança nos pais, por eles estarem sempre por perto para serem encontrados quando a criança assim o desejava, experimenta a liberdade de agir, de destruir, de se apropriar das coisas, de ser uma criança sem responsabilidades. Esta vivência passa a ser um marco na vida da criança, diante da tolerância dos pais aos seus atos destrutivos, já que ela sentirá a tolerância dos pais como uma comunicação da aceitação incondicional do filho, ainda que este apresente ações que, em uma outra fase da vida, seriam condenáveis pela sociedade, mas que na meninice são consideradas normais. A tolerância dos pais permite que a criança não desenvolva temor pelos seus próprios sentimentos, o que a deixaria extremamente ansiosa em relação às suas fantasias destrutivas, e, portanto, possibilita o seu desenvolvimento emocional. Quando se fala em tolerância, fala-se da aceitação e convivência com ações destrutivas da criança e não, de um ambiente sem limites. Um ambiente que apresente regras banalizadas e falta de limites compromete a própria liberdade da criança, que, ao invés de se sentir livre, vivencia a ansiedade decorrente da falta de referência ambiental. Winnicott (1946) destaca que a criança que não consegue uma referência ambiental em seu lar tenta achá-la no grupo familiar maior, com tios ou avós, ou em relações sociais, como na escola, a fim de vivenciar a estabilidade interna, a partir da estabilidade externa conseguida. Quando os grupos mais próximos não oferecem a estabilidade externa inconscientemente pretendida, a criança apela para a sociedade, configurando os atos anti-sociais. Para Winnicott, essas atitudes representam um pedido de ajuda, que, quando não identificado como tal, sendo os atos anti-sociais simplesmente coibidos pela punição, pode se transformar em recrudescimento das atitudes anti-sociais, que funcionam como defesa, distanciando-se da perda original de estabilidade ambiental, cuja ansiedade decorrente é afastada pelo embate que se estabelece entre os atos anti-sociais e a força das punições e que se apresenta como a possibilidade de preenchimento da lacuna ocorrida pela descontinuidade da provisão ambiental. Em última análise, esse novo contexto constituído pelo embate de forças opostas demonstra a esperança da criança em redescobrir os limites que foram perdidos. A esse respeito, Jam Abram, estudiosa da obra de Winnicott, diz que "O indivíduo está em busca do ambiente que está preparado para dizer não, não como punição, mas como um incentivador do sentimento de segurança." (Abram, 1996, p. 44) Por extensão, podemos concluir que as atuações anti-sociais da criança constituem aspectos positivos, quando vistas pelo prisma da constituição do ser, já que traduzem a esperança da redescoberta de limites, que se constituiriam em referência interna de legitimidade existencial, ainda 104 que essas atuações denotem um estado de doença, diante do desenvolvimento emocional interrompido. A importância de compreendermos o ato anti-social como a expressão de esperança da criança fica evidenciada na proposta de Winnicott como tratamento de pacientes que apresentam essa tendência, que ele considera poder ser identificada em um indivíduo normal, bem como em um outro classificado como neurótico ou psicótico. Assim, em suas palavras: a tendência anti-social não é um diagnóstico. (...) Ela se caracteriza por possuir um elemento que compele o meio ambiente a ser importante. O paciente, através de impulsos inconscientes, compele alguém a lhe prestar assistência. É tarefa do terapeuta deixar-se envolver por este impulso inconsciente e seu trabalho é feito em termos de manejo, tolerância e compreensão. (Winnicott, 1956, p. 502-3) Embora Winnicott tenha se dedicado à tendência anti-social principalmente em crianças, ele destaca que ela pode ser encontrada em indivíduos de todas as idades. Nos estudos que realizou no pós-guerra, Winnicott construiu uma seqüência teórica, que retrata todas as demais seqüências reais, dando ênfase aos termos envolvidos neste tema e se opondo ao diagnóstico de tendência anti-social: Uma criança sofre privação, quando é privada de certas características essenciais da vida familiar. Algum grau do que se poderia chamar de 'complexo de privação' torna-se manifesto. O comportamento anti-social manifestar-se-á em casa ou em esfera mais ampla. Devido à tendência anti-social, a criança pode eventualmente ter a necessidade de ser julgada desajustada e de receber tratamento em um albergue para crianças desajustadas, ou pode ser enviada aos tribunais como incontrolável. A criança, agora um delinqüente, pode então ficar sob liberdade condicional por decisão do tribunal, ou pode ser enviada para um reformatório. Se o lar deixa de preencher uma função importante, o 'Comitê de Crianças' pode se encarregar da criança (...), sendo-lhe dispensado 'cuidado e proteção'. Se possível, tentar-se-á encontrar um lar adotivo. Caso estas medidas fracassem, o jovem adulto pode passar a ser considerado psicopata, podendo ser mandado a um reformatório ou a uma prisão pelos tribunais. Pode haver uma tendência estabelecida a repetir crimes para o qual utilizamos o termo reincidência. Nada disso faz referência ao diagnóstico psiquiátrico do indivíduo. (1956, p. 502-3, grifos do autor) A despeito desse texto de Winnicott denotar a sua idade e local de origem - foi escrito há quase 50 anos, em Londres -, em linhas gerais, reproduz o percurso trilhado pelos jovens brasileiros com tendências antisociais, da mesma forma que as suas observações sobre o tratamento de indivíduos com tendência anti-social soam como conhecidas, ao reafirmar que é muito comum verificarmos que os profissionais envolvidos com a 105 tarefa de assistirem esses pacientes desperdiçam o momento de esperança subjacente ao ato anti-social, pela utilização de manejo desastrado ou da intolerância. Finaliza sua constatação afirmando que a psicanálise não se coaduna com o tratamento de indivíduos com tendência anti-social, que exige um manejo que seja capaz de ir ao encontro do momento de esperança do paciente e que possa corresponder a ele, com provisão estável de cuidados que possam ser redescobertos pelo paciente, permitindo a retomada do desenvolvimento emocional. Dessa forma, o bebê/ a criança/ o jovem/ o adulto poderá estabelecer uma nova relação de confiança com o mundo externo que voltou a legitimálo como indivíduo, e viver de forma criativa: brincar com a realidade como uma verdadeira experiência do self. Ainda assim, é freqüente acreditarmos que as crianças descarregam o ódio e a agressividade no brincar. Em Winnicott (1965), a agressividade não é uma coisa nociva que precisa ser jogada fora, sendo mais importante a constatação pela criança de que a expressão de sua agressividade pode ser exercitada sem que venha a ser retaliada pelo ambiente, desde que expressa de uma forma razoavelmente aceitável, embora o ódio e a agressividade simplesmente descarregados no brincar, não guardados por muito tempo, possam reduzir a ansiedade da criança de possuir conteúdos nocivos. É no brincar que a criança adquire experiência: O brincar é uma parte importantíssima de sua vida. Tanto as experiências externas quanto as internas podem ser muito ricas para o adulto, mas para a criança as mais enriquecedoras serão descobertas no brincar e na fantasia. Da mesma forma que a personalidade do adulto é desenvolvida através de suas experiências de vida, a da criança desenvolve-se através de seu brincar, assim como do brincar criativo de outras crianças e adultos. Ao enriquecerse, a criança gradualmente aumenta sua capacidade de enxergar a riqueza do mundo real externo. O brincar constitui-se na constante evidência da criatividade, o que implica estar vivo. (p. 163) Quando em psicoterapia, a criança/ o jovem/ o adulto deve exercitar sua criatividade através do brincar, já que a psicoterapia se desenvolve pela sobreposição de duas áreas do brincar: a do paciente e a do psicoterapeuta. Um brincar mútuo e espontâneo, não submisso. Interpretações do profissional sem o amadurecimento do material psíquico apresentado pelo paciente tornam-se doutrinações, produzindo submissões e maiores resistências, uma vez que essas interpretações ocorrem fora da área do brincar. (Winnicott, 1971) Fica evidente, então, que todo trabalho dirigido aos adolescentes privados de liberdade por atos infracionais cometidos necessita da promoção da sua capacidade criativa, a fim de que ele possa ser capaz de se ver existindo no tempo e no espaço, em contraposição à concretude de sua existência, calcada na posse imediata de bens que oferecem a sensação de realização, mesmo que em termos externos e circunstanciais, até porque estão tentando reaver algo que sentem que tiveram, mas que perderam. Geralmente, quando bebês, experienciaram um ambiente bom na fase de 106 dependência absoluta, mas, na fase de dependência relativa, perderam as qualidades boas desse ambiente. O que realmente importa e o que faz do jovem uma pessoa única fica oculto e, assim, o fato de viver ou morrer torna-se indiferente. Aqui reside a importância da convicção e consistência do trabalho terapêutico, que requer alto comprometimento do profissional e responsabilidade ética no tratamento desses jovens. O importante é distanciar-se do senso de futilidade da sua existência, que, pela falta da capacidade de brincar desse jovem, insiste em se apresentar como sendo sua única e legítima posse, a posse da sensação de não ser significativo para ninguém, de não ter sido validado por ninguém, nem mesmo por aqueles que o viram nascer e crescer. Referências bibliográficas ABRAM, J. (1996). A linguagem de Winnicott. Trad. Marcelo Del Grande da Silva. Rio de Janeiro: Revinter, 2000. 305 p. KOHON, G. (org.) (1986). A escola britânica de psicanálise: the middle group, a tradição independente. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Porto Alegre: Artes Médica, 1994. 290 p. WINNICOTT, C. (1984). Introdução. In: Privação e delinqüência. 2ª ed. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 1-5. WINNICOTT, D.W. (1984 [1946]). Alguns aspectos psicológicos da delinqüência juvenil. In: Privação e delinqüência. 2ª ed. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p.119-125. WINNICOTT, D.W. (1958 [1954]). A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal. In: Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. 4ª ed. Trad. Jane Russo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. p. 437-58. WINNICOTT, D.W. (1958 [1956]). A tendência anti-social. In: Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. 4ª ed. Trad. Jane Russo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. p. 499-511. WINNICOTT, D.W. (1965). Por que as crianças brincam. In: A criança e o seu mundo. 6a ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982. 270 p. WINNICOTT, D.W. (1971). O brincar & a realidade. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago, 1975. 208 p. WINNICOTT, D.W. (1979). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. 3ª ed. Trad. Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. 268 p. WINNICOTT, D.W. (1984). Privação e delinqüência. 2ª ed. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 290 p. WINNICOTT, D.W. (1988). Natureza humana. Trad. Davi Litman Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 1990. 222 p. 107 Resumo Este trabalho discute a dinâmica de pacientes com tendências anti-sociais, a partir das contribuições de Winnicott, bem como as condições que podem favorecer o surgimento dessas tendências, diante do desenvolvimento emocional interrompido. Destaca o sentido que o ato anti-social tem para a criança e as possibilidades de intervenção em tratamentos psicoterápicos, tendo-se o brincar como meio de comunicação entre o paciente e o psicoterapeuta. Finaliza a discussão evidenciando a importância da criatividade como elemento estruturante da subjetividade do ser humano. Palavras-chave Tendência anti-social; O brincar e a realidade; Privação e delinqüência; Desenvolvimento emocional; Criatividade. WHEN THE PLAYING IS SUBSTITUTED BY THE ANTISOCIAL ACT Abstract This paper, having in mind Winnicott’s contributions, discusses the patients with antisocial tendency dynamics, as well as the conditions that can such tendencies to emerge face an interrupted emotional development. The meaning an antisocial act has to the child and the intervention possibilities in a psychotherapic treatment, using the playing as means of communication between the patient and psychotherapist, are pointed out. The paper ends the discussion giving evidence to the importance of creativity as the element that structures the human being’s subjectivity. Key-words Antisocial tendency; Playing and reality; Deprivation and delinquency; Emotional development; Creativity. 108 TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL E ILUSÃO NA ADOLESCÊNCIA Eliana A. S. Pintor68 José Tolentino Rosa69 A tendência anti-social advém de uma experiência de privação. O conceito de privação está ligado ao fracasso ambiental ocorrido na etapa da dependência relativa (seis meses aos dois anos). Esta privação pode ser de dois tipos: 1- deprivação, ou seja, perda do “bom objeto”, perda do estado no qual se teve algo bom que foi perdido; e 2- privação, que caracteriza o estado no qual nunca se teve algo e que resulta em doença mental ou no domínio de uma psicose. Sendo que, a experiência de privação está associada à impossibilidade de alcançar a posição depressiva e um sentido de responsabilidade social dentro do indivíduo. (OUTEIRAL, 1997). Winnicott revela que na tendência anti-social há um sinal de esperança. Segundo o autor, a criança que rouba não deseja o objeto roubado, mas está em busca da mãe, sobre a qual tem direito. (WINNICOTT, 1956). A adolescência é palco de transgressões, um tempo propicio para os atos anti-sociais. Inclui a possibilidade de re-significar o corpo, a família e a sociedade em busca de uma identidade própria. Knobel (1991) destaca que na descrita “Síndrome do Adolescente Normal” são encontrados claros traços psicóticos em 90% dos 1.000 (um mil) adolescentes estudados, com a finalidade de detectar estas características. Para o autor os chamados “traços psicóticos” são condutas transitórias (grifo do autor) de irracionalidade, difusão temporal, episódios fugazes, porém marcados pela despersonalização, depressão ou mania, violência indiscriminada ou expressões de pensamento claramente ambíguo ou de características psicopáticas sem discriminação consciente. Diante destas considerações pensamos que ao atender adolescentes nos dispomos a mergulhar num mundo de intensidade emocional que beira a loucura ou chega até ela em alguns momentos. Os ajustes borderline permeiam este estádio do desenvolvimento, e portanto, o setting pode sofrer alterações de modo a atender as necessidades do paciente e recuperar falhas ambientais. Desta forma, o setting funciona como metáfora dos cuidados maternos. Para pacientes regredidos o setting analítico assume um significado especial e analogamente as experiências insatisfatórias poderão assumir o significado de experiências corretivas, criando condições para que venha ocorrer uma mudança psíquica.(PINTOR, 2003). Para ilustrar os conceitos citados apresentaremos de forma sintética um caso atendido no serviço público no período de 14.09.2001 a 25.06.2002, perfazendo um total de 40 sessões. 68 Psicóloga e Mestre em Psicologia da Saúde, UMESP, Psicóloga clínica da Secretaria de Saúde, Diadema. E-mail: [email protected] 69 Professor Titular do Curso de Pós-graduação em Psicologia da Saúde, Faculdade de Psicologia e Fonoaudiologia, UMESP. Orientador 109 O doente imaginário: um pescador de ilusão “Os doentes mentais são como beija-flores. Nunca pousam. Estão sempre a dois metros do chão.” Bispo do Rosário O Doente Imaginário, um adolescente de 16 anos, chegou à equipe de saúde mental de uma Unidade Básica de Saúde da área metropolitana de São Paulo através de uma usuária do serviço que o percebeu muito só, inerte e agendou uma entrevista com a assistente social. Tratava-se de um garoto solitário, que havia perdido o ano escolar por faltas e fazia uso de maconha. Foi encaminhado pela assistente social para um serviço especializado na dependência de substâncias psicoativas. Porém, compareceu apenas na primeira entrevista com a psicóloga e não deu continuidade ao tratamento. A assistente social o encaminhou em seguida para um grupo de teatro para adolescentes sob a coordenação de uma psicóloga da rede municipal, ao qual ele não aderiu. Diante disto a assistente social procurou-me para ver a possibilidade de prestar-lhe atendimento na própria Unidade Básica de Saúde. Na primeira entrevista o adolescente traz como queixa principal o fato de ter a sensação constante de que saia do próprio corpo. Relacionava o sintoma com o uso da maconha, a qual teria usado intensamente no inicio daquele ano. No momento da entrevista declara que fazia uso da maconha duas ou três vezes por semana. Atribuía o seu sintoma a um efeito colateral do abuso da droga. Devido à sua sintomatologia recebeu o codinome de Doente Imaginário. D.I. trajava-se de um modo despojado, fazia combinações atípicas no vestuário, tinha cabelos compridos, usava vários brincos numa orelha. Era risonho, simpático e cordial. Era filho de pais separados, sendo que esta separação ocorreu quando ele tinha 6 anos. O pai era alcoolista e encontrava-se desempregado. A mãe trabalhava numa creche como educadora. Tinha uma irmã casada, com 25 anos e um irmão de 26 anos com o qual não se dava bem. Referiu-se a família com desilusão, enfatizando o aspecto da desunião. A mãe foi apresentada como uma figura frágil, uma vítima, mas também foi responsabilizada pelo medo que D.I. tinha do pai quando pequeno. Contou que a mãe acendia velas para não apanhar do pai e o temia muito. Descreveu-se na infância como um “bobinho” diz: “eu era um coitado”. Relatou que gostava de rock e possuía uma banda onde tocava baixo e guitarra. Teve apenas uma namorada por dois meses. Nessa época diminuiu o uso da maconha e usava álcool, também passou a se auto agredir se furando com alfinetes. Sua intenção ao furar-se era ficar fora de si para não sentir a dor. Testava sua resistência para ver se agüentava e ele sempre agüentava. Era impossível dormir enquanto não se furava. Gostava de freqüentar o cemitério e uma vez quis jogar-se do alto de uma lápide. D.I. não aceitou a idéia de nossa equipe de saúde mental ter algum contato com alguém de sua família, sentia-se ameaçado e dizia que a mãe jamais poderia saber do seu envolvimento com drogas. Percebi um apelo veemente e decidi correr o risco de atendê-lo mesmo assim. Em outubro do 110 mesmo ano o encaminhei para o psiquiatra devido ao seu estado depressivo, comentou numa sessão que não pensava no futuro, pensava apenas na morte. Contra-transferencialmente este paciente causava-me um estado de preocupação constante, suas sessões eram ricas em conteúdo, porém, em algumas delas ele mostrava-se muito confuso, com dificuldade de explicar seus sentimentos. Nestas sessões meu trabalho era decodificar as suas mensagens, tentar dar um contorno ou estabelecer um nexo. Na primeira fase da psicoterapia, D.I. mostrava-se atemporal. Comparecia em dia diferente do que havia sido agendado, chegava perguntando se estava no horário certo e às vezes de fato estava enganado, tendo que aguardar um pouco. No início do atendimento D.I. mudou-se para outro bairro, ofereci-lhe duas sessões semanais mas, ele disse não ser possível devido às dificuldades financeiras. O seu comparecimento às sessões ficou limitado a uma vez por semana e às vezes nem isso por falta de dinheiro para o transporte. Chegou a lamentar-se por uma falta dizendo que pensou em ir a pé, mas a distância era muito grande. Após as primeiras entrevistas foi realizado um T.A.T. (Teste de Apercepção Temática) cujos conteúdos predominantes foram: a confusão de identidade, a falta de perspectivas nas histórias sem final, os pais frágeis e o seu sofrimento. Os títulos das histórias aludem as faltas: “era preciso”, “o roubo”, “desde pequeno”. Houve predominância de mecanismos da posição esquizo-paranóide, mas também mecanismos da posição depressiva se apresentaram. As sessões de D.I. refletiam um jovem sem perspectivas, sem ilusão alguma. Eu acreditava em risco de suicídio. Na sua quinta sessão inicia falando que fez aniversário (completou 17 anos) e que não gosta de presente, a mãe e a irmã o presentearam e uma tia foi cumprimenta-lo. Comenta que quando recebe um presente, pensa naqueles que não ganham como um primo seu que estava lá no dia. Logo adiante fala sobre a sensação de estar fora do corpo, como se estivesse no efeito da droga, ele se lembra das coisas que fez depois, como se fosse um filme, como por exemplo: “eu vim aqui, falei e depois vejo isto como um filme.” Fala que não pensa no futuro como as outras pessoas: pensar em casar e etc. Para ele a sensação é de estar no fim, pensa em morrer. Pensa em morrer devagar, fica pensando em formas de se matar, não quer que seja de repente, pensa em morrer aos poucos, fala da experiência de se furar, de sentir dor e ir até onde agüentava e depois lhe dava um alívio, um sono. Neste momento digo-lhe: “Só pode sentir dor quem está vivo, parece que há aí uma busca da vida. Acontece muitas vezes que quando a pessoa quase morre descobre que é bom viver.” Ele diz que não gostaria de morrer por doença ou algo que lhe tirasse a vida. Comenta em seguida sobre a loucura na sua família (tios paternos), inclusive um tio mora com ele. Ele se identifica com o tio e acha que o problema pode ser hereditário. Acredita que se estivesse usando droga até hoje, já teria feito alguma besteira contra si mesmo. Conta que fez tudo para sair do bairro e ir para a casa do pai, para distanciar-se das drogas. Diz que a família desconhece o seu envolvimento com drogas e se a mãe viesse a saber ele se matava. 111 Um poema e uma música na sessão Na sessão seguinte levo para ele um poema de Pablo Neruda que encontrei na internet casualmente durante a semana, é o seguinte: Morrer Lentamente Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso, evita as próprias contradições. Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras, quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece. Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o “preto no branco” ou os “pingos nos is” a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam o brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços... sentimentos. Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos. Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo. Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. Evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar. D.I. geralmente demonstrava dificuldade em iniciar a sessão, em dizer a primeira frase. Nesta sessão eu inicio após breve silêncio dizendo-lhe do poema que encontrei e que se relacionava com o tema da sessão anterior. Ele sorri e a impressão que me causa é de surpresa e alegria pela terapeuta ter se ocupado dele fora da sessão. O meu objetivo com o poema era relativizar a sua colocação mostrando que de alguma forma ela já vinha fazendo isto. O texto também pressupõe um superego mais condescendente e ainda a necessidade de uma busca para uma vida feliz, que pareciam aplicar-se ao momento do paciente. Na sua oitava sessão ele conta que ganhou um ingresso para um show musical de uma banda chamada Rappa. Porém, alcoolizou-se antes do show e foi parar no hospital. Perdeu o show. Relata que não vê prazer nas coisas e inclui a perda do show neste estado de ânimo, Se fosse em outra época jamais teria perdido este evento. O grupo musical referido tem uma música chamada “Pescador de Ilusões”. Cito esta canção para D.I. Ele parece surpreso por eu conhece-la e diz imediatamente: “É a música que eu mais gosto do C.D.” Relaciono o título com a sua busca. Ele sorri e faz alusão a uma música do grupo Legião Urbana que ele acredita chamar “Quase sempre” e que gosta de ouvir. Busco este título e encontro a música “Quase sem querer” - há um ato falho. Levo para a sessão seguinte para conferir e perceber como ele se identifica. Este é o conteúdo: 112 Quase sem querer Tenho andado distraído, Impaciente e indeciso, E ainda estou confuso, Só que agora é diferente: Estou tão tranqüilo E tão contente. Quantas chances desperdicei. Quando o que eu mais queria Era provar pra todo mundo Que eu não precisava Provar nada pra ninguém. Me fiz em mil pedaços Pra você juntar E queria sempre achar Explicação pro que eu sentia. Como um anjo caído Fiz questão de esquecer Que mentir pra si mesmo É sempre a pior mentira. Mas não sou mais Tão criança a ponto de saber Tudo. Já não me preocupo Se eu não sei porquê Às vezes o que eu vejo Quase ninguém vê E eu sei que você sabe Quase sem querer Que eu vejo o mesmo que você. Tão correto e tão bonito: O infinito é realmente Um dos deuses mais lindos. Sei que às vezes uso Palavras repetidas Mas quais são as palavras Que nunca são ditas? Me disseram que você estava chorando E foi então que percebi Como lhe quero tanto. Já não me preocupo Se eu não sei porquê Às vezes o que eu vejo Quase ninguém vê E eu sei que você sabe Quase sem querer Que eu quero o mesmo que você. 113 Quando digo que estou com a letra ele me pergunta porque eu trouxe e disse-lhe que me interessava saber com que partes da música ele se identificava. Proponho a leitura e que ele vá me dizendo o que lhe faz pensar. Na primeira estrofe ele diz se lembrar do tempo em que se furava e que agora está mais contente. Também pensa nas chances desperdiçadas. Comenta que se achava um rebelde e agora procura a paz. Fala que não sabe se a mãe e a irmã acreditam na sua mudança. Ele acha que elas não entendem seus hábitos vegetarianos e aí ele se identifica com a frase: “Quando o que eu mais queria era provar pra todo mundo, que eu não precisava provar nada pra ninguém.” Diz que a única parte que não bate é: “me fiz em mil pedaços pra você juntar”. Diz: “Não tenho ninguém pra me juntar.” Relata que não tem a figura do amor romântico. Continuando na letra da música, acrescenta: “sempre quis achar explicação para o que eu sentia.” Não se identifica com a frase: “Já não me preocupo se eu não sei porquê” diz que sempre quer saber o porque. Na seqüência fala do medo de namorar, quer e não quer, pensa como vai encontrar alguém que o entenda. Acrescenta também que evitava olhar as pessoas nos olhos, por medo que a pessoa soubesse o que ele sentia ao olha-lo. Após os seus comentários, digo-lhe que o que ele descreveu da música deu-me a impressão de um movimento de busca, devido às mudanças citada, também por perceber o que lhe falta e que possivelmente o espaço de psicoterapia seria a tentativa de juntar os seus mil pedaços junto com a terapeuta e se perceber por inteiro. A terapeuta não tem como fazer isto sozinha, isto é um trabalho da dupla. Nesta sessão dou-lhe o encaminhamento para a consulta psiquiátrica. Na sessão seguinte ele traz o relatório do médico dizendo parecer tratar-se de um quadro depressivo com distúrbios de senso-percepção e acresce uma interrogação (F 32.3 ? – CID 10), indicando talvez uma hipótese a ser confirmada. Foi medicado com cloridrato de fluoxetine 10 mg. Nas sessões seguintes o Doente Imaginário comenta que ele e o pai estão construindo um quarto para ele (vai ficar afastado do tio doente mental), pensa que quando acabar esta tarefa ficará um vazio. Diz que não consegue alegrar-se, empolgar-se, diz que se sente vivo quando vem às sessões. Em sua décima oitava sessão, D.I. mostra-se irritado, decepcionado e inconformado com o alcoolismo do pai. Este tem bebido diariamente e se torna chato, agressivo, provocativo. Acha agora, que o pai nunca parou de beber e os enganou para que voltassem a morar juntos. Comenta que está determinado a entrar no exército, quer alistar-se. Acha que com isto sai de casa e ajuda a mãe a sair. Conta que está providenciando documentos e também tentará uma vaga no Mac Donald¢s. Fala que um trabalho poderia ajuda-lo muito. Nesta sessão fala muito sobre a mãe. Tem pena dela e diz que se a mãe morresse ele se largava, ficava na rua, ia andando. Tem essa vontade, não ter rumo, não pensar em nada; (nesta hora é como se desejasse a morte da mãe para não ter que ser. Percebo aí um paradoxo). Fala que a mãe nunca teve férias e quando isto ocorre pela primeira vez, o pai só apronta. Quer tirar a mãe da casa do pai. Passa a falar sobre Deus, sente-se revoltado porque tudo isto acontece. Diz que não pode louvar a Deus porque não pode fazer o que Deus quer dele – parece referir-se ao fato de não saber perdoar, além da raiva porque Deus não interfere em sua vida. A minha 114 colocação aborda o amor que ele sente pela mãe e o sentimento de impotência que ele carrega desde menino. Agora se sente um menino porque não pode fazer nada. Está com raiva do pai dele e do pai do céu, ele gostaria de poder interferir nos destinos da família. Ele parece sair mais aliviado. Numa outra sessão mostra-se inconformado com o alcoolismo do pai o qual chama a atenção dos vizinhos com suas bebedeira, ele diz “Todo dia é um show.” Aparecem outras angústias em D.I. e ele começa a falar da falta de identidade, acha que copia coisas dos outros, de cada pessoa que encontra. Traz também a afirmação de que sua crença é que mesmo que tudo der certo, ele sempre no fundo vai querer a autodestruição, como se ele sentisse isso dentro dele. Fala do medo do descontrole e teme voltar a tocar numa banda. Conta que quando se drogava tocava sozinho e esmurrava a parede, no dia seguinte tinha a mão inchada e ninguém sabia o porque. Em seguida relata que viu um astro morrer e achou bonito. Era integrante do grupo de rock Nirvana. Ele suicidou-se e deixou uma carta para o seu amigo imaginário. Diz: “Depois que tinha conseguido tudo, o sucesso, matou-se”. Aponto que ele traduz um medo e um fascínio pela loucura. Sinalizo a identificação com o pai quando ele bebe. Mostro a loucura do ídolo fazendo uma carta para um amigo imaginário e ele assente com a cabeça. Sugiro que o seu lado que gosta da loucura contribui para o fato de ele não estar usando a medicação prescrita. Neste momento ele fala de efeitos colaterais do remédio que são indesejáveis e que ele precisa estar atento porque quando o pai bebe pode agredir a mãe e ele precisa estar bem alerta. Recomendo-lhe discutir isto com o psiquiatra. O Doente Imaginário vai modificando-se lentamente e passa a falar do medo de fazer amigos, medo de ir para o exército (mas o desejo também) e que está pensando num projeto de conscientização da humanidade, já tem um nome para o movimento: “O que você faz pela paz?” Com este movimento pensa em arrecadar alimentos e desenvolver atividades para os mais desfavorecidos. Aparece um sinal de ilusão que já entremeiam a sua desilusão pois, expressa o desejo de não ter família, não ter filhos e ser mendigo. Gostaria de formar uma sociedade alternativa, integrar movimentos contra a polícia. Gostaria de conhecer o M.S.T. (Movimento dos Sem Terra). Traz tudo isto numa sessão em meio a outros assuntos variados e contraditórios. Fecho a sessão espelhando alguns aspectos ambíguos: uma pessoa que não quer amigos mas ama os desconhecidos, quer fazer um movimento em prol dos que sofrem. O medo e o desejo de amar. A raiva que aparece contra a polícia ou contra as injustiças e como ele parece buscar um modo construtivo de lidar com raiva. O M.S.T. parece ser um exemplo disto, um movimento bem organizado que sabe o que quer e luta para conseguir os seus objetivos. Um sonho na sessão e a experiência de habitar o corpo O Doente Imaginário chega na vigésima terceira sessão trazendo um sonho e uma rápida vivência de integração, os quais consideramos o primeiro fato clínico psicanalítico. 115 A sessão começa da seguinte forma: D.I.: Então Terapeuta: E então? D.I. Meu pai não bebeu esta semana... quer dizer ontem bebeu, acho que bebeu, senti um cheiro. Terapeuta: Parece que houve uma mudança. D.I.: Esta semana teve um dia que senti uma coisa diferente, não sei explicar, hum... não sei se é do remédio, mas acho que não é. Terapeuta: O que foi? D.I.: Não sei, acho que parecia que eu estava acordado, porque sempre me sinto fora, às vezes me sinto muito mal, tenho vontade de pedir ajuda para alguém, mas não vou saber explicar o que quero. Não sou o mesmo, não mais aquele menino, quer ser como os outros. Terapeuta: Não ser mais aquele menino, parece que quer dizer que você cresceu, está buscando um novo jeito de ser. Cita então, uma passagem de um livro com a qual identificou-se. O nome do livro é “Mulher no palco” explica: D.I.: É um livro de auto ajuda, não sei o nome da autora. Tem uma parte do livre que me vi. É uma cena da infância dela onde a mãe estava sentada costurando à máquina e a menina estava deitava no colo do pai e ele a acariciou e neste momento ela diz que existia algo oculto que ele não sabia o que era, mas depois compreendeu ser a morte. Comigo é parecido só que este algo oculto é esta sensação, não sei (parece confuso, fala coisas tentando explicar). Terapeuta: Você fala de uma outra dimensão? D.I.: É uma sombra, me sinto uma sombra. Fico me lembrando de quando estava no efeito (droga), estava numa rua movimentada e não via os carros, estava muito maluco. Todos riam e eu ria, todos paravam e só eu continuava. Aí, depois eu ia pro espelho para ver como eu era e quando eu estava diante do espelho, já não sabia porque tinha escolhido estar ali. Terapeuta: No espelho você estava sob o efeito da droga? D.I.: Não. Eu estava nos lugares mas não estava. Este dia que senti que estava acordado pude perceber como eu não tinha estado em lugar nenhum, não estive nos lugares que passei. Aqui teve um dia que quis ir embora. Terapeuta: Que dia? D.I.: O dia da música, não conseguia te olhar, isso acontece com outras pessoas, minha mãe me levou na igreja, não conseguia olhar para a mulher da igreja, é, sou assim... Esta noite, tive um sonho. Acho que eu tinha roubado uma moto do meu irmão, peguei escondido e sai com ela e então, estou numa subida e a moto começa voltar. Eu me esforço e a moto parece que sou eu mesmo, parecia que não tinha motor e de repente, me vejo pedalando, já era uma bicicleta. Comento sobre o seu descrédito desde o início da sessão, primeiro com o pai, depois com ele – uma sombra – pergunto-lhe: O que uma sombra pode fazer, não é? E em seguida falo do sonho, da perda de forças, os veículos vão enfraquecendo. Aí ele se lembra que na verdade no início do sonho era um carro e depois que vem a moto. Abordo a força que deseja emprestar do irmão, como ele já disse que copia as coisas dos outros, como se ele julgasse 116 que os outros tem forças que ele não tem. Faço uma analogia com a história do Rei Midas, um rei que tocava as coisas e elas viravam ouro, no sonho de D.I. acontecia o inverso. Ele sorri e logo adiante volta a falar do seu mal estar físico, estar fora do corpo. Volta a falar em pedir ajuda e pergunto-lhe o que ele gostaria de me pedir. Ele fica pensativo e faz uma pausa. Digolhe:Gostaria de pedir para eu estar com você... ou ajuda-lo a sentir-se presente? Ele mostra-se confuso, diz que não sabe passa a falar coisas desconexas, tento ajuda-lo e ele acha um nexo dizendo que consegue ser ele mesmo com os sobrinhos e com a mãe. Eu pergunto:E aqui? Ele diz:Aqui também não (não consegue ser ele mesmo). Digo-lhe que apesar disso naquele espaço ele mostra como se sente e o que pensa. Ele diz em seguida: D.I.: Agora pouco senti aquilo? O Doente Imaginário referia-se a sensação de integração que havia experimentado em casa e agora se repetia no setting, sentia-se presente. Pergunto em que momento foi e ele diz: D.I.: Acho que foi quando você perguntou o que eu queria pedir. Faz uma pausa após isso e passa a falar de amigos, dificuldade de separação e então retomo aquela sessão onde trouxe a letra da música, dizendo-lhe que talvez ele tenha ficado com medo de ser o meu filho predileto. Mais adiante me dá a notícia de que tinha voltado a estudar e tinha um amigo que ia estudar com ele. Um momento de regressão: voltar para prosseguir Na vigésima quinta sessão dirijo-me à sala de espera e encontro D.I. prendendo os cabelos. Convido-o a entrar. Ele inicia a sessão falando que o psiquiatra aumentou a dosagem do remédio mas, que hoje ele não tomou. Relata o mal estar que sente quando vai ao CAPSI (Centro de Atenção Psicossocial- onde ficam os psiquiatras da rede municipal), gostaria que alguém o acompanhasse, vê-se naquelas pessoas totalmente fora de si. Continua no tema de estar fora de si e parece que sua angústia aumenta. Diz que as pessoas não acreditam no que ele sente. Pergunto-lhe se sou eu e o psiquiatra que não acreditamos. Ele responde que sim, são todos. Porque ele contou antes (de falar para a psicóloga e para o psiquiatra) para pessoas que não eram as pessoas certas e talvez por isso acha que ninguém acredita. D.I. começou a sessão sorrindo mas, vai ficando sério como nunca havia ocorrido. Num dado momento diz que quer chorar “não gostaria que isso acontecesse aqui.” Vai se angustiando e diz que gostaria de ficar encolhido. Digo-lhe que pode ficar como quiser, os colchonetes são para isso. Mas ele recusa-se, diz que fica com medo. Pergunto-lhe o que teme, ele responde: “não é machismo.” Comento que o que pode acontecer é eu ter que lhe dar papel para enxugar o rosto. Ele diz que quando ele sair as pessoas vão notar. Digo-lhe que ele pode lavar o rosto (há uma pia na sala). Ele diz que sempre se controla. Falo que me dá a impressão que ele acha que eu não agüentaria ou que ficaria zangada com ele e me recusaria a atende-lo. Após algum tempo chora. Dou-lhe o papel e aí ele parece nutrir-se desta tristeza e pede-me para que eu fale que ele quer ouvir. Passo a falar da imagem que fiz deste momento. Penso num colo que o protegesse no CAPSI 117 (ele sorri), a barriga da mãe para poder encolher-se e ficar abrigado. Acrescento que ele pôde ser ele mesmo, que agora a sua feição corresponde ao seu sentimento, porque antes estava falando de tristeza sorrindo.(Já havia ocorrido de ele solicitar que eu falasse em outra sessão, como se lhe produzisse calma. Também comentou certa vez que gostava quando eu fazia analogias com estágios infantis). Faz silêncio por pouco tempo e volta a parecer angustiado, dizendo que começa a se lembrar de tudo o que fez (a sensação é de que fez tudo de errado). Digo-lhe que a palavra “fez” é passado. Agora está em outro momento. D.I. fala que se estivesse em casa se furaria porque a dor desvia o seu pensamento. Fala algo sobre descontrole e lhe mostro o quanto ele sempre se controla diante das pessoas para não mostrar o seu lado triste e doloroso. Ele acrescenta: “Agora parece que estou no efeito.” D.I. demonstra um desconforto e sua feição parece insinuar um desejo de esconder-se de mim, de ir embora. Digo-lhe que faltam poucos minutos para encerrar sua hora, mas que seria bom dar mais um tempo para que possa se sentir melhor. Ele imediatamente preocupa-se com o rosto: “Estou normal?” Respondo: “Não parece que você chorou.” Ele parece não acreditar passa a mão no rosto, está desconcertado. Pergunto se ele quer um espelho para olhar-se. Ele diz: “Quando estou assim não gosto de me olhar no espelho”. Ele se levanta, torno a falar se não quer esperar e ele diz que é melhor ir embora senão vai chorar de novo. Ele ajeita sua roupa e eu me levanto. Ele fala que está com vergonha. Digo-lhe que é uma vergonha de mostrar a tristeza e será que isto precisa ser motivo de vergonha? Ele responde: “É porque eu sei que estou assim e agora você também sabe.” Acrescento que só nós dois sabemos. Ele parece aflito para sair e me apresso em concluir que a tristeza é um lado dele não ele todo, não há porque só cultuar a tristeza ou também ficar no outro extremo de ter que ser feliz o tempo todo. Recomendo-lhe que tome o remédio. Ele despede-se dizendo que vai à casa de um amigo porque não queria chegar em casa assim. Logo em seguida saio da UBS para almoçar e avisto D.I. caminhando apressado e de cabelos soltos (penso que prendeu os cabelos antes de entrar á sessão pois, não podia ser ele mesmo comigo), passando pelas pessoas como se não visse nada à sua frente. Na sessão seguinte D.I. não comparece. Ligo para a sua irmã (telefone de recado) oferecendo-lhe um outro horário na mesma semana. Ele não comparece novamente. Como eu não estaria na unidade em sua próxima sessão – horário habitual – faço nova ligação explicando a minha ausência e forneço um horário de reposição. O Doente Imaginário comparece e chega atrasado , porém, este atraso parece refletir uma resistência pois, ele diz que a irmã “pegou no pé”. Já pode mostrar-se contrariado comigo e disse ter pensado em não vir mais. Pensou em desistir porque no fundo já sabe o que quer para si mesmo: “viver por aí”. Acrescenta o desejo de andar rasgado, dormir na rua, ser um rebelde. Fala com certa irritação que está fazendo amigos na escola e diz: “eu não queria, tipo não quero me envolver com ninguém”. Trabalho o tema do envolvimento e medo da dependência e surge novamente a mãe como alguém que não pode saber das drogas. Ressalto sua atitude amorosa ao proteger a mãe de saber mas, que o amor também inclui o perdão. Ele repete que só 118 não fica na rua pela mãe. Resgato o seu desejo de ser um rebelde e que ele poderia pensar numa rebeldia construtiva. Introduzo a idéia de que ele na rua seria um a mais debaixo da ponte, mas se sua revolta contra o que está errado pudesse resultar na construção daquele movimento... Ele completa: “o movimento: O que você faz pela paz?” Eu já comecei fazer umas filipetas para distribuir...” Continuo perguntando: O que você pode fazer pela sua paz? E ele: “Como você consegue dizer tantas coisas bonitas com estas coisas que te falo? (o tom alude o que faço com as coisas ruins, estragadas que ele me dá). Acrescento que falo com os elementos que ele me dá. Falo sobre sua divisão: um lado que quer abandonar-se e um lado que quer crescer. Complemento a idéia dizendo que parece que não tem sido fácil crescer, virar um moço, talvez por isso precise se furar e murchar, assim encolhe e fica pequeno de novo Nesta sessão fala também que não tem tomado o remédio por falta de dinheiro para compra-lo. O pai está tentando arrumar-lhe um emprego num Lava Rápido. Conta que ao sair da última sessão de fato não foi para a casa do amigo, encontrou uns amigos no supermercado Extra e foi beber, um amigo até vomitou. Digo-lhe: “Acho que eu tinha motivo pra me preocupar, não tinha?” Ele sorri. D.I. vai embora e quando olho para o tapete vejo que ele deixou duas pequenas chaves no chão. Depois venho a saber que eram chaves de um cadeado que põe na porta do seu quarto. O Doente Imaginário demonstrou ódio quando falou que não queria envolver-se com ninguém.Na verdade já estava envolvido, o ódio estava ligado ao envolvimento com o processo psicoterapeutico. O fato de que por um lado ele foi à sessão pressionado pela irmã e por outro ele quis estar lá. E logo que chega diz que o seu objetivo mesmo é “viver por aí”. Porém, é preciso envolver-se para des-envolver-se, estava aí a possibilidade do crescimento mental. Green (1980) explica que há dois traços notáveis na transferência deste tipo de paciente (com o complexo da mãe morta). O primeiro é a não-domesticação dos instintos: o sujeito não pode renunciar a um desejo incestuoso, nem, em conseqüência, admitir o luto pela mãe. O segundo traço, mais notável, é que a análise induz o vazio. Isto quer dizer que, quando o analista consegue tocar um importante elemento do complexo nuclear da mãe morta, por um curto momento, o sujeito se sente como que vazio, em branco, como se estivesse privado de um objeto substituto e uma guarda contra a loucura. (p.167) A sensação de inutilidade é apontada por Winnicott (1954) como manifestação de um falso self. O terceiro fato clínico referiu-se a relativização do sintoma de estar fora do corpo. Pareceu um progresso por colocar a queixa hipocondríaca em segundo plano. O fato parece ter aberto caminho para outros aprofundamentos, como se houvesse a ampliação da consciência.Talvez significasse também uma vivência de momentos de integração mais freqüentes. Na sessão que se seguiu ele falou de sua ação na escola, o movimento que estava organizando e revelou o uso da cocaína no passado. Parecia que tinham coisas inconfessáveis, que só poderia dizer aos poucos, ora eu era a sua mãe real fragilizada, que não podia ouvir, ora eu era a mãe que podia 119 agüentar tudo. Kalina (1991) escreve sobre a incapacidade de estar só e o uso abusivo de drogas psicoativas. A capacidade de ficar só é um estado mental resultante da introjeção e assimilação do seio bom, sem o que não será possível um ego forte. As drogas parecem preencher esta ausência do seio bom, não é aprazível estar só. A droga levaria a um estado mental onde não há angústia, nem conflitos, o que corresponderia, segundo Kalina, ao paradoxo “provocar a morte para viver em paz.” A busca por saber em D.I., a vontade de entender Deus – o criadorparece coincidir com o que Green (1980) explica como uma compulsão a pensar, em conseqüência da busca do significado perdido. Houve uma sessão marcada pela confusão. O papel da terapeuta foi decodificar o que ele queria expressar, interromper o delírio fornecendo um contorno, chamando-o a integração.Outro momento de insight ficou claro quando disse: “eu olho muito para mim”, começou mudar de posição, começou olhar para os outros, integrar. Deu indícios de poder caminhar para a posição depressiva. Nesta sessão falou dos amigos e nas sessões seguintes trouxe uma garota, um amigo especial. Acrescentou alguns fatos positivos de sua vida: novas oportunidades, o computador que possuía, a atenção especial que a irmã havia lhe dedicado por um tempo. Pareceu menos vitimizado. Os períodos de silêncio na sessão começaram a aparecer. Entendemos isto como um apaziguamento interno, já podia ficar só na presença do outro, ainda que por pouco tempo. Apesar de querer fugir da terapeuta,. caso a encontrasse na rua, na mesma sessão fez uma reparação, apresentou um senso de realidade maior e contestou sua própria idéia. O Doente Imaginário esqueceu as chaves no setting, demonstrou dificuldade com as férias e com o apego. Parece que o setting e a terapeuta assumiram a condição de um objeto transicional, que poderia acompanha-lo a qualquer lugar. Interrompeu o trabalho psicoterápico porque estava bom, isto é um paradoxo a ser sustentado. Estando o objeto transicional naquele lugar ele poderia voltar e pegá-lo de acordo com a sua necessidade. A última vez que compareceu, chegou nos últimos cinco minutos, era o que podia agüentar ou o quanto necessitava para aquele dia. A terapeuta foi a mãe que não quis sua morte, o que lhe conferiu propriedades de apego seguro e constante, portanto, ele podia ir embora. A psicoterapia o resgatou da miserabilidade. No momento da interrupção do trabalho ele estava procurando profissionalizar-se, estava interessado no emprego. As informações posteriores, atestaram uma busca no campo cultural e profissional. Pôde resgatar seu lado artístico, sua sublimação, que havia se tornado perigosa (tinha medo de voltar a tocar os instrumentos). Podia ser até uma defesa maníaca, não podemos falar do prognóstico, porém, é uma defesa mais saudável. Organizar um movimento em prol dos abandonados também é melhor do que ficar no lugar do abandonado, ainda que reflita uma identificação com este estado. Percebeu-se um receio em crescer,em des-envolver-se, tão próprio do adolescente, como se o ato de olhar-se no espelho pudesse refletir a sua incapacidade, ele identificado com o pai. Mas, concomitantemente, percebeu-se o desejo de avançar. Afinal, a esperança está contida na tendência anti-social. D.I. sentiu-se roubado como atesta a prancha 13 mas, há uma busca. 120 O ambiente facilitador, segundo Winnicott (1970a), o qual capacita o indivíduo para o crescimento pessoal e o processo maturacional tem que ser uma descrição dos cuidados que o pai e a mãe dispensam, e da função da família. Os pais do Doente Imaginário tiveram qualidades e defeitos, houve momentos de troca afetiva e prazer com eles e com os irmãos, mas de algum modo predominaram na percepção de D.I. os aspectos negativos das figuras parentais. As percepções são modificáveis e na continuidade este retrato poderá até ter outras ênfases. A sensação ao escrever sobre o caso a terapeuta sente que não consegue esgotá-lo, isto se combina com o que foi escrito anteriormente que é como se a sua história não coubesse em papel algum. Pensamos que esta sensação é a reminiscência da sua sensação de vazio, um buraco sem fundo, ou a contaminação pelo medo do seu descontrole, ele foge ao controle da terapeuta. Outeiral, comentou num seminário em São Paulo (07/06/2003) que este tipo de paciente (os mais regredidos) deveriam causar ciúme nos nossos parentes mais próximos. A experiência com D.I., de fato mostrou que eles passam a fazer parte de nossas vidas e roubam a cena (no caso desta terapeuta que tinha um universo de mais de 45 pacientes). Este aspecto ficou potencializado por ter sido um caso que não houve um fechamento, embora o devir de todo e qualquer paciente seja geralmente, uma página a qual não temos mais acesso. Por outro lado, mostra toda a riqueza da psicanálise, em ambiente universitário, definida como um método singular de investigação clínica intersubjetiva (Vaisberg, 2003; Vaisberg & Machado, 2000; Pinto, & Vaisberg, 2001). O Doente Imaginário presenteou a terapeuta com sua riqueza de conteúdos, apesar de todo o vazio que ele considerava ser, inundou-a com suas vivências tão profundas e suas angústias impensáveis e indizíveis. Pensamos que para este caso cabe a frase de Winnicott (1945): “Somos de fato pobres se formos apenas sãos.” Referências Bibliográficas ABRAM, J. 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Tinha 16 anos e foi atendido pela equipe de saúde mental da Unidade Básica de Saúde, localizada na área metropolitana de São 122 Paulo. O paciente apresentava três defesas contra a perseguição interna: a hipocondria, a desrealização e o medo de avaliação. Era um rapaz solitário, havia perdido o ano escolar por faltas e fazia uso de maconha. Tinha sido atendido por assistente social em um serviço especializado no tratamento de dependência de substâncias psicoativas, mas não manifestava adesão ao tratamento, o mesmo acontecendo com sua participação em um grupo de teatro para adolescentes. Ao procurar a psicoterapia, o adolescente trouxe como queixa principal o fato de ter a sensação constante de que saía do próprio corpo. Contra-transferencialmente suscitava na psicóloga que o atendia, um estado de preocupação constante. As sessões tinham rico conteúdo, porém, em muitas delas predominava a ansiedade confusional e dificuldade de conversar sobre os sentimentos. Na psicoterapia pode mostrar sua riqueza de sentimentos e a partir de suas vivências foi possível o aprendizado pela experiência, podendo agora pensar sobre coisas antes impensáveis e não simbolizadas. Ao compreender suas vivências profundas, pode transformá-las em aprendizagem significativa pela experiência. Descritores psicoterapia; adolescente; saúde coletiva; psicanálise; Winnicott PSYCHOANALYTIC PSYCHOTHERAPY OF A YOUNG BOY WITH ANTISOCIAL TENDENCY AND CORPORAL DELUSION Abstract The chapter objective was to present conceptions of deprivation, privation and defensive mechanisms toward feelings of inner persecution and to discuss some implications about the psychotherapy process of an adolescent who was treated by 40 sessions of psychoanalytic psychotherapy in a Brazilian UBS (Health Basic Unit), located in the metropolitan area of Sao Paulo. The patient presented three defenses against internal persecution: hypochondria, derealization and fear of being evaluated. He was a lonely boy, and addicted to marijuana, and he had failed in school exams. Firstly, he was attended by a social worker in a specialized service in the treatment of addiction to psychoactive substances, but unfortunately without adhesion even with his participation in a theatre group for adolescents. At the beginning of psychotherapy, adolescent told about his constant sensation of going away from his own body. Intense anxiety and a permanent state of preoccupation were transferred to the analyst by projective identification mechanisms. Psychotherapy sessions showed conception richness, but confusional anxiety and difficult to talk about sentiments were predominant. Beyond his vivencies he learned with experience, and today he could talk about things he could never be able before, he is able to transform his experience in meaningful learning. Index-terms psychoanalysis; psychotherapy; adolescent; collective health; Winnicott. 123