CONSULTORIAS TERAPÊUTICAS: CUIDANDO

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CONSULTORIAS TERAPÊUTICAS:
CUIDANDO DO PROFISSIONAL
Tania Mara Marques Granato55
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg56
Tendo sido procuradas por um grupo de psicólogas que trabalhavam
no serviço público de saúde mental de nossa cidade, e estavam em busca de
assessoria tanto para os problemas que enfrentavam em seu dia-a-dia
quanto para a elaboração de novos projetos de trabalho, inauguramos um
novo método de trabalho na área da consultoria profissional. Aquele primeiro
grupo que se iniciava já apontava para uma nova necessidade, a de um
espaço57 diferenciado de uma supervisão clínica ou mesmo de um grupo de
estudos, formatos mais usuais do atendimento ao psicólogo, e que também
não se poderia confundir com uma psicoterapia em grupo. Confessamos que
a situação da psicanalista-coordenadora não era, de início, vivida como
confortável, na medida em que as participantes não traziam casos clínicos
específicos. Parecia também não caber a discussão de um capítulo de livro
ou artigo científico, não havia um tema para apoiar nosso caminhar, já que
as dificuldades trazidas pelo grupo apenas começavam a se delinear em uma
demanda específica. A cada encontro um novo campo se abria, carregado de
possibilidades e ansiedades, exigindo a sustentação (WINNICOTT, 1963)
daquilo que ainda estava por vir e, como ainda não sabíamos de quê se
tratava, voltamos nossa dedicação à tentativa de permitir que o novo
surgisse a partir do estado de não-integração (WINNICOTT, 1971a) em que o
grupo parecia se movimentar.
Compartilhando os trabalhos que desenvolvíamos em nossa profissão,
algo mais era comunicado: os pressupostos teóricos, os recortes
metodológicos e as técnicas que modulavam nosso fazer clínico, expressão
máxima de uma ética que perpassava cada uma de nós nas aproximações
que fazíamos do sofrimento humano - o nosso e o de nossos pacientes. Do
acolhimento ao sofrimento daquelas psicólogas que, chamadas a atender
necessidades para as quais nossas instituições político-sociais se cegam,
trabalhavam em meio às agonias em que a população carente é
freqüentemente lançada, privadas de um suporte mínimo em termos de
contenção institucional (por exemplo, através de supervisões clínicas),
chegamos juntas a uma proposta inovadora pela voz de uma das
55
Doutoranda em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, coordenadora da
Criar: Atendimento Psicológico à Gestante e à Mãe do IPUSP e membro efetivo do NEW
-
Ser e
Nucleo de Estudos
Winnicottianos de Sao Paulo.
Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da USP, coordenadora da Ser e Fazer, orientadora do
Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica do IPUSP, orientadora do Programa de Pós Graduação em
56
Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Diretora Presidente do NEW - Núcleo de Estudos
Winnicottianos de São Paulo.
57 Espaço de trabalho criado na “Ser e Criar: Atendimento Psicológico à Gestante e à Mãe” do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo, sob minha coordenação, inspirado no estilo clínico “Ser e Fazer” do IPUSP, idealizado
e coordenado pela Profa. Livre Docente Tânia Maria José Aiello-Vaisberg, do mesmo Instituto.
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participantes do grupo. Interessada em oferecer a Oficina da Boneca-flor58 a
gestantes adolescentes que estavam sendo acompanhadas em uma das
unidades básicas de saúde na periferia de São Paulo, uma das psicólogas
manifestou o desejo de aprender a confeccionar a boneca-flor no próprio
espaço da Consultoria. Sua necessidade foi acolhida com tranqüilidade pelo
grupo, dando origem ao que passamos a chamar Consultorias Terapêuticas,
enquadre em que espontaneamente se entrelaçavam as reflexões teóricas, a
clínica, a consideração dos limites impostos por toda instituição, o
direcionamento ético de nossas intervenções e, para surpresa de todas, a
terapêutica pessoal que se insinuava em cada uma das participantes daquele
grupo.
Quando o manejo de tecidos, tesouras, agulhas, linhas e algodão foi
incluído em nosso trabalho, pudemos perceber que um certo clima de
formalismo e hesitação que caracterizava aqueles primeiros encontros foi
prontamente rompido, dando lugar à relação espontânea que se estabelecia
com a costura da boneca e com a coordenadora do grupo, favorecendo uma
interlocução mais fluida entre os membros do grupo. Cumpre aqui ressaltar
que a boneca-flor jamais foi tomada como talismã ou como qualquer outro
objeto mágico desde sua introdução. A “magia”, que se fazia sentir durante
nossos primeiros contatos com aquela atividade, parecia se ligar mais ao uso
que dela fazíamos e ao cuidado com que eram acolhidos os diferentes estilos
de ser e de costurar, constituindo-se ali um ambiente de holding ao
profissional, o ingrediente básico daqueles encontros (WINNICOTT, 1945;
1967).
As Consultorias adquiriam então as “cores” de suas participantes que
se expressavam nos trabalhos que desenvolviam em outros contextos,
reformulados ou enriquecidos pelas experiências naquele grupo; na maneira
pessoal com que cada uma se lançava à costura da boneca, na escolha de
cores, estampas e pétalas, como também pelo ritmo que marcava cada
trabalho, ora freneticamente apaixonado, ora preguiçosamente realizado; no
diálogo aberto que gradualmente se estabelecia entre os membros do grupo,
ainda que isto significasse ficar em silêncio costurando, enquanto as outras
conversavam, ou mesmo falar o tempo todo enquanto a própria boneca
descansava na sacola. A boneca-flor também ganhava espaços extramuros,
construindo um sonho à noite, dividindo um travesseiro, estimulando
reflexões sobre a maternidade compartilhadas com o parceiro conjugal,
tornando-se presente para bebês que estavam para chegar, fazendo-se
encomenda da filha que em casa estava, tornando-se resgate do fazer
manual que é expressão do self, ou ainda, tecendo um fim para o fazer
compulsivo, que é vazio de ser.
Não havia por que estranhar que surgissem sonhos com a boneca que,
como objeto de self (SAFRA, 1999), apresentava um aspecto de si a ser
cuidado ou quem sabe uma experiência a ser vivida. Outras sonhavam com
58 A Oficina da Boneca-flor foi inicialmente formulada para o atendimento psicológico a adolescentes grávidas, a
partir de uma leitura pessoal que temos feito da obra winnicottiana, na Ser e Fazer: Oficinas Psicoterapêuticas de
Criação, o que nos levou ao uso de materialidades mediadoras como facilitadoras da instauração de um campo
transicional de trabalho, onde o brincar é tomado como paradigma de uma clínica que busca trabalhar o profundo
em campo relaxado ou não-integrado, como é o brincar infantil (WINNICOTT, 1971b). Remetemos o leitor
interessado ao texto de Françoise Dolto (1993) que idealizou a Boneca-flor para uso com pacientes, crianças ou
adultos, que resistiam à técnica psicanalítica clássica, descobrindo ser esse um meio apropriado para o trabalho
com conflitos primitivos que urgiam elaboração.
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o costurar que espelhava um novo fazer terapêutico, uma outra forma de
tecer o encontro terapêutico, alternativo às intervenções pedagógicas ou
explicativas (AIELLO-VAISBERG, 2003), envolvendo a reapropriação do ser a
partir de um fazer mais autêntico. Havia ainda as que sonhavam com os
tecidos, que apontavam para o início amorfo59 que pode caracterizar um
novo encontro, quando a espontaneidade é permitida e a criação pessoal é
aguardada. Afastando o fantasma da doutrinação as Consultorias se
mostraram facilitadoras da experiência de uso (WINNICOTT, 1969) do que
estava sendo oferecido em termos de holding, manejo e apresentação de
objeto
(WINNICOTT,
1962a),
vivendo-se
o
continuum
nãointegração/integração ao sabor das necessidades de cada um dos
participantes.
O holding explicitado na sustentação daquela experiência vivida em
grupo era garantido pela presença da psicanalista em termos de sua
humanidade, em sua recusa a assumir a posição de expert nos assuntos
tratados, o que a teria tornado presa fácil da intelectualização estéril,
comprometendo a viva participação daquelas psicólogas. Assim a
Consultoria oferecia uma experiência a ser vivida e não algo a ser apreendido
formalmente. O manejo, que aqui se confundia com o holding na medida em
que estivera sempre a seu serviço, tornava-se diferenciado60 pela acolhida
que dava às diferentes maneiras de costurar a boneca, aos sentimentos, às
reflexões e às apresentações de alteridade, permitindo que o produto final se
construísse de maneira absolutamente singular. Não podemos nos esquecer
que o manejo pessoal da psicanalista, em sua ligação especial com a costura,
estava também sendo oferecido ao grupo, mais como possibilidade do que
imposição de um modelo. O enquadre das Consultorias Terapêuticas parecia
agregar um valor psicoterapêutico na medida em que assentava suas bases
no pressuposto fundamental da Psicanálise de que todo ato humano guarda
um sentido (BLEGER, 1983; POLITZER, 1928), indo ao encontro do que
parecia ser a demanda básica daquele grupo. A apresentação dos materiais,
feita de maneira livre e desinteressada, propiciava a apropriação daqueles
objetos num tempo e num espaço marcados pelo ritmo pessoal de cada
participante. Importante é lembrar que, permeando a oferta dos materiais,
estará sempre a presença do psicanalista, que apresenta também a si
mesmo àquele que está prestes a criar o que necessita (WINNICOTT, 1960).
Os objetos que eram apresentados no grupo - os sonhos, os tecidos, as
preocupações, o costurar, os projetos, as bonecas, um conto, uma
reportagem, uma colcha, uma almofada, o relato de um pedaço de sessão,
uma história da própria vida, um objeto trazido de casa, uma palavra
oferecida à colega - rapidamente deixaram de ser privilégio da psicanalistacoordenadora, reivindicando sua autoria de quaisquer das participantes do
grupo. Não quero dizer com isso que o grupo tenha se tornado promíscuo ou
Área da amorfia ou formlessness (WINNICOTT, 1971a; 1971c): estado de não-integração que precede as primeiras
integrações do indivíduo e volta a estar presente no brincar, em momentos de relaxamento do adulto e nas
demandas de pacientes para que tal experiência seja vivida na análise. Para que o self possa se constituir a partir
da não-integração é preciso que o ambiente sustente tal estado no tempo, o que é garantido pela não-imposição de
uma ordem ou modelo que visa mais aplacar a angústia, seja ela da mãe, do psicanalista ou do ambiente social. Se
ao bebê, à criança ou ao paciente é permitida a experimentação de mundos sem-sentido, ou não-organizados, por
um ambiente que dessa forma se torna confiável, poderemos testemunhar o nascimento de uma organização que é
eminentemente pessoal e singular, que é fruto da criatividade e não de submissão.
60 Queremos dizer diferenciado de outras práticas tais como a terapia ocupacional, ou ainda das abordagens
pedagógicas como os cursos e oficinas de artesanato.
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invasivo, à semelhança dos grupos catárticos, mas que a independência já
acenava com a possibilidade de que cada uma trouxesse suas próprias
contribuições, rumando pouco a pouco para a finalização daquele processo
que curiosamente terminava com uma questão acerca da prática do
psicólogo: “É possível a conciliação, em meu fazer clínico, entre aquilo que
emana de mim e as limitações que encontro no mundo?” Questionamento
que nos leva ao encontro da proposição winnicottiana acerca da postura
psicanalítica que, mais do que um setting de trabalho, organiza sua própria
concepção de saúde mental: “Objetivo ser eu mesmo e me portar bem.”
(WINNICOTT, 1962b, p. 152).
Outros grupos se sucederam, imprimindo às Consultorias a marca de
sua pessoalidade que configurava ora um clima intimista, em que segredos
eram ou revelados, ou bem-guardados em um ambiente de confiabilidade,
ora um espaço lúdico, quando realmente nos divertíamos, mas também
havia momentos em que o trágico se interpunha solicitando nossa
contenção, ou ainda o absurdo que pedia sentido. De estados mais
tranqüilos a outros mais agitados seguíamos o ritmo dos participantes,
porém sem perder o tom que acabava sendo dado pela presença da
psicanalista, presença marcada por suas crenças, por sua história, por seus
relacionamentos com o mundo, por sua preocupação ética, por seu cuidar e
pelo impulso criativo que busca encontrar um lugar para ser.
Ficamos intrigadas ao notar que assim que terminávamos o trabalho
manual que dava sustentação (holding) às nossas conversas nas
Consultorias, surgia uma nova proposta, na verdade um novo objeto, ao
passo que o trabalhar com tecidos, lãs, linhas e agulhas se mantinha.
Continuávamos a nos movimentar nos mundos que o costurar nos abria em
suas possibilidades quase infinitas, na exata medida do impulso criativo que
compartilhávamos, umas mais outras menos, mas a todas contagiando.
Surpreendemo-nos com tanta disposição que fazia contraste com o temor da
coordenadora de que estivesse a cansá-las com a repetição da mesma
atividade. Mais que uma atividade ou uma brincadeira, o que ali parecia ter
lugar era da ordem do brincar winnicottiano (WINNICOTT, 1971b), do diálogo
que se estabelece entre o eu e o outro sobre uma base de segurança, de um
“fazer-de-conta” que trata de uma coisa muito séria, do ambiente relaxado
que permite o experimentar-se, promovendo integrações.
Walter Benjamin (1928), tecendo suas idéias sobre o brinquedo, fez
referência à apropriação pessoal que a criança faz do mundo adulto,
aceitando-o ou rejeitando-o, porém sendo sempre confrontada pela
apresentação que o adulto faz de seu próprio mundo. Também ele nos disse
que no jogo, que se repete centenas de vezes, encontraríamos as raízes de
nossos hábitos, calcados não num “fazer-de-conta-que, mas um fazer-semprede-novo, a transformação da experiência comovente em hábito, esta é a
essência do jogo.” (BENJAMIN, 1928, p. 176).
Se para Benjamin o adulto introduz o mundo à criança sempre de
modo intrusivo, ensejando inevitavelmente uma reação infantil seja esta
submissa ou rebelde, para Winnicott a apresentação de objeto feita pelo
adulto guarda a possibilidade de ir ao encontro de uma necessidade da
criança, situação que favoreceria uma apropriação criativa, no lugar da
reação à invasão. E se, segundo Benjamin o jogo busca perpetuar as
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experiências emocionais que nos marcaram, numa concepção aproximada do
conceito freudiano de “compulsão à repetição”; em Winnicott teríamos ainda
a possibilidade de repetição daquilo que nunca se deu, ou seja, a
oportunidade de que algo seja vivido pela primeira vez, alçando-nos para
além da mera repetição. Sabemos que à primeira vista não parece possível
nem conveniente uma aproximação entre Benjamin e Winnicott, mas se
tomarmos algumas de suas diferenças como apenas uma questão de estilo,
sendo este último mais acolhedor enquanto aquele seria mais contestador,
ambos nos parecem denunciar a delicadeza do processo criativo e a
indissociação básica que existe entre aquele que cria e o ambiente que se
oferece para sua criação, advertindo nosso olhar para o mundo que sustenta
o indivíduo. Reação ou apropriação, repetição ou inauguração, Benjamin e
Winnicott nos levam a experiências diferentes dentro de um mesmo
continuum, aquele que se dá no campo da inter-humanidade, na
comunicação do que é humano, na presença ou ausência da ética que
garante a continuidade do ser, o surgimento da alteridade e as expressões de
autenticidade.
Mais para frente Benjamin (1936) nos brindaria com “O Narrador”,
reinserindo-nos no espaço e tempo humanos através das mãos do artesão e
da voz do narrador. Já para Winnicott iniciaríamos nossa humanidade pelos
cuidados da mãe que se dedica (WINNICOTT, 1956) ao seu bebê. Estariam
nossas psicólogas em busca de algo que se perdeu durante o exercício
profissional? Ou pretendiam elas reinventar-se como profissionais?
Não sabemos se temos aqui uma resposta, mas constatamos que, pelo
tempo que as Consultorias prosseguissem, aquela espécie de brincar
precisaria nos acompanhar, e que interromper esse processo seria como
roubar do grupo seu potencial criativo. Façamo-nos ainda uma última
pergunta: Para quê estaria lá o psicanalista? Para também brincar ou para
cuidar do grupo? Talvez ele lá estivesse para cuidar e brincar ou, mais
rigorosamente falando, cuidando para que o outro possa brincar.
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BENJAMIN, W. (1936) O Narrador: Reflexões sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______Sobre
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BLEGER, J. (1983). Psicologia da Conduta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 244p.
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POLITZER, G. (1928). Crítica dos Fundamentos da Psicologia. v.1, 2. ed. Tradução de
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85
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______ (1962a) A Integração do Ego no Desenvolvimento da Criança. In: ______O Ambiente e
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Alegre: Artes Médicas, 1990. p. 55-61.
______ (1962b) Os Objetivos do Tratamento Psicanalítico. In: ______O Ambiente e os
Processos de Maturação. 3. ed. Tradução de Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1990. p. 152-155.
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Nobre. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 153-162.
______ (1969) O Uso de um Objeto e Relacionamento através de Identificações. In: ______O
Brincar e a Realidade. Tradução de José Octavio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio
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______ (1971a) Playing: Creative Activity and the Search for the Self. In: ______ Playing
and Reality. 4th ed. London: Routledge, 1994. p. 53-64.
______ (1971b) Playing: a Theoretical Statement. In: ______Playing and Reality. 4th ed.
London: Routledge, 1994. p. 38-52.
______ (1971c) Sonhar, Fantasiar e Viver. In: ______O Brincar e a Realidade. Tradução de
José Octavio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 45-58.
Resumo
A partir da demanda de um grupo de psicólogas que buscava assessoria técnica
para seu trabalho, a psicanalista-coordenadora pôde recusar o lugar de “expert” que
lhe ofereciam, afinando a escuta psicanalítica que sustentaria aqueles primeiros
momentos de não-integração do grupo. Acolhendo a já pressentida necessidade
daqueles profissionais por um enquadre e manejo diferenciados em relação ao que
usualmente encontravam nos grupos de estudos, cursos ou supervisões.
Deparamo-nos, então, com o mundo da costura como espaço transicional que
potencializava novas integrações, desde nosso primeiro encontro com a Boneca-flor.
Palavras-chave
psicanálise - clínica winnicottiana - boneca-flor - enquadres diferenciados consultoria psicoterapêutica - estilo clínico ser e fazer
THERAPEUTIC CONSULTANCIES:
TAKING CARE OF PROFESSIONALS
Abstract
Despite a group of psychologists having made a demand for consultancies, the
psychoanalyst-coordinator refused to be considered an expert. She preferred tuning
her psychoanalytical sensibility to hold those first non-integration moments. That
group seemed to look for an alternative setting to clinical supervisions, courses or
personal psychoanalysis and during this search we found out the “sewing world” as
the transitional space that would facilitate new integrations. Since we have met the
flower-doll we noticed the therapeutic potential of that specific “handling” which
was based on the “holding” offered by the psychoanalyst.
Key-words
psychoanalysis - winnicottian clinic - flower-doll - alternative frames psychotherapeutic consultancy - being and doing clinical style
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O TRABALHO DE LUTO À LUZ DOS FENÔMENOS
TRANSICIONAIS61
Karina Codeço Barone62
Introdução
O presente texto tem como objetivo examinar a contribuição da teoria
de Winnicott sobre a transicionalidade para a compreensão do fenômeno do
luto. Esta teoria, ao apresentar uma nova maneira de compreender tanto a
criatividade, quanto o contato com a realidade oferece uma contribuição
para pensar o trabalho do luto, como pretendemos discutir neste artigo. Com
a teoria dos objetos e fenômenos transicionais, Winnicott (1971a) desafia a
manutenção ininterrupta do teste de realidade ao propor a participação de
um elemento de ilusão, sem que, com isso, o contato com a realidade tenha
sido inteiramente comprometido.
É importante ressaltar que para Freud (1917) o teste da realidade
constitui um importante elemento do trabalho do luto. Em Luto e Melancolia,
Freud postula que, por intermédio do teste de realidade, há o
reconhecimento de que o objeto amado não existe mais e, portanto, surge a
exigência de que a libido seja retirada para ser, posteriormente, investida em
novos objetos. Contudo, renunciar a um objeto não é uma tarefa realizada
facilmente.
Freud (1929) reconhece a dificuldade desta tarefa em uma carta,
endereçada a Binswanger por ocasião da morte de seu filho, na qual Freud
relembra a perda de sua própria filha.
Embora nós saibamos que depois de uma perda
como essa o estado agudo de luto chegará ao fim,
nós também sabemos que permaneceremos
inconsoláveis e nunca encontraremos um substituto.
Não importa o que venha a preencher o vazio,
mesmo que o complete inteiramente, isto de toda
forma permanecerá outra coisa. E realmente é assim
que deveria ser. Esta é a única forma de perpetuar
aquele amor de que não desejamos abrir mão.
(Freud, 1929, p.70)
Na tentativa de negar a perda do objeto, o sujeito pode afastar-se da
realidade e manter uma crença delirante de que o objeto ainda existe (Freud,
1917). Contudo, ao longo do trabalho do luto, Freud postula que o respeito
pela realidade passa a ser predominante.
Este trabalho é baseado em um capítulo da nossa dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Nelson Ernesto Coelho Jr.
62 Psicóloga Clínica, Mestre e Doutoranda em Psicologia pelo Depto. de Psicologia Experimental do Instituto de
Psicologia da USP, Mestre em Estudos Psicanalíticos pela Tavistock and Portman Clinic & University of East
London.
61
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Do ponto de vista de Winnicott, as perdas primitivas - como a perda da
intimidade do corpo materno - devem ser elaboradas por intermédio dos
fenômenos transicionais, com o objetivo de reconstituir um espaço de
existência concomitante entre união e separação. Winnicott (1971c) afirma
que o espaço relativo aos fenômenos transicionais é o espaço no qual a
separação não é uma separação, mas sim uma forma de união.
O modelo presente na teoria dos objetos e fenômenos transicionais
poderia funcionar como outra articulação teórica ao trabalho do luto.
Levando em consideração as idéias apresentadas por Winnicott com o
desenvolvimento de sua teoria a respeito dos Objetos e Fenômenos
Transicionais, o trabalho do luto teria como objetivo, por um lado, garantir a
manutenção de uma lembrança viva de quem partiu - evitando, contudo,
apelar para um estado alucinatório que faria acreditar que a separação não
se deu - e, por outro, evitar abandonar-se num estado de desamparo – o
qual, fiel apenas ao princípio da realidade freudiano, só registraria o espaço
esvaziado. A experiência de ilusão possibilitaria encontrar uma síntese da
memória com o ambiente.
Ao lado disso, nossa discussão baseia-se na teoria sobre o
desenvolvimento emocional primitivo (Winnicott, 1945), que capacita a
criança a desenvolver uma habilidade de lidar com perda. Essa capacidade
origina-se do modo como a criança elabora a separação da mãe, no início da
vida, e desenvolve um sentido de vitalidade e autenticidade com seu próprio
self, além de estabelecer uma ancoragem saudável na realidade.
Com uma teoria a respeito do desenvolvimento emocional primitivo,
Winnicott (1964) percebe que o que está em jogo, do ponto de vista do bebê,
é uma tentativa de lidar com perda e luto, trazidos por um maior grau de
separação da mãe. Reconhecemos neste ponto a influência do pensamento
de Klein a respeito da posição depressiva, que descreve o tipo predominante
de angústia característica deste momento de desenvolvimento, originada de
um estado de maior integração presente no bebê.
A adaptação adequada da mãe às necessidades do bebê possibilita ao
bebê gozar de um estado designado por Winnicott (1963) como “going on
being [continuando a ser]” (WINNICOTT, 1963, p. 183). Um estado no qual
não ocorram interrupções significativas na continuidade de existência do self
do bebê. Falhas ambientais ocorridas durante este período precoce do
desenvolvimento não levarão à frustração, mas sim a rupturas na
continuidade de existência do self. Isso porque, segundo Winnicott, no início
da vida, não se trata de satisfazer os impulsos do bebê, mas sim atender às
suas necessidades.
Como conseqüência deste período inicial de absoluta dependência, o
bebê não precisa reconhecer a mãe e nem tampouco reconhecer a si mesmo.
Esta concepção é absolutamente fundamental para compreender que a
maneira como a perda do objeto é experimentado pelo bebê é estreitamente
relacionada com o estágio de desenvolvimento em que ele se encontra no
processo da absoluta dependência rumo à independência.
Entendemos que a maneira como o indivíduo poderá lidar com a perda
do objeto, através de um processo de luto saudável ou tomado por uma
resposta melancólica, parece estar relacionada com esta fase do
desenvolvimento. Esta afirmação relaciona-se com a compreensão de Freud
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(1917) de que, na melancolia, trata-se de uma perda de algo mais ideal. A
perda do objeto tem, neste caso, conseqüências mais graves para o
indivíduo.
Outra importante referência ao fenômeno do trabalho do luto
encontra-se no livro Natureza Humana, no qual Winnicott (1988) afirma que
o conhecimento a respeito do desenvolvimento emocional primitivo é de
grande importância a pais e educadores de crianças de todas as idades.
Contudo, Winnicott acredita que este conhecimento é ainda mais
fundamental àqueles que se dedicam ao cuidado de crianças que estão na
fase de serem desmamadas, ou seja, àqueles que cuidam de crianças que
estão começando a tornar-se aptas para “lidar com perda sem quase perder
(em um sentido apenas) o que é perdido” (WINNICOTT, 1988, p. 34-5, grifos
nossos).
Esta frase de Winnicott nos dá uma importante indicação de como ele
compreende o processo de elaboração da perda, na medida em que aponta
para uma possibilidade de manutenção do que foi perdido sem que seja
preciso apelar à negação. A expressão “em um sentido apenas” aponta para o
fato de Winnicott não estar se referindo à idéia de se manter o que foi
perdido de maneira delirante ou mesmo fetichista. Caso algum dos dois
fenômenos passem a dominar a cena, não estamos diante do fenômeno
transicional63.
Ainda em Natureza Humana, Winnicott nomeia o terceiro fenômeno do
processo maturacional como “contato com a realidade por intermédio de
ilusão” (WINNICOTT, 1988, p. 34). Este processo havia sido nomeado por
Winnicott (1945) como realização e constituía um dos principais fenômenos
do processo maturacional do indivíduo, qual seja o processo que permite a
aceitação e o reconhecimento das propriedades da realidade. Esta idéia de
Winnicott é fundamental para entender a importância dos Fenômenos
Transicionais para a compreensão do luto, na medida em que ela contempla
uma possibilidade de lidar com perda sem quase perder o que é perdido.
Com o desenvolvimento do conceito de transicionalidade, Winnicott
avança no estudo da maneira pela qual o bebê pode lidar com a ansiedade
depressiva e elaborar um estado primitivo de luto.
Encontramos no texto Objetos e Fenômenos Transicionais mais uma
importante referência para discutir a função do objeto transicional em
relação à ameaça de uma angústia depressiva ou à privação quando o
Winnicott (1971a) afirma: “A necessidade de um objeto específico ou padrão
de comportamento que tem início em um período bastante primitivo pode
reaparecer
em
uma
idade
tardia
quando
privação
ameaçar”
(WINNICOTT,1971a, p. 4). Contudo, Winnicott enfatiza que devemos levar
em consideração a maneira como o bebê metaboliza as experiências de
perda, dado que a separação pode afetar os fenômenos transicionais.
Levando em consideração as idéias apresentadas por Ogden (1993),
entendemos que o trabalho do luto exige o estabelecimento de uma processo
dialético na relação entre realidade e fantasia. Para discutir essa questão,
referimo-nos às idéias apresentadas por Ogden sobre as possíveis patologias
relativas ao espaço potencial. Ogden reconhece que a falência cumulativa da
função materna pode vir a gerar uma quebra prematura da unidade mãe63
A complexa organização do fetichismo pode relacionar-se à teoria sobre a patologia dos objetos transicionais.
89
bebê. Quando isso acontece, de acordo com Ogden, patologias relativas ao
espaço potencial podem ocorrer, gerando diversas modalidades de falência
da possibilidade de criar ou sustentar processos psicológicos dialéticos. Em
todas essas modalidades, está ausente a possibilidade de manutenção da
sobreposição entre realidade e fantasia.
Ogden afirma que a percepção prematura e, portanto, traumática pelo
bebê de sua condição de separado da mãe constitui uma experiência
insuportável, levando à instalação de defesas rígidas. Estas defesas levam à
interrupção da atribuição de sentidos à percepção e, portanto, a própria
experiência do bebê torna-se impedida64. Esta situação tem conseqüências
bastante graves para o desenvolvimento do processo maturacional. Neste
caso, não se trata apenas de um processo que prejudica o desenvolvimento
da fantasia ou a apreciação da realidade. Na verdade, nenhuma das duas
[fantasia e apreciação da realidade] chega a ser estabelecida porque há o
impedimento do próprio sentido de experiência.
O trabalho do luto seria justamente a manutenção do processo
dialético entre realidade e fantasia, necessária ao bebê para lidar com a
separação da mãe e manter a vitalidade do self, como também indispensável
para que a perda do objeto não se transforme em uma resposta melancólica.
Outro aspecto em relação ao trabalho do luto que pode ser discutido à
luz da teoria dos objetos e fenômenos transicionais diz respeito à relação
entre o trabalho do luto e criatividade, como será discutido a seguir.
Luto e criatividade
Várias teorias psicanalíticas já haviam demonstrado como a
criatividade pode estar relacionada à elaboração da perda, (Freud 1917;
Klein, 1937, 1940; Segal, 1955; Ogden, 2000).
Freud (1920) foi pioneiro em chamar a atenção para as motivações que
sustentam a brincadeira da criança. Freud reconhece que o aspecto
econômico relacionado ao brincar da criança ainda não havia sido estudado
satisfatoriamente pela psicanálise. Para tanto, Freud descreve a brincadeira
do “fort-da”, e demonstra como, do ponto de vista econômico, a brincadeira
de seu neto pode ser compreendida como uma tentativa da criança tornar-se
ativa com relação a uma experiência que havia sofrido passivamente. Assim,
a criança, com a sua brincadeira, esforça-se por elaborar a ausência da mãe.
Freud reconhece que a repetição da experiência traumática da ausência
materna, assim como os sonhos dos neuróticos de guerra, não poderiam
apoiar-se na teoria pulsional até então desenvolvida. Este fato levou Freud a
reformular sua teoria pulsional e elaborar o conceito de pulsão de morte.
O tema da brincadeira é extensivamente investigado por Winnicott.
Diferentemente de Freud (1920), Winnicott (1971d) não reconhece como
fundamental a existência de um aspecto econômico associado à brincadeira,
ao menos no que se refere à brincadeira saudável. Segundo Winnicott, se a
64 Ao referir-se à conseqüência para o bebê da súbita percepção da sua condição de separado de sua mãe, Ogden
(1993) utiliza a expressão em inglês “Experience is foreclosed” (Ogden, 1993, p. 230). O termo “foreclosed” tem o
sentido de impedir que alguma coisa seja considerada como uma possibilidade no futuro. (Foreclose. In: Cambridge
International Dictionary of English. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 549).
90
excitação pulsional tornar-se evidente durante o momento em que a criança
brinca, isto poderá levar à interrupção do brincar.
A investigação de Winnicott não se limita à observação do brincar da
criança, já que ele caracteriza este fenômeno como sendo a própria condição
do homem saudável. Winnicott (1971d) designa o brincar como fundamental
à maturidade e ao espaço terapêutico. Winnicott afirma que a função do
analista é desenvolver no paciente a capacidade de brincar, ou seja, uma
capacidade para criar e habitar o espaço do sonho.
Winnicott (1971b) afirma que a criatividade é a base do viver saudável,
e que é esta condição que faz com que a vida valha a pena. A possibilidade
de viver criativamente é relacionada à qualidade da provisão ambiental
recebida no início da vida. Com base na teoria de Winnicott sobre a
criatividade, é possível pensar o trabalho do luto como estando vinculado à
possibilidade de realizar um ato criativo, com o objetivo de reinstalar a idéia
de que a vida vale a pena.
A possibilidade de elaboração da perda por intermédio de um ato
criativo constitui um importante campo de pesquisa para a teoria kleiniana
(Klein, 1940; Segal, 1955). O processo criativo, após uma experiência de
perda, aparece como uma forma de reparação, tanto do mundo interno,
quanto dos objetos. Klein (1940) reconhece, ainda, que a elaboração da
experiência de perda pode levar a mudanças psicológicas importantes. Estas
mudanças são relacionadas à elaboração da angústia depressiva no início da
vida, a qual possibilita um maior grau de integração e maturidade
emocional. Esta experiência é revivida no momento de uma experiência de
perda. A elaboração da perda pode estimular a capacidade criativa,
decorrente da necessidade de reparar o ego e o objeto.
Ogden (2000) introduz uma nova compreensão para a relação entre o
trabalho do luto e a criatividade, ao afirmar que este processo não envolve
apenas um trabalho psicológico de reparação. De acordo com Ogden:
(…) luto (...) é um processo que envolve
fundamentalmente a experiência de fazer alguma
coisa, criar alguma coisa adequada à experiência
de perda. O que é “feito” e a experiência de fazê-lo
(...) representam o esforço do indivíduo de
encontrar, de se igualar, de fazer justiça à
totalidade e à complexidade da sua relação com o
que foi perdido e com a própria experiência de
perda. (OGDEN, 2000, p. 117-8)
O ponto de vista apresentado por Ogden difere da compreensão
clássica kleiniana a respeito da criatividade constituir-se em termos da
reparação do mundo interno, sem que seja necessária a exteriorização da
capacidade criativa. Ogden, contudo, não nega a existência de uma
mudança psicológica. Porém, ao enfatizar a importância de que algo seja
exteriorizado, Ogden parece apoiar-se em uma concepção de criatividade e
do trabalho do luto que conduzam o indivíduo novamente a ancorar-se de
maneira saudável na realidade. Este ponto de vista aproxima-se das idéias
de Winnicott a respeito do brincar e da criatividade como sempre
91
relacionadas a uma ancoragem do indivíduo na realidade. Dado que ambas
atividades, com base nos fenômenos transicionais, passam pela aceitação e
transformação da realidade repudiada, sem que seja preciso o
constrangimento das potencialidades do self.
Outra contribuição da teoria dos objetos transicionais para pensar os
fenômenos do luto relaciona-se com a maneira pela qual a transicionalidade
interfere nas experiências dos sentidos de tempo. Esta questão pode ser
explorada à luz das considerações de Safra (1999) a respeito da possibilidade
do self expressar-se de acordo com diferentes sentidos de tempo. A
possibilidade de experimentar o tempo a partir de diferentes modalidades
constitui uma importante aquisição para o indivíduo e relaciona-se à saúde
psíquica. De acordo com Safra, o tempo convencional, medido por
calendários e relógios, é apenas uma das múltiplas faces do modo como o
homem experimenta o tempo. Esta capacidade de orientar-se de acordo com
o tempo socialmente convencionado constitui um avanço na história
maturacional do sujeito, dado que é o momento em que o funcionamento
psíquico deixa de sujeitar-se exclusivamente aos processos primários e
submete-se à égide dos processos secundários.
Além do tempo convencionado socialmente, Safra postula a existência
de diferentes experiências de tempo, fundamentais à plena realização do self.
Safra apresenta quatro modalidades de constituição da experiência de
tempo: tempo subjetivo; tempo compartilhado; tempo transicional; e tempo
das potencialidades.
Safra afirma que a singularidade do bebê é expressa, no início, pelo
seu ritmo peculiar. A maneira como a mãe acolhe o ritmo singular do bebê
permite que um primeiro núcleo de integração sensorial que irá compor o
self do bebê floresça, levando-o à constituição do tempo subjetivo. Este
núcleo é enriquecido, paulatinamente, por elementos próprios às
experiências sensoriais vivenciadas pelo bebê, tais como, sons, cheiros e
gostos.
O tempo compartilhado, de acordo com Safra, é uma conquista da
crescente maturidade da criança que, tendo um self suficientemente
integrado, pode reconhecer os limites de seu próprio eu e,
conseqüentemente, as fronteiras relativas ao outro (não-eu). Este
reconhecimento é fundamental para o estabelecimento de uma nova relação
com a realidade compartilhada que inaugura uma nova forma de experiência
de tempo: o tempo compartilhado.
Safra sintetiza o tempo transicional como sendo o tempo do faz-deconta. A partir da entrada no tempo compartilhado, sustentada pela
constituição segura do tempo subjetivo, a criança passa a poder
movimentar-se entre os tempos subjetivo e compartilhado sem o risco de
perder seu senso de continuidade. A característica principal da experiência
do tempo transicional, aponta Safra, é a possibilidade desta movimentação
entre dois tempos. É essencial que a criança não fique enredada para
sempre no seu mundo de faz-de-conta, mas que tampouco fique restringida
à realidade compartilhada.
De acordo com Safra, o tempo das potencialidades, tendo em vista que
o self está em um constante processo de mudança, compreende o que ainda
92
está por vir, “em termos das possibilidades, recursos e anseios do self”
(SAFRA, 1999, p. 63).
Ainda segundo Safra, a possibilidade de deslizar por diferentes
experiências de tempo enriquecem o self. Conseqüentemente, fraturas no
self podem manifestar-se em diversos distúrbios relativos às modalidades de
constituição de tempo.
Entendemos que a constituição do tempo transicional é de
fundamental importância para o trabalho do luto, na medida em que é
possível manter uma síntese entre a fantasia (ou a memória do que foi
perdido) e a realidade. Isso porque, dada a manifestação do fenômeno
transicional, o sujeito não se aliena nem na alucinação, nem tampouco na
realidade esvaziada.
Além disso, julgamos que a possibilidade de deslizar por diferentes
sentidos de tempo pode proporcionar a reinstalação da esperança após a
experiência de perda, dada a constituição do tempo das potencialidades.
Considerações finais
Lidar com a perda do objeto e constituir um espaço de viver criativo
constituem duas tarefas fundamentais impostas ao bebê no início da vida,
as quais exigem uma provisão ambiental adequada para serem realizadas
satisfatoriamente. Uma das primeiras coisas que o bebê tenderá a tentar
controlar do ambiente diz respeito à ausência da mãe. Assim, com o brincar,
o bebê tenta fazer algo em relação a esta ausência. Do ponto de vista de
Winnicott (1971d), é preciso que alguma atividade surja no repertório de
experiências do bebê, que o capacite na elaboração desta ausência. Contudo,
isto não significa apenas que o bebê repita de forma ativa em sua
brincadeira uma experiência que sofreu passivamente.
Winnicott (1971d) afirma que o desenvolvimento do brincar ocorre no
espaço potencial entre a mãe e o bebê.
Nesse sentido, o brincar é
fundamental para a aceitação da realidade compartilhada, na medida em
que, para Winnicott, o brincar não se dá em uma área interna, como
tampouco se localiza na área externa ao controle onipotente do bebê. Ao
lado disso, entendemos que Winnicott, por ter uma teoria original sobre o
desenvolvimento emocional primitivo e criatividade, em virtude de sua teoria
da transicionalidade, pode também contribuir para pensar o obscuro
trabalho do luto.
De uma perspectiva winnicottiana, a elaboração da perda da mãe
passa pelo desenvolvimento do espaço do sonho, para que neste espaço seja
possível reencontrar, em um certo sentido, o que foi perdido. Assim, o
brincar configura uma forma saudável e criativa de aceitação da realidade
que passa pela elaboração da perda da mãe. Em relação a este tema,
Winnicott mais uma vez enfatiza a importância do gesto (e, portanto, que
algo do mundo da fantasia encontre expressão na realidade) para a
constituição do indivíduo, ao afirmar que: “para controlar o que está situado
externamente é preciso fazer coisas, não apenas pensar ou desejar, e fazer
algo leva tempo. Brincar é fazer” (WINNICOTT, 1971d, p. 41).
93
É possível pensar que Winnicott reconhece que existe uma troca
valiosa em jogo, como Freud (1905, 1924) havia demonstrado com o
Complexo de Édipo, em que o indivíduo que renuncia ao objeto incestuoso
pode beneficiar-se das riquezas da sublimação. O bebê, ao abrir mão do
controle onipotente do objeto e reconhecer a realidade repudiada, tem uma
possibilidade de debruçar-se criativamente sobre a realidade. Esta
possibilidade carrega em si um sentido de vitalidade, na medida em que a
perda pôde ser elaborada por intermédio do desenvolvimento dos
fenômenos transicionais.
Freud (1911) afirma que a experiência de satisfação alucinatória do
desejo, própria do Princípio de Prazer, sofre uma redução significativa a
partir do contato com os limites da realidade. Este momento significa um
importante passo do desenvolvimento do indivíduo, pois conduz a uma
apreciação mais adequada da realidade e a um novo funcionamento psíquico
(Princípio de Realidade). Por outro lado, Freud não deixa de reconhecer a
relevância da experiência de satisfação alucinatória nos primórdios da
formação do aparelho psíquico.
Winnicott (1945, 1971a) reconhece a existência de um fenômeno
semelhante ao que Freud descreveu ao apresentar a modalidade de relação
que se instala entre o bebê e o ambiente. Porém, Winnicott, ao invés de
enfatizar a existência de um cerceamento da criatividade primária do bebê
no contato com a realidade, postula, justamente, que este contato pode
enriquecer esta capacidade. Winnicott fez-nos reconhecer que uma
possibilidade, alheia ao campo da psicopatologia, é a de que o bebê, ao
entrar em contato com a realidade, não questione a validade de sua
alucinação (criatividade primária). Winnicott entende que, ao encontrar o
seio no momento e lugar em que está em ação a alucinação do bebê, este
acreditará que se trata do seio que alucinou, e que, portanto, existe algo no
mundo que corresponde à sua alucinação. Este fenômeno, ressalta
Winnicott, só é possível graças à adaptação suficientemente boa do ambiente
às necessidades do bebê. Assim, a provisão adequada oferecida pelo
ambiente reforça e enriquece a experiência de ilusão, na medida em que o
bebê winnicottiano acreditará que existe algo na realidade que corresponde à
sua capacidade de criar.
No nosso entendimento, ao enfatizar que o bebê se mantém crédulo
em relação à sua capacidade de criar durante o contato com a realidade,
Winnicott (1945) está postulando não apenas uma nova forma de relação
entre o indivíduo e a realidade, mas também uma maneira pela qual o
indivíduo constrói um sentido de enriquecimento interno de seu próprio self
a partir do contato com a realidade. Este sentido, no nosso ponto de vista,
relaciona-se à criatividade e à auto-estima. A maneira como a teoria
apresentada por Winnicott modifica a nossa compreensão sobre a
criatividade é reconhecida no meio psicanalítico. A queixa melancólica de
esvaziamento e as constantes auto-recriminações parecem apontar para
distúrbios no desenvolvimento desta capacidade durante o processo
maturacional.
É importante ressaltar que, antes do desenvolvimento proposto por
Winnicott, através de suas teorias a respeito da experiência de ilusão e da
94
transicionalidade, enfatizava-se apenas os aspectos limitadores advindos do
contato com a realidade.
Tudo Começa na Clínica
O interesse pelo tema deste trabalho foi despertado a partir da nossa
experiência no atendimento psicoterapêutico a crianças gravemente
enfermas, portadoras de doenças, como câncer, fibrose cística ou vítimas de
severo trauma. A intervenção consistia em oferecer suporte psicoterapêutico
a tais crianças, assim como a seus familiares, durante o período em que elas
permaneciam internadas em uma enfermaria pediátrica, para condução de
intervenções médicas de alto risco. No atendimento psicoterapêutico a
crianças gravemente enfermas, nos deparamos com a demanda específica
desses pacientes e sentimos a necessidade de buscar sustentação em uma
teoria que, ao mesmo tempo, levasse em conta os efeitos traumatogênicos de
condições adversas da realidade e não perdesse de vista a maneira pela qual
o psiquismo pode elaborar as experiências de perda e alcançar crescimento
emocional. Julgamos ter encontrado na obra de Winnicott uma sustentação
teórica para esta prática clínica, uma vez que Winnicott, sem negar o
desenvolvimento da capacidade de reconhecimento da realidade, propõe uma
interpretação deste fenômeno que visa a não extinguir a capacidade criativa
do self na percepção e contato com a realidade.
Auxiliar o paciente a adaptar-se à sua nova realidade constituía um
objetivo fundamental da nossa prática clínica, posto ser esta condição sine
qua non da adesão ao tratamento e, portanto, de possibilidade da cura.
Sabemos que se a dura realidade não é reconhecida, a adesão ao tratamento
fica comprometida. É por intermédio de uma apreciação adequada da
realidade65 que se torna possível garantir a adesão ao tratamento, uma vez
que o paciente e sua família reconhecem sua necessidade.
Assim, os relatos de intervenção psicoterapêutica a pacientes
pediátricos, tais como Winnicott descreve ao longo de sua obra, serviram
como fonte de inspiração à nossa prática clínica, dado que, em muitos deles,
era possível reconhecer o respeito que Winnicott tinha não apenas pelo
mundo interno do paciente mas, também, pela realidade à sua volta. Assim,
Winnicott (1960) era capaz de ajudar a família de um paciente que morava
longe de Londres a recuperar sua função na promoção do desenvolvimento
emocional do paciente, uma vez que este não podia deslocar-se a Londres
para constantes consultas. Portanto, ao buscar respostas aos enigmas da
nossa experiência clínica, a obra de Winnicott pareceu-nos adequada por
apresentar a maneira pela qual o ambiente pode vir a organizar-se de forma
a atender às necessidades da criança, com o objetivo de favorecer o processo
maturacional, posto que, muitas vezes, a intervenção psicoterapêutica visava
65 O manejo de informações relativas a doenças e tratamento médico de pacientes pediátricos leva em conta a
posição da família, a idade, o estado emocional e aspectos cognitivos da criança. O vocabulário utilizado leva em
conta o desenvolvimento cognitivo do paciente. O que chamamos aqui como considerar as condições da realidade
significa que o paciente, tendo em vista o seu desenvolvimento cognitivo e emocional, pudesse estabelecer um
contato com a sua própria condição. Assim, no entendimento de uma criança de três anos, ela podia compreender
que estava no hospital para “tirar um bichinho da barriga”. Essa informação, adequada às condições maturacionais
da criança, fazia com ela pudesse postar-se como sujeito do seu próprio tratamento. Além disso, o reconhecimento
da realidade e a sua nomeação facilitava dar sentido às experiências, favorecendo a elaboração.
95
devolver aos pais do paciente sua capacidade de exercer sua função, tão
duramente perturbada pela angústia produzida pelo adoecimento de seus
filhos.
Adicionalmente, ao longo da nossa experiência clínica, fomos levados à
conclusão de que era apenas quando os pacientes podiam elaborar suas
experiências de perda, que era possível obter a diminuição dos sintomas
depressivos apresentados por eles durante o tratamento médico. Isso levou à
conclusão de que além da adaptação à realidade, a intervenção terapêutica
deveria auxiliar o paciente a recuperar sua capacidade para o
desenvolvimento e para a expressão criativa do self na realidade. Esses
pacientes encontravam-se às voltas com diversas experiências de perda, as
quais deveriam ser reconhecidas e elaboradas pelos pacientes, com o
objetivo de reinstalar um sentido de esperança.
Entendemos que essa condição psicológica saudável passa pelo
desenvolvimento do trabalho do luto. Tal condição psicológica pode ser
traduzida pela sustentação de um equilíbrio entre levar a realidade em conta
- mas não sucumbir diante de sua violência - e expressar-se criativamente,
sem se alienar em um mundo alucinatório. No nosso entendimento, essa
condição pode ser estudada à luz da teoria de Winnicott (1971a, 1988) a
respeito dos fenômenos transicionais. A teoria de Winnicott, baseada em
uma crença nos aspectos positivos da ilusão, parecia contribuir para a
compreensão dos mecanismos de construção da esperança, caracterizada
pelo equilíbrio entre a adaptação à realidade e o desejo de se tornar saudável
novamente. Além disso, o elemento de ilusão favorecia a transformação do
árido espaço da enfermaria pediátrica em um espaço para brincar. Os
pacientes, dada a provisão ambiental oferecida pela família e/ou pelo
atendimento psicoterapêutico, podiam passar a utilizar o espaço da
enfermaria de maneira criativa.
A teoria de Winnicott é ainda de fundamental importância na medida
em que ela atribui um sentido positivo às experiências de ilusão. Winnicott
(1945) acreditava que o bebê poderia superar as experiências primitivas de
perda e desenvolver contato saudável com a realidade – e, ao mesmo tempo,
expressar os aspectos do self individual - desde que recebesse uma provisão
ambiental suficientemente boa.
Cabe recordar, a esse respeito, a apreciação de Goldman (1993) sobre
o trabalho de Winnicott. Goldman, ao comentar a originalidade da obra de
Winnicott, ressalta a maneira pela qual ele foi capaz de re-inventar velhos
conceitos psicanalíticos, conferindo-lhes novas possibilidades de sentido.
Um dos exemplos desta capacidade pode ser apreciada em relação à maneira
como Winnicott postula os aspectos positivos da ilusão. De acordo com
Goldman, diferentemente de Freud, que via a psicanálise como uma maneira
de curar as pessoas das ilusões, Winnicott valorizou “a liberdade para criar e
apreciar ilusões” (GOLDMAN, 1993, p. xxiii).
Por fim, entendemos que com uma teoria a respeito dos fenômenos
contratransferenciais, baseada em parte em sua própria honestidade no
relato clínico, Winnicott oferece uma contribuição fundamental ao
psicoterapeuta. Winnicott foi, sem dúvida, pioneiro na associação entre
pediatria e psicanálise. No esforço de aplicar o conhecimento psicanalítico à
pediatria, Winnicott não trouxe apenas uma contribuição para a
96
compreensão dos funcionamento psíquico do paciente mas também,
sobretudo, dos elementos contratransferenciais decorrentes do contato com
o paciente. Assim, Winnicott constitui uma rica ferramenta ao profissional
de saúde mental. Esse aspecto parece ser ilustrado por um trecho, citado
Kahr (2002), de uma carta de um psiquiatra endereçada a Winnicott, em
agradecimento à sua visita a um hospital psiquiátrico para aconselhar a
equipe no manejo de pacientes psicóticos. Nessa carta, o psiquiatra diz que
após a visita de Winnicott, um garoto psicótico, paciente da enfermaria,
afirmou que Winnicott deveria voltar ao hospital. O psiquiatra então
perguntou ao garoto se ele achava que a presença de Winnicott tinha sido de
utilidade para ele, ao que o garoto respondeu: “sim, de grande ajuda para
nós, mas ele pode ser de grande ajuda para você também” (KAHR, 2002, p.
10).
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Resumo
Neste trabalho discutiremos a relação entre a capacidade para lidar com perda e os
fenômenos transicionais. Iremos sublinhar algumas diferenças entre as idéias de
Winnicott das teorias apresentadas por Freud e Klein. Discutiremos ainda em que
medida as idéias de Winnicott são relevantes para a compreensão do trabalho do
luto e do amadurecimento emocional.
Palavras-chave
Luto, Winnicott, pesquisa psicanalítica, criatividade, fenômenos
transicionais
THE WORK OF MOURNING IN THE LIGHT OF TRANSITIONAL PHENOMENA
Abstract
In this paper we will discuss the relationship between the ability to cope with loss
and Transitional Phenomena. We will outline some differences between the ideas of
Winnicott and Freud and Klein’s theories. We will discuss to which extent
Winnicott’s ideas are relevant to the understanding of the work of mourning, and
psychological maturity.
Key-words
mourning, Winnicott, psychoanalytic research, creativity, transitional
phenomena
98
QUANDO O BRINCAR É SUBSTITUÍDO PELO ATO ANTI-SOCIAL
Joaquim Gonçalves Coelho Filho66
Antonio Carlos Possa67
A tendência anti-social, presente em pacientes que apresentam egos
fragilizados, foi foco de atenção em inúmeros textos desenvolvidos por D. W.
Winnicott, reunidos, principalmente, no livro "Privação e Delinqüência". Na
base da discussão apresentada, encontra-se toda a sua contribuição para o
campo psicanalítico, que se concentra na comunicação entre o bebê e a mãe
e entre a mãe e o bebê. É a qualidade dessa comunicação que determina o
processo de integração do ser, sua personalização e sua relação com os
objetos no tempo e no espaço.
Ao estabelecer que os objetos subjetivos oferecem a oportunidade do
indivíduo criar a sua identidade, Winnicott está rejeitando a teoria
tradicional de relação de objeto, em que os objetos são externos e
incorporados, internalizados. A teoria tradicional ocupa-se, então, com o
relacionamento entre o sujeito e o objeto - um relacionamento interpessoal.
A teoria winnicottiana ocupa-se com a relação do sujeito com os seus
objetos. Kohon (1986) evidencia a sutileza dessas afirmações:
Esta diferenciação sutil (mas complexa) e fundamental provocou
muita confusão, às vezes até mesmo dentro do movimento
psicanalítico britânico. Não é apenas o relacionamento real com os
outros que determina a vida individual do sujeito, mas, sim, a
maneira específica pela qual esse sujeito apreende seus
relacionamentos com os seus objetos (tanto internos como externos).
Ela implica um relacionamento inconsciente com tais objetos. (p.18).
Para Winnicott, o percurso entre a dependência absoluta e a
independência relativa passa por áreas diferentes, constituídas pelos objetos
representados em conformidade com o estádio em que a criança se encontra.
Os objetos constituídos em primeiro lugar nesse percurso são os objetos
subjetivos, que, quando apoiados pelo ambiente, permitirão que o indivíduo
complete esse percurso, chegando à realidade do adulto. O "nascimento"
para a vida, portanto, é encontrar a mãe/ambiente como objeto subjetivo.
A mãe que é capaz de se preocupar com sua função, nesse momento
da sua vida, propiciará um contexto adequado para se iniciar um
relacionamento excitado com o bebê. Da primeira mamada teórica, que
sintetiza, na vida real, as experiências iniciais de muitas mamadas,
resultará, no caso de ter sido satisfatória, o padrão das mamadas que se
seguirão e que serão facilitadoras, tanto para a função materna como para o
bebê, no relacionamento com o mundo. Essa mamada, quando bem
sucedida, permitirá que o bebê tenha a ilusão de que todos os elementos
66 Mestrado e Doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; Professor e
Supervisor do Curso de Especialização em Psicologia Clínica no IPPESP; Psicoterapeuta.
67 Mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor e Supervisor na
UniFMU; Professor e Supervisor do Curso de Especialização em Psicologia Clínica no IPPESP; Psicoterapeuta.
99
nela envolvidos foram criados pelo impulso vindo da sua necessidade. É a
onipotência originada pela adaptação realizada pela mãe. Como Winnicott
adverte, o bebê precisa ter a ilusão de viver, para viver. Sem essa ilusão, não
se consegue viver uma vinculação, que está diretamente associada à noção
de continuidade da existência.
Assim, o bebê não vê o seio como seio, mas como algo real e essa
realidade só é conseguida pelo contato com o seio real. Mais precisamente, o
bebê é pela união com a mãe e não pela existência do seio. Somente assim, o
bebê, ao longo do seu desenvolvimento afetivo, vivenciará os diferentes
sentidos do real. Vivenciará a qualidade dos objetos e a existência deles, a
efetividade ao longo do tempo. Começa a ser, começa a estar presente no
tempo.
A mamada do bebê, portanto, não é uma representação, uma
teorização. É uma tensão instintual, em que ele acaba por esperar alguma
coisa, visando suprir a necessidade de continuar vivendo, além, é claro, de
suprir a necessidade biológica. Desta forma, o bebê estará existindo,
preparando-se para ocupar um lugar, um espaço. Pronto para ser criativo.
Criar o mundo. E a mãe, que tem a capacidade de se identificar com o bebê,
irá ao encontro desse momento criativo.
Quando, porém, a primeira mamada falha, por inaptidão da mãe, ou
mesmo de quem está ao seu redor, com intervenções inapropriadas, o bebê
será privado de vivenciar a satisfação da sua necessidade. Mais complicado
ainda será quando ele passa a acreditar que sabe o que é a satisfação de
uma necessidade, por imitação ou indução de quem teve essa vivência. A
criança precisa da ilusão do real, da experiência do real para poder, um dia,
desiludir-se, poder morrer, poder voltar para o nada. Portanto, o bebê passa
a existir como ser humano, porque é um ser criativo, já que se permite ter
ilusões. Por outro lado, diante da falha da primeira mamada, o bebê poderá
ter a ilusão de ter tido uma ilusão. Esta é a possibilidade da ocorrência do
falso self, em que o indivíduo não consegue referir-se a sua própria história.
Ela estará perdida no tempo, sem cronologia, sem sentido para ele. O real
ficará comprometido. Somente diante da conexão do presente, passado e
futuro é que se constituirá o seu self e o seu mundo. Uma estrutura
preparada para receber os objetos e viver a integração, ter a própria história.
Criar um sentido para ele.
A falha na devoção da mãe pelo seu filho compromete a tendência
natural da criança em se tomar uma unidade integrada. A mãe devotada
oferece a "experiência da onipotência", a partir da sua principal tarefa, na
direção da integração, que é o holding e que viabiliza a mãe como objeto. Um
objeto bom. Um objeto que é criado pelo bebê.
O bebê cria somente aquilo que está ao seu alcance, aquilo que está lá
esperando para ser encontrado. A matéria prima da tendência natural ao
amadurecimento é a capacidade que o bebê tem de se iludir. Ilusão de
realmente encontrar aquilo que ele criou (Winnicott, 1988). Mas, esta ilusão
só será possível se esse bebê puder contar com uma mãe suficientemente
boa. As mães, quando insuficientes ou extremamente boas, roubarão dos
seus bebês a capacidade da ilusão. Desta forma, nunca chegarão à realidade
real, que nada mais é do que a ilusão que deu certo.
100
Voltando-se ao bebê saudável, isto é, maduro para a idade, e que
conseguiu a sua integração, ele estará apto para se perceber como uma
pessoa e perceber a existência do outro. Perceber a existência dos pais. O
bebê saudável chega a esta condição por instinto. Não o instinto freudiano
que está sempre lá em busca de prazer, mas o instinto que busca a
satisfação de uma exigência. Quando isto ocorre de forma plena, ocorre o
alívio do instinto e um período de descanso até a próxima exigência. Fala-se,
aqui, de um instinto intermitente, que vem e que vai, sempre exigindo uma
ação que o satisfaça.
A busca de satisfação do instinto atende à função básica do bebê que é
a da integração, traduzida, grosso modo, pela circunscrição do seu próprio
corpo e o reconhecimento das suas necessidades. Somente o bebê que teve o
desenvolvimento emocional saudável (aquele que chegou ao concernimento
com a cumplicidade da mãe suficientemente boa, isto é, com a mãe ambígua
- aquela que estava lá quando o bebê se encontrava excitado, permitindo ser
usada por ele, mas que também continuava lá, oferecendo suas qualidades
de mãe, quando o bebê achava-se em descanso) poderá experimentar o
desenvolvimento instintivo, que tem em um dos extremos a fase oral e, no
outro, a fase genital.
Esse bebê, que tem na mãe o seu ego (ego auxiliar), apresenta em seu
desenvolvimento a capacidade de se relacionar com os objetos subjetivos e,
vez ou outra, relacionar-se com objetos percebidos objetivamente (não-eu).
A constituição do ser, aos olhos de Winnicott, é, portanto,
extremamente dependente do encontro de um ser constituído,
potencialmente disposto a encontrar-se, com um ser que ainda está por vir,
um ser potencialmente disposto a existir. O ser disposto a encontrar-se será
aquele capaz de sustentar todas as operações necessárias para o bebê
passar da solidão absoluta para a relação de objeto e desta relação ao uso de
objetos. O ser disposto a existir será aquele capaz de criar, antecipadamente,
o que virá a ser a realidade. Criar a si próprio.
Esta criatividade primária (Winnicott, 1954) vem a ser a capacidade de
projeção como criação e não como identificação projetiva defendida por
Melanie Klein. É anterior a ela. Assim, o ser humano é capaz de projetar o
que nunca foi ingerido, introjetado. Aqui, a mãe só assiste. É a criatividade
primária que cria o senso de realidade.
O material de projeção (objeto subjetivo), enquanto não destruído,
servirá de ponte entre a área do objeto subjetivo e a área do objeto
objetivamente percebido. Tem-se aqui o início da organização do ego, ou
seja, a experiência de ser, viabilizada pela relação de objeto do elemento
feminino, presente em bebês masculinos e femininos. Por outro lado, a
relação do elemento masculino com o objeto viabiliza a separação (eu/nãoeu). Assim, o elemento masculino faz, enquanto o elemento feminino (em
homens e mulheres) é.
Se, em um primeiro momento, o elemento feminino permite a tão
necessária vivência do ser, da experiência da onipotência, num segundo, são
as vivências da frustração, experimentadas de forma gradativa e oferecidas
pelo elemento masculino, que facilitarão a mudança do objeto de subjetivo
para percebido objetivamente. A frustração "tem o valor de educar o lactente
101
a respeito da existência de um mundo que é não-eu." (Winnicott, 1979, p.
165).
A clínica winnicottiana é concebida, então, sobre a relação e não sobre
atos mentais (objetos objetivamente percebidos) como na clínica freudiana,
que não aceita um analista como objeto subjetivo, uma vez que o jogo da
associação livre não faria sentido. É por esse mesmo motivo que a maioria
dos analistas freudianos não considera como adequada a terapia
psicanalítica para pacientes psicóticos ou fronteiriços, já que sofrem
primordialmente de uma deficiência na capacidade do ego de formar e reter
representações objetais mentais.
Winnicott associa diretamente o par mãe-bebê ao par psicoterapeutapaciente. Desta forma, a interpretação de um paciente com transtorno grave
de personalidade soaria como uma confrontação entre eu/não-eu (objeto
subjetivo). Seria uma intrusão, uma vez que este tipo de paciente não vê o
profissional como objeto externo, até porque ele não o quer colocar fora da
área subjetiva. Neste caso, é importante que o profissional esteja ali o tempo
todo para ser usado. Melhor ainda quando ele resiste a todo o mal projetado
pelo paciente. Uma retaliação do profissional ameaça a continuidade do ser
do paciente. Se o psicoterapeuta puder esperar, "o paciente chegará à
compreensão criativamente, e com imensa alegria" (Winnicott, 1971, p.122).
Em última instância, a clínica winnicottiana acontece na sobreposição
de duas áreas do brincar: a área do paciente e a do psicoterapeuta. A
psicoterapia, como diz Winnicott (1971, p.59), "trata de duas pessoas que
brincam juntas". É na existência de um espaço potencial, área compreendida
pela realidade psíquica do indivíduo e pela realidade compartilhada do
mundo externo aos indivíduos, que a psicoterapia assume o caráter do
brincar, do brincar saudável, que facilita o crescimento, já que a
comunicação entre o par terapêutico torna-se extremamente facilitada pelo
brincar.
Embora o brincar seja universal e decorrente da saúde do indivíduo,
inúmeros jovens não possuem essa capacidade, por se encontrarem doentes,
diante da falta de validação da sua existência, quer por isolamento
compulsório provocado pela dinâmica familiar, quer por invasão
avassaladora de uma mãe, ou de quem está exercendo a função materna,
que, por não ter sido também validada, exerce a sua função não validando o
seu filho, mas somente a si própria, na tentativa de se ver legitimada como
pessoa, a despeito dos prejuízos psíquicos causados ao filho.
Exemplos de jovens desprovidos da capacidade do 'brincar’ são
encontrados em instituições governamentais, voltadas a medidas sócioeducativas.
Como é amplamente divulgado pela imprensa, escrita e falada, o
aumento da violência, principalmente na infância e na juventude, vem
assumindo números assustadores no Estado de São Paulo, passando de 3
mil jovens privados de liberdade em 1999 para 5 mil, passados quatro anos.
O governo vem tentando cumprir a sua parte, dentro do que está
preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, de 1990, tendo
em vista ser o Estado o tutor legal desses jovens. Entretanto, torna-se uma
tarefa difícil para o governo oferecer algo mais do que medidas sócioeducativas, diante da crescente necessidade de absorver um número cada
102
vez maior de adolescentes em conflito com a lei. Assim, na tentativa de
resolver o problema, criam-se mais unidades de internação, para aumentar a
oferta de vagas, deixando de investir em medidas preventivas que
possibilitariam a redução do número de atos infracionais.
Sabemos que a violência contra a criança traz prejuízos ao seu
desenvolvimento emocional. Quando este desenvolvimento é perturbado ou
bloqueado pela crueza da realidade que se apresenta à criança, algum tipo
de violência está em ação. O vínculo afetivo desempenha um papel
fundamental na saúde mental do ser humano em desenvolvimento. Quando
o seu cotidiano está submetido à intolerância ou reações agressivas
imprevisíveis, a capacidade de vinculação afetiva da criança fica
comprometida, bem como seu potencial de desenvolvimento emocional,
pautado na confiabilidade que o ambiente lhe oferece.
Inseridos em famílias desestruturadas, esses jovens partilham um
ambiente imprevisível e altamente ameaçador, cuja configuração familiar
sofre constantes alterações, com a saída de membros da família, ora pela
conveniência de uma pessoa a menos para ser alimentada, ora pela troca de
parceiro da mãe. São crianças que se vêem colocadas em planos secundários
da mãe, que se encontra incapacitada para oferecer vínculos estáveis aos
filhos, diante do risco de por a perder a condição de ter um companheiro
que, na sua concepção, a protege e oferece a possibilidade de estabilidade
financeira, mesmo que momentânea. São mães que, diante dos riscos da
instabilidade conjugal, se tomam predadoras de seus próprios filhos na luta
pela própria sobrevivência. Definitivamente, neste ambiente não existe a
mínima possibilidade da vivência da onipotência e do controle do real, fase
que, uma vez consolidada pela confiança adquirida na relação com a mãe,
pode vir a ser readaptada e ajustada com a introdução de situações que
venham a frustrar a criança, na dimensão suportada por ela, em contato
com objetos agora percebidos objetivamente.
Normalmente, esse jovem é desprovido da capacidade de brincar e a
primeira tarefa do psicoterapeuta é ajudá-lo a se tomar capaz de brincar.
Para Winnicott (1971, p.80), somente após o desenvolvimento da capacidade
de brincar é que a psicoterapia pode começar: "o brincar é essencial porque
nele o paciente manifesta sua criatividade".
Ainda que se referisse a outro contexto e a crianças vitimizadas pela II
Grande Guerra, Clare Winnicott, segunda esposa de Winnicott, na
introdução da coletânea de artigos do marido intitulada "Privação e
Delinqüência" (1984, p. 4), relata o encontro "entre os elementos anti-sociais
na sociedade e as forças da saúde e da sanidade que se organizam para
corrigir e recuperar o que se perdeu". Clare destaca que as crianças que
eram encaminhadas para os alojamentos supervisionados por Winnicott
eram aquelas que necessitavam de acompanhamento especial, uma vez que
já vinham de lares desestruturados, antes mesmo da ocorrência da guerra, e
que, para muitas delas, o efeito da guerra tinha um cunho benéfico, ao por
fim a uma situação intolerável, abrindo a perspectiva de um acolhimento
revestido de ajuda e alívio. Nas palavras de Clare Winnicott (p. 4-5):
O ponto de interação entre os que prestam e os que recebem
cuidados é sempre o foco para a terapia neste campo de trabalho, e
103
requer atenção e apoio constantes dos especialistas envolvidos, bem
como o suporte esclarecido dos administradores responsáveis. Hoje,
como sempre, a questão prática é como manter um ambiente que
seja suficientemente humano, e suficientemente forte, para conter os
que prestam assistência e os destituídos e delinqüentes, que
necessitam desesperadamente de cuidados e pertencimento, mas
fazem o possível para destruí-los quando os encontram.
Para Winnicott, a criança normal, que desenvolveu confiança nos pais,
por eles estarem sempre por perto para serem encontrados quando a criança
assim o desejava, experimenta a liberdade de agir, de destruir, de se
apropriar das coisas, de ser uma criança sem responsabilidades. Esta
vivência passa a ser um marco na vida da criança, diante da tolerância dos
pais aos seus atos destrutivos, já que ela sentirá a tolerância dos pais como
uma comunicação da aceitação incondicional do filho, ainda que este
apresente ações que, em uma outra fase da vida, seriam condenáveis pela
sociedade, mas que na meninice são consideradas normais. A tolerância dos
pais permite que a criança não desenvolva temor pelos seus próprios
sentimentos, o que a deixaria extremamente ansiosa em relação às suas
fantasias destrutivas, e, portanto, possibilita o seu desenvolvimento
emocional. Quando se fala em tolerância, fala-se da aceitação e convivência
com ações destrutivas da criança e não, de um ambiente sem limites. Um
ambiente que apresente regras banalizadas e falta de limites compromete a
própria liberdade da criança, que, ao invés de se sentir livre, vivencia a
ansiedade decorrente da falta de referência ambiental.
Winnicott (1946) destaca que a criança que não consegue uma
referência ambiental em seu lar tenta achá-la no grupo familiar maior, com
tios ou avós, ou em relações sociais, como na escola, a fim de vivenciar a
estabilidade interna, a partir da estabilidade externa conseguida. Quando os
grupos
mais
próximos
não
oferecem
a
estabilidade
externa
inconscientemente pretendida, a criança apela para a sociedade,
configurando os atos anti-sociais. Para Winnicott, essas atitudes
representam um pedido de ajuda, que, quando não identificado como tal,
sendo os atos anti-sociais simplesmente coibidos pela punição, pode se
transformar em recrudescimento das atitudes anti-sociais, que funcionam
como defesa, distanciando-se da perda original de estabilidade ambiental,
cuja ansiedade decorrente é afastada pelo embate que se estabelece entre os
atos anti-sociais e a força das punições e que se apresenta como a
possibilidade de preenchimento da lacuna ocorrida pela descontinuidade da
provisão ambiental. Em última análise, esse novo contexto constituído pelo
embate de forças opostas demonstra a esperança da criança em redescobrir
os limites que foram perdidos. A esse respeito, Jam Abram, estudiosa da
obra de Winnicott, diz que "O indivíduo está em busca do ambiente que está
preparado para dizer não, não como punição, mas como um incentivador do
sentimento de segurança." (Abram, 1996, p. 44)
Por extensão, podemos concluir que as atuações anti-sociais da
criança constituem aspectos positivos, quando vistas pelo prisma da
constituição do ser, já que traduzem a esperança da redescoberta de limites,
que se constituiriam em referência interna de legitimidade existencial, ainda
104
que essas atuações denotem um estado de doença, diante do
desenvolvimento emocional interrompido.
A importância de compreendermos o ato anti-social como a expressão
de esperança da criança fica evidenciada na proposta de Winnicott como
tratamento de pacientes que apresentam essa tendência, que ele considera
poder ser identificada em um indivíduo normal, bem como em um outro
classificado como neurótico ou psicótico. Assim, em suas palavras:
a tendência anti-social não é um diagnóstico. (...) Ela se caracteriza
por possuir um elemento que compele o meio ambiente a ser
importante. O paciente, através de impulsos inconscientes, compele
alguém a lhe prestar assistência. É tarefa do terapeuta deixar-se
envolver por este impulso inconsciente e seu trabalho é feito em
termos de manejo, tolerância e compreensão. (Winnicott, 1956, p.
502-3)
Embora Winnicott tenha se dedicado à tendência anti-social
principalmente em crianças, ele destaca que ela pode ser encontrada em
indivíduos de todas as idades. Nos estudos que realizou no pós-guerra,
Winnicott construiu uma seqüência teórica, que retrata todas as demais
seqüências reais, dando ênfase aos termos envolvidos neste tema e se
opondo ao diagnóstico de tendência anti-social:
Uma criança sofre privação, quando é privada de certas
características essenciais da vida familiar. Algum grau do que se
poderia chamar de 'complexo de privação' torna-se manifesto. O
comportamento anti-social manifestar-se-á em casa ou em esfera
mais ampla. Devido à tendência anti-social, a criança pode
eventualmente ter a necessidade de ser julgada desajustada e de
receber tratamento em um albergue para crianças desajustadas, ou
pode ser enviada aos tribunais como incontrolável. A criança, agora
um delinqüente, pode então ficar sob liberdade condicional por
decisão do tribunal, ou pode ser enviada para um reformatório. Se o
lar deixa de preencher uma função importante, o 'Comitê de
Crianças' pode se encarregar da criança (...), sendo-lhe dispensado
'cuidado e proteção'. Se possível, tentar-se-á encontrar um lar
adotivo. Caso estas medidas fracassem, o jovem adulto pode passar a
ser considerado psicopata, podendo ser mandado a um reformatório
ou a uma prisão pelos tribunais. Pode haver uma tendência
estabelecida a repetir crimes para o qual utilizamos o termo
reincidência. Nada disso faz referência ao diagnóstico psiquiátrico do
indivíduo. (1956, p. 502-3, grifos do autor)
A despeito desse texto de Winnicott denotar a sua idade e local de
origem - foi escrito há quase 50 anos, em Londres -, em linhas gerais,
reproduz o percurso trilhado pelos jovens brasileiros com tendências antisociais, da mesma forma que as suas observações sobre o tratamento de
indivíduos com tendência anti-social soam como conhecidas, ao reafirmar
que é muito comum verificarmos que os profissionais envolvidos com a
105
tarefa de assistirem esses pacientes desperdiçam o momento de esperança
subjacente ao ato anti-social, pela utilização de manejo desastrado ou da
intolerância. Finaliza sua constatação afirmando que a psicanálise não se
coaduna com o tratamento de indivíduos com tendência anti-social, que
exige um manejo que seja capaz de ir ao encontro do momento de esperança
do paciente e que possa corresponder a ele, com provisão estável de
cuidados que possam ser redescobertos pelo paciente, permitindo a
retomada do desenvolvimento emocional.
Dessa forma, o bebê/ a criança/ o jovem/ o adulto poderá estabelecer
uma nova relação de confiança com o mundo externo que voltou a legitimálo como indivíduo, e viver de forma criativa: brincar com a realidade como
uma verdadeira experiência do self.
Ainda assim, é freqüente acreditarmos que as crianças descarregam o
ódio e a agressividade no brincar. Em Winnicott (1965), a agressividade não
é uma coisa nociva que precisa ser jogada fora, sendo mais importante a
constatação pela criança de que a expressão de sua agressividade pode ser
exercitada sem que venha a ser retaliada pelo ambiente, desde que expressa
de uma forma razoavelmente aceitável, embora o ódio e a agressividade
simplesmente descarregados no brincar, não guardados por muito tempo,
possam reduzir a ansiedade da criança de possuir conteúdos nocivos. É no
brincar que a criança adquire experiência:
O brincar é uma parte importantíssima de sua vida. Tanto as
experiências externas quanto as internas podem ser muito ricas para
o adulto, mas para a criança as mais enriquecedoras serão
descobertas no brincar e na fantasia. Da mesma forma que a
personalidade do adulto é desenvolvida através de suas experiências
de vida, a da criança desenvolve-se através de seu brincar, assim
como do brincar criativo de outras crianças e adultos. Ao enriquecerse, a criança gradualmente aumenta sua capacidade de enxergar a
riqueza do mundo real externo. O brincar constitui-se na constante
evidência da criatividade, o que implica estar vivo. (p. 163)
Quando em psicoterapia, a criança/ o jovem/ o adulto deve exercitar
sua criatividade através do brincar, já que a psicoterapia se desenvolve pela
sobreposição de duas áreas do brincar: a do paciente e a do psicoterapeuta.
Um brincar mútuo e espontâneo, não submisso. Interpretações do
profissional sem o amadurecimento do material psíquico apresentado pelo
paciente tornam-se doutrinações, produzindo submissões e maiores
resistências, uma vez que essas interpretações ocorrem fora da área do
brincar. (Winnicott, 1971)
Fica evidente, então, que todo trabalho dirigido aos adolescentes
privados de liberdade por atos infracionais cometidos necessita da promoção
da sua capacidade criativa, a fim de que ele possa ser capaz de se ver
existindo no tempo e no espaço, em contraposição à concretude de sua
existência, calcada na posse imediata de bens que oferecem a sensação de
realização, mesmo que em termos externos e circunstanciais, até porque
estão tentando reaver algo que sentem que tiveram, mas que perderam.
Geralmente, quando bebês, experienciaram um ambiente bom na fase de
106
dependência absoluta, mas, na fase de dependência relativa, perderam as
qualidades boas desse ambiente. O que realmente importa e o que faz do
jovem uma pessoa única fica oculto e, assim, o fato de viver ou morrer
torna-se indiferente. Aqui reside a importância da convicção e consistência
do trabalho terapêutico, que requer alto comprometimento do profissional e
responsabilidade ética no tratamento desses jovens. O importante é
distanciar-se do senso de futilidade da sua existência, que, pela falta da
capacidade de brincar desse jovem, insiste em se apresentar como sendo sua
única e legítima posse, a posse da sensação de não ser significativo para
ninguém, de não ter sido validado por ninguém, nem mesmo por aqueles que
o viram nascer e crescer.
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Imago, 1990. 222 p.
107
Resumo
Este trabalho discute a dinâmica de pacientes com tendências
anti-sociais, a partir das contribuições de Winnicott, bem como
as condições que podem favorecer o surgimento dessas
tendências, diante do desenvolvimento emocional
interrompido. Destaca o sentido que o ato anti-social tem para
a criança e as possibilidades de intervenção em tratamentos
psicoterápicos, tendo-se o brincar como meio de comunicação
entre o paciente e o psicoterapeuta. Finaliza a discussão
evidenciando a importância da criatividade como elemento
estruturante da subjetividade do ser humano.
Palavras-chave
Tendência anti-social; O brincar e a realidade; Privação e
delinqüência; Desenvolvimento emocional; Criatividade.
WHEN THE PLAYING IS SUBSTITUTED BY THE
ANTISOCIAL ACT
Abstract
This paper, having in mind Winnicott’s contributions,
discusses the patients with antisocial tendency dynamics, as
well as the conditions that can such tendencies to emerge face
an interrupted emotional development. The meaning an
antisocial act has to the child and the intervention possibilities
in a psychotherapic treatment, using the playing as means of
communication between the patient and psychotherapist, are
pointed out. The paper ends the discussion giving evidence to
the importance of creativity as the element that structures the
human being’s subjectivity.
Key-words
Antisocial tendency; Playing and reality; Deprivation and
delinquency; Emotional development; Creativity.
108
TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL E ILUSÃO NA ADOLESCÊNCIA
Eliana A. S. Pintor68
José Tolentino Rosa69
A tendência anti-social advém de uma experiência de privação. O
conceito de privação está ligado ao fracasso ambiental ocorrido na etapa da
dependência relativa (seis meses aos dois anos). Esta privação pode ser de
dois tipos: 1- deprivação, ou seja, perda do “bom objeto”, perda do estado no
qual se teve algo bom que foi perdido; e 2- privação, que caracteriza o estado
no qual nunca se teve algo e que resulta em doença mental ou no domínio de
uma psicose. Sendo que, a experiência de privação está associada à
impossibilidade de alcançar a posição depressiva e um sentido de
responsabilidade social dentro do indivíduo. (OUTEIRAL, 1997).
Winnicott revela que na tendência anti-social há um sinal de
esperança. Segundo o autor, a criança que rouba não deseja o objeto
roubado, mas está em busca da mãe, sobre a qual tem direito. (WINNICOTT,
1956).
A adolescência é palco de transgressões, um tempo propicio para os
atos anti-sociais. Inclui a possibilidade de re-significar o corpo, a família e a
sociedade em busca de uma identidade própria.
Knobel (1991) destaca que na descrita “Síndrome do Adolescente
Normal” são encontrados claros traços psicóticos em 90% dos 1.000 (um mil)
adolescentes estudados, com a finalidade de detectar estas características.
Para o autor os chamados “traços psicóticos” são condutas transitórias (grifo
do autor) de irracionalidade, difusão temporal, episódios fugazes, porém
marcados pela despersonalização, depressão ou mania, violência
indiscriminada ou expressões de pensamento claramente ambíguo ou de
características psicopáticas sem discriminação consciente.
Diante destas considerações pensamos que ao atender adolescentes
nos dispomos a mergulhar num mundo de intensidade emocional que beira
a loucura ou chega até ela em alguns momentos. Os ajustes borderline
permeiam este estádio do desenvolvimento, e portanto, o setting pode sofrer
alterações de modo a atender as necessidades do paciente e recuperar falhas
ambientais. Desta forma, o setting funciona como metáfora dos cuidados
maternos. Para pacientes regredidos o setting analítico assume um
significado especial e analogamente as experiências insatisfatórias poderão
assumir o significado de experiências corretivas, criando condições para que
venha ocorrer uma mudança psíquica.(PINTOR, 2003).
Para ilustrar os conceitos citados apresentaremos de forma sintética
um caso atendido no serviço público no período de 14.09.2001 a
25.06.2002, perfazendo um total de 40 sessões.
68 Psicóloga e Mestre em Psicologia da Saúde, UMESP, Psicóloga clínica da Secretaria de Saúde, Diadema. E-mail:
[email protected]
69 Professor Titular do Curso de Pós-graduação em Psicologia da Saúde, Faculdade de Psicologia e Fonoaudiologia,
UMESP. Orientador
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O doente imaginário: um pescador de ilusão
“Os doentes mentais são como beija-flores. Nunca pousam. Estão sempre a
dois metros do chão.”
Bispo do Rosário
O Doente Imaginário, um adolescente de 16 anos, chegou à equipe de
saúde mental de uma Unidade Básica de Saúde da área metropolitana de
São Paulo através de uma usuária do serviço que o percebeu muito só, inerte
e agendou uma entrevista com a assistente social. Tratava-se de um garoto
solitário, que havia perdido o ano escolar por faltas e fazia uso de maconha.
Foi encaminhado pela assistente social para um serviço especializado na
dependência de substâncias psicoativas. Porém, compareceu apenas na
primeira entrevista com a psicóloga e não deu continuidade ao tratamento. A
assistente social o encaminhou em seguida para um grupo de teatro para
adolescentes sob a coordenação de uma psicóloga da rede municipal, ao qual
ele não aderiu. Diante disto a assistente social procurou-me para ver a
possibilidade de prestar-lhe atendimento na própria Unidade Básica de
Saúde.
Na primeira entrevista o adolescente traz como queixa principal o fato
de ter a sensação constante de que saia do próprio corpo. Relacionava o
sintoma com o uso da maconha, a qual teria usado intensamente no inicio
daquele ano. No momento da entrevista declara que fazia uso da maconha
duas ou três vezes por semana. Atribuía o seu sintoma a um efeito colateral
do abuso da droga. Devido à sua sintomatologia recebeu o codinome de
Doente Imaginário.
D.I. trajava-se de um modo despojado, fazia combinações atípicas no
vestuário, tinha cabelos compridos, usava vários brincos numa orelha. Era
risonho, simpático e cordial. Era filho de pais separados, sendo que esta
separação ocorreu quando ele tinha 6 anos. O pai era alcoolista e
encontrava-se desempregado. A mãe trabalhava numa creche como
educadora. Tinha uma irmã casada, com 25 anos e um irmão de 26 anos
com o qual não se dava bem.
Referiu-se a família com desilusão,
enfatizando o aspecto da desunião. A mãe foi apresentada como uma figura
frágil, uma vítima, mas também foi responsabilizada pelo medo que D.I.
tinha do pai quando pequeno. Contou que a mãe acendia velas para não
apanhar do pai e o temia muito. Descreveu-se na infância como um
“bobinho” diz: “eu era um coitado”. Relatou que gostava de rock e possuía
uma banda onde tocava baixo e guitarra. Teve apenas uma namorada por
dois meses. Nessa época diminuiu o uso da maconha e usava álcool,
também passou a se auto agredir se furando com alfinetes. Sua intenção ao
furar-se era ficar fora de si para não sentir a dor. Testava sua resistência
para ver se agüentava e ele sempre agüentava. Era impossível dormir
enquanto não se furava. Gostava de freqüentar o cemitério e uma vez quis
jogar-se do alto de uma lápide.
D.I. não aceitou a idéia de nossa equipe de saúde mental ter algum
contato com alguém de sua família, sentia-se ameaçado e dizia que a mãe
jamais poderia saber do seu envolvimento com drogas. Percebi um apelo
veemente e decidi correr o risco de atendê-lo mesmo assim. Em outubro do
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mesmo ano o encaminhei para o psiquiatra devido ao seu estado depressivo,
comentou numa sessão que não pensava no futuro, pensava apenas na
morte.
Contra-transferencialmente este paciente causava-me um estado de
preocupação constante, suas sessões eram ricas em conteúdo, porém, em
algumas delas ele mostrava-se muito confuso, com dificuldade de explicar
seus sentimentos. Nestas sessões meu trabalho era decodificar as suas
mensagens, tentar dar um contorno ou estabelecer um nexo. Na primeira
fase da psicoterapia, D.I. mostrava-se atemporal. Comparecia em dia
diferente do que havia sido agendado, chegava perguntando se estava no
horário certo e às vezes de fato estava enganado, tendo que aguardar um
pouco. No início do atendimento D.I. mudou-se para outro bairro, ofereci-lhe
duas sessões semanais mas, ele disse não ser possível devido às dificuldades
financeiras. O seu comparecimento às sessões ficou limitado a uma vez por
semana e às vezes nem isso por falta de dinheiro para o transporte. Chegou
a lamentar-se por uma falta dizendo que pensou em ir a pé, mas a distância
era muito grande.
Após as primeiras entrevistas foi realizado um T.A.T. (Teste de
Apercepção Temática) cujos conteúdos predominantes foram: a confusão de
identidade, a falta de perspectivas nas histórias sem final, os pais frágeis e o
seu sofrimento. Os títulos das histórias aludem as faltas: “era preciso”, “o
roubo”, “desde pequeno”. Houve predominância de mecanismos da posição
esquizo-paranóide, mas também mecanismos da posição depressiva se
apresentaram.
As sessões de D.I. refletiam um jovem sem perspectivas, sem ilusão
alguma. Eu acreditava em risco de suicídio. Na sua quinta sessão inicia
falando que fez aniversário (completou 17 anos) e que não gosta de presente,
a mãe e a irmã o presentearam e uma tia foi cumprimenta-lo. Comenta que
quando recebe um presente, pensa naqueles que não ganham como um
primo seu que estava lá no dia. Logo adiante fala sobre a sensação de estar
fora do corpo, como se estivesse no efeito da droga, ele se lembra das coisas
que fez depois, como se fosse um filme, como por exemplo: “eu vim aqui,
falei e depois vejo isto como um filme.” Fala que não pensa no futuro como
as outras pessoas: pensar em casar e etc. Para ele a sensação é de estar no
fim, pensa em morrer. Pensa em morrer devagar, fica pensando em formas
de se matar, não quer que seja de repente, pensa em morrer aos poucos, fala
da experiência de se furar, de sentir dor e ir até onde agüentava e depois lhe
dava um alívio, um sono. Neste momento digo-lhe: “Só pode sentir dor quem
está vivo, parece que há aí uma busca da vida. Acontece muitas vezes que
quando a pessoa quase morre descobre que é bom viver.” Ele diz que não
gostaria de morrer por doença ou algo que lhe tirasse a vida. Comenta em
seguida sobre a loucura na sua família (tios paternos), inclusive um tio mora
com ele. Ele se identifica com o tio e acha que o problema pode ser
hereditário. Acredita que se estivesse usando droga até hoje, já teria feito
alguma besteira contra si mesmo. Conta que fez tudo para sair do bairro e ir
para a casa do pai, para distanciar-se das drogas. Diz que a família
desconhece o seu envolvimento com drogas e se a mãe viesse a saber ele se
matava.
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Um poema e uma música na sessão
Na sessão seguinte levo para ele um poema de Pablo Neruda que
encontrei na internet casualmente durante a semana, é o seguinte:
Morrer Lentamente
Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso,
evita as próprias contradições.
Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias
o mesmo trajeto e as mesmas compras, quem não troca de marca, não
arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o “preto no
branco” ou os “pingos nos is” a um turbilhão de emoções indomáveis,
justamente as que resgatam o brilho nos olhos, sorrisos e soluços,
coração aos tropeços... sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no
trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho,
quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve
música, quem não acha graça de si mesmo.
Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da
chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não
perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo
quando lhe indagam o que sabe.
Evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar
vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar.
D.I. geralmente demonstrava dificuldade em iniciar a sessão, em dizer
a primeira frase. Nesta sessão eu inicio após breve silêncio dizendo-lhe do
poema que encontrei e que se relacionava com o tema da sessão anterior. Ele
sorri e a impressão que me causa é de surpresa e alegria pela terapeuta ter
se ocupado dele fora da sessão. O meu objetivo com o poema era relativizar a
sua colocação mostrando que de alguma forma ela já vinha fazendo isto. O
texto também pressupõe um superego mais condescendente e ainda a
necessidade de uma busca para uma vida feliz, que pareciam aplicar-se ao
momento do paciente.
Na sua oitava sessão ele conta que ganhou um ingresso para um show
musical de uma banda chamada Rappa. Porém, alcoolizou-se antes do show
e foi parar no hospital. Perdeu o show. Relata que não vê prazer nas coisas e
inclui a perda do show neste estado de ânimo, Se fosse em outra época
jamais teria perdido este evento. O grupo musical referido tem uma música
chamada “Pescador de Ilusões”. Cito esta canção para D.I. Ele parece
surpreso por eu conhece-la e diz imediatamente: “É a música que eu mais
gosto do C.D.” Relaciono o título com a sua busca. Ele sorri e faz alusão a
uma música do grupo Legião Urbana que ele acredita chamar “Quase
sempre” e que gosta de ouvir. Busco este título e encontro a música “Quase
sem querer” - há um ato falho. Levo para a sessão seguinte para conferir e
perceber como ele se identifica. Este é o conteúdo:
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Quase sem querer
Tenho andado distraído,
Impaciente e indeciso,
E ainda estou confuso,
Só que agora é diferente:
Estou tão tranqüilo
E tão contente.
Quantas chances desperdicei.
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo mundo
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém.
Me fiz em mil pedaços
Pra você juntar
E queria sempre achar
Explicação pro que eu sentia.
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo
É sempre a pior mentira.
Mas não sou mais
Tão criança a ponto de saber
Tudo.
Já não me preocupo
Se eu não sei porquê
Às vezes o que eu vejo
Quase ninguém vê
E eu sei que você sabe
Quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você.
Tão correto e tão bonito:
O infinito é realmente
Um dos deuses mais lindos.
Sei que às vezes uso
Palavras repetidas
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?
Me disseram que você estava chorando
E foi então que percebi
Como lhe quero tanto.
Já não me preocupo
Se eu não sei porquê
Às vezes o que eu vejo
Quase ninguém vê
E eu sei que você sabe
Quase sem querer
Que eu quero o mesmo que você.
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Quando digo que estou com a letra ele me pergunta porque eu trouxe e
disse-lhe que me interessava saber com que partes da música ele se
identificava. Proponho a leitura e que ele vá me dizendo o que lhe faz pensar.
Na primeira estrofe ele diz se lembrar do tempo em que se furava e que agora
está mais contente. Também pensa nas chances desperdiçadas. Comenta
que se achava um rebelde e agora procura a paz. Fala que não sabe se a mãe
e a irmã acreditam na sua mudança. Ele acha que elas não entendem seus
hábitos vegetarianos e aí ele se identifica com a frase: “Quando o que eu
mais queria era provar pra todo mundo, que eu não precisava provar nada
pra ninguém.” Diz que a única parte que não bate é: “me fiz em mil pedaços
pra você juntar”. Diz: “Não tenho ninguém pra me juntar.” Relata que não
tem a figura do amor romântico. Continuando na letra da música,
acrescenta: “sempre quis achar explicação para o que eu sentia.” Não se
identifica com a frase: “Já não me preocupo se eu não sei porquê” diz que
sempre quer saber o porque. Na seqüência fala do medo de namorar, quer e
não quer, pensa como vai encontrar alguém que o entenda. Acrescenta
também que evitava olhar as pessoas nos olhos, por medo que a pessoa
soubesse o que ele sentia ao olha-lo. Após os seus comentários, digo-lhe que
o que ele descreveu da música deu-me a impressão de um movimento de
busca, devido às mudanças citada, também por perceber o que lhe falta e
que possivelmente o espaço de psicoterapia seria a tentativa de juntar os
seus mil pedaços junto com a terapeuta e se perceber por inteiro. A
terapeuta não tem como fazer isto sozinha, isto é um trabalho da dupla.
Nesta sessão dou-lhe o encaminhamento para a consulta psiquiátrica. Na
sessão seguinte ele traz o relatório do médico dizendo parecer tratar-se de
um quadro depressivo com distúrbios de senso-percepção e acresce uma
interrogação (F 32.3 ? – CID 10), indicando talvez uma hipótese a ser
confirmada. Foi medicado com cloridrato de fluoxetine 10 mg.
Nas sessões seguintes o Doente Imaginário comenta que ele e o pai
estão construindo um quarto para ele (vai ficar afastado do tio doente
mental), pensa que quando acabar esta tarefa ficará um vazio. Diz que não
consegue alegrar-se, empolgar-se, diz que se sente vivo quando vem às
sessões.
Em sua décima oitava sessão, D.I. mostra-se irritado, decepcionado e
inconformado com o alcoolismo do pai. Este tem bebido diariamente e se
torna chato, agressivo, provocativo. Acha agora, que o pai nunca parou de
beber e os enganou para que voltassem a morar juntos. Comenta que está
determinado a entrar no exército, quer alistar-se. Acha que com isto sai de
casa e ajuda a mãe a sair. Conta que está providenciando documentos e
também tentará uma vaga no Mac Donald¢s. Fala que um trabalho poderia
ajuda-lo muito. Nesta sessão fala muito sobre a mãe. Tem pena dela e diz
que se a mãe morresse ele se largava, ficava na rua, ia andando. Tem essa
vontade, não ter rumo, não pensar em nada; (nesta hora é como se desejasse
a morte da mãe para não ter que ser. Percebo aí um paradoxo). Fala que a
mãe nunca teve férias e quando isto ocorre pela primeira vez, o pai só
apronta. Quer tirar a mãe da casa do pai. Passa a falar sobre Deus, sente-se
revoltado porque tudo isto acontece. Diz que não pode louvar a Deus porque
não pode fazer o que Deus quer dele – parece referir-se ao fato de não saber
perdoar, além da raiva porque Deus não interfere em sua vida. A minha
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colocação aborda o amor que ele sente pela mãe e o sentimento de
impotência que ele carrega desde menino. Agora se sente um menino porque
não pode fazer nada. Está com raiva do pai dele e do pai do céu, ele gostaria
de poder interferir nos destinos da família. Ele parece sair mais aliviado.
Numa outra sessão mostra-se inconformado com o alcoolismo do pai o
qual chama a atenção dos vizinhos com suas bebedeira, ele diz “Todo dia é
um show.”
Aparecem outras angústias em D.I. e ele começa a falar da falta de
identidade, acha que copia coisas dos outros, de cada pessoa que encontra.
Traz também a afirmação de que sua crença é que mesmo que tudo der
certo, ele sempre no fundo vai querer a autodestruição, como se ele sentisse
isso dentro dele. Fala do medo do descontrole e teme voltar a tocar numa
banda. Conta que quando se drogava tocava sozinho e esmurrava a parede,
no dia seguinte tinha a mão inchada e ninguém sabia o porque. Em seguida
relata que viu um astro morrer e achou bonito. Era integrante do grupo de
rock Nirvana. Ele suicidou-se e deixou uma carta para o seu amigo
imaginário. Diz: “Depois que tinha conseguido tudo, o sucesso, matou-se”.
Aponto que ele traduz um medo e um fascínio pela loucura. Sinalizo a
identificação com o pai quando ele bebe. Mostro a loucura do ídolo fazendo
uma carta para um amigo imaginário e ele assente com a cabeça. Sugiro que
o seu lado que gosta da loucura contribui para o fato de ele não estar
usando a medicação prescrita. Neste momento ele fala de efeitos colaterais
do remédio que são indesejáveis e que ele precisa estar atento porque
quando o pai bebe pode agredir a mãe e ele precisa estar bem alerta.
Recomendo-lhe discutir isto com o psiquiatra.
O Doente Imaginário vai modificando-se lentamente e passa a falar do
medo de fazer amigos, medo de ir para o exército (mas o desejo também) e
que está pensando num projeto de conscientização da humanidade, já tem
um nome para o movimento: “O que você faz pela paz?” Com este
movimento pensa em arrecadar alimentos e desenvolver atividades para os
mais desfavorecidos. Aparece um sinal de ilusão que já entremeiam a sua
desilusão pois, expressa o desejo de não ter família, não ter filhos e ser
mendigo. Gostaria de formar uma sociedade alternativa, integrar
movimentos contra a polícia. Gostaria de conhecer o M.S.T. (Movimento dos
Sem Terra). Traz tudo isto numa sessão em meio a outros assuntos variados
e contraditórios. Fecho a sessão espelhando alguns aspectos ambíguos: uma
pessoa que não quer amigos mas ama os desconhecidos, quer fazer um
movimento em prol dos que sofrem. O medo e o desejo de amar. A raiva que
aparece contra a polícia ou contra as injustiças e como ele parece buscar um
modo construtivo de lidar com raiva. O M.S.T. parece ser um exemplo disto,
um movimento bem organizado que sabe o que quer e luta para conseguir os
seus objetivos.
Um sonho na sessão e a experiência de habitar o corpo
O Doente Imaginário chega na vigésima terceira sessão trazendo um
sonho e uma rápida vivência de integração, os quais consideramos o
primeiro fato clínico psicanalítico.
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A sessão começa da seguinte forma:
D.I.: Então
Terapeuta: E então?
D.I. Meu pai não bebeu esta semana... quer dizer ontem bebeu, acho
que bebeu, senti um cheiro.
Terapeuta: Parece que houve uma mudança.
D.I.: Esta semana teve um dia que senti uma coisa diferente, não sei
explicar, hum... não sei se é do remédio, mas acho que não é.
Terapeuta: O que foi?
D.I.: Não sei, acho que parecia que eu estava acordado, porque sempre
me sinto fora, às vezes me sinto muito mal, tenho vontade de pedir ajuda
para alguém, mas não vou saber explicar o que quero. Não sou o mesmo,
não mais aquele menino, quer ser como os outros.
Terapeuta: Não ser mais aquele menino, parece que quer dizer que
você cresceu, está buscando um novo jeito de ser.
Cita então, uma passagem de um livro com a qual identificou-se. O
nome do livro é “Mulher no palco” explica:
D.I.: É um livro de auto ajuda, não sei o nome da autora. Tem uma
parte do livre que me vi. É uma cena da infância dela onde a mãe estava
sentada costurando à máquina e a menina estava deitava no colo do pai e
ele a acariciou e neste momento ela diz que existia algo oculto que ele não
sabia o que era, mas depois compreendeu ser a morte. Comigo é parecido só
que este algo oculto é esta sensação, não sei (parece confuso, fala coisas
tentando explicar).
Terapeuta: Você fala de uma outra dimensão?
D.I.: É uma sombra, me sinto uma sombra. Fico me lembrando de
quando estava no efeito (droga), estava numa rua movimentada e não via os
carros, estava muito maluco. Todos riam e eu ria, todos paravam e só eu
continuava. Aí, depois eu ia pro espelho para ver como eu era e quando eu
estava diante do espelho, já não sabia porque tinha escolhido estar ali.
Terapeuta: No espelho você estava sob o efeito da droga?
D.I.: Não. Eu estava nos lugares mas não estava. Este dia que senti
que estava acordado pude perceber como eu não tinha estado em lugar
nenhum, não estive nos lugares que passei. Aqui teve um dia que quis ir
embora.
Terapeuta: Que dia?
D.I.: O dia da música, não conseguia te olhar, isso acontece com
outras pessoas, minha mãe me levou na igreja, não conseguia olhar para a
mulher da igreja, é, sou assim... Esta noite, tive um sonho. Acho que eu
tinha roubado uma moto do meu irmão, peguei escondido e sai com ela e
então, estou numa subida e a moto começa voltar. Eu me esforço e a moto
parece que sou eu mesmo, parecia que não tinha motor e de repente, me
vejo pedalando, já era uma bicicleta.
Comento sobre o seu descrédito desde o início da sessão, primeiro com
o pai, depois com ele – uma sombra – pergunto-lhe: O que uma sombra pode
fazer, não é? E em seguida falo do sonho, da perda de forças, os veículos vão
enfraquecendo. Aí ele se lembra que na verdade no início do sonho era um
carro e depois que vem a moto. Abordo a força que deseja emprestar do
irmão, como ele já disse que copia as coisas dos outros, como se ele julgasse
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que os outros tem forças que ele não tem. Faço uma analogia com a história
do Rei Midas, um rei que tocava as coisas e elas viravam ouro, no sonho de
D.I. acontecia o inverso. Ele sorri e logo adiante volta a falar do seu mal
estar físico, estar fora do corpo. Volta a falar em pedir ajuda e pergunto-lhe o
que ele gostaria de me pedir. Ele fica pensativo e faz uma pausa. Digolhe:Gostaria de pedir para eu estar com você... ou ajuda-lo a sentir-se
presente? Ele mostra-se confuso, diz que não sabe passa a falar coisas
desconexas, tento ajuda-lo e ele acha um nexo dizendo que consegue ser ele
mesmo com os sobrinhos e com a mãe. Eu pergunto:E aqui? Ele diz:Aqui
também não (não consegue ser ele mesmo). Digo-lhe que apesar disso
naquele espaço ele mostra como se sente e o que pensa. Ele diz em seguida:
D.I.: Agora pouco senti aquilo?
O Doente Imaginário referia-se a sensação de integração que havia
experimentado em casa e agora se repetia no setting, sentia-se presente.
Pergunto em que momento foi e ele diz:
D.I.: Acho que foi quando você perguntou o que eu queria pedir.
Faz uma pausa após isso e passa a falar de amigos, dificuldade de
separação e então retomo aquela sessão onde trouxe a letra da música,
dizendo-lhe que talvez ele tenha ficado com medo de ser o meu filho
predileto. Mais adiante me dá a notícia de que tinha voltado a estudar e
tinha um amigo que ia estudar com ele.
Um momento de regressão: voltar para prosseguir
Na vigésima quinta sessão dirijo-me à sala de espera e encontro D.I.
prendendo os cabelos. Convido-o a entrar. Ele inicia a sessão falando que o
psiquiatra aumentou a dosagem do remédio mas, que hoje ele não tomou.
Relata o mal estar que sente quando vai ao CAPSI (Centro de Atenção
Psicossocial- onde ficam os psiquiatras da rede municipal), gostaria que
alguém o acompanhasse, vê-se naquelas pessoas totalmente fora de si.
Continua no tema de estar fora de si e parece que sua angústia aumenta.
Diz que as pessoas não acreditam no que ele sente. Pergunto-lhe se sou eu e
o psiquiatra que não acreditamos. Ele responde que sim, são todos. Porque
ele contou antes (de falar para a psicóloga e para o psiquiatra) para pessoas
que não eram as pessoas certas e talvez por isso acha que ninguém acredita.
D.I. começou a sessão sorrindo mas, vai ficando sério como nunca
havia ocorrido. Num dado momento diz que quer chorar “não gostaria que
isso acontecesse aqui.” Vai se angustiando e diz que gostaria de ficar
encolhido. Digo-lhe que pode ficar como quiser, os colchonetes são para isso.
Mas ele recusa-se, diz que fica com medo. Pergunto-lhe o que teme, ele
responde: “não é machismo.” Comento que o que pode acontecer é eu ter que
lhe dar papel para enxugar o rosto. Ele diz que quando ele sair as pessoas
vão notar. Digo-lhe que ele pode lavar o rosto (há uma pia na sala). Ele diz
que sempre se controla. Falo que me dá a impressão que ele acha que eu
não agüentaria ou que ficaria zangada com ele e me recusaria a atende-lo.
Após algum tempo chora. Dou-lhe o papel e aí ele parece nutrir-se desta
tristeza e pede-me para que eu fale que ele quer ouvir. Passo a falar da
imagem que fiz deste momento. Penso num colo que o protegesse no CAPSI
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(ele sorri), a barriga da mãe para poder encolher-se e ficar abrigado.
Acrescento que ele pôde ser ele mesmo, que agora a sua feição corresponde
ao seu sentimento, porque antes estava falando de tristeza sorrindo.(Já
havia ocorrido de ele solicitar que eu falasse em outra sessão, como se lhe
produzisse calma. Também comentou certa vez que gostava quando eu fazia
analogias com estágios infantis). Faz silêncio por pouco tempo e volta a
parecer angustiado, dizendo que começa a se lembrar de tudo o que fez (a
sensação é de que fez tudo de errado). Digo-lhe que a palavra “fez” é
passado. Agora está em outro momento. D.I. fala que se estivesse em casa se
furaria porque a dor desvia o seu pensamento. Fala algo sobre descontrole e
lhe mostro o quanto ele sempre se controla diante das pessoas para não
mostrar o seu lado triste e doloroso. Ele acrescenta: “Agora parece que estou
no efeito.” D.I. demonstra um desconforto e sua feição parece insinuar um
desejo de esconder-se de mim, de ir embora. Digo-lhe que faltam poucos
minutos para encerrar sua hora, mas que seria bom dar mais um tempo
para que possa se sentir melhor. Ele imediatamente preocupa-se com o
rosto: “Estou normal?” Respondo: “Não parece que você chorou.” Ele parece
não acreditar passa a mão no rosto, está desconcertado. Pergunto se ele
quer um espelho para olhar-se. Ele diz: “Quando estou assim não gosto de
me olhar no espelho”. Ele se levanta, torno a falar se não quer esperar e ele
diz que é melhor ir embora senão vai chorar de novo. Ele ajeita sua roupa e
eu me levanto. Ele fala que está com vergonha. Digo-lhe que é uma vergonha
de mostrar a tristeza e será que isto precisa ser motivo de vergonha? Ele
responde: “É porque eu sei que estou assim e agora você também sabe.”
Acrescento que só nós dois sabemos. Ele parece aflito para sair e me
apresso em concluir que a tristeza é um lado dele não ele todo, não há
porque só cultuar a tristeza ou também ficar no outro extremo de ter que ser
feliz o tempo todo. Recomendo-lhe que tome o remédio. Ele despede-se
dizendo que vai à casa de um amigo porque não queria chegar em casa
assim.
Logo em seguida saio da UBS para almoçar e avisto D.I. caminhando
apressado e de cabelos soltos (penso que prendeu os cabelos antes de entrar
á sessão pois, não podia ser ele mesmo comigo), passando pelas pessoas
como se não visse nada à sua frente.
Na sessão seguinte D.I. não comparece. Ligo para a sua irmã (telefone
de recado) oferecendo-lhe um outro horário na mesma semana. Ele não
comparece novamente. Como eu não estaria na unidade em sua próxima
sessão – horário habitual – faço nova ligação explicando a minha ausência e
forneço um horário de reposição.
O Doente Imaginário comparece e chega atrasado , porém, este atraso
parece refletir uma resistência pois, ele diz que a irmã “pegou no pé”. Já
pode mostrar-se contrariado comigo e disse ter pensado em não vir mais.
Pensou em desistir porque no fundo já sabe o que quer para si mesmo: “viver
por aí”. Acrescenta o desejo de andar rasgado, dormir na rua, ser um
rebelde. Fala com certa irritação que está fazendo amigos na escola e diz: “eu
não queria, tipo não quero me envolver com ninguém”. Trabalho o tema do
envolvimento e medo da dependência e surge novamente a mãe como alguém
que não pode saber das drogas. Ressalto sua atitude amorosa ao proteger a
mãe de saber mas, que o amor também inclui o perdão. Ele repete que só
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não fica na rua pela mãe. Resgato o seu desejo de ser um rebelde e que ele
poderia pensar numa rebeldia construtiva. Introduzo a idéia de que ele na
rua seria um a mais debaixo da ponte, mas se sua revolta contra o que está
errado pudesse resultar na construção daquele movimento... Ele completa:
“o movimento: O que você faz pela paz?” Eu já comecei fazer umas filipetas
para distribuir...” Continuo perguntando: O que você pode fazer pela sua
paz? E ele: “Como você consegue dizer tantas coisas bonitas com estas
coisas que te falo? (o tom alude o que faço com as coisas ruins, estragadas
que ele me dá). Acrescento que falo com os elementos que ele me dá. Falo
sobre sua divisão: um lado que quer abandonar-se e um lado que quer
crescer. Complemento a idéia dizendo que parece que não tem sido fácil
crescer, virar um moço, talvez por isso precise se furar e murchar, assim
encolhe e fica pequeno de novo
Nesta sessão fala também que não tem tomado o remédio por falta de
dinheiro para compra-lo. O pai está tentando arrumar-lhe um emprego num
Lava Rápido. Conta que ao sair da última sessão de fato não foi para a casa
do amigo, encontrou uns amigos no supermercado Extra e foi beber, um
amigo até vomitou. Digo-lhe: “Acho que eu tinha motivo pra me preocupar,
não tinha?” Ele sorri. D.I. vai embora e quando olho para o tapete vejo que
ele deixou duas pequenas chaves no chão. Depois venho a saber que eram
chaves de um cadeado que põe na porta do seu quarto.
O Doente Imaginário demonstrou ódio quando falou que não queria
envolver-se com ninguém.Na verdade já estava envolvido, o ódio estava
ligado ao envolvimento com o processo psicoterapeutico. O fato de que por
um lado ele foi à sessão pressionado pela irmã e por outro ele quis estar lá.
E logo que chega diz que o seu objetivo mesmo é “viver por aí”. Porém, é
preciso envolver-se para des-envolver-se, estava aí a possibilidade do
crescimento mental.
Green (1980) explica que há dois traços notáveis na transferência
deste tipo de paciente (com o complexo da mãe morta).
O primeiro é a não-domesticação dos instintos: o sujeito não pode
renunciar a um desejo incestuoso, nem, em conseqüência, admitir o luto
pela mãe. O segundo traço, mais notável, é que a análise induz o vazio. Isto
quer dizer que, quando o analista consegue tocar um importante elemento
do complexo nuclear da mãe morta, por um curto momento, o sujeito se
sente como que vazio, em branco, como se estivesse privado de um objeto
substituto e uma guarda contra a loucura. (p.167)
A sensação de inutilidade é apontada por Winnicott (1954) como
manifestação de um falso self.
O terceiro fato clínico referiu-se a relativização do sintoma de estar
fora do corpo. Pareceu um progresso por colocar a queixa hipocondríaca em
segundo plano. O fato parece
ter aberto caminho para outros
aprofundamentos, como se houvesse a ampliação da consciência.Talvez
significasse também uma vivência de momentos de integração mais
freqüentes.
Na sessão que se seguiu ele falou de sua ação na escola, o movimento
que estava organizando e revelou o uso da cocaína no passado. Parecia que
tinham coisas inconfessáveis, que só poderia dizer aos poucos, ora eu era a
sua mãe real fragilizada, que não podia ouvir, ora eu era a mãe que podia
119
agüentar tudo. Kalina (1991) escreve sobre a incapacidade de estar só e o
uso abusivo de drogas psicoativas. A capacidade de ficar só é um estado
mental resultante da introjeção e assimilação do seio bom, sem o que não
será possível um ego forte. As drogas parecem preencher esta ausência do
seio bom, não é aprazível estar só. A droga levaria a um estado mental onde
não há angústia, nem conflitos, o que corresponderia, segundo Kalina, ao
paradoxo “provocar a morte para viver em paz.”
A busca por saber em D.I., a vontade de entender Deus – o criadorparece coincidir com o que Green (1980) explica como uma compulsão a
pensar, em conseqüência da busca do significado perdido.
Houve uma sessão marcada pela confusão. O papel da terapeuta foi
decodificar o que ele queria expressar, interromper o delírio fornecendo um
contorno, chamando-o a integração.Outro momento de insight ficou claro
quando disse: “eu olho muito para mim”, começou mudar de posição,
começou olhar para os outros, integrar. Deu indícios de poder caminhar
para a posição depressiva. Nesta sessão falou dos amigos e nas sessões
seguintes trouxe uma garota, um amigo especial. Acrescentou alguns fatos
positivos de sua vida: novas oportunidades, o computador que possuía, a
atenção especial que a irmã havia lhe dedicado por um tempo. Pareceu
menos vitimizado. Os períodos de silêncio na sessão começaram a aparecer.
Entendemos isto como um apaziguamento interno, já podia ficar só na
presença do outro, ainda que por pouco tempo. Apesar de querer fugir da
terapeuta,. caso a encontrasse na rua, na mesma sessão fez uma reparação,
apresentou um senso de realidade maior e contestou sua própria idéia.
O Doente Imaginário esqueceu as chaves no setting, demonstrou
dificuldade com as férias e com o apego. Parece que o setting e a terapeuta
assumiram a condição de um objeto transicional, que poderia acompanha-lo
a qualquer lugar. Interrompeu o trabalho psicoterápico porque estava bom,
isto é um paradoxo a ser sustentado. Estando o objeto transicional naquele
lugar ele poderia voltar e pegá-lo de acordo com a sua necessidade. A última
vez que compareceu, chegou nos últimos cinco minutos, era o que podia
agüentar ou o quanto necessitava para aquele dia.
A terapeuta foi a mãe que não quis sua morte, o que lhe conferiu
propriedades de apego seguro e constante, portanto, ele podia ir embora. A
psicoterapia o resgatou da miserabilidade. No momento da interrupção do
trabalho ele estava procurando profissionalizar-se, estava interessado no
emprego. As informações posteriores, atestaram uma busca no campo
cultural e profissional. Pôde resgatar seu lado artístico, sua sublimação, que
havia se tornado perigosa (tinha medo de voltar a tocar os instrumentos).
Podia ser até uma defesa maníaca, não podemos falar do prognóstico,
porém, é uma defesa mais saudável. Organizar um movimento em prol dos
abandonados também é melhor do que ficar no lugar do abandonado, ainda
que reflita uma identificação com este estado.
Percebeu-se um receio em crescer,em des-envolver-se, tão próprio do
adolescente, como se o ato de olhar-se no espelho pudesse refletir a sua
incapacidade, ele identificado com o pai. Mas, concomitantemente,
percebeu-se o desejo de avançar. Afinal, a esperança está contida na
tendência anti-social. D.I. sentiu-se roubado como atesta a prancha 13 mas,
há uma busca.
120
O ambiente facilitador, segundo Winnicott (1970a), o qual capacita o
indivíduo para o crescimento pessoal e o processo maturacional tem que ser
uma descrição dos cuidados que o pai e a mãe dispensam, e da função da
família. Os pais do Doente Imaginário tiveram qualidades e defeitos, houve
momentos de troca afetiva e prazer com eles e com os irmãos, mas de algum
modo predominaram na percepção de D.I. os aspectos negativos das figuras
parentais. As percepções são modificáveis e na continuidade este retrato
poderá até ter outras ênfases.
A sensação ao escrever sobre o caso a terapeuta sente que não
consegue esgotá-lo, isto se combina com o que foi escrito anteriormente que
é como se a sua história não coubesse em papel algum. Pensamos que esta
sensação é a reminiscência da sua sensação de vazio, um buraco sem fundo,
ou a contaminação pelo medo do seu descontrole, ele foge ao controle da
terapeuta. Outeiral, comentou num seminário em São Paulo (07/06/2003)
que este tipo de paciente (os mais regredidos) deveriam causar ciúme nos
nossos parentes mais próximos. A experiência com D.I., de fato mostrou que
eles passam a fazer parte de nossas vidas e roubam a cena (no caso desta
terapeuta que tinha um universo de mais de 45 pacientes). Este aspecto
ficou potencializado por ter sido um caso que não houve um fechamento,
embora o devir de todo e qualquer paciente seja geralmente, uma página a
qual não temos mais acesso. Por outro lado, mostra toda a riqueza da
psicanálise, em ambiente universitário, definida como um método singular
de investigação clínica intersubjetiva (Vaisberg, 2003; Vaisberg & Machado,
2000; Pinto, & Vaisberg, 2001).
O Doente Imaginário presenteou a terapeuta com sua riqueza de
conteúdos, apesar de todo o vazio que ele considerava ser, inundou-a com
suas vivências tão profundas e suas angústias impensáveis e indizíveis.
Pensamos que para este caso cabe a frase de Winnicott (1945): “Somos de
fato pobres se formos apenas sãos.”
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Resumo
O objetivo deste capítulo foi apresentar os conceitos de privação, deprivação e
defesas contra sentimentos de perseguição interna e discutir as implicações sobre o
processo de psicoterapia de um adolescente, atendido em UBS, em 40 sessões de
psicoterapia psicanalítica. Tinha 16 anos e foi atendido pela equipe de saúde
mental da Unidade Básica de Saúde, localizada na área metropolitana de São
122
Paulo. O paciente apresentava três defesas contra a perseguição interna: a
hipocondria, a desrealização e o medo de avaliação. Era um rapaz solitário, havia
perdido o ano escolar por faltas e fazia uso de maconha. Tinha sido atendido por
assistente social em um serviço especializado no tratamento de dependência de
substâncias psicoativas, mas não manifestava adesão ao tratamento, o mesmo
acontecendo com sua participação em um grupo de teatro para adolescentes. Ao
procurar a psicoterapia, o adolescente trouxe como queixa principal o fato de ter a
sensação constante de que saía do próprio corpo. Contra-transferencialmente
suscitava na psicóloga que o atendia, um estado de preocupação constante. As
sessões tinham rico conteúdo, porém, em muitas delas predominava a ansiedade
confusional e dificuldade de conversar sobre os sentimentos. Na psicoterapia pode
mostrar sua riqueza de sentimentos e a partir de suas vivências foi possível o
aprendizado pela experiência, podendo agora pensar sobre coisas antes
impensáveis e não simbolizadas. Ao compreender suas vivências profundas, pode
transformá-las em aprendizagem significativa pela experiência.
Descritores
psicoterapia; adolescente; saúde coletiva; psicanálise; Winnicott
PSYCHOANALYTIC PSYCHOTHERAPY OF A YOUNG BOY WITH ANTISOCIAL
TENDENCY AND CORPORAL DELUSION
Abstract
The chapter objective was to present conceptions of deprivation, privation and
defensive mechanisms toward feelings of inner persecution and to discuss some
implications about the psychotherapy process of an adolescent who was treated by
40 sessions of psychoanalytic psychotherapy in a Brazilian UBS (Health Basic
Unit), located in the metropolitan area of Sao Paulo. The patient presented three
defenses against internal persecution: hypochondria, derealization and fear of being
evaluated. He was a lonely boy, and addicted to marijuana, and he had failed in
school exams. Firstly, he was attended by a social worker in a specialized service in
the treatment of addiction to psychoactive substances, but unfortunately without
adhesion even with his participation in a theatre group for adolescents. At the
beginning of psychotherapy, adolescent told about his constant sensation of going
away from his own body. Intense anxiety and a permanent state of preoccupation
were transferred to the analyst by projective identification mechanisms.
Psychotherapy sessions showed conception richness, but confusional anxiety and
difficult to talk about sentiments were predominant. Beyond his vivencies he
learned with experience, and today he could talk about things he could never be
able before, he is able to transform his experience in meaningful learning.
Index-terms
psychoanalysis; psychotherapy; adolescent; collective health; Winnicott.
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