Consultorias Psicoterapêuticas: cuidando do profissional

Propaganda
QUANDO O BRINCAR É SUBSTITUÍDO PELO ATO ANTI-SOCIAL
Joaquim Gonçalves Coelho Filho66
Antonio Carlos Possa67
A tendência anti-social, presente em pacientes que apresentam egos
fragilizados, foi foco de atenção em inúmeros textos desenvolvidos por D. W.
Winnicott, reunidos, principalmente, no livro "Privação e Delinqüência". Na
base da discussão apresentada, encontra-se toda a sua contribuição para o
campo psicanalítico, que se concentra na comunicação entre o bebê e a mãe
e entre a mãe e o bebê. É a qualidade dessa comunicação que determina o
processo de integração do ser, sua personalização e sua relação com os
objetos no tempo e no espaço.
Ao estabelecer que os objetos subjetivos oferecem a oportunidade do
indivíduo criar a sua identidade, Winnicott está rejeitando a teoria
tradicional de relação de objeto, em que os objetos são externos e
incorporados, internalizados. A teoria tradicional ocupa-se, então, com o
relacionamento entre o sujeito e o objeto - um relacionamento interpessoal.
A teoria winnicottiana ocupa-se com a relação do sujeito com os seus
objetos. Kohon (1986) evidencia a sutileza dessas afirmações:
Esta diferenciação sutil (mas complexa) e fundamental provocou
muita confusão, às vezes até mesmo dentro do movimento
psicanalítico britânico. Não é apenas o relacionamento real com os
outros que determina a vida individual do sujeito, mas, sim, a
maneira específica pela qual esse sujeito apreende seus
relacionamentos com os seus objetos (tanto internos como externos).
Ela implica um relacionamento inconsciente com tais objetos. (p.18).
Para Winnicott, o percurso entre a dependência absoluta e a
independência relativa passa por áreas diferentes, constituídas pelos objetos
representados em conformidade com o estádio em que a criança se encontra.
Os objetos constituídos em primeiro lugar nesse percurso são os objetos
subjetivos, que, quando apoiados pelo ambiente, permitirão que o indivíduo
complete esse percurso, chegando à realidade do adulto. O "nascimento"
para a vida, portanto, é encontrar a mãe/ambiente como objeto subjetivo.
A mãe que é capaz de se preocupar com sua função, nesse momento
da sua vida, propiciará um contexto adequado para se iniciar um
relacionamento excitado com o bebê. Da primeira mamada teórica, que
sintetiza, na vida real, as experiências iniciais de muitas mamadas,
resultará, no caso de ter sido satisfatória, o padrão das mamadas que se
seguirão e que serão facilitadoras, tanto para a função materna como para o
bebê, no relacionamento com o mundo. Essa mamada, quando bem
sucedida, permitirá que o bebê tenha a ilusão de que todos os elementos
Mestrado e Doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; Professor e
Supervisor do Curso de Especialização em Psicologia Clínica no IPPESP; Psicoterapeuta.
67 Mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor e Supervisor na
UniFMU; Professor e Supervisor do Curso de Especialização em Psicologia Clínica no IPPESP; Psicoterapeuta.
66
99
nela envolvidos foram criados pelo impulso vindo da sua necessidade. É a
onipotência originada pela adaptação realizada pela mãe. Como Winnicott
adverte, o bebê precisa ter a ilusão de viver, para viver. Sem essa ilusão, não
se consegue viver uma vinculação, que está diretamente associada à noção
de continuidade da existência.
Assim, o bebê não vê o seio como seio, mas como algo real e essa
realidade só é conseguida pelo contato com o seio real. Mais precisamente, o
bebê é pela união com a mãe e não pela existência do seio. Somente assim, o
bebê, ao longo do seu desenvolvimento afetivo, vivenciará os diferentes
sentidos do real. Vivenciará a qualidade dos objetos e a existência deles, a
efetividade ao longo do tempo. Começa a ser, começa a estar presente no
tempo.
A mamada do bebê, portanto, não é uma representação, uma
teorização. É uma tensão instintual, em que ele acaba por esperar alguma
coisa, visando suprir a necessidade de continuar vivendo, além, é claro, de
suprir a necessidade biológica. Desta forma, o bebê estará existindo,
preparando-se para ocupar um lugar, um espaço. Pronto para ser criativo.
Criar o mundo. E a mãe, que tem a capacidade de se identificar com o bebê,
irá ao encontro desse momento criativo.
Quando, porém, a primeira mamada falha, por inaptidão da mãe, ou
mesmo de quem está ao seu redor, com intervenções inapropriadas, o bebê
será privado de vivenciar a satisfação da sua necessidade. Mais complicado
ainda será quando ele passa a acreditar que sabe o que é a satisfação de
uma necessidade, por imitação ou indução de quem teve essa vivência. A
criança precisa da ilusão do real, da experiência do real para poder, um dia,
desiludir-se, poder morrer, poder voltar para o nada. Portanto, o bebê passa
a existir como ser humano, porque é um ser criativo, já que se permite ter
ilusões. Por outro lado, diante da falha da primeira mamada, o bebê poderá
ter a ilusão de ter tido uma ilusão. Esta é a possibilidade da ocorrência do
falso self, em que o indivíduo não consegue referir-se a sua própria história.
Ela estará perdida no tempo, sem cronologia, sem sentido para ele. O real
ficará comprometido. Somente diante da conexão do presente, passado e
futuro é que se constituirá o seu self e o seu mundo. Uma estrutura
preparada para receber os objetos e viver a integração, ter a própria história.
Criar um sentido para ele.
A falha na devoção da mãe pelo seu filho compromete a tendência
natural da criança em se tomar uma unidade integrada. A mãe devotada
oferece a "experiência da onipotência", a partir da sua principal tarefa, na
direção da integração, que é o holding e que viabiliza a mãe como objeto. Um
objeto bom. Um objeto que é criado pelo bebê.
O bebê cria somente aquilo que está ao seu alcance, aquilo que está lá
esperando para ser encontrado. A matéria prima da tendência natural ao
amadurecimento é a capacidade que o bebê tem de se iludir. Ilusão de
realmente encontrar aquilo que ele criou (Winnicott, 1988). Mas, esta ilusão
só será possível se esse bebê puder contar com uma mãe suficientemente
boa. As mães, quando insuficientes ou extremamente boas, roubarão dos
seus bebês a capacidade da ilusão. Desta forma, nunca chegarão à realidade
real, que nada mais é do que a ilusão que deu certo.
100
Voltando-se ao bebê saudável, isto é, maduro para a idade, e que
conseguiu a sua integração, ele estará apto para se perceber como uma
pessoa e perceber a existência do outro. Perceber a existência dos pais. O
bebê saudável chega a esta condição por instinto. Não o instinto freudiano
que está sempre lá em busca de prazer, mas o instinto que busca a
satisfação de uma exigência. Quando isto ocorre de forma plena, ocorre o
alívio do instinto e um período de descanso até a próxima exigência. Fala-se,
aqui, de um instinto intermitente, que vem e que vai, sempre exigindo uma
ação que o satisfaça.
A busca de satisfação do instinto atende à função básica do bebê que é
a da integração, traduzida, grosso modo, pela circunscrição do seu próprio
corpo e o reconhecimento das suas necessidades. Somente o bebê que teve o
desenvolvimento emocional saudável (aquele que chegou ao concernimento
com a cumplicidade da mãe suficientemente boa, isto é, com a mãe ambígua
- aquela que estava lá quando o bebê se encontrava excitado, permitindo ser
usada por ele, mas que também continuava lá, oferecendo suas qualidades
de mãe, quando o bebê achava-se em descanso) poderá experimentar o
desenvolvimento instintivo, que tem em um dos extremos a fase oral e, no
outro, a fase genital.
Esse bebê, que tem na mãe o seu ego (ego auxiliar), apresenta em seu
desenvolvimento a capacidade de se relacionar com os objetos subjetivos e,
vez ou outra, relacionar-se com objetos percebidos objetivamente (não-eu).
A constituição do ser, aos olhos de Winnicott, é, portanto,
extremamente dependente do encontro de um ser constituído,
potencialmente disposto a encontrar-se, com um ser que ainda está por vir,
um ser potencialmente disposto a existir. O ser disposto a encontrar-se será
aquele capaz de sustentar todas as operações necessárias para o bebê
passar da solidão absoluta para a relação de objeto e desta relação ao uso de
objetos. O ser disposto a existir será aquele capaz de criar, antecipadamente,
o que virá a ser a realidade. Criar a si próprio.
Esta criatividade primária (Winnicott, 1954) vem a ser a capacidade de
projeção como criação e não como identificação projetiva defendida por
Melanie Klein. É anterior a ela. Assim, o ser humano é capaz de projetar o
que nunca foi ingerido, introjetado. Aqui, a mãe só assiste. É a criatividade
primária que cria o senso de realidade.
O material de projeção (objeto subjetivo), enquanto não destruído,
servirá de ponte entre a área do objeto subjetivo e a área do objeto
objetivamente percebido. Tem-se aqui o início da organização do ego, ou
seja, a experiência de ser, viabilizada pela relação de objeto do elemento
feminino, presente em bebês masculinos e femininos. Por outro lado, a
relação do elemento masculino com o objeto viabiliza a separação (eu/nãoeu). Assim, o elemento masculino faz, enquanto o elemento feminino (em
homens e mulheres) é.
Se, em um primeiro momento, o elemento feminino permite a tão
necessária vivência do ser, da experiência da onipotência, num segundo, são
as vivências da frustração, experimentadas de forma gradativa e oferecidas
pelo elemento masculino, que facilitarão a mudança do objeto de subjetivo
para percebido objetivamente. A frustração "tem o valor de educar o lactente
101
a respeito da existência de um mundo que é não-eu." (Winnicott, 1979, p.
165).
A clínica winnicottiana é concebida, então, sobre a relação e não sobre
atos mentais (objetos objetivamente percebidos) como na clínica freudiana,
que não aceita um analista como objeto subjetivo, uma vez que o jogo da
associação livre não faria sentido. É por esse mesmo motivo que a maioria
dos analistas freudianos não considera como adequada a terapia
psicanalítica para pacientes psicóticos ou fronteiriços, já que sofrem
primordialmente de uma deficiência na capacidade do ego de formar e reter
representações objetais mentais.
Winnicott associa diretamente o par mãe-bebê ao par psicoterapeutapaciente. Desta forma, a interpretação de um paciente com transtorno grave
de personalidade soaria como uma confrontação entre eu/não-eu (objeto
subjetivo). Seria uma intrusão, uma vez que este tipo de paciente não vê o
profissional como objeto externo, até porque ele não o quer colocar fora da
área subjetiva. Neste caso, é importante que o profissional esteja ali o tempo
todo para ser usado. Melhor ainda quando ele resiste a todo o mal projetado
pelo paciente. Uma retaliação do profissional ameaça a continuidade do ser
do paciente. Se o psicoterapeuta puder esperar, "o paciente chegará à
compreensão criativamente, e com imensa alegria" (Winnicott, 1971, p.122).
Em última instância, a clínica winnicottiana acontece na sobreposição
de duas áreas do brincar: a área do paciente e a do psicoterapeuta. A
psicoterapia, como diz Winnicott (1971, p.59), "trata de duas pessoas que
brincam juntas". É na existência de um espaço potencial, área compreendida
pela realidade psíquica do indivíduo e pela realidade compartilhada do
mundo externo aos indivíduos, que a psicoterapia assume o caráter do
brincar, do brincar saudável, que facilita o crescimento, já que a
comunicação entre o par terapêutico torna-se extremamente facilitada pelo
brincar.
Embora o brincar seja universal e decorrente da saúde do indivíduo,
inúmeros jovens não possuem essa capacidade, por se encontrarem doentes,
diante da falta de validação da sua existência, quer por isolamento
compulsório provocado pela dinâmica familiar, quer por invasão
avassaladora de uma mãe, ou de quem está exercendo a função materna,
que, por não ter sido também validada, exerce a sua função não validando o
seu filho, mas somente a si própria, na tentativa de se ver legitimada como
pessoa, a despeito dos prejuízos psíquicos causados ao filho.
Exemplos de jovens desprovidos da capacidade do 'brincar’ são
encontrados em instituições governamentais, voltadas a medidas sócioeducativas.
Como é amplamente divulgado pela imprensa, escrita e falada, o
aumento da violência, principalmente na infância e na juventude, vem
assumindo números assustadores no Estado de São Paulo, passando de 3
mil jovens privados de liberdade em 1999 para 5 mil, passados quatro anos.
O governo vem tentando cumprir a sua parte, dentro do que está
preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, de 1990, tendo
em vista ser o Estado o tutor legal desses jovens. Entretanto, torna-se uma
tarefa difícil para o governo oferecer algo mais do que medidas sócioeducativas, diante da crescente necessidade de absorver um número cada
102
vez maior de adolescentes em conflito com a lei. Assim, na tentativa de
resolver o problema, criam-se mais unidades de internação, para aumentar a
oferta de vagas, deixando de investir em medidas preventivas que
possibilitariam a redução do número de atos infracionais.
Sabemos que a violência contra a criança traz prejuízos ao seu
desenvolvimento emocional. Quando este desenvolvimento é perturbado ou
bloqueado pela crueza da realidade que se apresenta à criança, algum tipo
de violência está em ação. O vínculo afetivo desempenha um papel
fundamental na saúde mental do ser humano em desenvolvimento. Quando
o seu cotidiano está submetido à intolerância ou reações agressivas
imprevisíveis, a capacidade de vinculação afetiva da criança fica
comprometida, bem como seu potencial de desenvolvimento emocional,
pautado na confiabilidade que o ambiente lhe oferece.
Inseridos em famílias desestruturadas, esses jovens partilham um
ambiente imprevisível e altamente ameaçador, cuja configuração familiar
sofre constantes alterações, com a saída de membros da família, ora pela
conveniência de uma pessoa a menos para ser alimentada, ora pela troca de
parceiro da mãe. São crianças que se vêem colocadas em planos secundários
da mãe, que se encontra incapacitada para oferecer vínculos estáveis aos
filhos, diante do risco de por a perder a condição de ter um companheiro
que, na sua concepção, a protege e oferece a possibilidade de estabilidade
financeira, mesmo que momentânea. São mães que, diante dos riscos da
instabilidade conjugal, se tomam predadoras de seus próprios filhos na luta
pela própria sobrevivência. Definitivamente, neste ambiente não existe a
mínima possibilidade da vivência da onipotência e do controle do real, fase
que, uma vez consolidada pela confiança adquirida na relação com a mãe,
pode vir a ser readaptada e ajustada com a introdução de situações que
venham a frustrar a criança, na dimensão suportada por ela, em contato
com objetos agora percebidos objetivamente.
Normalmente, esse jovem é desprovido da capacidade de brincar e a
primeira tarefa do psicoterapeuta é ajudá-lo a se tomar capaz de brincar.
Para Winnicott (1971, p.80), somente após o desenvolvimento da capacidade
de brincar é que a psicoterapia pode começar: "o brincar é essencial porque
nele o paciente manifesta sua criatividade".
Ainda que se referisse a outro contexto e a crianças vitimizadas pela II
Grande Guerra, Clare Winnicott, segunda esposa de Winnicott, na
introdução da coletânea de artigos do marido intitulada "Privação e
Delinqüência" (1984, p. 4), relata o encontro "entre os elementos anti-sociais
na sociedade e as forças da saúde e da sanidade que se organizam para
corrigir e recuperar o que se perdeu". Clare destaca que as crianças que
eram encaminhadas para os alojamentos supervisionados por Winnicott
eram aquelas que necessitavam de acompanhamento especial, uma vez que
já vinham de lares desestruturados, antes mesmo da ocorrência da guerra, e
que, para muitas delas, o efeito da guerra tinha um cunho benéfico, ao por
fim a uma situação intolerável, abrindo a perspectiva de um acolhimento
revestido de ajuda e alívio. Nas palavras de Clare Winnicott (p. 4-5):
O ponto de interação entre os que prestam e os que recebem
cuidados é sempre o foco para a terapia neste campo de trabalho, e
103
requer atenção e apoio constantes dos especialistas envolvidos, bem
como o suporte esclarecido dos administradores responsáveis. Hoje,
como sempre, a questão prática é como manter um ambiente que
seja suficientemente humano, e suficientemente forte, para conter os
que prestam assistência e os destituídos e delinqüentes, que
necessitam desesperadamente de cuidados e pertencimento, mas
fazem o possível para destruí-los quando os encontram.
Para Winnicott, a criança normal, que desenvolveu confiança nos pais,
por eles estarem sempre por perto para serem encontrados quando a criança
assim o desejava, experimenta a liberdade de agir, de destruir, de se
apropriar das coisas, de ser uma criança sem responsabilidades. Esta
vivência passa a ser um marco na vida da criança, diante da tolerância dos
pais aos seus atos destrutivos, já que ela sentirá a tolerância dos pais como
uma comunicação da aceitação incondicional do filho, ainda que este
apresente ações que, em uma outra fase da vida, seriam condenáveis pela
sociedade, mas que na meninice são consideradas normais. A tolerância dos
pais permite que a criança não desenvolva temor pelos seus próprios
sentimentos, o que a deixaria extremamente ansiosa em relação às suas
fantasias destrutivas, e, portanto, possibilita o seu desenvolvimento
emocional. Quando se fala em tolerância, fala-se da aceitação e convivência
com ações destrutivas da criança e não, de um ambiente sem limites. Um
ambiente que apresente regras banalizadas e falta de limites compromete a
própria liberdade da criança, que, ao invés de se sentir livre, vivencia a
ansiedade decorrente da falta de referência ambiental.
Winnicott (1946) destaca que a criança que não consegue uma
referência ambiental em seu lar tenta achá-la no grupo familiar maior, com
tios ou avós, ou em relações sociais, como na escola, a fim de vivenciar a
estabilidade interna, a partir da estabilidade externa conseguida. Quando os
grupos
mais
próximos
não
oferecem
a
estabilidade
externa
inconscientemente pretendida, a criança apela para a sociedade,
configurando os atos anti-sociais. Para Winnicott, essas atitudes
representam um pedido de ajuda, que, quando não identificado como tal,
sendo os atos anti-sociais simplesmente coibidos pela punição, pode se
transformar em recrudescimento das atitudes anti-sociais, que funcionam
como defesa, distanciando-se da perda original de estabilidade ambiental,
cuja ansiedade decorrente é afastada pelo embate que se estabelece entre os
atos anti-sociais e a força das punições e que se apresenta como a
possibilidade de preenchimento da lacuna ocorrida pela descontinuidade da
provisão ambiental. Em última análise, esse novo contexto constituído pelo
embate de forças opostas demonstra a esperança da criança em redescobrir
os limites que foram perdidos. A esse respeito, Jam Abram, estudiosa da
obra de Winnicott, diz que "O indivíduo está em busca do ambiente que está
preparado para dizer não, não como punição, mas como um incentivador do
sentimento de segurança." (Abram, 1996, p. 44)
Por extensão, podemos concluir que as atuações anti-sociais da
criança constituem aspectos positivos, quando vistas pelo prisma da
constituição do ser, já que traduzem a esperança da redescoberta de limites,
que se constituiriam em referência interna de legitimidade existencial, ainda
104
que essas atuações denotem um estado de doença, diante do
desenvolvimento emocional interrompido.
A importância de compreendermos o ato anti-social como a expressão
de esperança da criança fica evidenciada na proposta de Winnicott como
tratamento de pacientes que apresentam essa tendência, que ele considera
poder ser identificada em um indivíduo normal, bem como em um outro
classificado como neurótico ou psicótico. Assim, em suas palavras:
a tendência anti-social não é um diagnóstico. (...) Ela se caracteriza
por possuir um elemento que compele o meio ambiente a ser
importante. O paciente, através de impulsos inconscientes, compele
alguém a lhe prestar assistência. É tarefa do terapeuta deixar-se
envolver por este impulso inconsciente e seu trabalho é feito em
termos de manejo, tolerância e compreensão. (Winnicott, 1956, p.
502-3)
Embora Winnicott tenha se dedicado à tendência anti-social
principalmente em crianças, ele destaca que ela pode ser encontrada em
indivíduos de todas as idades. Nos estudos que realizou no pós-guerra,
Winnicott construiu uma seqüência teórica, que retrata todas as demais
seqüências reais, dando ênfase aos termos envolvidos neste tema e se
opondo ao diagnóstico de tendência anti-social:
Uma criança sofre privação, quando é privada de certas
características essenciais da vida familiar. Algum grau do que se
poderia chamar de 'complexo de privação' torna-se manifesto. O
comportamento anti-social manifestar-se-á em casa ou em esfera
mais ampla. Devido à tendência anti-social, a criança pode
eventualmente ter a necessidade de ser julgada desajustada e de
receber tratamento em um albergue para crianças desajustadas, ou
pode ser enviada aos tribunais como incontrolável. A criança, agora
um delinqüente, pode então ficar sob liberdade condicional por
decisão do tribunal, ou pode ser enviada para um reformatório. Se o
lar deixa de preencher uma função importante, o 'Comitê de
Crianças' pode se encarregar da criança (...), sendo-lhe dispensado
'cuidado e proteção'. Se possível, tentar-se-á encontrar um lar
adotivo. Caso estas medidas fracassem, o jovem adulto pode passar a
ser considerado psicopata, podendo ser mandado a um reformatório
ou a uma prisão pelos tribunais. Pode haver uma tendência
estabelecida a repetir crimes para o qual utilizamos o termo
reincidência. Nada disso faz referência ao diagnóstico psiquiátrico do
indivíduo. (1956, p. 502-3, grifos do autor)
A despeito desse texto de Winnicott denotar a sua idade e local de
origem - foi escrito há quase 50 anos, em Londres -, em linhas gerais,
reproduz o percurso trilhado pelos jovens brasileiros com tendências antisociais, da mesma forma que as suas observações sobre o tratamento de
indivíduos com tendência anti-social soam como conhecidas, ao reafirmar
que é muito comum verificarmos que os profissionais envolvidos com a
105
tarefa de assistirem esses pacientes desperdiçam o momento de esperança
subjacente ao ato anti-social, pela utilização de manejo desastrado ou da
intolerância. Finaliza sua constatação afirmando que a psicanálise não se
coaduna com o tratamento de indivíduos com tendência anti-social, que
exige um manejo que seja capaz de ir ao encontro do momento de esperança
do paciente e que possa corresponder a ele, com provisão estável de
cuidados que possam ser redescobertos pelo paciente, permitindo a
retomada do desenvolvimento emocional.
Dessa forma, o bebê/ a criança/ o jovem/ o adulto poderá estabelecer
uma nova relação de confiança com o mundo externo que voltou a legitimálo como indivíduo, e viver de forma criativa: brincar com a realidade como
uma verdadeira experiência do self.
Ainda assim, é freqüente acreditarmos que as crianças descarregam o
ódio e a agressividade no brincar. Em Winnicott (1965), a agressividade não
é uma coisa nociva que precisa ser jogada fora, sendo mais importante a
constatação pela criança de que a expressão de sua agressividade pode ser
exercitada sem que venha a ser retaliada pelo ambiente, desde que expressa
de uma forma razoavelmente aceitável, embora o ódio e a agressividade
simplesmente descarregados no brincar, não guardados por muito tempo,
possam reduzir a ansiedade da criança de possuir conteúdos nocivos. É no
brincar que a criança adquire experiência:
O brincar é uma parte importantíssima de sua vida. Tanto as
experiências externas quanto as internas podem ser muito ricas para
o adulto, mas para a criança as mais enriquecedoras serão
descobertas no brincar e na fantasia. Da mesma forma que a
personalidade do adulto é desenvolvida através de suas experiências
de vida, a da criança desenvolve-se através de seu brincar, assim
como do brincar criativo de outras crianças e adultos. Ao enriquecerse, a criança gradualmente aumenta sua capacidade de enxergar a
riqueza do mundo real externo. O brincar constitui-se na constante
evidência da criatividade, o que implica estar vivo. (p. 163)
Quando em psicoterapia, a criança/ o jovem/ o adulto deve exercitar
sua criatividade através do brincar, já que a psicoterapia se desenvolve pela
sobreposição de duas áreas do brincar: a do paciente e a do psicoterapeuta.
Um brincar mútuo e espontâneo, não submisso. Interpretações do
profissional sem o amadurecimento do material psíquico apresentado pelo
paciente tornam-se doutrinações, produzindo submissões e maiores
resistências, uma vez que essas interpretações ocorrem fora da área do
brincar. (Winnicott, 1971)
Fica evidente, então, que todo trabalho dirigido aos adolescentes
privados de liberdade por atos infracionais cometidos necessita da promoção
da sua capacidade criativa, a fim de que ele possa ser capaz de se ver
existindo no tempo e no espaço, em contraposição à concretude de sua
existência, calcada na posse imediata de bens que oferecem a sensação de
realização, mesmo que em termos externos e circunstanciais, até porque
estão tentando reaver algo que sentem que tiveram, mas que perderam.
Geralmente, quando bebês, experienciaram um ambiente bom na fase de
106
dependência absoluta, mas, na fase de dependência relativa, perderam as
qualidades boas desse ambiente. O que realmente importa e o que faz do
jovem uma pessoa única fica oculto e, assim, o fato de viver ou morrer
torna-se indiferente. Aqui reside a importância da convicção e consistência
do trabalho terapêutico, que requer alto comprometimento do profissional e
responsabilidade ética no tratamento desses jovens. O importante é
distanciar-se do senso de futilidade da sua existência, que, pela falta da
capacidade de brincar desse jovem, insiste em se apresentar como sendo sua
única e legítima posse, a posse da sensação de não ser significativo para
ninguém, de não ter sido validado por ninguém, nem mesmo por aqueles que
o viram nascer e crescer.
Referências bibliográficas
ABRAM, J. (1996). A linguagem de Winnicott. Trad. Marcelo Del Grande da Silva. Rio de
Janeiro: Revinter, 2000. 305 p.
KOHON, G. (org.) (1986). A escola britânica de psicanálise: the middle group, a tradição
independente. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Porto Alegre: Artes Médica, 1994.
290 p.
WINNICOTT, C. (1984). Introdução. In: Privação e delinqüência. 2ª ed. Trad. Álvaro Cabral.
São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 1-5.
WINNICOTT, D.W. (1984 [1946]). Alguns aspectos psicológicos da delinqüência juvenil. In:
Privação e delinqüência. 2ª ed. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
p.119-125.
WINNICOTT, D.W. (1958 [1954]). A posição depressiva no desenvolvimento emocional
normal. In: Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. 4ª ed. Trad. Jane Russo.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. p. 437-58.
WINNICOTT, D.W. (1958 [1956]). A tendência anti-social. In: Textos selecionados: da
pediatria à psicanálise. 4ª ed. Trad. Jane Russo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
p. 499-511.
WINNICOTT, D.W. (1965). Por que as crianças brincam. In: A criança e o seu mundo. 6a ed.
Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982. 270 p.
WINNICOTT, D.W. (1971). O brincar & a realidade. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu e
Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago, 1975. 208 p.
WINNICOTT, D.W. (1979). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria
do desenvolvimento emocional. 3ª ed. Trad. Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1983. 268 p.
WINNICOTT, D.W. (1984). Privação e delinqüência. 2ª ed. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo:
Martins Fontes, 1994. 290 p.
WINNICOTT, D.W. (1988). Natureza humana. Trad. Davi Litman Bogomoletz. Rio de Janeiro:
Imago, 1990. 222 p.
107
Resumo
Este trabalho discute a dinâmica de pacientes com tendências
anti-sociais, a partir das contribuições de Winnicott, bem como
as condições que podem favorecer o surgimento dessas
tendências, diante do desenvolvimento emocional
interrompido. Destaca o sentido que o ato anti-social tem para
a criança e as possibilidades de intervenção em tratamentos
psicoterápicos, tendo-se o brincar como meio de comunicação
entre o paciente e o psicoterapeuta. Finaliza a discussão
evidenciando a importância da criatividade como elemento
estruturante da subjetividade do ser humano.
Palavras-chave
Tendência anti-social; O brincar e a realidade; Privação e
delinqüência; Desenvolvimento emocional; Criatividade.
WHEN THE PLAYING IS SUBSTITUTED BY THE
ANTISOCIAL ACT
Abstract
This paper, having in mind Winnicott’s contributions,
discusses the patients with antisocial tendency dynamics, as
well as the conditions that can such tendencies to emerge face
an interrupted emotional development. The meaning an
antisocial act has to the child and the intervention possibilities
in a psychotherapic treatment, using the playing as means of
communication between the patient and psychotherapist, are
pointed out. The paper ends the discussion giving evidence to
the importance of creativity as the element that structures the
human being’s subjectivity.
Key-words
Antisocial tendency; Playing and reality; Deprivation and
delinquency; Emotional development; Creativity.
108
Download