A CRISE DAS SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA NO BRASIL: LIMITES DA SUBORDINAÇÃO AO INTERESSE PÚBLICO Manoel Vargas Professor de Direito Societário do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Comparado (M.C.L.) pela University of Illinois at Urbana-Champaign. Advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Sócio de Lobo & Ibeas Advogados. Sumário: 1. Introdução: origens das sociedades de economia mista: direito comparado e direito brasileiro. 2. Regência constitucional da intervenção do Estado no domínio econômico. História das constituições federais. As sociedades de economia mista e a administração pública indireta. 3. Governança Corporativa das sociedades de economia mista. A regência preponderante pelo direito privado e a solução em caso de insolvência. 4. Conceito de interesse público primário e secundário. Limites da subordinação dos interesses das sociedades de economia mista ao interesse público. Precedentes da Comissão de Valores Mobiliários – CVM. Caso Eletrobras. Caso EMAE/Sabesp. 5. Conclusão: Os legítimos limites da subordinação dos interesses das sociedades de economia mista ao interesse público. A necessidade de permanência do interesse coletivo relevante. 2 Resumo: O presente artigo busca analisar as origens das sociedades de economia mista, a regência constitucional da intervenção do Estado no domínio econômico, a governança corporativa dessas sociedades e, fundamentalmente, quais os legítimos limites da subordinação dos interesses das mesmas ao interesse público. Palavras-chaves: Sociedade Anônima ou Companhia. Sociedade de Economia Mista. Intervenção do Estado no Domínio Econômico. Administração Indireta. Interesse Público Primário e Secundário. Limites à Subordinação ao Interesse Público. Governança Corporativa na Sociedade de Economia Mista. 1. Introdução: origens das sociedades de economia mista: direito comparado e direito brasileiro. A doutrina costuma vincular a origem das sociedades de economia mista – onde há a associação entre capitais públicos e privados – às companhias de comércio coloniais da Holanda e Inglaterra, no século XVII, mais remotamente à Companhia Holandesa das Índias Orientais, criada no início do século, em 1602. Ali, pela primeira vez, limitou-se a responsabilidade de todos os sócios ao preço de emissão das ações subscritas. Mais ainda, foram conferidas características às ações que representavam o capital social em tudo similares às dos títulos de crédito. Isso mediante a autorização da incorporação dos direitos de sócio a títulos corpóreos e de livre circulação na economia, denominados ações. Estabeleceu-se a associação entre os capitais públicos – das coroas da época – aos capitais privados disponíveis na economia – armadores, comerciantes, senhores feudais e outros súditos (VENÂNCIO FILHO, 1968: 373 e ss.) 1. Enquanto Holanda e Inglaterra, em momentos sucessivos, optaram pela associação entre capitais privados e atuação estatal, Portugal e Espanha tomaram o caminho da política do monopólio estatal para o desenvolvimento daquela era comercial, utilizando sociedades colonizadoras. Há ainda as companhias francesas e suecas, criadas na mesma época ou um pouco depois. 3 Já no século seguinte à criação das sociedades anônimas (XVIII), verificaram-se as primeiras fraudes, na Inglaterra, com o escândalo da South Sea Company, e na França, com a quebra do Banco Real. Tanta gente foi arruinada e tanto capital perdido que os escândalos devastaram o novo tipo societário e provocaram seu ocaso e banimento por longos anos (LAMY FILHO e BULHÕES PEDREIRA, 2009: 5 e ss.) 2. A retomada e livre criação das sociedades anônimas, para impulsionar a Revolução Industrial, ocorreram apenas no século XIX, em 1811 nos Estados Unidos (Estado de Nova York), em 1844 na Inglaterra, e em 1867 na França. No Brasil, a livre constituição das sociedades anônimas produziu efeitos no fim do século, em 1882 (Lei nº 3.150). A participação direta do Estado na economia e em parceria com a iniciativa privada, no desempenho de atividades empresárias, pode ser identificada em diversos ordenamentos jurídicos. Não há, no entanto, completa identidade com a modalidade de sociedade de economia mista estabelecida no sistema brasileiro, o que a torna assim única e singular. Na Alemanha, Argentina, Eslovênia e França, dentre outros, segundo recente estudo do programa de iniciação científica do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro3, há a possibilidade da intervenção do Estado na economia mediante a associação entre capitais públicos e privados, mas a constituição dos respectivos veículos nem sempre requer a forma de sociedade anônima ou autorização legal e atendimento a relevante interesse coletivo, e nem sempre subordina a empresa, de modo preponderante, ao direito privado, como no caso brasileiro. Na nossa situação, há maior rigidez no modelo, a justificar a participação do Estado na economia, através de entidade de sua administração indireta. Em Cuba – que vale citar pela significação em regime socialista, de economia centralizada –, como se verificou em conferência realizada em maio de 2016 entre a Universidade da Flórida e a Universidade de Havana4, as sociedades de economia mista são instrumento de investimentos externos naquele País (no atual movimento de reinserção de Cuba na economia internacional, com o iminente – ou ao menos esperado – fim do embargo dos Estados Unidos, após o restabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países, nos governos Raúl Castro e Barack Obama), mediante associação entre o Estado cubano e o investidor privado estrangeiro. Também diferente do que ocorre aqui, em que a associação se dá entre investimento estatal interno e geralmente investimentos privados, de origem interna 4 ou estrangeira, podendo até mesmo comportar investimento estatal externo (capitais chineses no pré-sal, a título de exemplo). Entre nós foi histórica a criação do Banco do Brasil, em 1808, já naquele tempo espécie de sociedade assemelhada à companhia anônima de economia mista – como a conhecemos hoje –, criada com a vinda do Príncipe Regente, D. João de Bragança, em fuga dos exércitos de Napoleão, cuja corte veio a se abrigar no Brasil em tal época, bastante anterior ao Código Comercial brasileiro de 1850 e à liberdade de constituição de sociedades anônimas no País (Lei 3.150/1882). Não deixava de ser sociedade assemelhada à de economia mista, porque possuía como acionistas privados minoritários banqueiros portugueses, associados à Coroa, e atuava como banco comercial. Atuava também, de outro lado, como emissor de moeda e fez as tarefas de banco central até a criação deste já no século seguinte. O Banco do Brasil já traz em si toda natural tensão entre público e privado, entre ação estatal e exploração privada da economia. Entre regulação e atividade competitiva. O mesmo ocorreu mais de um século após, na década de 40 do século XX, no primeiro governo do presidente Getúlio Vargas, com o início da industrialização do Brasil, pela construção e instalação da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN, sociedade de economia mista, conquistada pelo País como resultado da nossa participação na II Grande Guerra, primeira siderúrgica integrada estabelecida em nosso solo. A negociação entre os governos brasileiro e americano envolvendo a criação da CSN se materializou nos chamados Acordos de Washington e os fundos americanos originaram-se do Eximbank. A privatização da CSN encerrou forte polêmica nacionalista e foi concretizada em 1993, no governo Itamar Franco. Como parte do mesmo projeto de desenvolvimento econômico que visava à industrialização do País, foi criada, em 1942, a sociedade de economia mista denominada Companhia Vale do Rio Doce – CVRD. No contexto da aproximação do Brasil com as potências aliadas na II Guerra Mundial, a CVRD incorporou o patrimônio de jazidas da Itabira Iron Ore Company, mediante gestões diplomáticas com o governo britânico. Na década de 50, a CVRD já consolidara sua posição no mercado mundial, e expandiu-se nas décadas seguintes com a construção e exploração do porto de Tubarão, nas cercanias de Vitória (ES). Com atuação concentrada nas jazidas de minério de ferro em Minas Gerais, a CVRD, anos mais tarde, passou a operar também em Carajás, no sul do Pará. Sua privatização, nos anos 90, foi das mais polêmicas, tendo em vista o histórico nacionalista envolvendo a propriedade do subsolo pelo Estado e a vedação ao controle de capitais 5 estrangeiros nas atividades de mineração, só suplantada pela Emenda Constitucional nº 6, de 15 de agosto de 19955. Houve também, na década de 50, a inauguração da nossa atividade de exploração do petróleo, com o surgimento do monopólio estatal – decorrente de acalorados debates de então entre forças políticas nacionalistas – levado a efeito por uma sociedade de economia mista, a Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras, titular do monopólio até a década de 90 – que passou às mãos do Estado – e participante da livre competição, nos dias de hoje, ao menos em certa medida, até que modificadas e aprimoradas a legislação do pré-sal e as extensas e intrínsecas relações entre a Petrobras e o governo brasileiro. Essas contradições entre público e privado, atividade reguladora e concorrência permearão a análise deste trabalho. A criação da Eletrobras, companhia de economia mista, foi também proposta, em 1954, no segundo governo do presidente Getúlio Vargas, para desenvolvimento da energia elétrica no País. O projeto, porém, sofreu forte oposição e a turbulência política da época e só foi aprovado após sete anos em tramitação no Congresso, em 25 de abril de 1961. A instalação da empresa ocorreu em 11 de junho de 1962, já sob a presidência de João Goulart. Vale citar ainda o Instituto de Resseguros do Brasil – IRB, sociedade de economia mista atípica, criada anos antes, na década de 30 e consolidada na década seguinte, com o objetivo de desenvolver as atividades de resseguros e fomentar o segmento de seguros no Brasil – à época o resseguro era contratado no Reino Unido e alhures e o seguro dominado por empresas internacionais –, e que até recentemente atuou como órgão regulador e sociedade monopolista, com o controle da União Federal e participação variável das sociedades seguradoras nacionais. Já no final do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, na preparação da privatização da atividade, o IRB foi transformado em sociedade de economia mista típica e perdeu seus poderes regulatórios, transferidos à Superintendência de Seguros Privados – Susep, deixando de atuar como monopólio, em razão da abertura do setor de resseguros à competição. Finalmente, dentre tantas situações especiais, cumpre fazer referência à Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA, outra companhia de economia mista, criada na década de 50, em 1957, para abrigar as atividades ferroviárias brasileiras, então fragmentadas em diversas ferrovias regionais de natureza distinta, cobrindo boa parte do território nacional, e que sucumbiu por graves problemas de gestão, tendo suas atividades privatizadas na década de 90. 6 No programa brasileiro de privatização, tanto federal como estadual, a partir das décadas de 80 e 90, foram privatizadas atividades (no todo ou em parte) e sociedades de economia mista de diversos setores, como: siderurgia (CSN, Usiminas, Cosipa, Companhia Siderúrgica de Tubarão – CST, Açominas, etc.); petroquímica e fertilizantes (Petroquisa, etc.); indústria de aeronaves e jatos comerciais (Embraer, etc.); telefonia móvel e fixa (Telesp, Telerj, etc.); gás (CEG, CEG-Rio, etc.); energia elétrica – produção, transmissão e distribuição (Eletropaulo, Light, etc.); mineração (Vale S.A., ex-Companhia Vale do Rio Doce – CVRD, etc.); sistema financeiro e de resseguros (com destaque para os bancos dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro – Banespa e Banerj, e as atividades do IRB, estas antes monopolistas); transporte ferroviário de cargas e passageiros (RFFSA, etc.); água e saneamento ( hoje ainda incipiente); portos e aeroportos (Galeão, Guarulhos, etc.); rodovias e pontes (ponte Rio-Niterói, rodovia Castelo Branco-Raposo Tavares, dentre várias outras)6. Mas a iniciativa e o capital do Estado eram essenciais – e ainda serão - ao desenvolvimento de várias das citadas atividades, e de outras na economia, pela escassez de capital privado ou pela necessidade ditada por políticas públicas. 2. Regência constitucional da intervenção do Estado no domínio econômico. História das constituições federais. As sociedades de economia mista e a administração pública indireta. A prevalência da liberdade econômica ou livre iniciativa no Brasil constitui tradição política e jurídica que remonta à Constituição Federal de 1934 (art. 115 e seguintes), que foi a primeira a contemplar capítulo sobre a ordem econômica. É importante notar que a opção foi feita em sistema econômico notadamente agrário, pois a atividade industrial era rudimentar e ainda não se instalara no País. A atuação do Estado é complementar, motivada pelo interesse público e autorização legislativa. A Constituição Federal de 1937 (art. 135 e seguintes) mantém a primazia da liberdade de iniciativa, regulando que a intervenção estatal na economia deve ocorrer como medida para suprir deficiências da iniciativa individual. 7 O mesmo se dá na vigência da Constituição Federal de 1946 (artigos 145 e seguintes), que elege a preponderância da liberdade de iniciativa, admitindo a intervenção do Estado mediante lei e interesse público, nos limites dos direitos fundamentais. A Constituição Federal de 1967 (artigos 157 e seguintes) confirma a tradição da livre iniciativa e economia de mercado, e regula que a intervenção estatal no domínio econômico deve ocorrer mediante lei, em situação de segurança nacional ou em que a atividade não possa ser organizada pela livre competição. Idêntica regulação é feita pela Emenda Constitucional de 1969 (artigos 160 e seguintes), preservando assim a prevalência do regime econômico da liberdade de iniciativa. Seguindo o mesmo passo, a liberdade de iniciativa, de maneira mais sistemática e completa, consta da Constituição vigente de 1988. Assim é que o artigo 1º, inciso IV consagra a livre iniciativa como um de seus princípios basilares. O artigo 37, incisos XIX e XX, trata da administração indireta, da exigência de lei específica para criação de sociedades de economia mista e empresas públicas, e autorização legislativa, em cada caso, para criação de subsidiárias e participação em empresas privadas. Os artigos 170 e 173 confirmam a prevalência da livre iniciativa, e o relevante interesse coletivo para interferência do Estado, contendo normas gerais sobre a regência das sociedades de economia mista e empresas públicas. Na realidade, a sistematização do conceito de administração pública indireta e das sociedades de economia mista – com capitais públicos e privados –, empresas públicas – com capitais públicos –, ambas com regência preponderante pelo direito privado, bem como autarquias e fundações públicas, estas com regência preponderante pelo direito público, foi feita pelo Decreto-Lei nº 200/1967, alterado principalmente pelo Decreto-Lei nº 900/1969. As regras assim criadas foram constitucionalizadas em 1988, e o sistema se consolidou. Até então a regência constitucional era programática e menos detalhista. As sociedades de economia mista e empresas públicas têm personalidade jurídica própria e natureza de direito privado (embora também sujeitas a normas públicas de enorme relevância), representando em essência o marco da atuação descentralizada do Estado – intervenção direta e descentralizada do Estado no domínio econômico. Verifica-se que mesmo em períodos de exceção da ordem jurídica e política não houve afastamento do primado da livre iniciativa e da economia de mercado, como princípio 8 condutor da economia brasileira, estabelecido em 1934, antes ainda da industrialização do País, época em que a atividade agrária era preponderante e quase exclusiva. Muito embora, reconheça-se, o Estado brasileiro – ao longo de toda nossa história – desempenhe um forte papel intervencionista na economia, cabendo às sociedades de economia mista e empresas públicas, tradicionalmente, enorme relevo na intervenção estatal no domínio econômico, tanto pelas políticas públicas, como talvez principalmente pelas carências de capital da iniciativa privada, como já referido neste trabalho. Veja-se, dentre outras, Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil, BNDES, Caixa Econômica Federal, Cemig, Cesp, Copasa, Copel, Sabesp, Banrisul, Cedae e respectivos grupos econômicos. As sociedades de economia mista são do tipo sociedades anônimas, regem-se primordialmente pelo direito privado, e são aptas a estabelecer a convivência entre capitais e interesses públicos e privados. O objetivo primordial deste trabalho é o de estabelecer os limites da subordinação das sociedades de economia mista aos interesses públicos. 3. Governança Corporativa das sociedades de economia mista. A regência preponderante pelo direito privado e a solução em caso de insolvência. Por força do artigo 173 da Constituição Federal, que contém as normas de fundo sobre as sociedades de economia mista, estas estão sujeitas ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários, sem prejuízo dos princípios da administração pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência –, inclusive licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, na forma da lei, pois integram a administração indireta. Consubstanciam a exploração direta e excepcional pelo Estado da atividade econômica, só permitida quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei7. A regra constitucional referida é adicionada de outra, prevista nos incisos XIX e XX do artigo 37 da Carta, no sentido de que somente ‘lei específica’ pode autorizar a instituição de sociedade de economia mista, e de que depende de autorização legislativa ‘em cada caso’ a criação de subsidiárias, por tal sociedade, ou sua participação em empresa privada. 9 O legislador foi cuidadoso na delimitação da atividade das sociedades de economia mista. Mas o que se viu, com a passagem do tempo, é que muitas das leis que autorizaram a criação de tais sociedades foram concebidas ou alteradas para prever expressamente a possibilidade de criação de subsidiárias ou participação no capital de outras sociedades, independentemente de nova autorização legislativa. Isso ocorreu em Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil, Cemig, e tantas outras8. Chamado a manifestar-se, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.649-1 Distrito Federal, que dizia respeito à Petrobras, o Supremo Tribunal Federal- STF, em julgamento plenário e decisão unânime, relator Ministro Maurício Corrêa, de 24 de março de 2004, entendeu que a sociedade criada ou que tenha participação de sociedade de economia mista não tem a mesma natureza (de economia mista) e logo prescinde de autorização legal para sua constituição. A autorização legislativa em ‘cada caso’ refere-se a cada companhia de economia mista, e não a cada nova participação. Disse a decisão do STF: “é dispensável a autorização legislativa para a criação de empresas subsidiárias, desde que haja previsão para esse fim na própria lei que instituiu a empresa de economia mista matriz, tendo em vista que a lei criadora é a própria medida autorizadora.” Logo, o STF fixou a diretriz de que a autorização genérica da Lei da Petrobras é válida (Lei nº 9.478, 1997, artigo 64). Novamente provocado a manifestar-se, em caso envolvendo a Lei de Telecomunicações (Lei nº 9.295/1996), em Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.491 Distrito Federal, cerca de dez anos depois, em 8 de maio de 2014, o STF, em julgamento plenário, relator Ministro Carlos Velloso, sucedido pelo Ministro Ricardo Lewandowski, por maioria de votos, manteve seu entendimento. Restou assim decidido que as sociedades de economia mista que possuam permissão genérica na lei que autorizou sua criação podem livremente constituir e participar do capital de outras sociedades. Estas sociedades, mesmo que controladas, não são sociedades de economia mista. A intenção pode ter sido a melhor, mas o resultado é que as sociedades de economia mista brasileiras criaram vastos grupos econômicos, aqui e no exterior, o que traz uma primeira questão sobre o controle e governança dessas sociedades. A autorização excepcional para intervenção direta do Estado no domínio econômico, sujeita ao escrutínio do interesse público, via tal interpretação, vai colocando raízes cada vez 10 mais profundas e menos visíveis, pela técnica da diversificação e verticalização dos grupos econômicos. No plano constitucional, houve diversos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional visando à regulamentação do artigo 173 da Carta, com especial ênfase na governança das sociedades de economia mista e empresas públicas. Isso tudo muito agravado pela severa crise na Petrobras, revelada desde 2014/5, com consequências dolorosas para a companhia e seus acionistas, cujos resultados finais são ainda desconhecidos, e mais ainda para a sociedade brasileira, perplexa, diante dos fatos desvelados, com tantos descaminhos e potenciais contas a pagar. Nesta trilha, o Congresso aprovou mais recentemente a Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, sobre o estatuto jurídico da empresa pública e da sociedade de economia mista e suas subsidiárias, cuja eficácia não foi ainda testada, mas que regula diversos aspectos sobre governança e submissão de tais entidades a controles mais severos e regras de licitação pública. Além de Petrobras, veio à tona a crise na Eletrobras, também muito grave e que, aparentemente, pode envolver todo o setor público brasileiro, principalmente o BNDES e os fundos de pensão das estatais. Há, assim, efetivamente, enorme preocupação no País com o controle das atividades das sociedades de economia mista e empresas públicas. No contexto legal, as sociedades de economia mista estão ainda reguladas no capítulo XIX da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/1976), nos artigos 235 a 240. O sistema dessas sociedades impõe o funcionamento obrigatório do conselho de administração e do conselho fiscal, sendo ou não companhia aberta registrada na Comissão de Valores Mobiliários, para negociação de ações ou debêntures (ou outros títulos) no mercado de capitais. Isso reforça a governança e cria duas instâncias internas de fiscalização. Além disso, as sociedades que possuem ações ou títulos negociados no exterior, ou que sejam instituições financeiras de grande porte ou companhias mais sofisticadas, geralmente possuem ainda comitê de auditoria, como órgão auxiliar do conselho de administração (e essa exigência de instituição do comitê de auditoria vem de ser tornada geral para as estatais pela Lei nº 13.303/2016). 11 Nas companhias abertas há ainda até dois membros do conselho de administração eleitos por acionistas preferenciais (se houver) e minoritários ordinários e – no caso de companhias de economia mista federais – mais um membro eleito pelos empregados (Lei nº 6.404/1976, artigo 141 e Lei nº 12.353/2010). É precisamente o caso da Petrobras e a estrutura interna de fiscalização não foi suficiente para impedir as fraudes já comprovadas. Tampouco a estrutura externa, composta por auditores independentes e pela fiscalização do órgão regulador (CVM). Aspecto que é fundamental e que normalmente não recebe a devida atenção é a revogação pela reforma de 2001 (Lei nº 10.303) do artigo 242 da Lei das Sociedades Anônimas, que estabelecia que as companhias de economia mista não se sujeitavam à falência (embora seus bens sejam penhoráveis e executáveis) e que os entes estatais que as controlassem responderiam subsidiariamente por suas obrigações. Tal dispositivo legal era essencial, pois tradicionalmente no Brasil a sociedade de economia mista não se sujeita à falência, como previsto no artigo 2º da Lei de Falências e Recuperações em vigor (Lei nº 11.101/05), posterior mesmo à revogação do aludido artigo 242, o que mostra a força da tradição (compatível com a presunção de solvência do Estado). Em que pese opinião de parte da doutrina que sustenta que entes públicos não podem ter obrigações ilimitadas (BORBA, 2008: 495 e ss.) 9, o fato é que não se pode dissociar o Estado controlador da sociedade de economia mista por ele controlada, instrumento de intervenção direta do Estado no domínio econômico. Se o Estado é responsável por suas obrigações próprias, ilimitadamente, também deve ser, em caráter subsidiário, pelas obrigações do instrumento de intervenção estatal, como a sociedade de economia mista. Além do mais, se a sociedade de economia mista depende de lei para sua criação, somente mediante autorização legislativa seu controle poderá ser alienado (como efetivamente ocorreu nos programas de desestatização federais e estaduais, desde as décadas de 80 e 90 do século passado). Mesmo o controle provisório, decorrente da reaquisição do voto pelas ações preferenciais, em virtude do não pagamento de dividendos prioritários (caso contem as respectivas companhias com ações preferenciais revestidas de direitos assim assegurados), 12 com base em disposição do artigo 111 da Lei de Sociedades Anônimas, pode sofrer contestação pela especialidade das sociedades de economia mista. Isso porque há colisão entre a norma geral da Lei societária e o Decreto-Lei nº 200/1967 (artigos 4º, II, ‘c’ e 5º, III), segundo o qual as ações com direito a voto das sociedades de economia mista devem pertencer em sua maioria ao Poder Público. O mesmo conceito é reiterado pela Lei nº 13.303/2016. Em decisão nos processos CVM RJ – 2015 – 4307 e 4341, de 18 de maio de 2015 10, a área técnica da autarquia entendeu que as ações preferenciais não adquirem voto na Petrobras, por disposição expressa do artigo 62, § único da Lei do Petróleo (Lei nº 9.478/1997). Mas não chegou a examinar a compatibilidade entre a reaquisição do voto – e eventual alteração provisória de controle – e a natureza da companhia de economia mista, cujo controle deve pertencer ao Estado. Na colisão entre norma geral e especial, deve prevalecer a última delas, como princípio básico de hermenêutica (a teor do artigo 2º da LICC). Retomando o tema da responsabilidade subsidiária do Estado, na falta do comando do citado artigo 242 da Lei societária, há um vácuo legislativo, que poderá ser preenchido, se necessário, com o artigo 50 do Código Civil brasileiro, que trata da desconsideração objetiva da personalidade jurídica, em caso de confusão de patrimônios (a par da desconsideração subjetiva por desvio de finalidade ou fraude, não considerada neste exame), como já tem decidido o Superior Tribunal de Justiça, em casos de grupos econômicos, como no REsp nº 132620/RJ, julgamento de 7 de maio de 2013, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma (idem REsp nº 1071643/DF e RMS nº 12872/SP, dentre outros, relatores Ministros Luis Felipe Salomão (Quarta Turma) e Nancy Andrighi (Terceira Turma), julgados em 2 de abril de 2009 e 24 de junho de 2002, respectivamente). A nossa jurisprudência adotou majoritariamente o caminho do direito alemão, de presunção juris tantum de confusão de patrimônios nos grupos econômicos, onde há sociedade de comando e fortes elementos entre as sociedades do grupo, como gestão conjunta, identidade de administradores e empregados relevantes, financiamentos entre as sociedades do grupo, utilização de ativos de umas por outras (ainda que de forma remunerada) e transações entre as empresas do grupo, elementos esses em geral comuns a grupos econômicos, com mais ou menos intensidade, tendo em vista a natural coordenação das atividades do grupo, que é formado justamente para potencializar ou maximizar as atividades das sociedades que dele fazem parte. 13 Muito embora, no direito brasileiro, a lei não excepcione o regime liberal de responsabilidade individual e isolada de cada sociedade, mesmo em situações de exceção, como nos grupos de direito (onde é admitida a subordinação de interesses, nos limites da convenção do grupo) ou nas subsidiárias integrais (onde a participação da controladora corresponde à totalidade do capital da controlada). No direito alemão, a lei admite a responsabilidade subsidiária nos grupos de direito e a solidária nas subsidiárias integrais. A jurisprudência alemã estende a possibilidade de responsabilidade subsidiária externa corporis aos grupos de fato, com base na presunção de confusão patrimonial (COMPARATO e SALOMÃO FILHO, 2005: 433 e ss.) 11. Com efeito, se é estabelecida a presunção juris tantum de que haveria algum nível de confusão patrimonial entre controlador e controlada, em grupo de sociedades, de fato ou de direito, a mesma interpretação deveria ser estendida ao Estado controlador, que possui o dever de fazer a sociedade cumprir sua função social (em adição, e como matéria de fato, as sociedades de economia mista de grande porte geralmente compõem grupos econômicos de expressiva complexidade e relevante valor patrimonial). Caso recente de sociedade de economia mista insolvente é o da Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA, cujas atividades foram privatizadas na década de 90, mas que não conseguiu equacionar suas dívidas, embora tenha sido beneficiária de expressiva remuneração via o arrendamento de seus ativos operacionais, como desenhado no programa de desestatização pelo BNDES. A solução encontrada foi sua dissolução determinada pelo Decreto nº 3.277/1999, expedido com base na autorização geral contida no artigo 24 da Lei nº 9.491/1997 (dissolução de entidades desestatizadas). Foi a final autorizada, pela Lei nº 11.483/2007, a incorporação do seu patrimônio à União, que sucedeu a RFFSA de modo universal, em direitos e obrigações. Em outras palavras, a solução encontrada foi responsabilizar subsidiariamente o Estado controlador, tal como previsto anos antes no artigo 242 da Lei societária, hoje revogado. Isto equivale à repristinação (de fato) da norma revogada para este caso concreto da RFFSA. Questão mais densa e que será abordada no próximo capítulo diz respeito ao artigo 238 da Lei das Sociedades Anônimas, no sentido de que o Estado controlador tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador, mas pode orientar as atividades da sociedade de 14 economia mista de modo a atender ao interesse público que justificou sua criação. Tal dispositivo encontra guarida no artigo 173 da Constituição, que limita a intervenção do Estado, via companhia de economia mista, a ‘imperativo de segurança nacional ou relevante interesse coletivo’. O mesmo conceito também é reiterado pela Lei nº 13.303/2016, que se reporta à Lei societária. O dispositivo do artigo 238 da Lei societária contém certa ambiguidade – típica da colisão entre interesse público e privado – e que é intrínseca à natureza da companhia de economia mista. De um lado, o Estado controlador tem os mesmos deveres fiduciários e fundamentais do acionista controlador, devendo fazer com que a sociedade realize seu objeto e cumpra sua função social, tendo deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. De outro, pode orientar as atividades de modo a atender ao interesse público que justificou sua criação. Antes de passar à análise do interesse público ‘primário’, que é legítimo para subordinação dos interesses da sociedade, resta enfatizar que a ambiguidade apontada é relativa e a colisão parece perfeitamente conciliável, pois a Lei societária já introduz nos deveres fundamentais do controlador o cumprimento de sua ‘função social’, qualificando a ‘realização de seu objeto’, que visa, evidentemente, pela própria natureza da sociedade, à geração de lucros, mas nos limites da função social da empresa e do interesse público ou coletivo subjacente, em se tratando de sociedade de economia mista. Sobre a função primordial de qualquer sociedade anônima na geração de lucros não há disputa razoável (por todos, VALVERDE, 1959:71) 12. Por conseguinte, como qualquer outra sociedade responsável, a companhia de economia mista não deve buscar o lucro a qualquer preço, não podendo negligenciar sua função social e os direitos e interesses – legítimos – dos acionistas, trabalhadores e comunidade, que deve lealmente respeitar. Em acréscimo, deve perseguir, no mesmo diapasão, o interesse público que justificou sua criação. Mas não pode ser gerida de maneira ruinosa na busca desse interesse coletivo. O controlador há de sopesar interesses e conciliá-los nos limites das balizas da boa administração, com responsabilidade e razoabilidade. 15 4. Conceito de interesse público primário e secundário. Limites da subordinação dos interesses das sociedades de economia mista ao interesse público. Precedentes da Comissão de Valores Mobiliários – CVM. Caso Eletrobras. Caso EMAE/Sabesp. A Comissão de Valores Mobiliários, em duas decisões unânimes julgadas pelo seu colegiado em 26 de maio de 2015, relatora Diretora Luciana Dias, nos processos administrativos sancionadores CVM nº RJ2013/6635 (caso “Eletrobras”) e CVM nº RJ2012/1131 (caso “EMAE”) 13 , o primeiro envolvendo como acionista controlador a União Federal e o segundo o Estado de São Paulo, produziu duas corajosas decisões que envolveram o alcance do interesse público previsto no artigo 238 da Lei das Sociedades Anônimas, bem como a fixação de conflito de interesses do controlador, no primeiro caso, e do descumprimento de deveres fiduciários fundamentais do controlador, no segundo caso, em descumprimento aos artigos 115 e 116, respectivamente, da mesma Lei. Vamos ao exame resumido dos casos. No primeiro deles (caso “Eletrobras”), a CVM foi confrontada com reclamação de acionista minoritário pela ação da União, dentre outros, de haver votado em assembleia geral extraordinária da Eletrobras a favor da renovação antecipada de contratos de concessão de geração e transmissão de energia elétrica que foram celebrados entre controladas da Eletrobras e a União, esta na qualidade de poder concedente e aquelas de concessionárias. A renovação foi feita ao amparo de legislação excepcional que visava a diminuir o custo da energia elétrica no País, mas que teve efeitos opostos, gerando enormes perdas para a Eletrobras. Esta foi obrigada pela União a aderir ao malfadado programa de redução de custos, enquanto as concorrentes não controladas pela União o rejeitaram. A Eletrobras renunciou à manutenção de tarifas nos níveis praticados pelo mercado, bem como aos direitos de indenização, pela União, sobre ativos contabilizados referentes às empresas operacionais por ela controladas (Furnas, Chesf, etc.). A perda experimentada pela Eletrobras elevou-se a bilhões de reais. Ao analisar a questão sob a ótica do artigo 238 da Lei das Sociedades Anônimas, de que o controlador estatal pode orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público, a CVM distingue o interesse público primário protegido pela norma, que se 16 circunscreve ao interesse coletivo inscrito no artigo 173 da Constituição Federal, do interesse público secundário, que consubstancia o interesse próprio ou particular do Estado, mas que não se confunde com o interesse da coletividade propriamente dito, confiado à tutela do Estado (por todos, BARROSO, 1998:310, BANDEIRA de MELLO, 2012:66/67 e PINTO JUNIOR, 2013:341) 14. O interesse público primário ou coletivo, em verdade, se circunscreve ao interesse de todos os cidadãos na consecução daquela atividade essencial pelo Estado, e não se confunde com o interesse particular – legítimo ou não –, direto ou indireto, da entidade estatal, seja financeiro, patrimonial, econômico ou de outra natureza. Em Eletrobras, as ações visando à produção, transmissão e distribuição de energia se inserem no interesse público primário objeto de proteção. Mas decisões sobre aceitar uma política de governo para supostamente reduzir os custos da energia elétrica – em troca da renovação de concessões, com renúncia expressiva de direitos – em prejuízo da companhia e de seus acionistas, política esta rejeitada pelo restante do mercado e que se mostrou desastrosa, sob todos os aspectos, não se inserem na primeira categoria, mas na de interesse secundário, perseguindo uma política de governo estranha aos interesses legítimos e fundamentais da Eletrobras. Retirando a União do abrigo do interesse público protegido pelo citado artigo 238 da Lei societária, caminhou a CVM pela análise da colisão de interesses entre a União e a Eletrobras, no caso, pois o indigitado programa de redução de custos era programa de governo que a União decidiu impor à Eletrobras, ainda que os legítimos interesses da última restassem vulnerados. O conflito de interesses é caracterizado pela existência de dois interesses antagônicos, um externo e outro interno à companhia, não podendo um ser atendido sem sacrifício ou prejuízo do outro (por todos, GALGANO, 1988:25) 15. Concluiu, por conseguinte, a CVM pela violação do artigo 115, § 1º da Lei das Sociedades Anônimas, pelo voto e aprovação pela União de matéria em situação de claro conflito de interesses, como formuladora da política em questão e, simultaneamente, na qualidade de acionista controladora da Eletrobras. A CVM não chegou a encaminhar a questão pelo abuso de controle e pela violação do artigo 117 da aludida Lei, eximindo-se de avaliar o mérito da política governamental em 17 questão, embora registrando que a União, autora da política, não poderia ter isenção para aprová-la na assembleia geral de acionistas da Eletrobras. Isso sem embargo da ação deliberada de fazer a companhia atender a determinação de governo contrária a seus legítimos interesses, e logo detrimental a ela e aos acionistas minoritários. No caso EMAE, a CVM também foi confrontada com reclamações de acionistas minoritários pela reiterada omissão do Estado de São Paulo, na qualidade de controlador, para dirimir antiga disputa entre EMAE e Sabesp, esta também controlada pelo mesmo Estado. Ocorre que a Sabesp utiliza e vem utilizando regularmente os reservatórios de água da EMAE para abastecimento da cidade de São Paulo, sem, todavia, pagar qualquer remuneração ou compensação em contrapartida. A EMAE apresenta perdas e prejuízos pela impossibilidade de geração de energia face à utilização da água pela Sabesp (outra destinação dada aos reservatórios da EMAE). Avaliando a questão do interesse público primário, ficou claro que ambas as companhias o estavam perseguindo, com prevalência para o abastecimento de água para a população de São Paulo, por se tratar de bem essencial, ainda mais em recente período de grave falta de chuvas, que quase levou a cidade de São Paulo ao colapso e desabastecimento. Porém, a questão da remuneração da EMAE pela Sabesp foi entendida pela CVM como matéria que envolve o interesse particular e secundário de cada uma delas, relacionando-se a questão econômica e financeira das mesmas. Logo, o Estado de São Paulo, como controlador de ambas, não poderia ter se omitido ao longo dos anos na solução de pleito legítimo da EMAE, eis que na sua esfera de interesse. Pela omissão do Estado de São Paulo, a CVM entendeu que houve violação dos deveres fiduciários para com os acionistas minoritários da EMAE, previstos no § único do artigo 116 da Lei das Sociedades Anônimas. Aqui, tampouco, a CVM deu o passo de enquadrar o Poder Público em abuso de controle por omissão, ainda que comissão por omissão, pela inércia no dever de agir, limitando-se a decretar a violação de deveres fiduciários. A decisão também encerra novidade, pois desconecta os deveres fiduciários do artigo 116 do abuso de controle do artigo 117, tratando-os de forma independente. 18 5. Conclusão: Os legítimos limites da subordinação dos interesses das sociedades de economia mista ao interesse público. A necessidade de permanência do interesse coletivo relevante. As sociedades de economia mista e empresas públicas têm inegável significância na história e na economia brasileiras. Passando, na década de 50 do século XX, de uma economia rural e pouco diversificada para o salto da industrialização tardia e da sofisticação de todos os níveis de produção de bens e serviços, isso tudo também foi conquistado com a presença do Estado, através do Banco do Brasil e da então Caixa Econômica da Corte (atual Caixa Econômica Federal), desde o Império, e de CSN, Vale, Petrobras, BNDES, Eletrobras, RFFSA e IRB, dentre outros, a partir das décadas de 40 e 50 do último século. Hoje, mesmo após a política de privatização, remanescem empresas públicas e sociedades de economia mista da maior relevância para o País. A Petrobras é das mais importantes petroleiras do mundo e a maior companhia brasileira. Em ativos e valor e participação de mercado, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal se inserem dentre as principais instituições financeiras brasileiras, sem embargo da grandeza de grupos privados como Itaú Unibanco e Bradesco, todos fazendo parte dos principais conglomerados financeiros das Américas. A Eletrobras é um gigante no setor elétrico. E assim por diante. É fundamental que sejam bem geridas e com responsabilidade. Há dificuldade em quantificar os danos gerados em Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, e outras, sem mencionar os fundos de pensão por eles patrocinados, como resultado da crise dos últimos anos, que ainda não cessou. É necessário que essas entidades estejam focadas em seus objetivos legítimos, respeitem lealmente comunidade, empregados, funcionários e acionistas minoritários, e sejam geridas com atenção aos interesses públicos primários para os quais foram criadas. Não podem ficar a cargo de interesses partidários ou políticas de governo imediatistas e sofrer desvio de finalidade. A Petrobras deve produzir e distribuir petróleo e derivados, com responsabilidade. Não deve ser instrumento de política econômica para conter preços no mercado. A linguagem 19 empregada pela Petrobras no Formulário de Referência 2015, disponibilizado ao mercado, é autoexplicativa16: “Como acionista controladora da Petrobras, a União Federal pode perseguir a adoção de certas políticas macroeconômicas e sociais através da Petrobras. A legislação brasileira exige que a União Federal detenha a maioria das ações com direito a voto da Petrobras e, por conseguinte, a União Federal tem o poder de eleger a maioria dos membros do Conselho de Administração e, através deles, a eleição dos Diretores. Em consequência, a Companhia pode se dedicar a atividades que priorizem os objetivos da União Federal, ao invés dos seus próprios objetivos econômicos e empresariais. Assim, a Petrobras pode fazer investimentos, incorrer em despesas e realizar vendas, em termos que podem afetar negativamente os resultados operacionais e financeiros da Companhia. Em particular, as atividades da Petrobras podem ser conduzidas de modo que a oferta e os preços de petróleo e derivados no Brasil atendam a demanda do mercado brasileiro. Até janeiro de 2002 os preços do petróleo e dos derivados de petróleo eram regulados pela União Federal, sendo ocasionalmente fixados abaixo das cotações vigentes nos mercados mundiais de petróleo. Não há garantias de que o controle de preços não será reinstituído.” Ali, a estatal declara que a União, acionista controlador, pode perseguir a adoção de certas políticas macroeconômicas e sociais através da Petrobras, priorizando a companhia os objetivos da União, “ao invés dos seus próprios objetivos econômicos e empresariais”. A declaração não parece aderente à fiel observância do interesse público primário que orientou a criação da Petrobras (lembre-se que ela é instrumento direto de intervenção do Estado no domínio econômico). A Eletrobras deve gerar e distribuir energia, com responsabilidade. Não pode ser instrumento de políticas de curto prazo para baixar o preço da energia a qualquer custo, como comprovado no processo da CVM acima relatado. O Banco do Brasil deve atender ao crédito agrícola e demais políticas pertinentes, mas dentro de parâmetros de razoável remuneração do custo de captação e intermediação. Essas e outras entidades de interesse público devem fazer políticas de Estado, de longo prazo, com adequado planejamento. Devem servir ao interesse coletivo para o qual foram criadas, sem desvio de finalidade. 20 Assim, é fundamental melhorar o arcabouço de governança dessas entidades, fazendo com que sejam geridas por profissionais responsáveis, comprometidos com seus verdadeiros objetivos. Ao lado de melhores regras e do aperfeiçoamento do sistema vigente, há necessidade de mudança de mentalidade. As sociedades de economia mista e empresas públicas devem servir a políticas de Estado, não a interesses ocasionais de governos. Se não mais atenderem ao interesse público, devem ser privatizadas, como ocorreu com enorme êxito – e deve continuar acontecendo - nos programas brasileiros de privatização a partir das décadas de 80 e 90. Ali, setores que estavam estagnados e deficitários, com instalações obsoletas e incapazes de atender aos interesses coletivos, foram revitalizados, receberam novos investimentos e tornaram-se competitivos. Bom exemplo é nosso parque siderúrgico, que se modernizou e tornou-se competitivo, com maciços investimentos de capital – sem embargo da crise atual que pressiona os preços mundiais da indústria siderúrgica e das commodities em geral. Outro é a telefonia móvel e fixa. Atualmente, quase todo brasileiro tem um telefone. Antes, as linhas eram caras e escassas. Faltava tudo, desde linhas até aparelhos de telefone. A Embraer, outro ótimo exemplo, é modelo brasileiro de inserção no mundo globalizado da alta tecnologia. Compete com outras indústrias altamente sofisticadas do setor de produção de aeronaves civis, e hoje é uma das líderes em segmento de jatos comerciais. Mais recentemente, o País caminha no sentido de novas concessões e privatizações em aeroportos, portos, estradas, sistemas de água e saneamento, e infraestrutura em geral. O Estado não pode estar presente em todos os setores. Não há mesmo possibilidade de arcar com todos os recursos financeiros e humanos necessários aos investimentos de capital que estão por vir. Havendo interesse coletivo relevante, o setor público ainda é indispensável, deve ser gerido com responsabilidade e receber os investimentos necessários à sua atuação na economia. Exemplo importante do caminho inverso é o da petroleira argentina YPF, criada em 1928 – anos antes da Petrobras. Foi a YPF desestatizada pelo governo do presidente Menen, em 1993 (como parte do processo de modernização que tomou o mundo na era das 21 privatizações, a partir do governo Thatcher, no Reino Unido), e reestatizada, em 2012, por questões estratégicas de abastecimento de Estado, após longa disputa entre o governo argentino e a petroleira espanhola Repsol. A YPF recebeu desde então administração profissional e independente e vem gerando lucros. É reconhecida pelos bons resultados alcançados, nesta nova trajetória estatal17. Parece essencial, em síntese, que seja dado efeito concreto à regulamentação do artigo 173 da Constituição federal – com base na implementação das disposições da Lei nº 13.303/2016 - e alterada a mentalidade no País a respeito da intervenção do Estado na economia, observando-se: a conveniência e oportunidade do controle da constituição e manutenção de vastos grupos econômicos por sociedades de economia mista; o controle sobre a indicação e nomeação de administradores profissionais por empresas públicas e sociedades de economia mista, vedando-se a presença de ministros de Estado e autoridades públicas em geral, no exercício de outros cargos (e afastando-se, com isso, a enfermidade do conflito de interesses crônico, como hoje se vê no Brasil); o restabelecimento da responsabilidade subsidiária do Estado na insolvência de sociedade de economia mista (hoje há vácuo legislativo); a manutenção do controle das entidades de interesse público, enquanto o interesse geral e relevante prevalecer (inclusive tornando claro que não haverá perda provisória de controle, mesmo se houver prejuízo eventual e ações preferenciais com dividendos prioritários), fazendo com que tais entidades recebam os investimentos necessários e sejam geridas responsavelmente; e, finalmente, a privatização das entidades ou atividades que não mais estiverem a serviço do interesse público, permitindo que o Estado dirija o foco ao bemestar comum, prioritariamente em educação, saúde, segurança, transporte, infraestrutura e outras políticas públicas do País. Convém recordar que a intervenção do Estado na economia é complementar, devendo pautar-se pelos limites estreitos do interesse público e da segurança nacional. Nossa ordem econômica é orientada pela economia de mercado e pelo princípio fundamental da liberdade de iniciativa. Esta é a regra, sem nenhuma dúvida, e como tal deve ser priorizada, com presença adequada do Estado para regular os interesses coletivos relevantes. É evidente que no Brasil a presença do Estado na economia ainda é fundamental e continuará tendo enorme utilidade, mas desde que seja feita com qualidade, eficiência e responsabilidade. Este é o maior desafio. 22 Rio de Janeiro, 10 de outubro de 2016. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 VENÂNCIO FILHO, Alberto. A Intervenção do Estado no Domínio Econômico, 1ª ed. Fundação Getúlio Vargas, 1968. LAMY FILHO, Alfredo e BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. Direito das Companhias, 1ª ed. Forense, 2009. Cf. www.puc-rio.br/relatorio/DIR/ ZANINE, João. Conferencia sobre El Derecho y las Políticas Públicas en las Américas 9-10 de Mayo, 2016, Habana, Cuba, Universidad De La Habana. Cf. cpdoc.fgv.br/dossiês/A Era Vargas 1/anos 37. Programa Nacional de Desestatização, www.bndes.gov.br. Projeto de Lei 555/2015 (Responsabilidade das Estatais), aprovado pelo Senado em 15 de março de 2016 e transformado na Lei nº 13.303, de 30.06.2016. Vide leis de regência e estatutos sociais nos respectivos sites. BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário, 11ª ed. Renovar, 2008. Cf. www.cvm.gov.br COMPARATO, Fábio Konder e SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima, 4ª ed. Forense, 2005. VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedades por Ações, Vol. 1, ed. Forense, 1959. Idem www.cvm.gov.br BARROSO, Luís Roberto. Modalidade de Intervenção do Estado na Ordem Jurídica Econômica – Regime Jurídico das Sociedades de Economia Mista – Inocorrência de Abuso de Poder Econômico. Revista de Direito Administrativo, vol. 212 – abr/jun 1998; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo, 29ª ed. Malheiros, 2012; e PINTO JUNIOR, Mario Engler. Empresa Estatal: função econômica e dilemas societários, ed. Atlas, 2013. GALGANO, Francesco. Trattato di Diritto Commerciale e di Diritto Pubblico Dell’Economia, Cedam, Padova, 1988, v.7. Cf. sistemas.cvm.gov.br Cf.www.ypf.com