ONDA DE CALOR AFETANDO CORPOS MASCULINOS E FEMININOS – ANÁLISE DE GÊNERO EM UMA FANFICTION DO FANDOM HARRY POTTER Catarina Maitê Macedo Machado Barboza Resumo: Este trabalho apresenta um estudo da representação, de autoria feminina, do corpo da mulher. Para tanto, o estudo enfoca a produção de fanfictions (narrativas criadas por fãs a partir do enredo, personagens e cenários de uma obra original); mais especificamente, utiliza-se a fanfiction coletiva Onda de calor, inspirada na saga literária Harry Potter. A fanfiction em questão foi criada por seis autoras integrantes de um grupo de fãs brasileiras autodenominado Snapetes, formado por mulheres adultas que escrevem ficções protagonizadas por Severus Snape, personagem da citada saga. O artigo contempla duas perspectivas teóricas: os estudos de fanfictions (fundamentados em Jenkins, Vargas e Hellekson e Busse) e os estudos de gênero referentes ao corpo feminino (tendo como referenciais Scott, Grosz e Butler). A partir dessas perspectivas teóricas, a análise procura questionar: no embate entre masculino e feminino, mente e corpo, quem ―ganha‖ e quem ―perde‖? Palavras-chave: Corpo feminino. Autoria feminina. Fandom Harry Potter. Fanfictions. Introdução Este trabalho propõe uma reflexão sobre a representação, de autoria feminina, do corpo da mulher. Para tanto, enfoca a produção de fanfictions – fenômeno definido por Vargas (2005), em um dos primeiros estudos sobre a produção de narrativas de fãs da saga literária Harry Potter no Brasil, como ―uma história escrita por um fã, envolvendo os cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidos no original, sem que exista nenhum intuito de quebra de direitos autorais e de lucro envolvidos nessa prática‖ (p. 21). A investigação da produção de fanfictions insere-se nos estudos de fandoms. Tais pesquisas demonstram que os grupos de fãs são formados em grande parte pelo público feminino, o que os torna um interessante nicho para estudar questões de gênero. Neste artigo toma-se, como objeto de estudo, a fanfiction coletiva Onda de calor, narrativa inspirada na saga literária Harry Potter. A fanfiction em questão foi criada por seis autoras integrantes de um grupo, autodenominado Snapetes, formado por mulheres brasileiras adultas que escrevem ficções centradas em Severus Snape, personagem da saga. As Snapetes surgiram em 2005, a partir do encontro, em meio digital, de duas ficwriters, fãs do citado personagem. Ao longo de sua história, o grupo tem publicado trabalhos coletivos e individuais em sites e blogs de fanfiction, dentre eles Trocando segredos na madrugada e Caldeirão do Snape. O presente artigo contempla duas perspectivas teóricas: os estudos de gênero referentes ao corpo feminino – tendo como referenciais Scott (1995), Grosz (2000) e Butler (2003) – e os estudos de fandoms e fanfictions – fundamentados em Jenkins (1992), Vargas (2005) e Hellekson e Busse (2006). Com base nesses aportes teóricos, a análise procura questionar: no embate entre masculino e feminino, mente e corpo, quem ―ganha‖ e quem ―perde‖? 1 Os estudos de gênero e a questão do dualismo mente/corpo No âmbito dos estudos de gênero, costuma-se afirmar que não se nasce homem ou mulher; os seres humanos tornam-se homens ou mulheres a partir de uma formação identitária adquirida no convívio social. Até os anos 80 do século XX, tais estudos eram denominados estudos ―feministas‖ ou ―das mulheres‖. A substituição pelo termo ―gênero‖ procuraria assinalar que, enquanto o sexo é um fato biológico, determinado pelo nascimento, o gênero é uma construção que se adquire na interação social. De acordo com Scott (1995), tal substituição enfatiza que ―o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse mundo masculino. Esse uso [...] sustenta que estudar as mulheres de maneira isolada perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tenha muito pouco ou nada a ver com o outro sexo‖ (p. 75-6). Apesar disso, segundo Grosz (2000), a teoria feminista inicialmente compartilhou com o pensamento filosófico ocidental, especialmente a vertente ligada ao humanismo renascentista e ao dualismo cartesiano, a visão do ―sujeito humano como um ser constituído por duas características opostas dicotomicamente: mente e corpo, pensamento e extensão, razão e paixão, psicologia e biologia‖ (p. 47). Nessa relação dicotômica estabelecida pelo dualismo, a mente seria o termo privilegiado, enquanto o corpo, o segundo termo – subordinado, suprimido. A partir do dualismo mente/corpo – ressalta a autora –, o pensamento patriarcal, misógino, defende a ideia de que as mulheres estão mais fortemente vinculadas aos seus corpos, os quais seriam naturalmente mais frágeis, instáveis e destinados a funções biológicas reprodutivas (GROSZ, 2000). Assim, as mulheres e seus corpos teriam papéis sociais mais restritos, enquanto os homens estariam livres para explorar todas as suas potencialidades mentais e físicas. Nessa relação de oposição, o masculino é representado pela mente e o feminino, pelo corpo. Segundo a autora, no dualismo, O termo subordinado é meramente negação ou recusa, ausência ou privação do termo primário, [...] [O corpo] é o que a mente deve expulsar para manter sua ―integridade‖. É implicitamente definido como desregrado, disruptivo, necessitando de direção e julgamento, meramente incidental às características definidoras de mente, razão, ou identidade pessoal [...]. (GROSZ, 2000, p. 47-8) Adiante, a mesma autora ainda complementa que o mais relevante é ―a correlação e associação da oposição mente/corpo com a oposição entre macho e fêmea, na qual homem e mente, mulher e corpo, alinham-se nas representações‖ (GROSZ, 2000, p. 49). Assim, a mente representa o homem que, de acordo com a afirmação anterior, deve libertar-se da influência de sua contrapartida subordinada, o corpo – que representa a mulher. Butler (2003, p. 31) também menciona essa oposição, acrescentando: Essa associação do corpo com o feminino funciona por relações mágicas de reciprocidade, mediante as quais o sexo feminino torna-se restrito a seu corpo, e o corpo masculino, plenamente renegado, torna-se, paradoxalmente, o instrumento incorpóreo de uma liberdade ostensivamente radical. Dessa forma, os homens gozariam de uma liberdade radical, uma vez que limites (comportamentais, intelectuais) relativos ao corpo não se aplicariam a eles. As mulheres, ao contrário, teriam suas ações e comportamentos restritos ao aceitável a quem carrega um corpo de mulher. O movimento feminista inicialmente parece comungar dessa ideia, no sentido de ver o corpo (feminino) como um obstáculo às conquistas das mulheres; portanto, deveria haver um esforço para superar algumas de suas especificidades. A evolução do movimento feminista gerou os estudos de gênero, os quais se caracterizam por um esforço em superar o dualismo mente/corpo. Essa concepção, no entanto, parece ainda bastante arraigada no pensamento ocidental. E são justamente traços dessa dicotomia que podem ser percebidos na fanfiction Onda de calor, quando analisada a representação do corpo feminino nessa narrativa. Entretanto, antes de estudá-la, é preciso localizá-la dentre as produções de fanfictions da saga Harry Potter, as quais estão inseridas nos estudos de fandoms. 2 A produção de fanfictions no contexto histórico dos fandoms A pesquisa sobre fanfictions está ligada ao estudo de fandoms, o qual se intensifica entre as décadas de 80 e 90 do século XX e destaca, dentre as atividades de fãs, a produção não só de narrativas, mas também de fanarts e fanvids. O trabalho de Jenkins (1992), dentre outros, analisa fandoms da série de ficção científica Star Trek (Jornada nas Estrelas), cujos membros, predominantemente mulheres, reuniam-se para produzir fanfictions e fanarts nas quais seus personagens preferidos se envolviam em novas aventuras, prolongando, assim, o prazer que os episódios originais lhes proporcionaram. O produto dessas atividades, em geral, era publicado em fanzines e distribuído em convenções (ou encontros) do fandom. Em suas investigações sobre a produção brasileira de fanfictions da saga literária Harry Potter, Vargas (2005) também aponta mulheres adolescentes e jovens adultas como a grande maioria dos membros de fandoms que se dedicam à produção de fanfictions e fanarts no Brasil. Até os anos 90 do século XX, as produções de fãs estavam, no entanto, fadadas a atingir um público bastante restrito, que comparecia aos encontros/convenções de determinados fandoms. É a partir da metade da mesma década, com o avanço da rede mundial de computadores, que essas produções ganham visibilidade, uma vez que passam a ser produzidas e publicadas em meio virtual, tornando o fenômeno popular e aproximando membros de fandoms espalhados pelo mundo. Nesse sentido, são criados sites para hospedar exclusivamente fanfictions (em alguns casos, também fanarts e fanvids) de fandoms específicos ou de vários fandoms. Em relação ao conteúdo veiculado pelas produções de fãs em geral – e, por extensão, pelas ficções de fãs –, há basicamente duas perspectivas assumidas: canon e fanon. A perspectiva canon, como o próprio nome sugere, refere-se à obra, personagens, cenários e ao enredo originais; é a postura nos fandoms e na produção de fanfictions que só admite trabalhar dentro de limites que não firam princípios e/ou pressupostos da obra original. A perspectiva fanon, por outro lado, refere-se ao universo criado pelos fãs a partir dos personagens, enredo, cenários da obra original, modificando sensível ou radicalmente princípios e/ou pressupostos desse original. Tal perspectiva pode ignorar aspectos do final de uma narrativa e apontar a possibilidade de desfechos alternativos. Segundo Hellekson e Busse, ―O fanon muitas vezes cria detalhes particulares ou leituras de personagens, mesmo que o canon não os suporte totalmente – ou, às vezes, colida frontalmente com ele‖ (2006, p. 9). Pode-se dizer que o fanon é uma forma de o fã, muitas vezes, assumir uma postura crítica diante da obra original, impondo o seu ponto de vista e a sua criatividade de uma forma mais contundente. Abordamos, a seguir, uma breve contextualização da saga Harry Potter e dos personagens Severus Snape e Hermione Granger. Além disso, apresentamos algumas formas pelas quais o fandom costuma explorar as perspectivas canon e fanom. 3 Snapefics no contexto da saga e do fandom Harry Potter – canon e fanon O fandom Harry Potter é constituído por leitores/fãs – crianças, jovens e adultos, espalhados pelo mundo – da saga literária criada originalmente em sete livros e adaptada para o cinema em oito filmes. Como já se mencionou anteriormente, a internet facilitou a aproximação e comunicação, bem como a troca de experiências, entre seus membros. Mas o que tanto fascinou os fãs da saga, especialmente os fãs do Mestre de Poções, Severus Snape? Resumidamente, a saga originalmente criada pela britânica J. K. Rowling apresenta a trajetória do protagonista, o menino bruxo Harry Potter, do final da infância à idade adulta, e sua luta contra as forças das trevas, personificadas na figura de Lorde Voldemort. Nessa trajetória, Harry é auxiliado por amigos, principalmente os dois mais próximos, Hermione Granger, filha de um casal não mágico (muggles), e Ron Weasley, filho de uma numerosa família de bruxos puros, porém sem muito poder aquisitivo. Ao final da saga, Hermione casa-se com Ron e Harry casa-se com Ginny, irmã caçula do amigo. A narrativa transcorre predominantemente na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, localizada em um castelo na Escócia. Em regime de internato para bruxos em formação, a escola é dividida em quatro casas, cada uma localizada em uma parte do castelo: Grifinória (ou Gryffindor), que recebe os corajosos; Corvinal (ou Ravenclaw), que recebe os sagazes; Sonserina (ou Slytherin), que recebe os astutos e, por vezes, oportunistas e maldosos; Lufa-Lufa (ou Hufflepuff), que recebe os justos e generosos. Cada casa abriga dormitórios femininos e masculinos, além de uma sala de convivência e estudos, a sala comunal. Harry, Hermione e Ron pertencem à Grifinória. Desde o primeiro ano, Hermione Granger destaca-se pela inteligência e dedicação aos estudos; no trio central, ela pode ser considerada o elemento intelectual ou mental, pois decifra os enigmas (ou contribui decisivamente para tal), debruçando-se sobre livros em pesquisas exaustivas, enquanto os dois garotos são mais pragmáticos, muitas vezes limitando-se a executar os planos elaborados por ela. Entretanto, especialmente nos primeiros livros, sofre humilhações de alguns alunos da casa Sonserina (Slytherin), da qual o professor Snape, Mestre de Poções, é diretor. Aspectos físicos, como a rebeldia e volume dos cabelos e o uso de aparelho ortodôntico, somados ao fato de ser proveniente de uma família não mágica (uma ―sangue ruim‖) seriam algumas justificativas desse grupo de sonserinos para tal atitude preconceituosa. Hermione é, portanto, hostilizada na obra original, especialmente por ser portadora de um corpo, na visão de alguns de seus pares, inadequado, o que a tornaria indigna do respeito deles. Como chefe da casa Sonserina, Snape parece complacente com o comportamento reprovável dos alunos sob sua direção e, em alguns momentos, parece até mesmo endossá-lo. Além disso, a faceta intelectual da garota lhe rende o epíteto irônico, dado pelo próprio professor Snape, de Irritante-SabeTudo-Granger. Essas atitudes do professor somam-se ao fato de que ele e Harry desenvolvem uma animosidade mútua, desde o primeiro livro da saga, apesar de o desfecho dos livros desmentir, em parte, as suspeitas do protagonista de que Snape seria um bruxo das trevas. Tais suspeitas parecem confirmadas ao final do sexto livro, quando Snape mata o diretor da escola, professor Dumbledore. Pode-se dizer, contudo, que os leitores-fãs de Snape ―confiam‖ na lealdade deste a Dumbledore ao longo de toda a saga, mesmo após o desfecho do sexto livro, e realizam um verdadeiro trabalho investigativo, procurando as razões para o comportamento do enigmático e dúbio professor de Poções. Do ponto de vista interpretativo, essa postura mostra-se acertada, quando ao final do último livro da saga revela-se o verdadeiro caráter do personagem, que na verdade protegia Harry e agia de forma ambivalente a fim de preservar seu disfarce como espião entre os bruxos das trevas, repassando informações às forças de resistência ao vilão, Lorde Voldemort. O que manteve seu disfarce a salvo foi uma habilidade ligada essencialmente à mente: apesar de Voldemort ser um grande legilimente, Snape é um grande oclumente. Todavia, o personagem é descrito nos livros invariavelmente de forma negativa: desagradável, feio, antipático, irônico – atributos ligados eminentemente ao corpo. Soma-se a isso o fato de ele ter se destacado intelectualmente nos tempos de estudante e, ao mesmo tempo, ter sofrido humilhações e agressões físicas por parte de um grupo de alunos, autodenominado Marotos, liderados pelo pai e pelo padrinho de Harry. Assim, Severus Snape, a exemplo de Hermione Granger, é um personagem cujos atributos físicos são menosprezados. Os atributos mentais/intelectuais de ambos são inquestionáveis e, no caso de Severus, constituem a sua grande arma/defesa contra as artes das trevas. Por outro lado, no fandom Harry Potter (não apenas em âmbito nacional), parece haver uma tensão entre as perspectivas canon e fanon, uma vez que, ao mesmo tempo em que se evidencia uma preocupação em caracterizar os personagens e o mundo representado de forma coerente com o original, há igualmente uma necessidade criativa de expressar outros pontos de vista, novas possibilidades para o enredo e destino dos personagens, talvez não cogitados pela autora da obra. Essa tensão também pode ser percebida no subgrupo dedicado a Severus Snape e, por consequência, nas fanfictions por ele protagonizadas, as chamadas snapefics. Um exemplo da tendência à postura fanom nas snapefics é a atitude de ignorar a morte de Snape ao final do último livro da saga, criando um desfecho alternativo em que o mesmo sobrevive e tem a chance de começar uma nova vida, dentro ou fora da escola de magia. Outro exemplo de postura fanon é o fato de que as narrativas invariavelmente representam Severus Snape envolvendo-se em tramas e aventuras nas quais, de forma central ou secundária, o romance e o erotismo estão representados. Em virtude de a narrativa original não desenvolver explicitamente tais aspectos da biografia do personagem, o fandom parece sentir-se livre para imaginar romances e/ou envolvimentos (homo)eróticos para o mesmo com uma infinidade de personagens da saga, bem como com personagens originais. Lily Evans Potter (a mãe do protagonista, Harry Potter), Hermione Granger e o próprio Harry Potter são apenas alguns dos possíveis pares românticos (ou ships) de Snape em fanfictions (e fanarts) escritas por fãs de diversos países – apesar de tais pares românticos não terem embasamento na obra original. Na produção das Snapetes, a personagem Hermione Granger constitui, ao lado de Severus Snape, um dos ships preferidos. Apresentamos até aqui, de forma sucinta, o fenômeno fanfiction como uma atividade de fandoms, que hoje se desenvolve predominantemente em meio virtual, bem como a saga que inspira o fandom Harry Potter e o seu subgrupo, dedicado a Severus Snape. Este é o contexto em que as snapefics são produzidas. A seguir, será estudada a representação do corpo feminino na fanfiction Onda de calor, no contexto dos estudos de fandoms e do grupo Snapetes. 4 O corpo em Onda de calor – o contexto do fandom Harry Potter e a questão de gênero A fanfiction Onda de calor foi escrita coletivamente por seis Snapetes, no último encontro anual do grupo – em meio a outras atividades, como a produção de fanarts –, realizado durante o período do carnaval de 2012, em Florianópolis. Posteriormente, a narrativa foi publicada no blog Caldeirão do Snape. Seguindo a tendência do subgrupo do fandom Harry Potter dedicado a Severus Snape, na produção das Snapetes, a figura central é o citado personagem. Em muitas produções (em especial nas de conteúdo romântico e/ou erótico), porém, é possível observar a representação do feminino em equilíbrio de forças com esse personagem. Onda de calor parece pertencer a esse grupo de fanfictions, conforme se pretende demonstrar nesta análise da representação do corpo feminino. Como o título sugere, o enredo da fanfiction gira em torno de uma onda de calor, aparentemente anormal, que assola Hogwarts e seus habitantes (alunos, professores). O professor Snape começa uma ronda, atrás de alunos que estejam perambulando pelos corredores da escola, a fim de encaminhá-los a suas respectivas casas comunais. Em um dos corredores das masmorras (parte do castelo onde se localiza a casa Sonserina, da qual é diretor), encontra um grupo de alunos da Grifinória, dentre os quais está Hermione Granger. Como o professor Snape é temido por sua rigidez, ao vê-lo todos fogem, exceto Hermione. A partir daí, a narrativa concentra-se entre professor e aluna. O primeiro, após tentar, sem sucesso, ignorar o corpo da garota, cujas formas estão mais visíveis, através da camisa branca molhada de suor, parece afinal sentir o calor do ambiente. A situação se complica quando ela desmaia, e ele precisa carregá-la até seus aposentos, nas masmorras, para prestar-lhe socorro. Ali, trava-se uma batalha entre o proverbial poder de autocontrole do professor (a mente) e suas emoções, diante do poder de sedução do corpo feminino suado. Vencido, ele a abraça e a ouve dizer que, por pouco, perdeu a aposta. Revela-se, então, que ambos são noivos e haviam apostado resistir ao toque físico um do outro. Para facilitar o seu sucesso (ou o fracasso da ―adversária‖?), sabendo que a (agora não mais uma simples aluna e sim) noiva odeia ficar suada, Severus providenciara um feitiço de calor, que elevou a temperatura do castelo. O feitiço literalmente virou contra o feiticeiro, depois que ela desmaiou e o contato físico foi inevitável. Do ponto de vista dos estudos de fandoms e fanfictions, está evidente a postura fanon, uma vez que, como já foi visto, na narrativa original o par romântico Severus/Hermione seria impensável. Retomando Hellekson e Busse (2006), dentre outros, a postura fanon consiste em criar leituras que em geral colidem com o canon. Nessa fanfiction, já no paratexto inicial, logo após o título, há um resumo e a indicação do ship, através das iniciais dos nomes dos personagens separados por uma barra transversal – SS/HG. Nesse sentido, Onda de calor dialoga não só com o fandom Severus Snape brasileiro, mas também com o fandom internacional, visto que o ship SS/HG é largamente aceito entre os fãs de Snape espalhados pelo mundo. A título de exemplo, uma rápida pesquisa ao site Fanfiction.net comprova essa afirmação. Em relação aos estudos de gênero e ao dualismo mente/corpo, parece significativo que a indicação do ship comece pelas iniciais do nome do personagem masculino. Esse procedimento coloca-o como termo/elemento privilegiado (representando a mente?), ao qual o segundo elemento, feminino (representando o corpo?) estaria subordinado. O próprio resumo, anterior às iniciais do ship, já sugere que entre os dois polos alguém ficará em desvantagem: Resumo: Uma onda de calor assola Hogwarts. Quem perde com isso? SS/HG (SNAPETES, 2012). A aparente desvantagem feminina é mostrada logo no início, apresentando Hermione como aluna, devendo, portanto, obediência e respeito ao professor. Em relação ao corpo feminino, mais uma vez é apresentada uma situação de desvantagem: é Hermione quem inicialmente sente os efeitos da temperatura, ficando suada e desmaiando. É, pois, a personagem feminina que sofre os efeitos de um corpo inadequado, conforme Grosz (2000) e Butler (2003) – biologicamente frágil, sensível às mudanças ambientais. Hermione Granger procurou esconder a camisa branca de Hogwarts empapada de suor, transparente com o líquido que deixava o tecido agarrado à sua pele e denunciando suas formas. [...] Snape estava a ponto de despejar a língua ferina numa resposta ácida quando foi interrompido pelo suave movimento da moça ao tentar desviar a atenção do sisudo Mestre de Poções sobre seu estado desmazelado. (SNAPETES, 2012) Severus, por sua vez, impõe sua posição de autoridade (professor) que deve ser respeitada e obedecida. Em um primeiro momento, seu corpo parece indiferente à alta temperatura que afeta os outros corpos, em especial o de Hermione. O dia estava anormalmente quente para aquela época do ano, as pessoas do castelo estavam preocupadas procurando os motivos para aquele clima e outros procuravam meios para se refrescar. Enquanto isso… Severo Snape passava a passos largos pelos corredores em suas vestes negras habituais, como se o clima não o afetasse. (SNAPETES, 2012) Conforme Butler (2003, p. 31), citada no início deste artigo, ―o corpo masculino, plenamente renegado, torna-se, paradoxalmente, o instrumento incorpóreo de uma liberdade ostensivamente radical‖. É o que se percebe no trecho acima, na indiferença do personagem masculino ao clima que afeta outros corpos. Em um segundo momento (ou observando de outro ponto de vista), porém, os papéis parecem se inverter: não só Hermione parece tomar as rédeas da situação (agora, mais explicitamente de sedução), como também a mente e o corpo do professor parecem afetados pela ostensiva (e tentadora) presença do corpo feminino suado. Por mais que ele tentasse, não conseguia desviar o olhar do corpo suado, das formas arredondadas, da temperatura alta que finalmente parecia afetá-lo. As palavras morreram em sua garganta, que repentinamente ficou seca. [...] Ele tentou manter-se inerte e vestir a armadura fria que costumava utilizar. Passou um dedo pela própria gola, como se esta estivesse apertada e engoliu em seco. (SNAPETES, 2012) A partir do momento em que toma consciência das formas femininas, mente e corpo masculinos – que antes pareciam totalmente disciplinados – começam a vacilar. Retomando Grosz (2000) e Butler (2003), estudadas no início deste artigo, em especial esta última, na associação do corpo ao feminino, o sexo feminino acaba restrito ao corpo e suas funções biológicas. A cena descrita acima sugere que o modo de a personagem feminina impor sua presença/existência é através do seu corpo. Hermione surge, contudo, como a ―adversária‖ que usa o corpo e suas reações biológicas – que, em princípio constituiriam sua fraqueza – como arma (de sedução/provocação): Hermione Granger procurou esconder a camisa branca de Hogwarts empapada de suor, transparente com o líquido que deixava o tecido agarrado à sua pele e denunciando suas formas. Em intenção velada, ela baixou o olhar, com uma expressão marota: — Desculpe, professor. Vai me dar detenção? [...] (SNAPETES, 2012) O corpo feminino, então, impõe sua presença de forma contundente, passando a ser o grande desafio de Severus manter seu autocontrole diante dele. Em determinado momento, a batalha mental de Snape é comparada às travadas com o vilão Voldemort, o Lorde das Trevas: Afinal, se uma coisa era motivo de orgulho do Mestre de Poções era seu autocontrole. Isso o mantinha vivo em frente ao Lorde das Trevas [...] Então, como aquela grifinória de cabelos rebeldes e grandes olhos castanhos ousava perturbar uma de suas maiores e únicas fontes de conforto? [...] (SNAPETES, 2012) Assim, resistir ao poder de sedução do corpo feminino passa a ser um desafio maior que enfrentar as forças das trevas, e na mente masculina ocorre o embate entre autocontrole e fantasias. A temperatura externa, definitivamente anormal e longe de ser natural, era apenas mais um incentivo para o tipo de pensamento que corria solto e desenfreado, vendo coisas que não existiam a não ser em seus desejos. Severo esticou a mão, como se pudesse tocar a fronte gotejada de suor, mas conseguiu se controlar. Ao menos fisicamente, ele tinha que ser capaz de se controlar. Já que a mente mantinhase rebelde, pelo menos o mínimo de decoro ele precisava manter. (SNAPETES, 2012) Em determinado momento, a narrativa chega a sugerir certa premeditação nos atos de Hermione, que também poderia ter manipulado o ambiente magicamente, através de um contra-feitiço. É o que sugere essa fala de Snape, que argumenta: — Feitiços refrescantes não lhe são desconhecidos, tenho certeza. Temperatura alta não é desculpa para vadiar pelos corredores. (SNAPETES, 2012) Tal atitude indicaria um estado mental/intelectual não passivo, por parte da personagem feminina, e, de alguma forma, contrariaria a associação da mente ao masculino e do corpo ao feminino, mencionada por Grosz (2000) e Butler (2003). Considerando o fragmento acima e o fato de que o final da narrativa revela que tudo não passou de um desafio proposto pela própria Hermione, poder-se-ia, inclusive, afirmar que o embate travado ao longo da fanfiction é essencialmente mental (apesar da presença ostensiva do corpo feminino). De outra parte, o trecho destacado também demonstra um aspecto fanon bastante explorado pelo fandom dedicado a Severus Snape – a potencial afinidade intelectual entre este e Hermione Granger. O corpo masculino, por outro lado, quase ausente, não parece ter um efeito de sedução semelhante ao feminino. Se Severus Snape sente-se extremamente afetado/atraído pelas formas femininas de Hermione Granger, em nenhum momento transparece perturbação nas reações desta, provocadas pela presença física, masculina, de Snape. É como se ao corpo masculino não estivesse reservada tal qualidade. A ausência de sedução masculina através do corpo parece indicar, ainda, que essa fanfiction, no fundo, reproduz um estereótipo consagrado na cultura ocidental em relação à imagem do corpo feminino como o símbolo da sedução por excelência. Por fim, a análise demonstrou a representação de um equilíbrio, no nível mental/intelectual, entre os polos feminino e masculino, uma vez que, apesar de Hermione sofrer reações físicas e fisiológicas ao calor anormal do ambiente, tais reações poderiam ter sido premeditadas, com o objetivo de levar o ―adversário‖ ao fracasso. Por outro lado, a quase ausência do corpo masculino parece afirmar o estereótipo do corpo feminino como o símbolo da sedução. Assim, retomando a questão que encerra a introdução deste artigo e o resumo da própria fanfiction Onda de calor, no embate entre mente e corpo, masculino e feminino, talvez não haja, de fato – não apenas no âmbito da narrativa aqui analisada –, ―vencedores‖ e ―perdedores‖, mas a necessidade de percepção de que corpo e mente (masculinos e femininos) não estão dissociados, uma vez que constituem os sujeitos que os carregam. Considerações finais Ao longo deste artigo, procurou-se aproximar os estudos de fandoms e de gênero, no que tange à representação do corpo, em especial do corpo feminino na produção de fanfictions. Tomando como caso a fanfiction Onda de calor, escrita coletivamente por integrantes do grupo Snapetes, procurou-se demonstrar que tais representações evidenciam os papéis de homens e mulheres em nossa sociedade. Dessa forma, parece pertinente estudar a criação de fanfictions, uma vez que seu público produtor e consumidor é constituído essencialmente por mulheres jovens e, em muitos casos, adolescentes ainda em formação. Assim, estudar as representações que elas fazem do próprio corpo e do papel da mulher na sociedade (ainda que em um universo alternativo e fantástico, a sociedade bruxa criada por J. K. Rowling, também uma mulher) talvez contribua para entendermos a formação dos papéis femininos e masculinos em nossa sociedade. REFERÊNCIAS ARBO, J. O mundo bruxo e a igualdade de gêneros. Blog Ossos Graúdos, 15 mar. 2012. Disponível em: <http://ossosgraudos.blogspot.com.br/2012/03/coluna-o-mundo-bruxo-e-igualdadede.html>. Acesso em: 17 set. 2012. BUTLER, J. Sujeitos do sexo/gênero/desejo. In: BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 1760. 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