Eletricidade no Brasil Olga Côrtes Rabelo Leão Simbalista Dezembro 2015 Zonas de comércio, zonas monetárias e o caso da Grécia: lições da teoria econômica Rubem de Freitas Novaes Considerações sobre o impeachment Marcus Faver Número 729 Síntese da Conjuntura Conjuntura econômica Ernane Galvêas Dezembro 2015 729 Dezembro 2015 729 Conferências proferidas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo Sumário Eletricidade no Brasil ............................................... 4 Olga Côrtes Rabelo Leão Simbalista Zonas de comércio, zonas monetárias e o caso da Grécia: lições da teoria econômica ........... 34 Rubem de Freitas Novaes Considerações sobre o impeachment ....................... 52 Marcus Faver Síntese da Conjuntura Conjuntura econômica ........................................... 86 Ernane Galvêas São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas. Solicita-se aos assinantes comunicarem qualquer alteração de endereço. As matérias podem ser livremente reproduzidas integral ou parcialmente, desde que citada a fonte. A íntegra das duas últimas edições desta publicação está disponível no endereço www.cnc.org.br. Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo Dezembro 2015, n. 729 Brasília SBN Quadra 1, Bloco B, no 14, do 15o ao 18o andar Edifício CNC CEP: 70041-902 PABX: (61) 3329-9500 | 3329-9501 [email protected] Rio de Janeiro Avenida General Justo, 307 CEP: 20021-130 Tel.: (21) 3804-9241 Fax: (21) 2544-9279 [email protected] www.cnc.org.br Publicação Mensal Editor Responsável: Cristina Calmon Projeto Gráfico: Assessoria de Comunicação/Programação Visual Revisão: Elisa Sankuevitz, Maria Luiza e Marília Pinto de Oliveira Impressão: Gráfica Ultraset Carta Mensal |Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo – v. 1, n. 1 (1955) – Rio de Janeiro: CNC, 1955100 p. Mensal ISSN 0101-4315 1. Problemas Brasileiros – Periódicos. I. Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Conselho Técnico. Conselho Técnico Presidente Antonio Oliveira Santos Conselheiros Antonio Celso Alves Pereira Antonio Chagas Meirelles Antonio Paim Ari Cordeiro Filho Arnaldo Niskier Arno Wehling Arnoldo Wald Aspásia Camargo Carlos Afonso Pierantoni Gambôa Carlos Antonio Bettencourt Bueno Célio Borja Cid Heraclito de Queiroz Claudio R. Contador Diogo de Figueiredo Moreira Neto Eduardo da Silveira Gomes Júnior Eliseu Álvares Pujol Ellen Gracie Northfleet Ernane Galvêas Ernesto Albrecht Evaristo de Moraes Filho Geraldo Holanda Cavalcanti Harry Adler Ives Gandra da Silva Martins Jaime Rotstein Jarbas Passarinho J. Bernardo Cabral João Clemente Baena Soares João Havelange João Paulo dos Reis Velloso João Ricardo Carneiro Moderno Joel Mendes Rennó José Arthur Rios José Botafogo Gonçalves José Carlos Barbosa Moreira José Carlos Fragoso Pires José Carlos Soares Freire José Luiz S. Miranda José Osvaldo de Meira Penna Julian Chacel Léa Maria Sussekind Viveiros de Castro Leonidas Pires Gonçalves Leopoldo Garcia Brandão Luiz Augusto de Castro Neves Luiz Felipe Lampreia Luiz Guilherme Schymura de Oliveira Luiz Roberto A. Cunha Manoel Pio Corrêa Júnior Marco Cesar Meira Naslausky Marcos de Azambuja Marcus Faver Maria Beltrão Mary del Priore Mauro Gandra Meton Soares Junior Nelson M. de Mello e Souza Ney E. Prado Olga Côrtes Leão Simbalista Oswaldo Trigueiros Júnior Paulo Bonavides Paulo Mercadante Ricardo Vélez Rodríguez Roberto Abdenur Roberto Cavalcanti de Albuquerque Roberto Fendt Roberto P. de Lima Netto Roberto Rosas Rosiska Darcy de Oliveira Rubem de Freitas Novaes Samuel Auday Buzaglo Sergio F. Quintella Theophilo de Azeredo Santos Vasco Mariz Eletricidade no Brasil Olga Côrtes Rabelo Leão Simbalista Engenheira Nuclear. E m 2015, comemoramos o Ano Internacional da Luz, a despeito de 1,5 bilhão de pessoas no mundo ainda viver no escuro. Esse fato, bem como a situação atual caótica do abastecimento de eletricidade no Brasil, motivou-nos a escolher esse tema para as discussões desta tarde. A eletricidade é uma das partes da física que possui maior campo de investigação ainda existente. Os diversos usos da eletricidade ainda não foram esgotados. Diariamente, somos bombardeados por uma quantidade enorme de novas aplicações da eletricidade. Alguns séculos antes de Cristo, os gregos já conheciam o efeito elétrico que se manifestava, quando um pedaço de âmbar friccionado atraía pedaços de palha e outros corpos leves. Os gregos conheciam, também, o efeito magnético resultante da propriedade de materiais como a magnetita, que atrai pedaços de ferro. Contudo, antes do descobrimento da eletricidade e, mais especificamente, de como manter uma corrente 4 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 elétrica regular, há pouco mais de um século, era preciso queimar alguma coisa, seja madeira, óleo, gás ou cera, para se obter a luz. A lâmpada elétrica incandescente foi uma forma de produzir luminosidade aquecendo um objeto, com o uso de uma corrente elétrica passando por um filamento, até que ele emitisse luz visível, a qual, todavia, em contato com o ar, entrava em combustão. Thomas Edison (1847-1931) resolveu o problema, em 1879, colocando um filamento feito com fibras de bambu carbonizado no interior de um bulbo de vidro, onde fez-se um vácuo, a lâmpada acendeu, desprendendo uma luz suave durante vários dias. Tínhamos uma nova fonte de luz, o nosso sol particular: a luz elétrica. O fogo não era mais tão necessário, a eletricidade podia aquecer, transformar e iluminar. O domínio da eletricidade acelerou o processo de desenvolvimento mais do que a habilidade em produzir fogo. É interessante comparar os efeitos na civilização, nos dez mil anos passados, a partir do controle do fogo pelos nossos ancestrais, com os cerca de cem anos após o controle da eletricidade pelos nossos quase avós. Enquanto levamos em torno de dois mil anos desde a fundição do bronze até a moldagem do ferro, em pouco mais de um século passamos do lampião ao computador, e a maior parte das pessoas em todo o mundo ficou quase que totalmente vinculada aos diferentes usos da eletricidade. Nas grandes cidades, os sistemas coletivos de iluminação, comunicação, transporte, segurança, medicina, entretenimento, alimentação e, principalmente, suprimento de água demandam eletricidade. Em nossas casas, os sistemas familiares de refrigeração, iluminação, controle, comunicação e cocção também funcionam com base na eletricidade, que contribuiu enormemente no processo de emancipação da mulher e sua ida ao mercado de trabalho. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 5 A denominada Segunda Revolução Industrial caracterizou-se pelo uso de novos materiais, novas fontes de energia e aplicação do conhecimento científico na indústria. Se na Inglaterra havia surgido a Primeira Revolução Industrial, a Alemanha, unificada por Bismarck, foi a liderança fundamental que determinou o ritmo da corrida industrial da Segunda Revolução. Se o carvão e ferro foram a base da primeira, o aço e a eletricidade determinaram o sucesso da segunda. Essa revolução se espalhou pelo mundo, sendo o ponto de partida para a economia globalizada, aquela, saindo da Grã-Bretanha, pouco ultrapassou os limites da Europa Ocidental. O Electric Lightning Act, assinado pela Rainha Vitória, é reconhecido como o primeiro instrumento regulatório sobre eletricidade. E o progresso oriundo dessa Segunda Revolução trouxe, como reflexo da superprodução e da competição, profundas mudanças empresariais, com o desaparecimento de pequenas indústrias e o fortalecimento de grandes conglomerados empresariais. No campo da eletricidade, são dessa época a Siemens da Alemanha, a Brown Boveri da Suíça, a ASEA da Suécia, a GE norte-americana e a Philips holandesa, nomes que chegaram aos dias de hoje. O Brasil, no meio do reinado de Dom Pedro II, consolidou sua vocação básica de exportador agrícola: café, cacau, algodão, açúcar, fumo, mais a borracha, ao final do século. Os anos 1880 do século XIX marcaram o começo da economia industrial no Brasil, com trabalhadores assalariados e empresas organizadas. No auge do debate abolicionista, Dom Pedro II, homem de grande curiosidade científica, foi assistir à Exposição de Filadélfia, nos Estados Unidos, onde conheceu Thomas Edison, seus aparelhos e lâmpadas elétricas. Fascinado pelo novo invento, o imperador encomendou uma demonstração no Rio de Janeiro. Assim, em 1879, 6 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 a eletricidade apareceu no Brasil, quando seis lâmpadas elétricas, acionadas por dois dínamos, substituíram 46 lampiões de gás da Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. A partir daí, o uso da eletricidade foi se espalhando: • Em 1881, em exposição na Escola de Minas em Ouro Preto. • Em 1883, um minerador constrói uma usina hidrelétrica no Ribeirão do Inferno, em Diamantina, a fim de movimentar bombas de desmonte hidráulico para revolver o terreno com água, na busca de diamantes. No mesmo ano, os primeiros bondes elétricos começam a circular em Niterói e em Campos, cidade esta, onde também inaugura-se o primeiro sistema de iluminação pública, que, com 39 lâmpadas, ilumina, pela primeira vez, uma cidade da América do Sul. • Em 1887, em Nova Lima, Minas Gerais, uma pequena hidrelétrica, associada a uma linha de transmissão, leva energia às casas de trabalhadores e funcionários da Compagnie des Mines d’Or Du Faria. Também nesse ano, Porto Alegre torna-se a primeira capital a contar com o serviço público de iluminação elétrica. • Em 1889, é construída, em Juiz de Fora, a primeira hidrelétrica brasileira com a finalidade de serviço público: a Usina Marmelos, no rio Paraibuna, de propriedade do industrial Bernardo Mascarenhas, com a “extraordinária” potência de 0,25 MW. • A partir da década de 1890, a energia elétrica passa a ser explorada com objetivo industrial, quando pequenas indústrias começam a se instalar próximas a quedas d’água para, daí, tirarem sua energia. • Em 1899, a São Paulo Light and Power recebe a primeira concessão de energia elétrica no país, por meio de decreto de Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 7 Campos Sales, e, no ano seguinte, é inaugurada a primeira linha de bondes na cidade de São Paulo, ligando a Barra Funda ao Centro, e suprida por uma termelétrica de 1 MW. A partir de 1904, recebe concessão para atuar também no Rio de Janeiro. • Em 1927, a American & Foreign Power Company (AMFORP), pertencente ao grupo americano Electric Bond and Share Corporation, abre uma concessionária no Brasil, a Empresas Elétricas Brasileiras (EEB), posteriormente denominada Caeeb, e passa a atuar, principalmente, em distribuição em várias capitais. No final do século XIX, a potência instalada no Brasil é de cerca de 12MW, com uma população de 17 milhões de habitantes. A partir de então, a evolução do setor de energia elétrica mostra que, de tempos em tempos, condicionantes de diversas naturezas, porém, com um forte componente político, levam à necessidade de reformulações institucionais do modelo setorial, sendo que, até quase o final do século, em intervalos de cerca de vinte anos e, a partir daí, com uma frequência inferior a dez anos. Em 1930, 80% do mercado de distribuição brasileiro era atendido pela Light e Caeeb, posição que se manteve até 1960. No início do século XX, a produção e o uso da eletricidade restringiam-se a indústrias que dispunham de seus próprios geradores para autoprodução, ou ao setor de serviços públicos de iluminação, abastecimento de água ou bondes, nas grandes cidades, uma vez que o país ainda apresentava uma economia essencialmente agrícola. A presença do Estado no setor limitava-se à concessão de âmbito municipal, fiscalização dos contratos e seus aditamentos e na edição de leis que fixavam as tarifas, muitas vezes por meio de contratos lastreados em “cláusula ouro”. 8 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 Um novo ciclo, marcado pelo crescente consumo de eletricidade e pelo início da industrialização do país, tem como marco a edição do Decreto 24.643, de 1934, que instituiu o Código de Águas. Produto do professor Alfredo Valadão, que na verdade fora iniciado na década de 1910, este código, além de regulamentar todos os aspectos envolvidos no uso dos cursos d’água, como a propriedade daquelas de uso comum pela União e pelos estados e municípios e o princípio da desapropriação, antevia o importante papel destes na emergente indústria da eletricidade e a necessidade de sua regulamentação como caminho para a socialização do seu uso e propriedade. Antevia-se a possibilidade de obras de engenharia civil de elevados custos, com barragens de grandes volumes de acumulação e a regularização de descargas, barragens estas, muitas vezes, situadas longe dos grandes centros de consumo e obrigando à construção de caríssimas linhas de alta tensão. Nessas condições, e, principalmente, quando “o conjunto dessas obras fosse para atender a elevados interesses relativamente ao abastecimento das populações, à defesa contra inundações, à higiene geral, à navegação, à irrigação, deveria o próprio Estado realizar o empreendimento, ou subvencionar as empresas, de modo que o consumidor possa obter energia por preço cômodo”. Fundiam-se já as sementes doutrinárias do Estado Empresário e do Estado Providência, no âmbito da indústria da eletricidade. Essa legislação inibiu o desenvolvimento e o investimento de empresas privadas, em particular das estrangeiras, à época os grupos Light, concentrado no Rio e em São Paulo, e o Amforp, concentrado em distribuidoras estaduais, o que foi ficando patente na crescente dificuldade de atendimento ao mercado, especialmente no pós-guerra. Em 1954, vinte anos após a edição do Código de Águas, iniciou-se um novo ciclo institucional no setor, agora motivado pelo grande Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 9 surto de desenvolvimento industrial e que iria alterar profundamente a estrutura produtiva do país. Para tanto, foi promulgada a Lei 2.308, instituindo o Fundo Federal de Eletrificação, destinado a “prover e financiar instalações de produção, transmissão e distribuição de energia elétrica, assim como a indústria de material elétrico”. Criou-se, também, o Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), a ser cobrado pela União ao consumidor. Teve início o período de fortalecimento das empresas estatais, federais e estaduais, fomentadas por capital da União, por intermédio do BNDE e, posteriormente, a partir de 1962, da Eletrobras, já mencionada na carta-testamento de Getúlio Vargas, e, em contrapartida, o declínio das empresas de capital estrangeiro. Adicionalmente, regulamentaram-se os serviços de energia elétrica, por meio do Decreto 41.019, de 26 de fevereiro de 1957, mantendo-se junto ao governo federal o poder de conceder e autorizar a prestação dos serviços públicos de energia elétrica, bem como o de fixar as tarifas pelo regime do serviço pelo custo, que inclui a remuneração dos ativos operacionais. O órgão regulador passou a ser o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), ligado ao Ministério das Minas e Energia (MME), desde sua criação em 1961. Tratou-se de período com grandes concentrações no processo decisório e no capital das empresas federais, refletindo os preceitos centralizadores que se consolidariam na Constituição de 1967. Em 1964, a Eletrobras adquiriu as empresas do Grupo Amforp e, pouco depois, ao permitir o reajuste dos valores dos ativos, implantou uma política de realismo tarifário, que favoreceu a capitalização das empresas e seus desenvolvimentos. A partir de 1971, a Lei 5.655 definiu como remuneração para os concessionários o valor mínimo de 10% ao ano e máximo de 12%, representativa do custo de capital aplicado na formação dos ativos operacionais, e a ser obtida via receita tarifária. Eventuais insuficiências ou excessos 10 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 de remuneração, apurados pelo poder concedente junto a cada concessionário, em sua prestação de contas anual, eram registrados contabilmente na Conta de Resultados a Compensar (CRC), com vistas à sua correção no exercício financeiro subsequente, quando da fixação da nova tarifa. Em 1974, inicia-se um novo ciclo no setor, por meio do Decreto-Lei 1.383, de 26 de dezembro de 1974, que estabeleceu a equalização das tarifas de energia elétrica em todo o território nacional. Nessa mesma ocasião, consolida-se a tendência de construir grandes empreendimentos governamentais na área de geração, tendo como principal marco a constituição da Itaipu Binacional. A estrutura setorial se define com a constituição formal de empresas geradoras regionais, a saber: Chesf, no Nordeste; Eletronorte na Região Norte; Eletrosul, na Sul; e Furnas nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. Quanto às empresas distribuidoras, estas foram transferidas, em sua maioria, para os governos estaduais. Portanto, cerca de quarenta anos após a promulgação do Código de Águas, o setor elétrico se encontra quase totalmente estatizado. O próximo movimento seria ainda na linha de concentração da sua organização. A introdução do conceito de preços únicos dos serviços de energia elétrica ao consumidor final fora concebida como uma estratégia de governo para diminuir as desigualdades regionais e propiciar a atração de investimentos para as regiões Norte e Nordeste, de modo que desconcentrasse industrialmente o país. Entretanto, como cada concessionária apresentava uma diferente estrutura de custos e de mercado, a equalização tarifária propiciava, num primeiro momento, um desequilíbrio financeiro, gerando déficit para aquelas que tinham seus níveis de custo unitário acima da média nacional e superávit para aquelas que estivessem abaixo da referida média. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 11 O equacionamento desses desníveis processava-se por meio de mecanismos de transferências intrassetoriais, mediante recolhimento, pelas superavitárias, das parcelas excedentes à taxa de remuneração legal de 12% a.a., destinadas a cobrir insuficiências das concessionárias menos rentáveis, até o limite da taxa mínima de remuneração legal de 10% a.a. A partir do final da década de 1970, o setor elétrico passou a ser fortemente dependente da política macroeconômica e, assim, passou a ser utilizado para captar recursos no exterior, para ajuste do balanço de pagamentos, para o desenvolvimento de programas considerados estratégicos, mas fora da sequência de menor custo, como nos casos de Itaipu, Programa Nuclear e Tucuruí, bem como para o controle da inflação, por meio da contenção tarifária. Assim, deixou-se de conseguir, a partir de 1978, níveis tarifários capazes de garantir a remuneração legal de 10% a.a. sobre os ativos em serviço. Por outro lado, a política de equalização tarifária foi induzindo, gradativamente, a um desestímulo à eficiência operacional. Nesse contexto, a crise da economia começa a arrastar o setor elétrico, que já se tornara totalmente dependente do Estado. O processo se inicia pela redução dos recursos para investimentos, os quais, inacabados, são onerados pelo serviço da dívida. Simultaneamente, ocorrem retrações da arrecadação tarifária e bloqueio ao acesso aos mercados de capital externos. Nos anos 1982 e 1983, a situação das concessionárias começou a ficar caótica. A inadimplência entre empresas se propagava. As poucas concessionárias que ainda obtinham remuneração superior a 12% a.a. já não atendiam à determinação do governo federal de transferir o excedente, sob a alegação que tal efeito não resultava de 12 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 tarifa adequada, mas do esforço na administração dos seus custos, em busca da melhor qualidade do serviço. Em 1988, o governo federal editou o Decreto-Lei 2.432, prevendo a compensação das Contas de Resultados a Compensar (CRCs), apuradas até 31 de dezembro de 1987, com ativos da União, estabelecendo a possibilidade de ajuste de pendências passadas, sem comprometer os fluxos financeiros futuros. De um montante de CRCs de US$ 7,7 bilhões, foi possível resgatar US$ 5,5 bilhões, prevendo-se que o restante seria objeto de entendimentos entre os ministérios da Fazenda e das Minas e Energia. Um dos fatores mais relevantes para o ordenamento do setor foi a Constituição Federal de 1988, que, em seu Artigo 21, inciso XII, ratifica a competência da União para explorar, diretamente, ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos d’água, em articulação com os Estados em que se situam os potenciais hidroenergéticos. Adicionalmente, o Artigo 175 estabelece que cabe ao Poder Público, “na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação do serviço público”. Entretanto, no contexto macroeconômico vigente, as tarifas voltaram a ser usadas como mecanismo de controle da inflação e, em 1990, as concessionárias já acumulavam enormes créditos devidos à insuficiência de remuneração. Iniciou-se um processo de inadimplência entre as empresas geradoras e distribuidoras, bem como de geradoras que se recusavam a pagar a energia oriunda de Itaipu, que tinha sua tarifa dolarizada e estava fora do controle da retenção tarifária. As dívidas intrassetoriais atingiam US$ 5 bilhões e os créditos contra a União (CRCs) US$ 24 bilhões. Adicionalmente, a paralisação do programa de obras, da ordem de 10 mil MW e milhares de quilômetros Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 13 de linhas de transmissão, onerava o custo financeiro das obras em mais de US$ 1,2 bilhão, ao ano. Iniciou-se também um processo de dificuldades para a execução de obras de manutenção e conservação, contribuindo para a elevação dos riscos de atendimento e do nível de perdas. Em 1991 e 1992, ocorreram 150 perturbações de porte nos sistemas interligados, completamente fora dos padrões. A situação tornara-se insustentável e iniciou-se uma grande reformulação do setor, a partir de novembro de 1992, comandada pelo ministro Eliseu Resende, então presidente da Eletrobras, e que resultou na elaboração da Lei 8.631, promulgada em 4 de março de 1993, após a realização de consultas a todos os segmentos representativos do setor e inúmeras reuniões com governadores de estados, dirigentes de empresas e secretários estaduais de energia. Após essa fase, o projeto de lei foi enviado ao Congresso Nacional, visando a sua consolidação dentro de um processo democrático, tendo sido aprovado na Câmara e no Senado nos dias 2 e 9 de fevereiro, respectivamente. Suas principais características resumem-se nos seguintes tópicos: 14 • Fim da equalização tarifária: cada concessionário propõe ao Dnaee sua tarifa em função do seu custo. • Mantido o valor médio da tarifa, o concessionário pode promover alterações compensatórias entre classes de consumidores finais. • Obrigatoriedade de celebração de contratos entre concessionários supridores e supridos, tendo como garantia as receitas em conta bancária do concessionário suprido. • Estabelecimento de fórmula paramétrica para o reajuste automático das tarifas, específica para cada concessionário. C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 • Extinção da remuneração garantida e da CRC. • Realização de encontro de contas entra créditos de CRC e débitos de energia e outros ativos da Eletrobras e da União, que atingiu cerca de US$ 26 bilhões. • Extensão da Conta de Consumo de Combustíveis Fósseis (CCC) a todo o território Nacional. • Estabelecimento de sistemática para recolhimento e utilização da Reserva Global de Reversão (fundo criado anteriormente para indenizar empresas por ativos não depreciados ao fim da concessão), que passa a cobrir projetos de conservação de energia Procel e a eletrificação rural. • Criação de Conselhos de Consumidores, junto às empresas distribuidoras. Também, em 1993, o Decreto 915, objetivando o aumento da capacidade instalada no país, permitia a formação de consórcios para a construção de hidrelétricas, sendo que a energia produzida devia ser utilizada para consumo próprio e eventual excesso negociado com a respectiva concessionária. Daí, surgiram obras como Itá e Machadinho, no rio Uruguai. Em 1995, a Lei 8.987 regulamenta os preceitos de licitação para concessões, previstos na Constituição de 1988 (lei proposta pelos senadores Fernando Henrique Cardoso e Nelson Jobim). Essa lei acabou com o princípio da concessão cativa de novas instalações para o dono da área de concessão. De alguma forma, começava-se a falar em competição no setor elétrico. Ainda em 1995, a Lei 9.074 implantava a figura do Produtor Independente de Energia, introduzindo um Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 15 novo agente no arcabouço setorial. Essa lei definiu também questões referentes às condições para novas concessões e prorrogação de concessões existentes, inclusive prevendo a possibilidade (Artigo 19) de a União prorrogar concessões de geração vencidas e alcançadas pela Lei 8.987, pelo prazo de vinte anos, visando garantir a qualidade do atendimento ao consumidor, e estipulou critérios de definição para instalações de transmissão. Esses quatro instrumentos (Lei 8.631, Decreto 915, Lei 8.987 e Lei 9.074) representaram o despertar do setor para uma nova realidade e prepararam o terreno para uma grande reestruturação que se seguiu, denominada Projeto Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro (RESEB), proposta em 1995, a ser implementada com recursos do Banco Mundial e a ser conduzida por uma consultoria internacional, no caso a Coopers & Lybrand da Inglaterra, que venceu concorrência internacional, consorciada com empresas brasileiras, Ulhoa Canto, Engevix e Main Engenharia. Os documentos licitatórios incluíam um termo de referência, de modo que os seguintes objetivos da reestruturação fossem alcançados: 16 • Assegurar a oferta de energia. • Estimular o investimento no setor. • Reduzir os riscos para os investidores, ao mesmo tempo garantindo a modicidade tarifária. • Maximizar a competição. • Garantir o livre acesso aos sistemas de transmissão pelos produtores independentes. • Incentivar a eficiência. C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 • Fortalecer o órgão regulador. • Assegurar a expansão hidrelétrica. • Manter a otimização operacional. • Definir novas funções para a Eletrobras. • Adequar a qualidade do fornecimento à necessidade do mercado e à modicidade tarifária. Uma característica brasileira, fruto de sua geografia de planaltos e planícies, é que seu rios percorrem grandes extensões antes de alcançar o mar, como os rios Paraná, com 3.942 quilômetros, o São Francisco, com 2.800 quilômetros, o Madeira, com 3.315 quilômetros, e o Tocantins, com 2.700 quilômetros. Assim, é comum encontrar várias usinas em sequência no mesmo rio. No Paraná e em seus afluentes, encontram-se mais de trinta importantes usinas do sistema. Para que haja uma otimização no uso da água, elas precisam funcionar em um regime de condomínio, em que cada uma produz a quantidade ideal para otimizar o conjunto, isto aliado a um sistema de transmissão de dimensões continentais que consegue transmitir energia de regiões com sobras para outras com escassez, permitindo uma economia em termos de potência instalada de cerca de 25%, portanto, funcionando como um conjunto de reservatórios equivalentes, ou caixas d’águas interligadas por vasos comunicantes. Esse resultado é conseguido por meio do denominado Mecanismo de Realocação de Energia (MRE), que tem por objetivo compartilhar os riscos hidrológicos associados ao despacho centralizado (NOS) e a otimização do sistema hidrotérmico. Assim, todas as usinas hidráulicas recebem seus níveis de Energia Assegurada, medida por cálculos Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 17 complexos realizados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), independentemente de suas reais produções. Trata-se de característica específica do sistema brasileiro (uma espécie de jabuticaba), e que os consultores ingleses tiveram grande dificuldade para compreender, já que, em um primeiro momento, julgavam que cada usina deveria produzir de acordo com o nível de seu reservatório. O modelo implantado no Brasil no período 1995/1998 tomou como referência o modelo de reestruturação implantado na Inglaterra, na década de 1980, e que resultou em uma empresa de transmissão e 12 de distribuição. A geração, entendida como uma atividade competitiva, seria regulada pelas leis de mercado, mediante um pool que realizava leilões a cada meia hora de cada dia (48 leilões diários). Entretanto, apesar de buscar baixar os preços do mercado, estes aumentaram, devido à insegurança dos geradores em ampliar a produção. A reestruturação do período 1995/1998 deu-se por meio de várias MPs e da Lei 9.427/96, que cria a Aneel, e da Lei 9.648 que define, basicamente: 18 • A competição nos segmentos de geração e comercialização. • A desverticalização das empresas em G, T e D, para evitar o self dealing. • Garantia de livre acesso aos sistemas de transmissão e distribuição. • Liberdade de escolha do gerador para consumidores livres (aqueles com carga superior a 10 MW e conectados à rede em tensão superior a 69 Kv). • Criação do Mercado Atacadista de Energia (MAE) para o registro de todas as compras e vendas de energia no sistema interligado, por meio de contratos, após a adesão de um acordo de mercado. C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 • Criação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), com objetivo de definir quanto cada usina irá gerar e os trechos do sistema de transmissão que serão usados e em qual direção, bem como propor ampliações da rede de transmissão e distribuição. • Reforma da Eletrobras, com a retirada gradual do Estado no negócio de energia, extingue o Grupo Coordenador para Operação Interligada (GCOI) e o Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos (GCPS), sob sua coordenação, o primeiro substituído pelo ONS, e o segundo, com a extinção do planejamento determinativo de obras, passando este a ser apenas indicativo, ficando a expansão da oferta a cargo das distribuidoras, que teriam interesse em contratar energia de longo prazo por meio de PPA (Power Purchase Agreement), para suprir a demanda de seus consumidores. • Autorização para a Eletrobras deter participações nas empresas de geração e transmissão que seriam criadas a partir das cisões de Furnas (duas ou três geradoras e uma transmissora; Chesf, duas geradoras e uma transmissora; Eletrosul, uma geradora e uma transmissora, única realizada; e Eletronorte, duas geradoras e uma transmissora), entre outras. Entretanto, o modelo partiu de uma premissa que não se concretizou, pois previa-se que seria possível atrair capitais tanto para adquirir ativos já existentes, provenientes do programa de privatizações, quanto para construir novas usinas, por meio de processo de licitação onerosa, que trouxe aumento das tarifas. O mercado, na prática, preferiu investir em ativos existentes a arriscar-se em novos empreendimentos, em um quadro institucional incompleto e mutante. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 19 Tratava-se de uma receita neoliberal que introduziu, no âmbito das reformas, um intenso programa de desestatização, que contemplou as seguintes empresas do setor elétrico: • Ecelsa; Light; CERJ; Coelba; CELG; Cemat; CPFL; Energipe; Celpe; Coelce; Cosern; Cemig parcialmente; Eletropaulo; Elektro; Celpa; CCPE; Cemar; e Gerasul. Entretanto, o remédio aplicado ao setor matou o paciente, pois levou a um programa de racionamento de proporções extraordinárias, de 20%, superior ao ocorrido na Inglaterra, durante a Segunda Guerra. O relatório mensal do ONS de abril de 2000 previa o racionamento como uma medida muito provável (14%). No segundo semestre daquele ano, o risco crescera e as térmicas deveriam ter sido despachadas, mas, com chuvas fortes no início de dezembro, nada foi feito, e as chuvas do início do ano não ocorreram, agravando-se a situação do suprimento, até que, em 15 de maio de 2001, o governo federal promulgou a MP 2.147, criando Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, e em 22 de maio de 2001, fazendo uso do Artigo 62 da Constituição (uso de MPs em casos de relevância e urgência), impôs um programa de racionamento ao consumo de eletricidade com as seguintes principais características: • 20 Os consumidores residenciais com consumo superior a 100 kWh/mês deveriam passar a consumir o equivalente a 80% da média dos consumos dos meses de maio, junho e julho de 2000. Para consumos entre 200 e 500 MWh, acréscimo de 50% na tarifa, e para consumo superior a 500 MWh, acréscimo de 200%. Quem não cumprisse a meta estaria sujeito a corte no suprimento. C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 • Para os consumidores comerciais e industriais, a mesma redução de 80% e o excedente cobrado ao preço do Mercado Atacadista de Energia (MAE). O racionamento terminou em 28 de fevereiro de 2002, mas trouxe um reajuste tarifário excepcional e a cobrança do “Seguro Apagão”; e, a despeito de seu fim, o consumo de eletricidade não voltou aos patamares anteriores à sua decretação, mantendo uma redução residual de 5%. Esse fato, aliado à realização de uma desvalorização cambial, foi mortal para algumas concessionárias recém-privatizadas e lastreadas com empréstimos em dólar. A queda de receita e o crescimento dos custos financeiros foram responsáveis pelo retorno de alguns investidores estrangeiros para seus países. Na ocasião do racionamento, foi elaborado, a pedido do governo federal, um relatório sobre as suas causas, denominado Relatório Kelman, ficando constatado que sua principal causa teria sido a falta de investimentos na expansão da geração. As outras duas, que foram consideradas de menor importância, seriam a baixa hidraulicidade e o não despacho de térmicas, em 2000, conforme orientação do ONS. Os investimentos setoriais, entre 1997 e 2001, caíram mais de R$ 3 bilhões, para um aumento do consumo, no mesmo período, de 276 GWh para 322 GWh, ou sejam, 17%, dramático para um setor capital intensivo. O racionamento de energia elétrica no período de dez meses deixou marcas profundas na sociedade brasileira, ajudou-a a se conscientizar sobre o uso perdulário de energia, muito mais do que qualquer programa de conservação e, provavelmente, teve impacto nas eleições de 2002. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 21 O desgaste do modelo no final da década de 1990 e a presença de um novo governo federal, a partir de 2003, ensejaram o que se denominou a Reforma da Reforma, e o governo Lula editou a MP 144, transformada na Lei 10.848/2004 que, com 31 artigos, alterou oito leis, pilares do modelo anterior e interveio em três peças básicas: o MAE, o ONS e a Aneel e estabeleceu, entre outros itens: 22 • A criação de dois ambientes de contratação: o Ambiente de Contratação Regulada (ACR), para o atendimento dos consumidores cativos; e o Ambiente de Contratação Livre (ACL), para o atendimento dos consumidores livres. • A criação do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), para acompanhar e avaliar permanentemente a segurança do suprimento eletroenergético em todo o território nacional. • A criação da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), em substituição ao MAE (sociedade privada sem fins lucrativos), fiscalizada pela Aneel, para exercer as funções de contabilização dos mercados regulado e livre. O presidente de seu Conselho de Administração é indicado pelo MME, enquanto no caso do MAE, era gerido pelas concessionárias de G, T e D. • O mercado cativo passou a ter 100% de sua demanda contratada, pois, no modelo anterior, eram apenas 85%. • Adotado o conceito de pool de distribuidoras que passa a contratar suas necessidades de energia por meio de licitação pública, por meio de contratos de longo prazo para início de suprimento em 5, 3, 1 ou para o próprio ano (leilões A-5, A-3, A-1 e A-0). • Adoção de licitações pela menor tarifa para os novos empreendimentos de geração, em lugar das licitações pelo uso C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 do bem público, nas quais os vencedores eram aqueles que pagavam o maior valor pela energia. Essa medida teve como consequência o crescimento da oferta de energia, com redução das tarifas, e incluiu um enorme número de empreendimentos eólicos (hoje, responsáveis por quase 4% da geração elétrica do país), complexos sistemas de transmissão, inclusive dois em corrente contínua (dois dos aproveitamentos do rio Madeira em aproximadamente 600 Kv, e o de Belo Monte, em 800 Kv), grande aproveitamento hidrelétrico, como as usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, as usinas do rio Teles Pires (Sinop, Teles Pires e São Manoel), e Belo Monte, no rio Xingu, sendo o principal pilar da consecução desses projetos os financiamentos em condições especiais do BNDES. • Retomada do planejamento de obras de G e T, com a criação da Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE), vinculada ao MME, com os empreendimentos sendo licitados por leilões realizados pela Aneel, sendo o vencedor quem apresentar a menor tarifa. • Definição de novas atribuições para a Aneel, destacando-se a fixação de tarifas para contratos de G, T e D, gestão dos contratos de concessão ou permissão, implementação de políticas para a exploração do potencial hidráulico e promoção de procedimentos licitatórios, por delegação do Poder Concedente. • Implantação do “Programa Luz para Todos”, sucedâneo do “Programa Luz no Campo”, do governo anterior, que atingiu a meta de atendimento a 99% dos domicílios e foi considerado referência internacional, conforme secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, que elogiou as conquistas já alcançadas da iniciativa brasileira “Luz para Todos”, “programa que, em dez anos, atingiu 15 milhões de pessoas, fazendo com que quase Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 23 toda a população brasileira agora tenha acesso à eletricidade”. Até maio de 2015, os investimentos no “Luz para Todos” chegavam a R$ 22,7 bilhões. Decorridos dez anos da implantação do novo modelo, seus resultados podiam ser considerados muito bons, em termos da segurança do abastecimento, da modicidade tarifária e do estabelecimento do novo mercado; porém, com restrições relativas a atrasos de obras de geração e de transmissão, devido, principalmente, a restrições no processo de licenciamento ambiental e nas estimativas de custo dos projetos, pela Aneel, em alguns caso, descolados da realidade. No caso dos atrasos das obras de transmissão, eles tinham implicações em empreendimentos de geração, que não conseguiam escoar sua energia, depois de concluídos, mas tinham sua remuneração assegurada por lei, onerando o consumidor, sobretudo os projetos eólicos localizados no Nordeste. Nessa ocasião, o governo federal, após adiar durante anos, a decisão sobre as concessões vincendas, prevista na Constituição de 1988 e na Lei 8.987/95, decidiu, de forma unilateral, impor às empresas afetadas transmissoras e, principalmente, geradoras, sua definição quanto ao processo de renovação de concessões. Assim, em 11 de setembro de 2012 (segundo a lenda, não caíram apenas as duas torres de Nova York, mas todas as torres de transmissão do Brasil), foi promulgada a MP 579, contemplando uma série de inovações para o setor elétrico relativas a regras para a renovação das concessões vincendas, no período 2015 a 2017, tendo como principal objetivo a redução das tarifas ao consumidor final de, em média, 20%. Essa redução seria proveniente de cortes em encargos setoriais e das condições propostas para as renovações das concessões. 24 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 Sua justificativa baseava-se em reivindicação de consumidores, principalmente os industriais, que alegavam os altos custos das tarifas brasileiras, prejudicando a competitividade do país no mercado internacional. De acordo com dados da Firjan de 2012, a tarifa industrial brasileira (329 R$/MWh) era a quarta mais cara entre países industrializados, ficando atrás apenas da República Tcheca (376 R$/ MWh), Turquia (419 R$/MWh) e Itália (458 R$/MWh), e uma média internacional de 215 R$/MWh, menos da metade. A MP eliminou, além de encargos e tributos, a cobrança de uma parcela da tarifa contemplando a amortização de ativos, em sua maioria, já amortizados e, portanto, indevida, pois os consumidores estavam pagando duas vezes pelo mesmo produto. A MP 579, convertida na Lei 12.783, em janeiro de 2013, foi vista pelo mercado como uma grande intervenção do Estado, com a substituição da concorrência nos segmentos de geração e comercialização, propiciada pelos leilões, por um modelo de prestação de serviços, uma vez que as concessionárias que optassem por renovar as concessões passariam a ser remuneradas apenas pelas atividades de operação e manutenção (O&M) e pelos novos ativos agregados, após autorização da Aneel. As tarifas artificialmente baixas foram complementadas com indenizações de investimentos não amortizados, em valores desprovidos de qualquer semelhança com seus valores reais, nem os investimentos realizados em melhorias e, no caso dos empreendimentos em transmissão, os investimentos realizados antes de 2000, mesmo que não amortizados. O principal resultado das medidas foi a forte redução do fluxo de caixa das empresas, a partir de janeiro de 2013, sem que isso tivesse sido planejado por elas. A redução média das tarifas de G e T foi da ordem de 73%. O mercado livre foi fortemente prejudicado, pois o Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 25 processo de renovação das concessões de geração só alocou a energia mais barata ao mercado cativo, impactando o setor industrial, maior consumidor do mercado livre. O impacto da redução das receitas das empresas que aderiram à proposta de renovação antecipada das concessões se fez sentir, de forma expressiva, no balanço da Eletrobras. Seu resultado relativo ao ano fiscal de 2012 registra um prejuízo de R$ 6,8 bilhões, sendo o do quarto trimestre de R$ 10,5 milhões, comparativamente a um lucro de R$ 3,7 milhões, em 2011. O Ebitda (lucro antes do pagamento de juros, impostos, depreciação e amortização) passou de R$ 6 bilhões positivos em, em 2011, para perdas de R$ 6,2 bilhões em 2012. A perda contábil de 2012 foi de R$ 10 bilhões, o maior prejuízo registrado em toda a história da empresa. O valor de mercado, em dezembro de 2011, era de R$ 22,2 bilhões e, em dezembro de 2012, R$ 8,6 bilhões. A nova legislação trouxe também efeitos não desprezíveis no BNDES, que detém 21,74% do capital da Eletrobras, além de enorme carteira de empréstimos a esta holding e suas controladas, da ordem de R$ 30 bilhões. Esse conjunto de resultados continuou a se propagar nos três anos seguintes e, atualmente, as empresas do sistema não mais dispõem de condições para oferecer garantias a novos financiamentos, impedindo-as de participar de novos empreendimentos para a expansão do sistema. Entretanto, o corte real das tarifas junto ao consumidor final foi menor que o anunciado, pois o governo previa que todas as empresas envolvidas iriam aderir às condições impostas para a renovação antecipada das concessões vincendas. O baixo nível das tarifas ofertadas fez com que empresas como Cemig (São Simão, 1.700 MW; Jaguara, 424 MW; Miranda, 408 MW; Três Marias e dezenas de PCHs, CESP 26 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 Três Irmãos 807 MW, Jupiá, Ilha Solteira e outras de menor porte) Copel, Celesc e outras menores, não renovassem suas concessões antecipadamente e deverão ser licitadas, na modalidade de leilão previsto para o final de novembro de 2015, após dois adiamentos, até a presente data. Um fato importante que ocorreu em paralelo com o processo de renovação das concessões foi a forte redução de chuvas, com uma grande redução do nível dos reservatórios. Para garantir a segurança do abastecimento, as usinas térmicas de elevados custos de produção passaram a ser despachadas (822 R$/MWh), iniciando uma trajetória de aumentos tarifários que culminariam com a anulação dos descontos e a implantação de um tarifaço. O acionamento das termelétricas em caráter emergencial, fora da ordem de mérito e sem decretação de racionamento, resultou na absorção do risco hidrológico pelas distribuidoras, que passaram a arcar com os custos elevados, só podendo repassar aos consumidores no futuro, quando dos reajustes tarifários anuais, por meio dos denominados Encargos de Serviços do Sistema, praticados em diferentes épocas para cada distribuidor, ao longo do próximo ano. Essa também foi uma inovação da Lei 12.783/2013. E, a partir de então, foi iniciada uma sequência satírica, bastante conhecida na área de gestão empresarial, tanto governamental como privada, chamada de seis fases de empreendimentos audaciosos: • Entusiasmo; • Desilusão; • Pânico; Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 27 • Busca dos culpados; • Punição dos inocentes; e • Recompensa aos que não se envolveram. Assim, a fase de “entusiasmo” foi de 2004 a 2012, quando os leilões ganharam credibilidade e o custo da energia foi sendo gradualmente reduzido. O marco zero da fase seguinte, “desilusão”, foi a implantação confusa e controversa da MP 579, ao final de 2012. Em 2013, o governo, em vez de parar de aumentar o buraco, implantando programa de redução de consumo (sem falar em racionamento), em estado de “pânico”, piorou a situação, com mudanças regulatórias bruscas e contraproducentes, tais como a resolução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) – 03, transferindo parte dos custos imputados aos distribuidores para os geradores, o que empurrou o setor para a judicialização. Em 2014, constatou-se que as medidas operativas extremas, como o acionamento permanente de todas as térmicas e o não atendimento das metas de uso da água para a irrigação, transporte hidroviário, entre outros, não conseguiam evitar o acentuado esvaziamento dos reservatórios. Mas estávamos em ano de complicadas eleições. Na fase de “busca dos culpados”, iniciada em 2015, declarações do governo sobre a pior seca do século deixaram claro que São Pedro tinha sido escolhido como réu, ignorando o fato de que números sobre as vazões históricas inocentavam o santo. 28 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 Na fase da “punição dos inocentes”, as vítimas escolhidas fomos nós consumidores, que estamos pagando o pato tarifário. Não que os consumidores não devam pagar, já que não existe almoço de graça, pois em última palavra as decisões foram tomadas em nosso nome. A evolução das tarifas residenciais, de uma média de trinta empresas distribuidoras, sem incluir ICMS e PIS/Cofins, pode ser acompanhada e mostra o que se passou entre 2012 e 2015: • Em dezembro de 2012, esse valor era de 338 R$/MWh. • Em março de 2013, ocorreu a redução prometida pelo governo na MP 579, de 20% em média, sendo para os consumidores residenciais de 18%, chegando a 276 R$/MWh, como previsto. No entanto, essa redução foi obtida graças a dois grandes aportes governamentais: 1) empréstimos de R$ 10 bilhões, sem juros, às distribuidoras, que serão pagos em quatro anos, a partir de 2015, por meio de aumentos de tarifas; e 2) subsídio, a fundo perdido, de R$ 9 bilhões à Conta de Desenvolvimento Energético. • Embora a intenção do governo fosse manter as tarifas estáveis, em 2014, isto não foi possível por dois motivos: 1) restrições nos recursos governamentais por questões fiscais e pressões inflacionárias; e 2) a necessidade de empréstimos e subsídios foi maior, da ordem de R$ 40 bilhões. A solução foi fazer subsídio parcial de R$ 25 bilhões e transferir R$ 15 bilhões para as tarifas. No final de 2014, as tarifas voltaram ao nível de dezembro de 2012, 335 R$/MWh, e os benefícios da MP 579 foram anulados. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 29 • Em 2015, tivemos dois aumentos tarifários: o primeiro em janeiro, de 15%, e o segundo, em março, de 23%, os quais aplicados sequencialmente resultaram em um aumento para os consumidores residenciais de 41,5%, trazendo vultosos efeitos sobre a taxa de inflação, em um momento que já exibia sintomas de recessão. Tais aumentos visaram cobrir custos incorridos no ano anterior e represados. Mas os aumentos tarifários de janeiro e março provavelmente não foram suficientes para cobrir todos os déficits represados e oriundos da MP 579, como por exemplo: 30 • A insuficiência de recursos recolhidos da bandeira tarifária, no período de março a dezembro de 2015, que devem atingir R$ 6,1 bilhões. • Pagamento de indenizações referentes ao final das concessões de geradoras que aderiram à MP 579 e que não foram previstos originalmente, de cerca R$ 4,5 bilhões, bem como aqueles das indenizações das concessões que expiraram em julho de 2015 (Cemig, CESP, Copel, como principais) e que não aderiram à MP 579, bem como valores não reconhecidos de Chesf e Furnas, da ordem de R$ 10 bilhões. • Ativos de transmissão existentes em 2000 de concessões que foram prorrogadas, mas cujos ativos não amortizados não foram cobertos, da ordem de R$ 27 bilhões. • Parcelamento da dívida da Eletrobras com a Petrobras, relativa ao uso de combustíveis fósseis dos chamados sistemas isolados na Amazônia, pago através da denominada Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), gerenciada pela Eletrobras. Porém, há C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 alguns anos, a Aneel vem autorizando pagamentos de apenas parte dos valores, pois argumenta que estes estariam demasiadamente altos. A pendência chegou a R$ 8,1 bilhões, e, de acordo com entendimentos entre MME e MF, deverá ser paga em dez anos, pelo consumidor, sem estar prevista originalmente. Entretanto, de acordo com o balanço da Petrobras relativo ao exercício de 2014, esse valor seria de R$ 12,8 bilhões. • Auxílio às empresas geradoras hidrelétricas devido à menor geração que a prevista, conforme a resolução CNPE 03, de cerca de R$ 20 bilhões, em 2014, e de R$ 10,5 bilhões previstos para 2015. Este último valor, na verdade deveria ser mais do que o dobro, mas, por meio de mudança intempestivas da regra do jogo, o PLD de 822 R$/MWh foi reduzido para 388 R$/MWh. • Medidas do governo para reforçar a oferta de energia, contratando de entidades que tenham capacidade de colocar no sistema energia proveniente de geradores diesel de propriedade de shoppings, indústrias, etc., a custos astronômicos, mantendo as térmicas a óleo de base, em Manaus, a um custo de R$ 1,1 bilhão e importação da Argentina e do Uruguai, a um custo de R$ 1,4 bilhão, por ano. Somando os custos adicionais, temos uma fatura vencida e não paga de R$ 63,8 bilhões que, caso fossem agregados imediatamente às tarifas de 2015, significariam um acréscimo de 33%. E, para concluir, gostaria de me arriscar a prever quem será o representante da sexta fase dos empreendimentos audaciosos, a saber, a “recompensa aos que não se envolveram”, que, provavelmente, recairá sobre grandes empresas estrangeiras (chinesas, francesas, italianas, Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 31 espanholas, canadenses, entre outras), as quais, provavelmente, se sagrarão vencedoras do próximo leilão de concessões de geração de concessões vincendas de usinas de Cemig, CESP, Copel, Celesc e outras que não aderiram à MP 579, a realizar-se em dezembro próximo, uma vez que as empresas brasileiras estão com as finanças comprometidas, e as recentes desvalorizações cambiais transformaram nossos ativos em pechincha para investidores estrangeiros. Bibliografia D’ARAUJO, Roberto Pereira. Setor elétrico brasileiro: uma aventura mercantil. Rio de Janeiro: Pensar Brasil, 2009. ENERGY REPORT – PSR, mar. 2015. Disponível em: <http://www. psr-inc.com/publicacoes/energy-report/edicoes/?current=p7220>. Acesso em: 7 jan. 2016. LEITE, Antônio Dias. A Energia do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Lexikon Editora, 2014. PAIXÃO, Lindolfo Ernesto. Memórias do Projeto RE-SEB: A história de concepção da nova ordem institucional do setor elétrico brasileiro. São Paulo: Massao Ohno Editora, 2000. RESENDE, Eliseu; ALQUÉRES, José L. Panorama do setor de energia elétrica e sua nova legislação. Revista Brasileira de Energia, v. 3, n. 1, Rio de Janeiro, 1993. SELVETTI, Alfredo Roque. A história da luz. 2. ed. São Paulo: Livraria da Física, 2008. 32 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 SOUZA, Alan Pereira de. Análise de risco e retorno para empreendimentos de geração pós marco regulatório de 2004. Rio de Janeiro: Instituto Coppead de Administração, 2011. VOLPE FILHO, Clóvis A.; ALVARENGA, Maria Amália F. P. Setor elétrico: estrutura legal, fundamentos legislativos, direitos e deveres do usuário, questões jurídicas decorrentes do fornecimento e do uso, taxas e impostos e fontes alternativas. Curitiba: Juruá, 2004. Palestra pronunciada em 10 de novembro de 2015 Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 4-33, dez. 2015 33 Zonas de comércio, zonas monetárias e o caso da Grécia: lições da teoria econômica Rubem de Freitas Novaes Economista, formado pela UFRJ, com doutorado pela Universidade de Chicago. I – Introdução A economia é chamada por alguns de dismal science (“ciência lúgubre”), por lidar com a escassez, ou seja, com a confrontação de desejos ilimitados, de um lado, e recursos finitos, de outro. A insatisfação, a frustração de desejos, é a regra. Outros a chamam de “rainha das ciências sociais”, pelo privilégio de se assentar em “leis”, construídas logicamente, e que formam um corpo interligado e compreensivo, sujeito à formatação matemática e ao teste empírico. Hoje, a economia ganha o status de uma Teoria Geral da Decisão, aplicável aos mais diversos campos do conhecimento, mesmo àqueles distantes do universo meramente econômico. O escopo estudado ampliou-se de tal forma, que Gary Becker, de Chicago, até ousou pretender criar uma Teoria Social Unificada, calcada nos fundamentos da Teoria Econômica. 34 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 Até inícios do século passado, os economistas confundiam-se com filósofos. Falava-se de economia política e não de ciência econômica, e os expoentes da profissão tinham formação multidisciplinar. A partir principalmente da formulação walrasiana para o equilíbrio geral, da revolução marginalista, do uso ampliado da modelagem econômica e do desenvolvimento dos métodos estatísticos, diversos profissionais das ciências exatas passaram a se interessar pela economia e a ocupar espaços na academia. Nesta, cresciam de importância as cadeiras de Economia Matemática e Econometria. A esse respeito, é de Robert Solow, economista de formação matemática, o seguinte comentário: “A economia não é mais uma conversa agradável entre damas e cavalheiros. Ela se tornou um assunto técnico. Assim como qualquer assunto técnico, ela atrai algumas pessoas que estão mais interessadas na técnica do que propriamente no assunto. Isso é muito mau, mas pode ser inevitável. Em qualquer caso, não se engane: o núcleo técnico da economia é uma ferramenta indispensável para a economia política.” Vamos, então, na esteira de Solow, para a técnica, procurando definir princípios balizadores para a nossa análise das zonas de comércio e monetárias, sem, contudo, perder de vista a economia política. II – Vantagens comparativas e seus desdobramentos Nós economistas somos regidos pela lei maior da escassez, segundo a qual “não há almoço grátis”, já que, para cada decisão, existe sempre um custo de oportunidade. Do lado do consumo, trabalhamos com a hipótese comportamental da maximização subjetiva de utilidade. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 35 Para a produção, a hipótese comportamental é a da maximização dos lucros ou, em formulação mais moderna, a da maximização do valor de mercado da firma. Aceitamos o Princípio das Vantagens Comparativas e a Lei da Demanda Negativamente Inclinada. Por fim, estamos todos sujeitos à Lei dos Retornos Marginais Decrescentes, que se desdobra em duas leis: a da Utilidade Marginal Decrescente, na Teoria do Consumo, e a da Produtividade Marginal Decrescente, na Teoria da Produção. Para efeito de nossa palestra, convém elaborar mais sobre o conceito de vantagens comparativas. Foi David Ricardo quem primeiro percebeu que não eram as vantagens absolutas as determinantes do comércio, como imaginava Adam Smith. Usando um modelo de um só fator de produção – mão de obra – Ricardo demonstrou que é a relação entre os bens potencialmente produzidos em cada país, e não a eficiência absoluta na produção de cada bem, que determina o comércio. Assim, todos os países se beneficiariam do comércio, mesmo que alguns fossem menos eficientes absolutamente, desde que se especializassem na produção para exportação dos bens para os quais apresentam vantagens relativas. Tomados em conjunto, os países, por meio do comércio, alcançariam uma superior fronteira de possibilidades de produção. E os ganhos decorrentes do comércio seriam tanto maiores quanto maior fosse a divergência de aptidões entre países. A Teoria de Ricardo, para um só fator de produção, foi ampliada pelos suecos Eli Heckscher e Bertil Ohlin para admitir diferentes fatores de produção. Com isso, a teoria das vantagens comparativas passou a postular que os países tenderiam a produzir e exportar os bens intensivos em seus fatores mais abundantes e a importar aqueles bens intensivos em seus fatores mais escassos. 36 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 Como decorrência do Teorema de Heckscher e Ohlin, conclui-se que o comércio internacional livre tende a equalizar os preços de fatores entre países, servindo de substituto ao livre movimento de fatores. Ainda na mesma esteira, surgiu o Teorema de Stolper-Samuelson, segundo o qual um aumento no preço relativo de um bem faz aumentar a remuneração real do fator usado intensivamente na produção desse bem e reduz a remuneração real do outro fator. De toda essa teorização sobre as vantagens comparativas e os efeitos do comércio, o que se extrai de mais substantivo é que o comércio livre, em princípio, beneficiaria a todos. Economistas caracterizam uma situação de “ótimo de Pareto”, em homenagem ao seu formulador, o italiano Vilfredo Pareto, quando não é mais possível melhorar a situação de um agente econômico sem que seja prejudicada a situação de outro agente. Numa conceituação mais flexível do “ótimo”, admite-se que nem todos os agentes ganhem com as trocas, mas que os benefícios excedam as perdas, de modo que um hipotético esquema de compensações de ganhadores para perdedores possa satisfazer a todos. Visto dessa forma, o comércio livre entre as nações conduziria a um ótimo de Pareto, e negociações multilaterais, como as da OMC, deveriam ser favorecidas. No mundo real, entretanto, o comércio pode gerar perdedores, e nem sempre as compensações “paretianas” ocorrem. A imigração de mão de obra barata, por exemplo, ou a importação de bens intensivos em mão de obra pouco qualificada, será benéfica para um país, como um todo, em princípio, mas baixará a remuneração dos trabalhadores que tenham qualificação semelhante à dos imigrantes. Os sindicatos dos setores prejudicados certamente lutarão por medidas restritivas à imigração ou ao livre comércio. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 37 Casos existem também em que, detendo poder monopolístico ou monopsônico, países isoladamente, ou reunidos em cartel, possam se beneficiar de restrições ao comércio, restrições estas que, avaliadas no âmbito global, têm efeitos perversos. Lembremos aqui a queima de estoques para exportação de café no Brasil da década de 1930 (que poderia ter sido substituída por um imposto sobre as vendas para o exterior). Como nos deparávamos com demanda mundial inelástica pelo café brasileiro, a redução dos estoques significava aumento da receita de exportações. Vendíamos menos e recebíamos mais. Ganhávamos, mas perdia o mundo. Afinal, até intuitivamente, dá para perceber que a destruição de um bem, com valor positivo, só pode prejudicar o conjunto de nações. Outro exemplo de divergência entre o interesse nacional imediato e o interesse global ocorre na imposição de tarifas quando um país tem forte influência sobre o preço de venda dos parceiros comerciais. Ou seja, o país teria poder monopsônico. Neste caso, a arrecadação de recursos via tarifa de importação mais os ganhos de produtores locais podem ser mais que suficientes para compensar a perda para os consumidores locais decorrente da restrição da oferta externa. Governantes, neste caso, seriam tentados a agir onerando o comércio e engordando seus cofres. Outra ressalva que se deve fazer ao conceito de vantagens comparativas diz respeito ao argumento da “indústria nascente”. Muitos economistas, e Raul Prebish e Celso Furtado estão entre eles, defendem medidas restritivas ao comércio e favoráveis à substituição de importações, sob o argumento de que, na dinâmica do crescimento, a teoria estática das vantagens comparativas nem sempre se aplicaria. No caso, haveria vantagens evidentes para quem se estabeleceu primeiro para produzir nos países maduros e, desde que proteção fosse dada à indústria nascente 38 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 de um país em desenvolvimento, este estaria, passados alguns anos, apto a concorrer com seus parceiros mais desenvolvidos. Mudanças históricas na relação de preços entre matérias-primas e produtos industrializados também poderiam justificar algum grau de proteção à indústria nascente em países em desenvolvimento. Notem aqui que qualquer tipo de subsídio ou proteção a um determinado setor só se justifica se no futuro a produção local vier a ser mais competitiva que a dos concorrentes externos. Afinal, custos iniciais da proteção precisarão ser compensados por benefícios líquidos futuros. Outro ponto a ser considerado é que, numa análise de equilíbrio geral, não há como proteger um setor sem desproteger outro. Tarifas impostas sobre importações, por exemplo, mudam a taxa de câmbio de equilíbrio, prejudicando exportações. Não há almoço grátis, como já vimos anteriormente. A experiência tem mostrado que o argumento da indústria nascente tem mascarado outros interesses e que tarifas ou subsídios protetores de setores industriais, criados para serem temporários, acabam se eternizando. Milton Friedman tinha razão quando afirmava que “nada mais permanente que um programa temporário de governo”. III – Zonas de comércio e integração econômica Podemos tratar aqui indistintamente de uniões aduaneiras ou de zonas de livre comércio. Nas zonas de livre comércio, os países participantes rebaixam gravames comerciais dentro da zona, mas cada país mantém política própria tarifária para fora da zona. Nas uniões aduaneiras, os gravames extrazona são comuns a todos os participantes, dando ao grupo um grau de coesão mais forte. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 39 De início, argumentava-se que qualquer zona de livre comércio, ao baixar gravames entre países e favorecer o comércio, teria efeitos positivos sobre o bem-estar das nações. Foi Jacob Viner quem chamou atenção para o fato de que o funcionamento dessas zonas de comércio, na verdade, tem como efeito a expansão do comércio intrazona, de um lado, mas, de outro, causa redução do comércio extrazona. Para sabermos se o resultado final é positivo, vamos ter de sopesar os impactos positivos da trade creation contra os impactos negativos da trade diversion, procedendo a um cálculo complexo, dependente de várias elasticidades de oferta e demanda. Com efeito, num modelo estático de equilíbrio parcial para um só produto, e considerados o país local, seu parceiro e o mundo, pode-se demonstrar que os ganhos da trade creation serão tanto maiores quanto maiores forem as elasticidades de demanda e oferta no país local, mais amplas as diferenças de custo entre o país local e seu parceiro, e mais reduzidas essas diferenças entre o país parceiro e o mundo. Por outro lado, as perdas com a trade diversion serão tanto maiores quanto menores forem as elasticidades de demanda e oferta no país local, mais reduzidas forem as diferenças de custo entre o país local e seu parceiro, e mais amplas essas diferenças entre o país parceiro e o mundo. Parece admitido pela teoria que, desde que não existam problemas políticos sérios entre países, será ruim para qualquer país ficar excluído de uma zona regional de comércio. Acontece que, no mundo real, a industrialização parece ter um valor subjetivo intrínseco. Há um elemento de orgulho nacional no made in my country que deve ser considerado. Esse fato pode dilatar os benefícios da trade creation, na medida em que os países mais desenvolvidos da zona fiquem capazes de ampliar a produção industrial pela substituição de importações e 40 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 pelo ganho de escala, mas pode também gerar resistências na adesão à zona por parte de países retardatários que veem, na rebaixa de gravames dentro da zona, obstáculo ainda maior ao seu anseio de desenvolver alguns setores industriais. Do ponto de vista do desenvolvimento industrial, desigualdades, dentro da região, estariam sendo ampliadas, e não minoradas. É interessante notar que economistas criaram uma nomenclatura própria para descrever diferentes graus de integração entre países. Em escala ascendente, começamos com as zonas de livre comércio e as uniões alfandegárias e, em passos seguintes, passamos para o mercado comum, para a união econômica e, finalmente, para a integração econômica completa. O mercado comum pressupõe, além da união alfandegária, a remoção de todas as restrições ao livre trânsito dos fatores de produção: capital e trabalho. A união econômica vai um passo além e promove a harmonização da política econômica entre países participantes. Por fim, a integração econômica completa requer até mesmo que se compartilhem instrumentos anticíclicos nas áreas de política monetária e fiscal. Dito isso, passemos a tratar das taxas de câmbio fixas e flexíveis, assunto essencial para quem vai discutir a questão das zonas monetárias. IV – Taxas fixas e flexíveis de câmbio e o ajustamento macroeconômico Taxas fixas e flexíveis certamente não esgotam o rol de alternativas para os regimes cambiais, já que existe uma variedade de formas híbridas no mundo real. Mas, para efeito didático e para a compreensão da maioria dos problemas, a análise dessas formas extremas é suficiente. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 41 Num regime de taxas fixas, o Banco Central entra no mercado comprando ou vendendo reservas externas de modo que garanta a manutenção da taxa de câmbio. Num regime de taxas flexíveis, é o mercado que determina a cotação das moedas. Por definição, o balanço de pagamentos, neste último caso, estaria sempre em equilíbrio. De início, convém destacar diferentes recomendações para a política compensatória de curto prazo, conforme estejamos sujeitos a um regime de câmbio fixo ou flexível. Nossa teoria demonstra que, num mundo de alta mobilidade de capitais e taxas de câmbio flexíveis, a política monetária compensatória tem fortes poderes, diferentemente do que ocorre num mundo de taxas fixas, quando perde ela efetividade por não conseguir influenciar as taxas de juros e alterar o estoque de moeda. Para a política fiscal, ocorreria justamente o inverso. Ela seria poderosa no câmbio fixo, mas ineficaz no câmbio flexível. Questão relevante, também, é examinar como se dá o ajustamento interno em resposta a distúrbios econômicos de diversas naturezas, seja sob o regime de taxa de câmbio fixa ou sob o regime de taxa flexível. Tomemos como exemplo uma forte queda nos preços dos produtos de exportação de um determinado país sujeito ao regime de câmbio fixo. Haverá déficit da balança comercial, perda de reservas e contração monetária. Para que os desequilíbrios sejam corrigidos, será necessário que alguma contração da economia produza queda de preços e salários. Somente com o ajuste desses preços, o que não ocorre facilmente, equilibraremos a balança comercial e voltaremos a crescer. Já, se o país estivesse sob o regime de taxa flexível, o ajustamento seria bem mais simples e imediato. A desvalorização do câmbio faria o serviço de reequilibrar a área externa, impedindo muitos dos efeitos maléficos sobre a renda e o emprego. É como se o pianista, 42 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 ao preparar-se para tocar, ajustasse o banquinho para a frente, em lugar de puxar o piano para si, como faz o português da piada. Bem melhor, não é mesmo? Mas, ora, se a taxa flexível de câmbio tem essa vantagem, o que levaria um país, ou uma região, a abrir mão de flexibilidade quanto à determinação do valor relativo de sua moeda? Que predicados ainda não citados poderiam conferir atratividade a regimes tradicionais de taxas fixas, ao padrão-ouro, à adoção de moedas dolarizadas ou à criação de zonas monetárias, casos em que a soberania nacional estaria comprometida? Convém neste ponto, em lugar do problema com as contas externas, usar, como exemplo do desequilíbrio inicial, o surgimento de inflação em determinado país. Com taxas fixas de câmbio, a subida dos preços internos retirará competitividade do país que, em consequência, perderá reservas e contrairá a sua oferta monetária. A disciplina anti-inflacionária, pelo lado das reservas, estará garantida. Já, num regime de taxas flexíveis, a depreciação do câmbio deverá vir em sequência ao aumento dos preços internos, colocando ainda mais lenha na fogueira da inflação. Para países descuidados no combate à inflação, o regime de taxas fixas pode, portanto, ter certo appeal, muito embora seja também verdade que uma irresponsabilidade em alto grau na gestão das contas públicas pode impor um padrão de inflação causador de especulação contra a moeda e detonador de maxidesvalorizações periódicas. Outras características podem contribuir para que países ou regiões se submetam ao regime de taxas fixas ou à adoção de uma mesma moeda intrazona. Por conveniência didática, raciocinemos com os estados federados norte-americanos, onde reina uma só moeda: o dólar. Se Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 43 subitamente aumenta no Sul a demanda por produtos do Norte, haverá tendência ao desemprego no Sul e ao crescimento de salários no Norte. Como são baixos os custos de locomoção, e todos comungam da mesma língua e cultura, facilmente a mão de obra migraria do Sul para o Norte, e o ajustamento se daria sem grandes problemas. Vê-se aqui que não só a redução dos custos de transação deve ser ponderada, ao avaliarmos as vantagens do uso de uma só moeda por diferentes regiões ou países. Também a mobilidade dos fatores de produção é fator decisivo na determinação da conveniência ou não de criação de uma zona monetária. Afinal, quando existe alta mobilidade de fatores, desaparecem os problemas de ajustamento macroeconômico inerentes ao regime de taxas fixas de câmbio ou ao seu quase equivalente regime de moeda única. Postas essas observações, estamos agora em condições de discutir a Zona do Euro (Eurozone) e os problemas que afligem a Grécia. V – Optimum currency areas e o euro Em 1961, Robert Mundell escreveu uma nota para a American Economic Review, em que chamava a atenção da profissão para a necessidade de definir o que seria uma “zona monetária ótima”, onde países, ou regiões, adotariam uma mesma moeda. A partir daí, toda uma discussão técnica surgiu e foi ampliada, quando das tratativas para a formação da Zona do Euro, na Europa. Como já podemos intuir dos comentários anteriores, se levarmos em conta apenas aspectos relacionados ao ajustamento macroeconômico, a plena mobilidade de fatores seria o fator de delimitação da “zona monetária ótima”. Pouco importariam aqui as fronteiras 44 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 entre países. A zona monetária poderia ser um pedaço de um país, a união de diferentes países, ou mesmo a reunião de diferentes áreas de diferentes países. Fatores como baixo custo de transporte, unidade linguística e de costumes etc., de forte influência na mobilidade, é que deveriam ser ponderados. No mundo real, no entanto, não cabe desconsiderar as fronteiras entre países, já que a perda de soberania nacional, implícita na adoção de uma moeda comum, tem um peso considerável. O próprio Mundell, em seus primeiros escritos sobre o assunto, mesmo reconhecendo problemas no movimento da mão de obra entre países, via a perda de soberania como o maior fator impeditivo da criação de uma moeda europeia. Nisso, seguia a posição do Professor James Meade. Contra a posição de Meade, Tibor Scitovsky argumentava que uma moeda comum para a Europa Ocidental incrementaria fluxos de capital e estimularia medidas que promovessem a melhor coordenação econômica e a integração do mercado de trabalho. Tudo isso compensaria a perda de soberania. Com o tempo, reconhecendo o papel indutor de melhor governança para a região da moeda única, Mundell caminhou na direção de Scitovsky e foi o grande nome da academia na defesa da criação do euro. Na discussão técnica, outro forte argumento de defesa do euro está na já mencionada redução dos custos de transação. As funções que a moeda tem de unidade de conta e meio de pagamento seriam obviamente mais bem desempenhadas, e os custos de transação seriam reduzidos com o uso de uma só moeda. O argumento da conveniência, se levado às últimas consequências, poderia até justificar uma moeda única para o mundo todo, como, inclusive, propunha John Stuart Mill, colocando em segundo plano os custos de ajustamento macroeconômico. Cabe reconhecer, embora ressaltando argumentos técnicos que envolvem a matéria, que razões puramente políticas pesaram muito Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 45 nas decisões do bloco europeu para a criação da Eurozone. O sonho de uma Europa grande, unida, contrapondo-se ao peso dos Estados Unidos e, mais tarde, da China, teve o condão de unir principalmente a Alemanha e a França em torno do projeto de integração econômica completa para a União Europeia (UE). Mas isso não se deu sem fortes argumentos contrários. Países periféricos da Europa tiveram de ser atraídos com vantagens para aderirem ao projeto do euro. A população dos países mais ricos, sobretudo da Alemanha, reagiu quando se viu instada a pagar contas de terceiros países. E Milton Friedman, em influente artigo, argumentava que apenas a Alemanha, a Áustria e mais alguns poucos países do Norte da Europa (Benelux) estariam qualificados para um regime de moeda única. Dificuldades na compreensão linguística, diferenças culturais e divergências quanto à necessária austeridade fiscal afastariam os demais países de um conceito de optimum currency area. Segundo Friedman, o projeto do euro, que tem como principal objetivo a união e a paz da Europa, poderia ter efeitos contrários aos pretendidos. Em suas palavras: “Unidade política pode aplainar o caminho para a unidade monetária. Mas unidade monetária, imposta sob condições desfavoráveis, representará uma barreira para a conquista da unidade política”. Postos esses pontos, estamos agora aptos a examinar a situação atual da Zona do Euro e o problemático caso da Grécia. VI – A zona do euro e a Grécia A Zona do Euro foi oficialmente criada em 1o de janeiro de 1999 por 11 Estados-membros da União Europeia, a saber: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Países Baixos e Portugal. Após período de cunhagem e adaptações institucionais, a 46 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 nova moeda passou a circular a partir de janeiro de 2002. Hoje, dos 28 Estados-membros da União Europeia, 19 aderiram ao euro, sendo que a Grécia decidiu aderir já em 2001. Dentro da União Europeia, não aderiram ao euro: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Polônia, Romênia, Reino Unido, República Tcheca e Suécia, mas espera-se que Bulgária, Croácia, Hungria, Polônia e Romênia venham a aderir brevemente. Em compensação, Mônaco, São Marino e o Vaticano, que não fazem parte da UE, aderiram ao Euro. Cabe notar, finalmente, que a Suíça, Liechtenstein e a Noruega não fazem parte da UE nem utilizam o euro como moeda oficial. Cabe ao Banco Central Europeu (BCE), por intermédio de sua diretoria executiva, a execução da política monetária para a Zona do Euro. Essa política é definida por um conselho diretivo composto de todos os presidentes dos bancos centrais da Zona, mais os seis membros da diretoria executiva do BCE. O atual mandato imposto ao banco determina absoluta prioridade no combate à inflação, que não deverá ultrapassar 2% ao ano, ficando tão próxima quanto possível dessa marca. Com relação à política fiscal, não há uma perfeita integração entre os países da Zona, ficando resguardada a soberania de cada país. No entanto, os países-membros sujeitam-se a um compromisso, pouco respeitado, de não ultrapassar os limites de 3% do PIB para o déficit orçamentário anual e de 60% do PIB para a dívida pública. Note-se que um conselho (Eurogroup), formado pelos diversos ministros da Fazenda dos países-membros, reúne-se periodicamente no esforço de harmonizar as políticas internas de cada país. Mais recentemente, em função da crise econômica e da situação da Grécia, os próprios chefes de Estado têm participado do Eurogroup, Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 47 procurando coordenar medidas “apaga-incêndio” em todos os segmentos da política econômica. Convém registrar, também, que a Zona do Euro tem uma população de cerca de 335 milhões de habitantes e um PIB da ordem de 11 trilhões de euros. Seu PIB representa 14% do PIB mundial, o que se compara com 21% para a União Europeia, 20% para os Estados Unidos e 18% para a China. Para qualificar-se como país-membro da Zona do Euro, a Grécia, que nunca primou por austeridade fiscal, comprometeu-se a seguir as exigências do grupo. Afinal, para conquistar o selo de qualidade, valiam alguns sacrifícios de soberania e o compromisso de ajustar déficits e a evolução da dívida soberana para parâmetros mais restritos. Como as taxas de juros deveriam baixar num país supervisionado pelo BCE e a economia grega é extremamente dependente do turismo, muitos benefícios decerto adviriam da adoção de uma moeda de aceitação generalizada, em lugar da moeda local. Acontece que as facilidades de financiamento encontradas pela Grécia tiveram o efeito de estimular a gastança pública e a concessão de privilégios. Os salários pagos a funcionários públicos, por exemplo, cresceram 50% de 1999 a 2007. Os Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, também comprometeram bastante as contas públicas. Passa-se o tempo e, no final de 2009, as autoridades gregas confessam que a verdadeira situação fiscal do país é bem pior que aquela até então mostrada ao mundo. O mercado fechou, então, suas portas, e o país teve de ser salvo em 2010 pela troika composta pelo FMI, pelo BCE e pela Comissão Europeia (órgão executivo máximo da União Europeia, localizado em Bruxelas), com um primeiro socorro de 240 bilhões de euros. 48 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 Com as medidas de austeridade impostas pelos credores, segue-se um período de forte recessão, só atenuado em 2014. Em cinco anos, a Grécia havia perdido um quarto do seu PIB, e o desemprego superava os 25% da população ativa. Com a recessão e a decorrente queda das receitas tributárias, as promessas feitas aos credores não puderam ser cumpridas. Nesse clima, assume, em janeiro de 2015, o governo Tsipras, de esquerda, prometendo libertar a Grécia dos grilhões dos credores e implementar programas populares. A fuga de recursos do país foi a resposta imediata do mercado, e a quebra era iminente. As autoridades europeias mostravam-se dispostas a oferecer um novo socorro, mas só se viesse sob condições ainda mais duras para a Grécia. Tsipras resistia com o apoio da população, esperando que os países líderes da Europa fossem amolecer, pelo receio de arranhar o projeto da Eurozone com a perda de um país-membro. A França parecia mais condescendente com a irresponsabilidade grega, mas a Alemanha não arredava pé de suas exigências. A população grega balançava entre objetivos mutuamente excludentes: queria escapar da disciplina do ajuste, de um lado, mas queria também permanecer na Zona do Euro. Após uma longa e desgastante negociação, entremeada por um plebiscito e por novas eleições, Tsipras finalmente cedeu aos credores, avaliando que a permanência na Zona do Euro era o bem mais valioso para o seu país. Um novo acordo de ajuda foi assim assinado com os países da Zona, em agosto último, agora no valor de 195 bilhões de euros. Com isso a situação do endividamento grego passou a ter a seguinte configuração: • Dívida total: 320 bilhões de euros, equivalentes a 177% do PIB. • Credores: Alemanha, 57 bilhões de euros; França, 43 bilhões de euros; Itália, 38 bilhões de euros; Espanha, 25 bilhões de Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 49 euros; outros países da Zona, 32 bilhões de euros; BCE, 27 bilhões de euros; FMI, 24 bilhões de euros; credores privados, 63 bilhões de euros; outros bancos centrais, 11 bilhões de euros. VII – Conclusão É difícil prever se a Grécia será capaz de honrar seus compromissos daqui para o futuro. Mais difícil ainda é prever que consequências teria um próximo default, dada a impaciência dos parceiros mais poderosos com o histórico de indisciplina do país. Muitos acham que a presença da Grécia na Eurozone é artificial e que, mais dia, menos dia, ela terá de retornar ao dracma. Existem também aqueles que acham que artificial mesmo é a presença da ortodoxa e eficientíssima Alemanha na Zona do Euro, entendendo que uma valorização do marco em relação ao euro poderia resolver muitos dos problemas de competitividade dentro da Europa. Finalmente, há os que, na linha de Friedman, consideram artificial o desejo de unir monetariamente regiões díspares como o Norte da Europa e a Europa Mediterrânea. Em suma, há opiniões para todos os gostos. Duas lições, entretanto, devem ser extraídas do drama grego. Uma é que, na formação de uma zona monetária, a perda de soberania dos países não se deve limitar ao abandono da moeda nacional. Cada vez mais, o sucesso da integração monetária dependerá também da integração das políticas fiscais, pois as populações de países austeros não mais aceitarão cobrir os rombos de países indisciplinados. A outra lição é que a economia só suporta pequenos desaforos. Para os grandes, a punição dos mercados vem forte e tem consequências políticas. Mesmo os governantes populistas têm de se submeter às restrições econômicas, já que, no médio e longo prazos, não há salvação fora da obediência às leis do mercado. 50 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 Finalmente, cabe registrar a preocupação de que o atual fluxo de refugiados para a Europa e o recrudescimento de ações terroristas na região sejam capazes, não só de piorar a situação grega, como também de esvaziar o sonho de uma Europa totalmente integrada. Afinal, é imprescindível para a concretização desse sonho o livre trânsito de pessoas por toda a região, e o que se nota no momento é o fechamento de fronteiras e uma nova tendência à introversão e à contestação de decisões multilaterais. Palestra pronunciada em 17 de novembro de 2015 Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 34-51, dez. 2015 51 Considerações sobre o impeachment Marcus Faver Desembargador, Presidente do Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil. Sumário • I – Introdução: A relevância atual do tema. • II – Histórico: 1) O impeachment inglês e o americano; 2) O impeachment no Brasil; 2.1) A nomenclatura constitucional, a expressão inglesa e o conceito atual; 2.2) As diferenças entre o impeachment americano e o brasileiro; 2.3) Conceitos jurídicos dos institutos afins; 2.3.1) Infrações penais e infrações não penais; 2.3.2) Ilícito penal e ilícito administrativo; 2.3.3) Crime de responsabilidade e infração político-administrativa; 2.3.4) Crime funcional e “crime de responsabilidade”; 2.3.5) Consequências da imprecisão técnica; • 52 III – Conclusões. C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 I – Introdução N o momento em que o país se defronta com grave crise política, com possibilidade de evolução para uma séria crise institucional, parece-nos oportuno relembrar algumas considerações sobre o impeachment, sua natureza jurídica, sua evolução histórica, retirando do ostracismo antigas anotações acadêmicas sobre o tema, com sugestões para a sua aplicação nos dias atuais. Observe-se, por oportuno, que ao fazer a apresentação do volume especial temático da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre impeachment, em 1996, o ministro Sepúlveda Pertence, então seu presidente, assim se expressou: “Na estrutura constitucional do presidencialismo, poucos institutos terão sofrido condenação tão generalizada e inclemente quanto o impeachment do presidente da República.” Autor da melhor obra sobre o tema em nossa literatura – cuja primeira edição significativamente é de 1964 –, Paulo Brossard de Souza Pinto lavrara o que a todos parecia irremovível veredicto condenatório: “Incapaz de solucionar as crises institucionais, o impeachment, paradoxalmente, contribui para o agravamento delas. O instituto, que, pela sua rigidez, não funciona a tempo e a hora, chega a pôr em risco as instituições, e não poucas vezes elas se estilhaçam. Representadas as forças em conflito, a dinâmica dos fatos termina por fender as linhas do instituto envelhecido, e, transbordando do leito constitucional, a revolução passa a ser o rude sucedâneo do remédio tão minuciosa a cautelosamente disciplinado na lei. Desta realidade, são testemunho as incursões armadas que pontilham, aqui e ali, os pleitos institucionais.” Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 53 Daí, a concluir a tese com invocação do juízo de Ruy, de implacável sarcasmo, que a Brossard pareceu definitivo: “Ninguém mais enxergou na responsabilidade presidencial senão um tigre de palha. Não é sequer um canhão de museu que se pudesse recolher, entre as antigualhas históricas, à secção arqueológica de uma armaria. É apenas um monstro de pagode, um grifo oriental, medonho na carranca e nas garras imóveis.” Na América, em 1974, a solução da crise de Watergate – quando, uma vez mais, a dinâmica dos fatos políticos atropelou a tentativa de fazê-lo mover-se a tempo –, a esterilidade do impeachment pareceu receber outra confirmação eloquente. O resultado é que, na doutrina constitucional, os textos sobre o impeachment recendiam ao mofo das especulações ociosas, salvo quando os animava o sabor polêmico dos que, a exemplo do trabalho de Brossard, faziam, da dissecação do instituto, uma arma a mais para a crítica do presidencialismo e a pregação da crença parlamentarista. No Brasil, durante o vintênio do autoritarismo militar, seria risível a simples ideia de responsabilização, perante o Congresso e sob controle dos tribunais, de um presidente da República que tivesse nos quartéis a fonte real do seu poder e só a eles devesse contas. Tudo, assim, fazia imprevisível que, ainda na primeira década da retomada do processo democrático e nos primeiros anos da Constituição de 1988, os juízes do Supremo Tribunal Federal se vissem a braços com a tarefa de decidir questões cruciais sobre a natureza e o processo por crime de responsabilidade contra o presidente da República: primeiro, a respeito do ensaio, liminarmente repelido, 54 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 contra o presidente José Sarney (Mandado de Segurança no 20.941), e, pouco tempo depois, a propósito dos sucessivos momentos do caso Collor, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal (Mandados de Segurança no 21.564, no 21.623, no 21.628, no 21.633 e no 21.689). Os acórdãos retratam dias particularmente dramáticos da história do Supremo Tribunal, tais as circunstâncias que cercavam as sessões em que as decisões foram tomadas, às vezes, literalmente, à vista da nação excitada: não obstante, os votos – malgrado as divergências – dão testemunho, todos eles, da seriedade jurídica e da serena imparcialidade com que se portou a Corte. De outro lado, sob o prisma da dogmática constitucional, a singularidade da série de julgados do caso Collor – até aqui, ao que se sabe, os únicos que retratam o exame jurisdicional das diversas fases de um processo de impeachment presidencial que chegou ao seu termo – propiciou acumular nos anais do Supremo Tribunal uma inédita vivência judicial do instituto, com páginas de inegável valor doutrinário. O instituto duramente criticado durante anos, por ser considerado incapaz de, no presidencialismo, solucionar as crises institucionais, particularmente, no que se refere ao impeachment do presidente da República, vem ultimamente e, em especial, após o “caso Collor” no Brasil, o “Watergate” (1973) e “Clinton”, nos Estados Unidos, e a crise na Argentina, ganhando maior relevância e estudos mais aprofundados, mesmo porque, se o instituto falhar, a fissura constitucional (ou revolução) passa a ser um eventual sucedâneo como remédio para os conflitos institucionais, como tem demonstrado a história, ao lado de outras ocorrências trágicas (renúncia, suicídio, fuga, etc.). Não se pode, todavia, pensar no impeachment como um veículo de incrustação ou exacerbação de crise, ou instrumento de vendetas Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 55 políticas, mas, sim, como um remédio institucional e heroico para debelar graves crises políticas, eventualmente ocorridas nos diversos entes federativos. Só assim, e com essa filosofia, ele se justifica. II – Histórico 1) O impeachment inglês e o americano Parece fora de dúvida que o impeachment tenha nascido na Inglaterra como uma instituição mediante a qual a Câmara dos Comuns formulava acusações contra os ministros do rei, e a Câmara dos Lordes as julgava. A Câmara Baixa era assim, como ainda é hoje, o tribunal de acusações, enquanto a Câmara dos Lordes funcionava, como ainda hoje, como corte de julgamento. A data exata do surgimento do impeachment é profundamente discutida. Entendem alguns que ele “se desdobra do crepúsculo do século XIII ou XIV à madrugada do século XIX” (Paulo Brossard, O Impeachment, Editora Globo, 1965). Alex Simpson, em A Treatise on Federal Impeachment, Filadélfia, 1916, ao afirmar na página 5 que os autores discordam sobre a época do surgimento do instituto, relaciona o impeachment de David, em 1282, como o primeiro, seguindo-se o de Thomas, Conde de Lancaster, em 1322; o de Roger Mortiner e o de Simon de Beresford, em 1330; o de Thomas de Barclay, em 1350; e o de Richard Lyons e o de William Lord Latimer, em 1376. No trabalho do professor Pinto Ferreira, citando Harold Laski, ele afirma que o primeiro impeachment ocorreu em 1326, com Eduardo III. Nessa época, teriam surgido os casos mais famosos de Latimer e Neville, nos quais os tratadistas vão buscar a sua origem, vindo, depois, 56 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 o de Pole, em 1386; o do eminente filósofo e estadista Bacon; o de Mompson, em 1621; o do Duque de Buckinghan, em 1627; o do Conde de Stafford, em 1640; o de Warren Hastings, em 1787; e o do Lorde Merville, em 1805 (Pinto Ferreira, Direito Constitucional, p. 350-351). O fato é que, conforme menciona Paulo Brossard, não é fácil dissertar a respeito do instituto inglês, precisando-lhe as características e as épocas, pois elas mudaram ao longo do tempo, e o próprio instituto sofreu um grande período de recesso. “Após longo período de hibernação, durante o qual, e por isso mesmo, prosperou o bill of attainder, que era uma condenação decretada por lei, uma lei-sentença, odiosamente pessoal e retroativa, no juízo de Esmein, o impeachment ressurgiu com pujança. Passou a ser admitido nos casos de ofensa à Constituição inglesa por crimes muitas vezes difíceis de definir na imprecisão dos textos.” “Se, originariamente, o impeachment foi processo criminal que ocorria perante o Parlamento, para que poderosas individualidades pudessem ser atingidas pela Justiça, e supunha infração prevista em lei e com a pena em lei cominada, cedo ficou estabelecido que, embora os lordes estivessem ligados à lei quanto à determinação do delito, em se tratando de crimes capitais, eram livres para escolher e fixar penas, que podiam variar da destituição do cargo à prisão, ao confisco, à desonra, ao exílio e à morte” (Paulo Brossard, obra citada). “Expandindo-se, passou a ser livremente admitido em relação a high crimes and misdemeanors, crimes e atos que não constituíam crime, mas faltas consideradas prejudiciais ao país, independentemente de enunciação ou caracterização legais.” Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 57 “Desta forma, sem deixar de ser criminal a jurisdição, o processo ganhou vastas dimensões políticas. Sofreu ele real metamorfose, que é registrada pela generalidade dos autores, não faltando quem sustente que há certo tempo o caráter político sobrepujou o aspecto judiciário” (Idem). O que nos parece importante nessa análise é estabelecer a diferenciação entre o impeachment nascido na Inglaterra e o adotado nos Estados Unidos da América, e que de lá serviu de exemplo para a legislação brasileira. Abolindo o bill of attainder e adotando o impeachment, os americanos racionalizaram o instituto inglês, expurgando-o dos aspectos excepcionais e, por vezes odiosos que, historicamente, a ele se ligavam. Na verdade, quando os constituintes americanos da Filadélfia adotaram o impeachment, ele já havia sofrido na Inglaterra uma extensa evolução, ganhando relevo o aspecto político sobre o criminal, “limitando em seu alcance quanto às pessoas, restrito no que concerne às sanções, desvestido do caráter criminal que fora dominante, expurgando de certas características anciãs, o impeachment quando na Inglaterra chegava à senectude, ingressava no elenco das jovens instituições americanas” (Brossard, p. 31). Na Inglaterra, o impeachment atinge a um tempo a autoridade e castiga o homem, enquanto, nos Estados Unidos, fere apenas a autoridade, despojando-a do cargo, e deixa imune o homem, sujeito, como qualquer, e quando for o caso, à ação da Justiça (Joseph Story, Commentaries on the Constitution of the United States, 5a ed., Boston). Segundo Henry Campbel Black, citado por Pinto Ferreira, “não resta dúvida que nos Estados Unidos o impeachment ganhou natureza pura58 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 mente política: The nature of this punishment is political only” (Constituition Law, 3a ed., p. 139). Também a lição de Von Holst (The Constitutional Law of the United States, p. 158): Impeachment is a political process. The decision as to what the law is made by the powers which act in this process as accuse a judge, in as much as they carry out the constitutional provision in accordance with the interpretation which seems them just. There is no appeal from their decision. Vê-se, pois, que nos Estados Unidos inquestionavelmente, o impeachment tem por fim afastar o agente do cargo, sem prejuízo de outras sanções porventura cabíveis. É, à evidência, processo político com cominação de penas políticas, como o são a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de outro. Outra característica do impeachment americano, e essencial à análise que procuramos realizar, é a sua regulamentação pelos estados-membros da federação. Esse aspecto é tão marcante, que James Bryce chega a afirmar que ele resultou imediatamente das Constituições estaduais, e só mediatamente do direito inglês. “O impeachment não veio diretamente da tradição inglesa, porém das Constituições da Virgínia (1776) e de Massachussets (1780), que tinham seguido nisso certamente o exemplo da Inglaterra” (The American Common Wealth, vol. I, p. 50). Informa, por seu turno, Austin F. MacDonald (American State Government and Administration, Nova York, 1950, p. 253): Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 59 In every State the governor may be removed by process of impeachment. It is customary, however, to use this power only when some very serious offense is charged – flagrant abuse of authority, for example, or downright dishonesty. Where inefficiency is not enough to justify the representation of charges. As a result, only four governors have been removed from office on impeachment charges since the troubled days of reconstruction following the civil war. Assim, é necessário acentuar-se que, embora originário do direito público inglês, são marcantes as diferenças entre o impeachment inglês, que se alastrou por toda a Europa, e o instituto implantado nos Estados Unidos e dali transportado para o Brasil, a Argentina e toda a América Latina. Pelo sistema europeu, vinculado à tradição jurídica britânica, além das penas de caráter político-administrativo, ocorre também aplicação de penalidades civis e criminais, razão pela qual é ele reputado pelo jurista francês Léon Duguit como um processo de natureza mista, isto é, político-penal. Como citado por Paulo Brossard: “Strory já ensinava que o impeachment é um processo de natureza puramente política”. Lawrence, tantas vezes citado pelas maiores autoridades, faz suas as palavras de Bayard, no julgamento de Blount: “O impeachment, sob a Constituição dos Estados Unidos, é um processo exclusivamente político. Não visa a punir delinquentes, mas proteger o Estado. Não atinge nem a pessoa nem seus bens, mas simplesmente desveste a autoridade de sua capacidade política.” Lieber não é menos incisivo ao distinguir o impeachment nos dois lados do Atlântico, dizendo que “o impeachment inglês é um julgamento penal”, o que não ocorre nos Estados Unidos, onde o instituto é político e não criminal. Von Holst não diverge: 60 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 “O impeachment é um processo político”. É semelhante a linguagem de Tucker: “O impeachment é um processo político contra o acusado como membro do governo, para proteger o governo no presente ou futuro”. É conhecida a passagem em que Black sintetiza numa frase a lição que, desde o século XVIII, vem sendo repetida nos Estados Unidos: “É somente política a natureza deste julgamento”. Ou, como escreveu Tocqueville, num trecho que correu mundo: “O fim principal do julgamento político nos Estados Unidos é retirar o poder das mãos do que fez mau uso dele, e de impedir que tal cidadão possa ser reinvestido de poder no futuro”. Como se vê, é um ato administrativo ao qual se deu a solenidade de uma sentença. “Na Argentina, que, antes do Brasil, adotou instituições semelhantes às americanas, outra não é a lição dos constitucionalistas. Lá, como aqui, o impeachment tem por objeto separar a autoridade do cargo por ela ocupado, independentemente de considerações de ordem criminal. O objetivo do juízo político não é o castigo da pessoa delinquente, senão a proteção dos interesses públicos contra o perigo ou ofensa pelo abuso do poder oficial, negligência no cumprimento do dever ou conduta incompatível com a dignidade do cargo” (Gonçalves Calderon, Derecho Constitucional Argentino, Buenos Aires, 1923, 3a ed.). É também interessante acentuar que, política por excelência, essa vertente foi perdendo, gradativamente, o seu objeto, particularmente nos sistemas parlamentares, principalmente em relação aos ministros, em face dos processos e da técnica peculiar a esse sistema, que permite a destituição dos ministros e dos ministérios por um processo muito mais rápido e eficaz, qual seja, o voto de censura. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 61 Cresce, no entanto, em contrapartida, a sua importância nos sistemas presidencialistas, como fórmula jurídica adequada à responsabilização dos agentes políticos (veja-se o voto do ministro Castro Nunes, Revista Forense, no 125, p. 151, no julgamento da Representação no 96 – Supremo Tribunal Federal). Como afirmou, com a precisão costumeira, o ministro Célio Borja (revista Época, 26/10/2015), o impeachment é um instrumento democrático. Ganham, nesse ponto, importância as observações de Eduardo Duvivier, no livro Defesa do Ex-Presidente Washington Luiz, no caso de Petrópolis, 1931, p. 72-75, verbis: “É interessante observar que, transpondo o Atlântico, o impeachment que, como instituição política, se originara na Inglaterra do princípio da irresponsabilidade do Executivo e que, politicamente, se extinguira com o estabelecimento da sua responsabilidade, sendo substituído pelo voto de censura, ou desconfiança, justifica-se, na América do Norte e nos países da América do Sul, que lhe seguiram o exemplo, exatamente pelo princípio da responsabilidade do Executivo, como uma sanção política de certos crimes ou delitos, ou de ‘simples falta de cumprimento de deveres funcionais dos órgãos desse Poder; decorrendo do princípio da responsabilidade, o impeachment investe-se de efeito semelhante ao do voto de censura, ou desconfiança,’ restringe-se à perda do cargo, acidentalmente, apenas, podendo acarretar a inabilitação para outro; no país de origem, ele guarda em teoria, pois que caiu em completo desuso o caráter punitivo desses crimes ou delitos; no país para onde foi transplantado, perde esse caráter, passando a função punitiva dos crimes ou delitos para tribunais comuns; corresponde, pois, ao voto de censura, com maior alcance, porque pode trazer a inabilitação para outro cargo público, mas também, como maior garantia 62 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 para o acusado, porque não basta que este contrarie a política do Congresso, que também não pode derrubar por uma maioria ocasional, mas preciso é que ele ofenda a lei e que essa ofensa seja verificada na forma e com as garantias de um processo judicial e por um tribunal, que somente poderá condená-lo por dois terços dos seus votos... Adotando o impeachment, como um meio de tornar efetiva a responsabilidade do presidente, seus ministros e outros funcionários, tomaram-no, da Constituição inglesa, com as garantias, de natureza judicial, do seu processo originário, mas com o efeito político, muito aproximando, do seu último estado de evolução, ao voto de censura – evolução que fora, certamente, o resultado ao princípio desenvolvido, na Inglaterra, na última parte do século XVIII, da independência do Judiciário, como elemento particularmente garantidor da liberdade civil.” 2) O impeachment no Brasil Já a Constituição do Império, de 1824, previa o processo de impeachment, firmado e aproximado ao instituto britânico. A Lei de 15 de outubro de 1827, elaborada nos termos do art. 134 da Constituição de 25 de março, dispunha sobre a responsabilidade dos ministros e secretários de Estado e dos conselheiros, sendo de natureza criminal as sanções que o Senado tinha competência para aplicar. Seu escopo, de acordo com Paulo Brossard, “não era apenas afastar do cargo a autoridade com ele incompatibilizada, como veio a ser no impeachment republicano, há um tempo atingia a autoridade e o homem, em sua liberdade e bens”. A Constituição de 1891 se orientou pela sistemática norte-americana. A monarquia foi substituída pela República. A Federação sucedeu ao Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 63 Estado unitário. O sistema presidencial relegou a tradição parlamentar do Império. A pessoa do imperador, legalmente inviolável e sagrada, deu lugar ao presidente da República, legalmente responsável. O impeachment deixou de ser criminal, passando a ser de natureza política. A Constituição de 1934 estabeleceu um sistema complexo de impeachment, inclusive com um tribunal especial, composto de nove juízes, sendo três senadores, três deputados e três ministros da Corte Suprema, que daria a decisão final. A Lei Maior de 1934 pouco durou, eis que substituída pela Carta Outorgada de 1937, que previa o impedimento, mas que não teve qualquer significado ante a dissolução do Congresso. A Constituição de 1946, bem como as de 1967, 1969 e 1988, regulou o impeachment, vinculando-o aos chamados crimes de responsabilidade do presidente da República. Anote-se que em qualquer dos textos constitucionais, após a redemocratização, foi utilizada a palavra “impedimento” ou impeachment. Todos eles mencionaram a suspensão do presidente de suas funções, uma vez declarada procedente a acusação pelo voto de dois terços da Câmara dos Deputados. 2.1) A nomenclatura constitucional, a expressão inglesa e o conceito atual Com base nas expressões constitucionais e no significado gramatical do termo na língua inglesa (impedimento, denúncia, acusação), alguns doutrinadores vêm entendendo que o impeachment significa apenas “o afastamento provisório” do agente político do cargo que ocupa. Por essa razão, Tito Costa (obra citada, p. 11) afirma que “não resta nenhuma dúvida que, com o impeachment, ‘objetiva-se o afastamento 64 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 provisório da autoridade política,’ pelo órgão político correspondente (as assembleias populares), a fim de que, preservados o cargo e as funções políticas que lhe são inerentes, possa responder criminalmente pelas falhas cometidas, perante o Poder Judiciário”. Na verdade e a rigor, por impeachment se entendia apenas a acusação formulada pela representação popular, ou seja, a primeira fase do processo de responsabilidade que, no sistema brasileiro, terminaria com o afastamento provisório da autoridade processada (Paulo Brossard, obra citada, p. 11). Gabriel Luiz Ferreira, com acuidade, afirma que “a palavra impeachment não foi ainda introduzida na linguagem de nossas leis, mas é certo que, passando da jurisprudência inglesa para a tecnologia universal do direito público, tem a significação geralmente conhecida e serve para designar todo o processo especial a que são sujeitos os altos representantes do poder público pelos crimes e abusos que cometem, no exercício de suas funções governamentais” (I.A.B., Dissertações, p. 231). Ao nosso sentir, nos dias atuais, principalmente em razão do caso Collor, a expressão se popularizou, e pelo mesmo vocábulo se designa hoje comumente não só o processo político que começa e termina no seio do Poder Legislativo, como ainda o impedimento definitivo do agente político. Por tais considerações, pensamos que razões não assistem a Tito Costa e Hely L. Meirelles, ao afirmarem a inexistência de impeachment em relação aos prefeitos municipais, após a vigência do Decreto-Lei no 201/67. O conceito do instituto, na verdade, ganhou elasticidade no direito brasileiro, passando a significar, como anteriormente afirmado, não só o afastamento provisório, originário, como a denominar todo o processo de impedimento do agente político, como ainda o Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 65 afastamento definitivo da autoridade do seu cargo. (Vejam-se os dicionaristas Pedro Nunes, Dicionário de Tecnologia Jurídica, Koogan Larousse e Aurélio Buarque de Hollanda; e os doutrinadores Paulo Brossard, O impeachment, p. 12; Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição de 46, p. 257, vol. II; Pinto Ferreira, Curso de Direito Constitucional; Ovídio Bernardi, Responsabilidade dos Prefeitos Municipais, etc.). 2.2) As diferenças entre o impeachment americano e o brasileiro Conforme perfeita análise de Carlos Maximiliano, em parecer encontrado na Revista Forense, no 25, p. 108-114, o impeachment é uma instituição inglesa adotada nos Estados Unidos e dali transportada para o Brasil. Na grande república norte-americana, graças ao respeito pela independência dos poderes constitucionais, o presidente só é afastado do cargo depois de condenado definitivamente. No Brasil, desde 1890, sempre houve duas fases no processo de impeachment: a primeira, concluindo com uma decisão da Câmara, semelhante à pronúncia usada no Juízo Criminal comum; a segunda, perante o Senado, ultimada com a absolvição ou condenação definitiva. Entre nós, houve mais rigor do que nos Estados Unidos: uma vez que admitida à acusação por dois terços da Câmara, e instaurado o processo pelo Senado, já o presidente deixava o exercício das suas altas funções (art. 86, § 1o, inc. II da Constituição Federal – CF). Aliás, Viveiros de Castro (Estudos de Direito Público, cap. IX), chama a atenção para outra diferença entre o sistema americano de impeachment e o nosso, mostrando que aqui houve, por exigência constitucional, uma “prévia definição das chamadas infrações político-administrativas” ou dos crimes de responsabilidade, seu processo e julgamento, o que não ocorre na América. Ainda que com inegável conteúdo 66 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 subjetivo, tudo está definido hoje nos artigos 85 e 86 da Constituição de 1988. Essa característica nacional foi apontada como benéfica por João Barbalho, em seus clássicos Comentários à Constituição Federal Brasileira, da seguinte maneira: “O estatuto brasileiro especificou os crimes de responsabilidade; e foi além: exigiu que o primeiro Congresso ordinário, na sua primeira sessão, os definisse em lei especial. Esse dever foi cumprido. E, de outro modo, deturpar-se-ia o regime presidencial, podendo as Câmaras, sob qualquer pretexto, demitir o presidente: dar-se-ia incontrastável predomínio delas. A posição do chefe da nação seria coisa instável e precária, sem independência, sem garantias.” Diante desse quadro, é preciso atentar-se para o perigo de se fazer sustentações ou argumentações com base em textos ou doutrinadores alienígenas, sem perceber que são consideráveis as diferenças entre um instituto e outro. Não procedem também a nosso ver os argumentos de Tito Costa e Hely Lopes Meirelles, ao analisarem o impeachment de prefeitos, isso porque deixando, como deixou o Decreto-Lei no 201/67, a fixação do rito (art. 5o) a cargo dos estados, cada uma das unidades da Federação pode perfeitamente estabelecer o afastamento provisório, tão logo seja aceita a denúncia pela Câmara. Aliás, foi isso exatamente que fez o Estado do Rio de Janeiro, prevendo em sua antiga Constituição (art. 214, § 4o) e posteriormente em sua Lei Orgânica Municipal (Lei Complementar no 1, de 17/12/75, art. 103, § 5o) possibilidade do afastamento provisório do prefeito de suas funções, ou seja, estabelecendo a figura do impeachment gramatical e histórico de Tito Costa e Hely Lopes Meirelles. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 67 2.3) Conceitos jurídicos dos institutos afins A atual Constituição da República Federativa do Brasil, em seus artigos 85 e 86, dispõe: “Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I – a existência da União; II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes Constitucionais das unidades da Federação; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do país; V – a probidade na administração; VI – a lei orçamentária; VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.” “Art. 86. Admitida a acusação contra o presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade. 68 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 § 1o O Presidente ficará suspenso de suas funções: I – nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal; II – nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal; § 2o Se, decorrido o prazo de 180 dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo. § 3o Enquanto não sobrevier sentença condenatória nas infrações comuns, o presidente da República não estará sujeito à prisão. § 4o ‘O presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.’” Estipula, por outro lado, no parágrafo único do citado artigo 85, que esses crimes seriam definidos em lei especial, que estabeleceria as normas do processo e julgamento. A atual Carta repete, na verdade, o que constava do art. 84 da Constituição de 1967 e do art. 89 da Constituição de 1946. Na esteira desses preceitos constitucionais, foi editada, em 10/4/1950, a Lei no 1.079, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo. Por essa lei (art. 2o) e pelo próprio texto constitucional, constata-se que esses “crimes de responsabilidade” são punidos, exclusivamente, com a perda do cargo e com a inabilitação para o exercício de Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 69 outra função pública, por determinado tempo (até cinco anos, pela Lei no 1.079, mas por oito anos, pelo parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal) – lembrando-se que as penas são cumulativas (Mandado de Segurança no 21.689 – Rel. ministro Carlos Velloso). Estabelece o texto magno (art. 86) que o presidente, depois que a Câmara dos Deputados admitir a acusação pelo voto de dois terços de seus membros, será submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, no caso de crime comum, ou perante o Senado Federal, no caso de “crime de responsabilidade”. Anote-se, aqui, porque já foi objeto de grandes discussões quando do impeachment do presidente Collor, que o presidente da Câmara, a nosso sentir, apenas examina a acusação, como se fosse um juiz a despachar uma petição inicial (art. 282 e art. 284 do Código de Processo Civil [CPC]), uma vez que a “admissibilidade” é prerrogativa da Câmara por dois terços de seus integrantes, e não apenas dos presentes (veja-se o voto do ministro Célio Borja). Observe-se ainda que, no caso Collor, o Senado entendeu que a renúncia, no curso do processo, não afetaria o seu andamento e que a pena de inabilitação não tinha caráter acessório. O entendimento foi referendado, por maioria, pelo Supremo Tribunal Federal – Mandado de Segurança no 21.689 –, Rel. ministro Carlos Veloso, entendendo que a Lei no 1.079/50, mudou a sistemática da legislação anterior. Procuraremos estabelecer, por outro lado e adequadamente, o que seja “crime funcional, crime de responsabilidade e infração político-administrativa”, tendo em vista que a falta de critério ou rigor científico nessas conceituações tem levado legisladores, julgadores, 70 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 doutrinadores e intérpretes a confundirem os institutos, provocando decisões inadequadas, e até conflitantes. Não pretendemos nem temos em mira, obviamente, oferecer definições porventura inexpugnáveis, quer no plano jurídico, filosófico ou sociológico, mas indicar caracteres distintivos, retirados da massa indiferenciada dos chamados atos ilícitos, capazes de separá-los e distingui-los. 2.3.1) Infrações penais e infrações não penais Não há diferenças ontológicas ou de essência entre as infrações penais e as infrações não penais. “A ilicitude jurídica é uma só”, afirmava o saudoso Nelson Hungria, mineiro de Além Paraíba, em seus Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo II, p. 30: “Todo ilícito é uma contradição à lei, uma rebelião contra a norma, expressa na ofensa ou ameaça a um bem ou interesse por ela tutelado. A importância social atribuída a esse bem ou interesse jurídico é, em grande parte, o que determina a natureza da sanção civil ou penal. É uma questão de hierarquia de valores” (Aníbal Bruno, Direito Penal, vol. I, p. 285). Segundo Carl Binding, citado por Hungria (Compendio di Diritto Penale, p. 13, 1939), “o que caracteriza o crime e o distingue das demais infrações é a natureza da pena abstratamente cominada. Se a sanção é retributiva do mal causado à vítima, o ilícito é criminal. Se é reparatória do dano efetivo, presumido ou potencial, o ilícito é civil. Se preservatória da regularidade da administração, o ilícito é administrativo. Se é restritiva de direito de cidadania, o ilícito é político.” Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 71 Para Nelson Hungria, “sob o ponto de vista histórico e político, que é o único admissível nesta matéria, ou melhor, tendo-se em vista a formação através das leis ditadas pelo estado dos dois segmentos jurídicos que se chamam Direito Civil e Direito Penal, pode-se concluir que ilícito penal é a violação da ordem jurídica contra a qual, pela sua intensidade ou pela sua gravidade, a única sanção adequada é a pena. E ilícito civil é a violação da ordem jurídica para cuja debelação bastam as sanções atenuadas da indenização, da execução forçada, da restituição em espécie, da breve prisão coercitiva, da anulação do ato, etc.” (Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo II, p. 35). Em igual sentido, a lição de Francesco Antolisei (Manual de Derecho Penal, Ed. Uteha, p. 130-131): “La quiebra de las teorias enunciadas para distinguir el injusto civil y el injusto penal conduce a la conclusión de que no existe una diferencia sustancial entre ellos. La distinción tiene carácter extrínseco y legal. El delito es um injusto sancionado con la pena; el ilícito civil es el injusto que tiene por consecuencia las sanciones civiles (resarcimiento del daño, restituciones, etcétera). En definitiva, solo atendiendo a la natureza de la sanctio júris podemos establecer si nos encontramos em presencia de uma u outra espécie de injusto.” 2.3.2) Ilícito penal e ilícito administrativo Pela autoridade e precisão de ensinamentos, dê-se, novamente, a palavra a Nelson Hungria: 72 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 “Tem sido igualmente em vão a tentativa de uma distinção ontológica entre o ilícito penal e o ilícito administrativo. A separação entre um e outro também atende apenas a critérios de conveniência ou oportunidade, afeiçoados à variável medida do interesse da sociedade e do Estado. Conforme acentuava Beling, a única diferença que pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de grau: está na maior ou menor intensidade lesiva de uma em cotejo com a outra. O ilícito administrativo é um ‘minus’ em relação ao ilícito penal. Pretender justificar um descrime pela diversidade qualitativa ou essencial entre ambos, será persistir no que Kukula justamente chama de estéril especulação, idêntica à demonstração da ‘quadradura do círculo’” (Comentários, p. 36, vol. 1, tomo II). 2.3.3) Crime de responsabilidade e infração político-administrativa Conforme acentuou com propriedade o consagrado Hely Lopes Meirelles, em seu Direito Municipal Brasileiro (Ed. Revista dos Tribunais, 1964, em dois volumes), estamos, na verdade, diante de responsabilidade político-administrativa, que é a que resulta de violação de deveres funcionais por parte de agentes políticos investidos nos altos postos de governo, seja federal, estadual ou municipal. Essas infrações, dizia o professor Meirelles, “impropriamente denominadas crimes de responsabilidade, são punidas com a perda do cargo e a inabilitação temporária para o desempenho de função pública, apuradas através de um processo especial de natureza político-disciplinar e que universalmente é conhecido por impeachment”. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 73 Essa responsabilidade é distinta da responsabilidade civil e da responsabilidade penal, não obstante poder existir ou coexistir com ambas as responsabilidades. Os atos que ensejam essa responsabilidade político-administrativa nem sempre caracterizam o ilícito civil ou o ilícito penal, pois, em grande parte das vezes, representam simples descumprimento de preceitos governamentais impostos aos agentes políticos, como requisitos de uma boa e correta administração, ou, no dizer da Constituição, de uma eficiente administração. A infração político-administrativa, impropriamente denominada “crime de responsabilidade”, no texto constitucional e nas leis que se lhe seguiram, não se confunde também com o chamado “crime funcional”, embora possa derivar do mesmo fato delituoso. Sem maior esforço, vê-se, desde logo, que os denominados “crimes de responsabilidade” não são crimes em sentido próprio, uma vez que não há uma pena em sentido criminal. Há uma punição, com a perda do cargo e a inabilitação temporária para função pública. Se, porém, junto com essa infração que acarreta a perda do cargo, coexistir algum crime comum, crime propriamente dito, o presidente ficará na dependência de julgamento pelo Poder Judiciário por intermédio do Supremo Tribunal Federal. Só, então, em caso de condenação, poderá sofrer uma punição criminal. 2.3.4) Crime funcional e “crime de responsabilidade” Crimes funcionais são aqueles fatos lesivos à administração pública, quando praticados pelos próprios exercentes do cargo, do emprego ou da função pública, definidos em lei. Os delitos funcionais são denominados crimes pessoais ou próprios, ou seja, são praticados por pessoa na condição de funcionário em 74 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 sentido genérico. São os que os práticos chamavam de delicta in officio, isto é, delicta propria, eis que praticados pelos próprios participantes da atividade administrativa do Estado. Entre nós, infelizmente, conforme justa crítica de Tobias Barreto, os delicta in officio passaram a receber o inadequado nome de “crimes de responsabilidade”. Dizia Barreto que expressão “crime de responsabilidade” era frase pleonástica e insignificante e que deveria, com vantagem, ser substituída por “crime funcional” ou “crime de função” (Obras Completas, V, VI e VII, p. 109-112). O inolvidável Nelson Hungria, em seus Comentários ao Código Penal, vol. 9, menciona que a denominação “crime funcional” seria a mais correta e obedeceria inclusive à tradição alemã, que serviu de subsídio na elaboração de diversos pontos do Código Penal Brasileiro (veja-se a exposição de motivos do ministro Francisco Campos). Diga-se, aliás, que o próprio Código de Processo Penal, em seu art. 556, já menciona “processo de delitos comuns e processo de delitos funcionais”, reconhecendo expressamente a terminologia adequada para explicitar tais tipos de infrações penais. O professor José Frederico Marques, no seu livro Observações e apontamentos sobre a competência originária do Supremo Tribunal Federal, datado de 1961, já observava que a expressão “crimes de responsabilidade” entrara na Constituição sem exato conceito técnico ou científico e que os ilícitos, em que ela se desdobra, não constituem ilícitos penais e, sim, ilícitos administrativos, ou ilícitos políticos, sem embargo do nomen juris. Por seu turno, Tito Costa, em seu livro Responsabilidade de prefeitos e vereadores, Ed. Revista dos Tribunais, 1979, afirma que a expressão “crimes de responsabilidade”, apesar de ser hoje usual e reconhecida Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 75 em seu termo de direito, revelava-se locução desprovida de sentido técnico e verdadeira corruptela. Referia-se, na verdade, à responsabilidade criminal dos prefeitos, da qual a responsabilidade civil e mesmo a político-administrativa podiam vir a ser consequência, não obstante independentes umas das outras. Afirma, ainda, que foi a Carta Constitucional do Império, de 25/03/1824, que primeiro mencionou a atribuição exclusiva ao Senado para conhecer da “responsabilidade” dos secretários e conselheiros de Estado. O ex-senador e ex-ministro do STF, Paulo Brossard de Souza Pinto, em seu clássico e precioso trabalho, O Impeachment, Ed. Globo, 1965, afirma que esta falha de lei básica que, reiteradamente, se refere de modo equívoco a crimes de responsabilidade, ora no sentido de infração política, ora na acepção de crime funcional, tem concorrido para a defectiva sistematização do instituto concernente à responsabilidade presidencial (p. 59). “Quando motiva o impeachment, por exemplo, caso em que sem dúvida, a despeito do nomen juris que lhe dá o Código Supremo e a Lei que lhe é complementar, o ilícito a ele subjacente não é penal. Se o crime de responsabilidade não é sancionado com pena criminal como delituoso, não se pode qualificar o fato ilícito assim denominado, pois o que distingue o crime dos demais atos ilícitos é, justamente, a natureza da sanção abstratamente cominada” (Frederico Marques, obra Citada, p. 45). Reconheça-se que essa imprecisão conceitual, apesar das críticas levantadas, acabou arraigando-se no direito pátrio e foi colocada não só na Constituição (desde a imperial), como também nas leis posteriores (veja-se minuciosa investigação de Paulo Brossard, p. 59-64, na obra citada), 76 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 e “para indicar, com esse conceito – ‘crime de responsabilidade’ – as infrações político-administrativas que, cometidas por presidentes, governadores, ministros ou prefeitos, ensejassem a perda do cargo por meio do impeachment, bem como a inabilitação temporária para o exercício de outra função pública”. É essa a mens legis, sem qualquer dúvida a nosso ver; e, se não se der essa interpretação, estaremos reconhecendo como procedentes as acerbas críticas levantadas pelo ministro Sepúlveda Pertence, na introdução da jurisprudência temática do STF, publicada em 1996. Tito Costa, mesmo fazendo crítica ao conceito, acaba por reconhecer que a expressão estaria incorporada ao direito nacional, ainda que sem precisão técnica. Hely Lopes Meirelles, talvez por ter sido o autor do Decreto-Lei no 201, já na nova edição refundida em um único volume (1977), do clássico Direito Municipal Brasileiro, acaba por acatar, vergando-se às contínuas e inadequadas repetições, como correta a expressão “crime de responsabilidade” para significar “crime funcional especial”. O ilustre professor menciona, na página 902, que existem crimes funcionais comuns e crimes funcionais especiais, reservando para estes últimos a denominação de “crimes de responsabilidade”. Raul Chaves, por seu turno, na tese de concurso na cadeira de Direito Penal da Faculdade da Bahia, denominada “Crime de Responsabilidade”, afirma que “desde o aparecimento da expressão ‘crime de responsabilidade’, no Código Criminal de 1830, essa locução viciosa com foros de linguagem legislativa, ora aludindo àqueles delitos de que são responsáveis ministros e secretários, ora designando certas espécies de crimes comuns definidos no Código de 1830, ou seja, delicta in officio, crimes de função, delicta propria dos que exercem funções Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 77 públicas, desde esse momento a locução nunca mais foi abandonada. Repetiram-se as leis, os legisladores já citados; a ela recorrem escritores, e muitos passaram sem se aperceberem do vício que divulgavam.” Paulo Brossard menciona, na página 64 da sua clássica obra, que “se aos crimes de responsabilidade, enquanto relacionados a ilícitos políticos, se reservasse à denominação de ‘infrações políticas’, por exemplo, melhor se atenderia à natureza das coisas e se evitaria o escolho decorrente da designação pelo mesmo nome, de realidades diversas”. E é peremptório, ao afirmar que “entre nós, como no direito americano e argentino, o impeachment tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política e julgado segundo critérios políticos” (p. 75). 2.3.5) Consequências da imprecisão técnica A falta de precisão técnica da expressão “crime de responsabilidade” e a divergência de conceituação do instituto são notadas em nossos melhores doutrinadores sobre a matéria. Isso tem levado os tribunais, inclusive o Supremo Tribunal Federal, a decisões incongruentes e incompatíveis. Repita-se, pela inegável autoridade sobre a questão, que o senador Paulo Brossard, em seu extraordinário O impeachment, usa taxativamente a expressão “crime de responsabilidade” no sentido de infração político-administrativa. Paulo Salvador Frontini, curador de Massas de São Paulo, em trabalho premiado no Concurso Jurista Costa e Silva, no ano de 1976, patrocinado pela Associação Paulista do Ministério Público (Rev. Justitia, ano 78 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 XL, vol. 100, p. 137-175 ), faz uma simbiose e afirma que “no direito brasileiro, o crime de responsabilidade é uma figura penal. Apresenta-se como sucedâneo do impeachment, quando cuida da responsabilidade dos agentes políticos a que alude a Constituição; reveste-se de índole de crime especial, quando disciplina a responsabilidade de prefeitos municipais. E é um crime comum – embora próprio – quando perpetrado por simples funcionário público, nos casos que assim são considerados”. Tito Costa (obra citada, p. 14) afirma: “Aceitemos, portanto, já que a lei assim o faz, a expressão ‘crimes de responsabilidade’ como sendo, no caso, delitos de natureza funcional, cometidos no exercício das funções executivas do governo e/ou em decorrência desse exercício”. Wolgran Junqueira Ferreira, em seu livro Responsabilidade dos prefeitos e vereadores, Ed. José Bushatsky, 1978, faz a seguinte menção: “Crime de responsabilidade. Divide o Código Penal os crimes em dolosos e culposos. O de responsabilidade é figura fora do estatuto penal brasileiro. Contempla-o o direito político. Segundo Manoel Gonçalves Filho, consiste na conduta que se amolda a uma figura como tal descrita na lei especial. Trata-se da apuração de infrações definidas pela denominação de crimes de responsabilidade, apuradas em processos político-administrativos” (p. 27-28 sic, sic). III – Conclusões Ao concluir o presente trabalho, apresentamos duas sugestões. A primeira correspondente a potenciais alterações legislativas, a segunda sobre critérios para adequadas interpretações jurídicas. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 79 1) Diante da análise aqui realizada, vê-se que há, na verdade, quase uma uniformidade de pensamento dos abalizados doutrinadores que trataram do assunto a respeito da inadequação do termo “crime de responsabilidade”, inserido na Constituição Federal e nas leis que se seguiram, isso porque crime de responsabilidade não diz coisa alguma. É “frase pleonástica e insignificante” e tem levado até mesmo o Supremo Tribunal Federal a decisões incongruentes. Na elaboração jurídico-doutrinária tradicional, há uma tendência doutrinária pronunciada a identificar, ainda que com algumas variantes, o delito ou “crime como sendo a ação humana antijurídica, típica, culpável e punível”. Essa conceituação, chamada de analítica ou dogmática, fez emergir as três faces do ato punível, quais sejam: a tipicidade, a antijuricidade e a culpabilidade. Sem entrarmos na análise mais aprofundada desses conceitos, particularmente no que seja a tipicidade ou antijuricidade, por fugirem ao estudo realizado, o fato é que a culpabilidade é elemento integrante do delito. Diz-se que um autor é culpado se dotado de imputabilidade, se conhecia ou podia conhecer a antijuricidade de sua conduta e tinha condições de atuar de modo diverso. A imputabilidade, que na nossa lei é confundida com responsabilidade, é a capacidade que possui o homem de entender o caráter criminoso do fato e conduzir-se de acordo com esse entendimento. Capacidade telectivolutiva, capacidade de culpabilidade da qual é mais um pressuposto do que um elemento. Isso deflui do que está estipulado no art. 22 do Código Penal Brasileiro. Assim, falar-se em “crime de responsabilidade” nada está a dizer, pois todo crime pressupõe uma responsabilidade do agente. Se esse agente ou autor não tinha responsabilidade, ou em outras palavras, sem que ele seja culpado, sem que ele tenha imputabilidade, não se pode falar em delito. 80 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 Dessa forma, a expressão “crime de responsabilidade”, por destituída de significado técnico-científico, deveria ser abolida tanto da Constituição quanto das leis posteriores ou complementares. Ela tem sido a responsável por enganos, interpretações divergentes e contraditórias, e urge, consequentemente, o estabelecimento de uma conceituação adequada e de correspondente conteúdo científico com a infração que se pretende punir. Assim, numa eventual reforma constitucional (já aventada para atenuar a crise política hoje instaurada), talvez fosse aconselhável levar em consideração os ensinamentos dos doutos, para, aperfeiçoando-se o regime presidencialista, afastar o ceticismo do ministro Sepúlveda, aprimorando-se o instituto do impeachment para servir de mecanismo democrático capaz de solucionar as crises institucionais do presidencialismo. 2) Todavia, enquanto não se concretize essa potencial modificação legislativa, pensamos que a interpretação a ser dada pelo Senado Federal, como órgão julgador primário do impeachment, deva observar as seguintes lições interpretativas. A interpretação do direito é comumente apresentada ou descrita, afirma o ministro Eros Grau, como atividade de mera compreensão do significado da norma jurídica. Interpretar é identificar ou determinar (compreender) o significado de algo, no caso, compreender o significado da norma jurídica. Observe-se que não deve haver discricionariedade judicial, pois todo intérprete deveria estar sempre vinculado aos textos normativos. Todavia, na interpretação dos textos, dá-se algo análogo ao que se passa numa interpretação musical. Não há uma única interpretação correta da Sexta Sinfonia de Beethoven: a partitura é a mesma, mas a Pastoral regida por Toscanini, com a Sinfônica de Milão, é diferente da Pastoral regida por Von Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 81 Karajan, com a Filarmônica de Berlim. Não obstante uma seja mais romântica, mais derramada, a outra mais longilínea, as duas são autênticas e corretas (Eros Grau, “O novo velho tema da interpretação do direito”, Rev. Jurídica de Seguros, 2014). Todavia, não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa nenhum significado normativo. A finalidade, na verdade, é a criadora de todo o direito, e não existe norma ou instituto jurídico que não deva sua origem a uma finalidade. A decisão judicial considera e é determinada, entre outros fatores, pelas palavras da lei; pelos antecedentes judiciais; pela figura delituosa que se imputa; pelas convicções do próprio juiz; pelas expectativas de justiça nutridas pela consciência da sociedade. O juiz (ou o julgador) decide sempre dentro de uma situação histórica determinada, participando da consciência social de seu tempo, considerando o direito todo e não apenas um determinado texto normativo. Por isso, sustenta-se que o direito é contemporâneo à realidade. O instituto do impeachment, induvidosamente, há de ser interpretado dentro desses conceitos e nesses parâmetros. Ele foi instituído para, sem dúvida alguma, sancionar, no regime presidencialista, o agente público que tenha praticado uma infração “político-administrativa”. Não requer a prática de um “crime” ou um ato individual subjetivo taxado na lei. Reafirme-se, com Hely Lopes Meireles (Ed. Rev. Tribunais, 1964) que estamos, na verdade, diante de responsabilidade político-administrativa, “que é a que resulta de violação de deveres funcionais por 82 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 parte de agentes políticos investidos nos altos postos de governo, seja federal, estadual ou municipal”. Essas infrações, impropriamente denominadas “crimes de responsabilidade”, são punidas com a perda do cargo e a inabilitação temporária para o desempenho de função pública, apuradas através de um processo especial de natureza político-administrativo-disciplinar, ao qual se dá o nome de impeachment. E a decisão do Senado é incontrastável, irrecorrível, irreversível, irrevogável, definitiva, só cabendo recurso ao Supremo por ilegalidades ou vícios de procedimento (vejam-se os Mandados de Segurança no 21.564 e no 20.941, do STF). Observe-se, mais uma vez, que a infração político-administrativa impropriamente denominada, no texto constitucional e nas leis que se lhe seguiram, “crimes de responsabilidade” não se confunde também com o chamado crime funcional, embora possa derivar do mesmo fato delituoso. Registre-se, nessa linha de entendimento, que a Constituição, em seu art. 37, estabeleceu parâmetros para as expectativas de justiça da sociedade, determinando que a administração pública brasileira, seja direta ou indireta, em todos os níveis e em quaisquer dos poderes, obedeça aos princípios de “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, além de outros regramentos explicitados nos incisos I a XXII do referido artigo”. Ora: I) A “mentira” desde o caso do presidente Bill Clinton (1993/2001), sempre foi considerada uma imoralidade, e, por pouco – mínima maioria –, o presidente americano não sofreu o impeachment; e a nossa presidente mentiu seguidamente sobre questões relevantes da administração. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 83 II) O descumprimento de regras orçamentárias – as chamadas “pedaladas” – é uma manifestação evidente de violação do princípio da legalidade. III) A omissão, a negligência, a imprudência e a imperícia, corriqueiras na administração direta e indireta, agridem o princípio da eficiência. IV) A improbidade administrativa que grassa nos diversos setores e órgãos da administração, como aflorado em ações judiciais, violenta os princípios da legalidade, da moralidade e da eficiência. V) A falta de autoridade e de credibilidade da presidente afeta a eficiência da administração. VI) O desatino administrativo em segurar, artificialmente, os preços dos combustíveis e da eletricidade com objetivos eleitorais é ato temerário a violar todas as regras de uma gestão administrativa eficiente, ferindo direitos políticos individuais e sociais; isso é um caso de evidente improbidade. VII) Os artifícios contábeis; aumento descontrolado dos gastos públicos, ultrapassando a receita; a criação injustificada de órgãos e ministérios apenas por critérios políticos; o número despropositado de cargos de confiança, para satisfazer correntes partidárias; as nomeações de servidores tão somente por interesses ou “achegos” políticos; o desdobramento de sindicatos sem qualquer critério técnico e apenas para atendimentos políticos, etc. VIII) A imoralidade que, como afirma o ministro Célio Borja, grassa em setores da administração pública, como na Petrobras, Eletrobras, Correios, Sistema Nuclear, etc., são “fatos” que justificam o impeachment. IX) Na verdade, todo ato que revela a incapacidade do agente para a função pública indica ou recomenda o seu afastamento do cargo. 84 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 Todos esses exemplos evidenciam manifestas infrações político-administrativas que, espera-se, sejam reconhecidas pelo Senado Federal, nos termos do art. 85 da Constituição Federal, após a acusação ter sido admitida por dois terços da Câmara dos Deputados (513 deputados). Para ocorrer o impeachment, não há a necessidade de se caracterizar um ato jurídico específico ou “crime” individual. Dentro desses parâmetros interpretativos, data venia, fica afastada a sustentação do ínclito ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no sentido de que “não há base jurídica para o impeachment da presidente Dilma” (entrevista dada à jornalista Miriam Leitão, em 6/11/2015). Com todo respeito às opiniões em contrário, temos de admitir que existem inúmeros “fatos jurídicos” e políticos para embasar o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Palestra pronunciada em 24 de novembro de 2015 Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 52-85, dez. 2015 85 Síntese da Conjuntura Conjuntura econômica Ernane Galvêas Ex-Ministro da Fazenda. A conjuntura político-econômica O ano de 2015 foi um desastre, tanto do ponto de vista econômico, quanto do político. A economia afundou com a queda de 3,6% do PIB, por razões diversas, inclusive pelo desentrosamento político e os desacertos nas relações do Executivo com o Congresso Nacional. A crise tomou um vulto impressionante, que abrange praticamente todos os seguimentos da Federação. Municípios e Estados estão sem liquidez, atrasando os compromissos com o funcionalismo, a saúde e a educação. Ainda por cima, ocorreram duas calamidades imprevistas: o derrame da lama de minério da Samarco, em Minas Gerais, e a epidemia do zika vírus, de proporções alarmantes. A crise fiscal chega ao ponto extremo de não ter o governo um mínimo de recursos para amortizar a dívida pública. Ao que indica, em 2016, como em 2015, o déficit nominal atingirá cerca de R$ 500 86 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 bilhões, elevando a dívida a cerca de R$ 4 trilhões em 2015 (66% do PIB), com previsão mais catastrófica ainda em 2016. Não há consciência política para adoção das providências mínimas para iniciar o processo de ajuste fiscal. O quadro mais competente do governo, o ministro da Fazenda Joaquim Levy foi incompreendido e levianamente sacrificado. A nova administração fazendária que começa com Nelson Barbosa vai, possivelmente, enfrentar as mesmas dificuldades. Mas o novo ministro é experiente, dedicado e desfruta de maior confiança dos políticos. Tem condições para equacionar os problemas mais agudos, mas não certamente para solucioná-los. Remédio para a crise econômica Não é preciso ser doutor em economia para saber que em situação de recessão não deve haver inflação, pois não há excesso de consumo ou de investimento. Mas pode haver um caso atípico de estagflação, como já tem ocorrido, em que existe inflação mesmo com queda das atividades econômicas. A estagflação é uma tragédia econômica. Os inúmeros erros da política econômica nos últimos anos culminaram com a forte queda de 3,5% do PIB nacional em 2015, ao lado de uma persistente inflação anual de cerca de 10%. Uma típica situação de estagflação. Como sair desse “buraco”? A nosso ver, um primeiro passo – o mais fácil – teria que ser na direção da redução dos juros, a começar por uma queda da taxa Selic dos 14,25% atuais para algo em torno de 10% ou 12%. Essa decisão poderia produzir três efeitos imediatos e positivos: 1) aliviaria o déficit fiscal do governo, criando oportunidades para investimentos Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 87 em infraestrutura; 2) baixaria os custos da produção privada, com aumento do emprego da mão de obra e melhoria da competitividade das exportações brasileiras; e 3) reduziria os ganhos em títulos públicos dos investidores estrangeiros, que sairiam do país pressionando a desvalorização da taxa de câmbio. Em paralelo, a redução dos juros melhoraria a percepção de risco dos investidores, reduziria o nível de incertezas e favoreceria o curso das atividades econômicas. Em sentido contrário – e inexplicável – alguns diretores do Banco Central insistem na esdrúxula proposta de seguir elevando a Selic. Círculo vicioso O governo, abrangendo toda a Federação – União, Estados e Municípios – vem praticando, de longa data, uma política suicida, que chegou, nos dias atuais, a um impressionante e insustentável desequilíbrio fiscal, expresso em colossal endividamento. O déficit primário do governo, inclusive as “pedaladas”, está estimado em R$ 119 bilhões em 2015. Acrescido dos altos juros Selic que pesam sobre a dívida, chegamos a um nível insustentável da dívida pública de cerca de R$ 4 trilhões, 70% do PIB. Para enfrentar essa calamidade fiscal, o governo está planejando economizar 0,7% do PIB (R$ 48 bilhões) na execução orçamentária de 2016, com o que acredita-se que a dívida pública vai caminhando para 80% do PIB. As medidas de ajuste até aqui propostas ao Congresso Nacional não encontram respostas. Pelo contrário, a programação do ajuste fiscal – de Joaquim Levy – vem sendo desdenhada pelo meio político, criando-se uma situação de incertezas e insegurança jurídica 88 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 que agrava a precária situação econômica. Está criado, assim, um incontornável círculo vicioso, em que a política pressiona negativamente a economia e vice-versa, sem que se possa visualizar o fim da crise. Os três mosqueteiros Em meio à enorme confusão e sério desentendimento entre o Legislativo e o Executivo, responsável pela atual crise política e parlamentar, a pior crise econômica dos últimos 25 anos, é importante registrar a opinião dos três timoneiros da política econômica da presidente Dilma. Segundo o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, “a fase mais crítica da recessão está passando” e temos que ter as bases para um novo ciclo de crescimento. Nos três últimos meses do ano, a economia deverá se estabilizar. Os primeiros sinais de vida vieram da recuperação do saldo comercial. A segunda etapa será a expansão dos investimentos (Valor – 2/9/15). Um pouco mais modesto, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, diz que o momento é de volatilidade, mas os danos não serão permanentes, pois o governo brasileiro tem implementado medidas que estão consertando erros passados e promovendo uma reforma estrutural. O Brasil está preparado para enfrentar a onda de mau humor nos mercados globais (referindo-se à China). Se este caminho for mantido, o Brasil será vencedor neste mundo em transformação e voltará a crescer. Estamos preparados, estamos ajustando a economia para uma nova realidade (O Globo – 25/8/15). Na contramão dos acontecimentos, encontra-se o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, e alguns de seus diretores, que obsessivamente, insistem na elevação dos juros (Selic) em 2016. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 89 Segundo um de seus diretores, faz-se necessário uma “ação contundente e tempestiva contra a inflação”. Decididamente, essa não nos parece a melhor alternativa, pelos estragos que irá causar no difícil e desequilibrado quadro fiscal. Troca da guarda Efetivou-se, neste final de dezembro, a demissão do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e a nomeação de Nelson Barbosa, que deixa o Ministério do Planejamento para assumir a Fazenda. Sai o ortodoxo e entra o desenvolvimentista. Em verdade, essa troca da guarda já havia sido processada três meses antes, quando a presidente Dilma enviou ao Congresso Nacional a proposta de Orçamento para 2016, com um déficit de R$ 30,5 bilhões. Joaquim Levy “engoliu esse sapo” e passou a defender um pífio superávit primário de 0,7%, equivalente a R$ 43 bilhões, como ponto de partida para pagar um mínimo dos juros de R$ 500 bilhões e, em algum tempo, alcançar um equilíbrio fiscal capaz de evitar o desastre de uma dívida pública incontrolável. Gastando sistematicamente mais do que arrecada, o governo vai fechar o ano de 2015 com mais um déficit nominal de R$ 550 bilhões, decorrente do ônus de cerca de R$ 500 bilhões dos juros sobre a dívida, que caminha para cerca de impagáveis R$ 4 trilhões (70% do PIB). O heroísmo de Joaquim Levy em pretender derrubar essa montanha com seus 0,7% do PIB, evidentemente não sonhava em promover o equilíbrio fiscal, mas, ao que tudo indica, frear a insensata proposta de superar essas dificuldades com a ampliação dos gastos para a retomada do crescimento econômico. 90 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 A nosso ver, o sentido da troca de Levy por Barbosa é esse: Levy desejava antes o equilíbrio fiscal para chegar depois ao sonhado crescimento econômico; Barbosa afirmou que o foco de sua gestão será também o ajuste fiscal, mas é bem possível que os políticos queiram inverter o jogo e pretender chegar ao equilíbrio fiscal através da manutenção e até ampliação dos gastos públicos. De todos os modos, foi lamentável a saída de Levy, embora reconhecendo que ele nunca teve o necessário apoio político para realizar sua missão. Fora condenado desde o primeiro momento de sua nomeação. Está aberta a nova temporada em busca da reparação dos erros do passado. Oxalá não se trate de corrigir esses erros com novos erros. Vamos dar um voto de confiança a Nelson Barbosa. Diga-se, a bem da verdade, que na atual conjuntura de recessão e de crise, discutir se o superávit primário deve ser de 0,7% ou 0,5% é pura perda de tempo. Uma piada. A pedra no sapato da política fiscal é o Banco Central e sua obsessão com taxas de juros altas. Se Barbosa não convencer o Tombini, o déficit fiscal só tende a agravar. Sinais positivos: a administração Nelson Barbosa vai se beneficiar dos muitos projetos que estão sendo lançados no setor hidrelétrico, nas concessões portuárias, estradas de rodagens e ferrovias. A Usina de Belo Monte, com 11.233 MW, entra em operação em fevereiro. A partir daí, a execução do programa fiscal continuará na dependência do comportamento errático do Congresso Nacional. E então, Barbosa terá que ser tão ortodoxo quanto Levy. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 91 Atividades econômicas A crise política e econômica vai entrar de férias em janeiro, mas não vai sair de dentro de nossas casas. Redução das atividades econômicas, desemprego e inflação vão continuar convivendo com o clima de incertezas e a crise de confiança que afastam os investidores nacionais e estrangeiros. O ano 2015 foi desastroso e 2016 não promete ser muito diferente. E até pior. Enquanto durarem as discussões sobre a cassação de Eduardo Cunha e o impeachment da presidente Dilma, vai ser difícil o entendimento entre o Executivo e o Legislativo. Sobrepaira essa conjuntura, a atuação do Judiciário, na escalada dos inquéritos policiais e prisão dos responsáveis pela onda de corrupção na administração pública. O Brasil passa por uma fase de desagregação e desmoralização que ninguém sabe quando irá terminar. Importante teste vão ser as eleições municipais, em outubro do próximo ano. A escolha de novos políticos, não comprometidos com a “sujeira” atual, pode representar uma reversão no sentido da moralização. Indústria A produção industrial até outubro registrou queda de 7,8%, em 12 das 15 regiões investigadas; em outubro, ante outubro/2014, encolheu 11,7%. A Petrobras, líder das indústrias brasileiras, está atravessando uma séria conjuntura, com forte redução de seus planos de investimentos e acentuada queda de valor no mercado, arrastando muitas outras grandes empresas da construção civil e do setor naval. A produção da 92 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 empresa, no Brasil e no exterior, ficou em 2,71 milhões de b/d, 1,8% inferior à de outubro. A queda dos preços internacionais do petróleo está pondo em risco a viabilidade de novos investimentos no Pré-Sal. Outro setor em dificuldades é o da construção civil, com queda de 8% da produção em 2015 (Sinduscon) e o da siderurgia, com destaque para a CSN, que vai reduzir a produção em 30% e demitir 3 mil empregados. Comércio Segundo a Serasa, o comércio varejista teve o pior Natal em 12 anos. Para o ano de 2015, a CNC estima uma queda de 4,1% e para 2016, queda de 3,7%. Para o varejo ampliado, quedas de 7,5% e 5,8%, respectivamente. Os shoppings centers registraram quedas de 3,8% no ano, com destaque de -5,8% em vestuários e -2% para produtos eletrônicos (Alshop). Os supermercados tiveram queda real de 7,13%, em novembro, acumulando no ano -1,6%. Em outubro, as vendas do varejo tiveram uma ligeira alta de 0,6%, em relação a setembro, puxado por alimentos e bebidas, mas caíram 5,6% em relação a outubro/2014. O setor serviços teve retração de 5,8% em outubro (IBGE/CNC). O nível de famílias endividadas superou 61%, sendo de 23,2% o percentual com contas em atraso. A intenção de consumo (ICF) ficou estável em dezembro, depois de dez quedas consecutivas e o índice de confiança (ICC) teve queda de 22,8%. A Walmart pretende fechar 30 lojas no Brasil. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 93 Agricultura A produção de soja em grãos chegou a 53 mil toneladas em 2015 e promete chegar a 53,8 mil em 2016. Mas as chuvas irregulares atrasam o plantio nos estados do Matopiba. Em dezembro, caíram as cotações internacionais do café, do cacau, do algodão e da soja, mas nas duas últimas semanas houve ligeira alta em todas essas commodities. Sobe a 38 o número de municípios do Rio Grande do Sul e a 20 no Mato Grosso do Sul, atingidos pela chuva, o que certamente vai prejudicar parcialmente a produção agrícola. Mercado de Trabalho Segundo o Caged/MTE, em novembro foram fechados 130.629 vagas, acumulando no ano saldo negativo de 1.527.463 postos (-3,66%). O comércio foi o único setor que abriu emprego em novembro (+52.592). A indústria paulista desempregou 180 mil. No setor serviços, houve queda de 3,1%. Segundo o Dieese, o desemprego na região metropolitana de São Paulo teve ligeira queda. O salário-mínimo subiu para R$ 880,00 (+11,6%) e deverá representar um aumento de R$ 51,5 bilhões na renda dos trabalhadores. O setor naval cortou 14 mil vagas em 2015. Em consequência da crise na mineração, a Anglo-Americana vai demitir 85 mil trabalhadores, no mundo. 94 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 Setor Financeiro A expansão do crédito em novembro foi de apenas 0,2%, acumulando, em 12 meses, alta de 7,4% (abaixo da inflação). A expansão com recursos livres nos bancos privados foi de 4,1% e com recursos direcionados dos bancos públicos chegou a 11,2%. O crédito para agropecuária subiu 11,3%, indústria +5,9%, comércio -0,2% e serviços +7,3%. A inadimplência no mercado financeiro subiu de 5,0% em outubro para 5,2% em novembro. A devolução de cheques sem fundos, em novembro, foi de 2,61%, ante 2,2% em outubro. Diante da crise, o Banco Central reduziu os depósitos compulsórios dos bancos de pequeno porte e está remanejando recursos do compulsório sobre as cadernetas de poupança para financiamento de obras de infraestrutura (?). Inflação Segundo o Relatório de Inflação do Banco Central, a inflação do IPCA deverá fechar o ano em 10,8%. A prévia do IPCA-15 registrou alta de 1,18% em dezembro e 10,7% no ano. O IGP-M/FGV subiu 0,49% em dezembro, ante 1,52% em novembro, acumulando avanço anual de 10,54%. O fator preponderante na inflação de 2015 foi a alta de preços dos alimentos. Os custos da educação subiram 9,5% com expectativa de alta de 12% em 2016. O fenômeno El Niño deverá produzir aumento dos preços agrícolas. Em novembro, o preço da batata inglesa subiu 67% no atacado e o grupo hortaliças e verduras 21,6%. No geral, os alimentos in natura subiram 14,8% no atacado. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 95 Setor Público O mês de novembro fechou com déficit nominal de R$ 43,1 bilhões, resultado do déficit primário de R$ 19,6 bilhões e juros de R$ 23,5 bilhões. No acumulado de 12 meses, temos, respectivamente, R$ 52,4 bilhões, R$ 496,6 bilhões, chegando ao déficit nominal de R$ 549,3 bilhões (!?). Caso o governo venha a quitar o déficit das pedaladas de R$ 57 bilhões, o déficit primário vai chegar a R$ 120 bilhões. A dívida bruta subiu a R$ 3,845 bilhões (65,1% do PIB), com acréscimo de R$ 592,3 bilhões ante dezembro/2014. Incrível. A revisão da meta fiscal para R$ 30,5 bilhões ou 0,5% do PIB, no Orçamento de 2016, foi aprovada pelo Congresso Nacional. O governo está procurando acelerar as obras de infraestrutura e, para tanto, aceitará a taxa de retorno de 9,83 nos novos investimentos. Triste notícia: o governo fecha 2015 com avanço praticamente nulo na área de logística. De todas as concessões de rodovias, portos e aeroportos previstas, apenas uma, no Porto de Santos, foi implementada. Setor Externo A balança comercial brasileira obteve superávit de US$ 2,0 bilhões na quarta semana de dezembro, acumulando no ano US$ 188,9 de exportações e US$ 170,2 de importações. De janeiro a novembro, o saldo negativo de Transações Correntes ficou em US$ 56,4 bilhões, pouco mais da metade do resultado em 2014. O peso da remessa de rendas ficou em US$ 35,9 bilhões, sendo US$ 19,4 bilhões de juros e US$ 16,8 bilhões de lucros e dividendos, de serviços em US$ 34,5 bilhões, inclusive US$ 10,9 bilhões de viagens, US$ 5,5 bilhões de transportes e 96 C a r t a Men sa l • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 US$ 19,4 bilhões de royalties. Na conta financeira registrou-se o ingresso de US$ 54,3 bilhões, pouco mais da metade de 2014. No cenário internacional, registra-se crescimento quase nulo do comércio global e queda nos preços das matérias-primas. Nos Estados Unidos, o PIB cresceu 2% no terceiro trimestre. Aguarda-se o impacto na área financeira mundial, a partir da elevação dos juros entre 0,25% e 0,50%. Na Europa, vive-se o drama social das migrações de refugiados, que pode chegar a um milhão. Em 2015, foram cerca de 890 mil. A economia italiana estima crescimento de 0,8% no ano. A União Europeia está revelando menor interesse no acordo com o Mercosul. Na China, espera-se um crescimento de 6,8% em 2016. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 729, p. 86-97, dez. 2015 97 Saudade Amaury Temporal Membro do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo desde 1991 até 2015 Um dos aspectos mais destacados da personalidade de Amaury Temporal era sua capacidade de agregação, desde os tempos do Colégio Santo Antonio Maria Zacarias, desenvolvido mais tarde no convívio da família e nas relações de seus inúmeros amigos, que conquistava com enorme facilidade e simpatia. Grande conversador, nos cafés da manhã e almoços regulares, Amaury abordava com conhecimento e elegância os temas mais destacados de sua cultura, que iam dos escritos de Shakespeare até Millôr Fernandes, de Aristóteles e Platão até os filósofos modernos, além da música, com preferência para Haydn, que o acompanhava no radinho de pilha, nas caminhadas matinais pelas praias de Ipanema e Leblon. Lugar central de sua vida foi ocupado pelos charutos, pelos bons vinhos e pela boa mesa. Era em torno dela que, generosamente, recebia os amigos. Cozinheiro criativo, tinha um especial nez du vin, atributo este que lhe permitiu certa vez em Tóquio reconhecer em um blind test a região de procedência e a década em que havia sido produzido um grande Bordeaux. Presidiu a Associação Comercial do Brasil e por 20 anos dirigiu o Centro Internacional de Negócios da Firjan. Fez mais de 400 palestras no Brasil e no exterior e publicou mais de 700 artigos e papers. Entre seus livros destacam-se Liberdade Sempre, coletânea de artigos políticos, e três sobre uma de suas paixões, o vinho: De vinhos e rosas, Bom tempo na França e Como um rei na França. Suas inúmeras condecorações – da Ordem do Rio Branco, da Ordem do Mérito de Portugal, da Ordem do Império Britânico e a da Ordre National de Mérite da França – retratam a vida pública desse homem dedicado em toda a sua vida a agregar espíritos e nações. 2 0 14-2 0 1 8 Presidente Antonio Oliveira Santos Vice-Presidente Administrativo Darci Piana Diretores-Secretários 2o Bruno Breithaupt 3o Wilton Malta de Almeida Vice-Presidentes 1o Josias Silva de Albuquerque 2o José Evaristo dos Santos 3o Laércio José de Oliveira Abram Abe Szajman Adelmir Araújo Santana Carlos de Souza Andrade José Marconi Medeiros de Souza José Roberto Tadros Lázaro Luiz Gonzaga Luiz Carlos Bohn Luiz Gastão Bittencourt da Silva Vice-Presidente Financeiro Luiz Gil Siuffo Pereira Diretores Tesoureiros 2o Marco Aurélio Sprovieri Rodrigues 3o José Lino Sepulcri Diretores Itelvino Pisoni José Arteiro da Silva Leandro Domingos Teixeira Pinto Marcelo Fernandes de Queiroz Paulo Sérgio Ribeiro Pedro José Maria Fernandes Wähmann Raniery Araújo Coelho Sebastião de Oliveira Campos Diretores Aldo Carlos de Moura Gonçalves Alexandre Sampaio de Abreu Antonio Airton Oliveira Dias Carlos Fernando Amaral Daniel Mansano Edison Ferreira de Araújo Eliezir Viterbino da Silva Euclydes Carli Francisco Valdeci de Sousa Cavalcante Conselho Fiscal Domingos Tavares de Souza José Aparecido da Costa Freire Valdemir Alves do Nascimento Suplentes da Diretoria Abel Gomes da Rocha Filho Aderson Santos da Frota Alex de Oliveira da Costa André Luiz Roncatto Antonio Lopes da Trindade Ari Faria Bittencourt Armando Vergílio dos Santos Junior Carlos Marx Tonini Célio Spagnoli Diocesmar Felipe de Faria Edgar Segato Neto Expedito Edilson Mota Borges Fernando Flávio Madruga de Oliveira Lima Francisco Maia Farias Hugo de Carvalho Isabel Cristina Vidal Ineu Ivo Dall'acqua Júnior Jeferson Furlan Nazario João Elvécio Faé José Gilton Pereira Lima José Marcos de Andrade Ladislao Pedroso Monte Liliana Ribas Tavarnaro Lúcio Emílio de Faria Júnior Luso Soares da Costa Manoel Jorge Vieira Colares Marcio Olívio Fernandes da Costa Miguel Setembrino Emery de Carvalho Mitri Moufarrege Paulo Miranda Soares Rubens Torres Medrano Rudi Marcos Maggioni Valdir Pietrobon Zildo de Marchi Suplentes do Conselho Fiscal Ademir dos Santos Marcelino Ramos Araújo Odair de Jesus Conceição Eletricidade no Brasil Olga Côrtes Rabelo Leão Simbalista Dezembro 2015 Zonas de comércio, zonas monetárias e o caso da Grécia: lições da teoria econômica Rubem de Freitas Novaes Considerações sobre o impeachment Marcus Faver Número 729 Síntese da Conjuntura Conjuntura econômica Ernane Galvêas Dezembro 2015 729