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A degeneração do homem e sua reconquista política em Rousseau
Marco Antonio Loschiavo Leme de Barros*
Mario Thadeu Leme de Barros Filho†
O que está proposto no encaminhamento final do Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens – conhecido como Segundo Discurso –
de Jean-Jacques Rousseau é o início da reflexão sobre a liberdade do homem civil,
debate desdobrado no Contrato Social. Desvendar o começo dessa reflexão é justamente
compreender o problema central que enseja toda a obra política de Rousseau. Afinal,
qual seria a origem da desigualdade entre os homens? Como superá-la?
O esforço do filósofo se concentra no exame dos fundamentos dessa
desigualdade, observada nas sociedades políticas. Não se trata de investigar uma
desigualdade definida pelos traços da natureza, nos termos da diferença de idade, força,
ou qualidades da alma, mas de percorrer os caminhos da desigualdade estabelecida pela
opulência e pela miséria, ou, como o próprio filósofo expressa na obra:
(...) a que pode chamar desigualdade moral ou política, por
depender de uma espécie de convenção e ser estabelecida, ou pelo
menos autorizada, pelo consentimento dos homens. Esta consiste
nos diferentes privilégios que alguns usufruem em prejuízo dos
outros, como serem mais ricos, mais reverenciados e mais
poderosos do que eles, ou mesmo em se fazerem obedecer por
eles (ROUSSEAU, 1999, p. 159).
Ao esclarecer o problema, Rousseau confirma que a desigualdade retratada
coincide com o próprio movimento da degeneração do homem no transcorrer de sua
história. É a partir dessa dinâmica que, ao mesmo tempo, traça a gênese do progresso da
sociedade e explica a sua degeneração, que vai permitir Rousseau desenvolver o
importante conceito de ação política. O que está em questão é a problemática que
*
Mestrando em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio
Vargas. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Filosofia
pela Universidade de São Paulo.
†
Mestre em Direito Internacional e Doutorando em Direito Constitucional, ambos pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela mesma Universidade. Professor
universitário.
1
emerge a partir da exposição do duplo caráter1 que acompanha a idéia de progresso em
Rousseau, a saber, a relação paradoxal entre progresso técnico-intelectual e degeneração
moral.
O propósito do presente artigo é analisar, a partir do modelo dicotômico entre
estado de natureza e sociedade civil, a passagem entre as obras Discurso e o Contrato
social. A análise possibilitará uma reconstituição da trajetória do declínio do homem,
por meio da exposição dos respectivos estágios do processo da degradação do ser
humano, ao mesmo tempo em que permite verificar como a reconquista é possível ao
conservar a liberdade originária na sociedade civil – em outras palavras, na maior
aproximação com a vida no estado de natureza.
Deve-se tomar cuidado, pois, apesar de operar em termos dicotômicos, Rousseau
não sustenta que o estado de natureza é preferível à sociedade civil. Trata-se apenas de
um recurso analítico. A tese de Rousseau de que o homem é por natureza bom já é
conhecida por seus fundamentos etnológicos2, porém a ideia de retorno é mera quimera.
O que é apresentado aos leitores é a reconquista do homem bom, livre e feliz na
sociedade civil, por meio da ação política.
I.
A teoria histórica da sociedade degenerada
A primeira parte do Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens
marca o esforço do filósofo em estabelecer o paradigma referencial da obra: o estado de
natureza. Assim, a preocupação inicial é investigar o ponto de partida originário da
humanidade, para conseguir, posteriormente, realizar o exame da sociedade civil.
Para tanto, Rousseau buscará no homem, em sua condição natural, o arquétipo
real desprovido de qualquer artificialidade. O exame do filósofo não é propriamente
uma descrição de um estado primitivo, historicamente demonstrável, onde são
atribuídas erroneamente as características do homem civil ao homem no seu estado
natural, mas ao contrário é estabelecer um hipotético estado natural:
[c]omecemos, pois, por descartar todos os fatos, pois eles não se
prendem à questão. Não se devem tomar as pesquisas que se
podem realizar sobre esse assunto por verdades históricas, mas
somente
por
raciocínios
hipotéticos
e
condicionais
(...)
(ROUSSEAU, 1989, p.161)
2
O verdadeiro estado originário é apresentado por meio do retrato da vida
pacífica e feliz de um homem robusto, vigoroso, submetido somente às necessidades
elementares em um meio caracterizado a partir da uniformidade e da abundância
natural. Esse é o estado de natureza de Rousseau, um estado de equilíbrio entre os
homens, que pressupõe uma situação de suficiência perfeita, onde os sujeitos não
necessitam transformar o mundo para poder satisfazer suas necessidades.
A vida no estado de natureza é solitária, marcada pela ausência total de qualquer
formação societária e de qualquer indício de sociabilidade3. Independente e isolado, o
homem é o próprio instrumento de sua conservação, com suas forças físicas é capaz de
carregar consigo mesmo a sua vida inteira.
Conforme os termos da definição do homem no estado de natureza, é possível
perceber que esse homem se delimita como um ser de capacidade quase infinita, ou seja,
não existiria nenhum obstáculo natural capaz de impedir o seu pleno desenvolvimento.
O homem é o sujeito capaz da perfectibilidade4. Mas, afinal, por que o homem é
naturalmente bom no estado de natureza? Não seria uma possibilidade, ante a
falibilidade da faculdade da perfectibilidade, de encaminhar-se para uma degradação no
próprio estado de natureza?
Rousseau afasta essa hipótese ao analisar o homem natural na sua perspectiva
moral. A consideração parte da análise do instinto natural do ser vivo pela
autoconservação e isso significa que a espécie busca incessantemente aquilo que lhe é
essencial para a manutenção da vida (e rejeita o que lhe for prejudicial) – é o que se
desdobra nos conceito de amor de si e de piedade natural ou compaixão. O homem é
naturalmente bom porque ele é naturalmente inclinado a tal sentimento, luta pela
conservação da espécie como um todo.
Em suma, a lei natural não autoriza a desigualdade entre os homens. Não há
espaço para o desenvolvimento de vícios e virtudes num estado de natureza fechado e ahistórico, como o próprio autor afirma:
[d]epois de haver mostrado que a perfectibilidade, as virtudes
sociais e as outras faculdades que o homem natural recebera
potencialmente nunca poderiam desenvolver-se por si sós, que
para tanto necessitavam do concurso fortuito de várias causas
estranhas, que poderiam jamais nascer, e sem as quais ele teria
permanecido eternamente em sua condição primitiva, resta-me
considerar e relacionar os diferentes acasos que puderam
3
aperfeiçoar a razão humana ao deteriorar a espécie, tornar mau
um ser ao torná-lo sociável e, de uma época tão recuada, trazer
afinal o homem e o mundo ao ponto em que vemos
(ROUSSEAU, 1999, p. 200).
Ao contrário da primeira parte, a segunda parte do Discurso é dinâmica e
estabelece a origem da desigualdade entre os homens. Ao introduzir o movimento do
processo de transformação constata-se que o homem afasta-se de sua condição
originária, já é o homem civilizado, um ser desnaturado, opondo-se ao mundo a seu
arredor e a ele próprio enquanto produto de si mesmo. É essa a crítica que o texto
analisado carrega consigo, afinal, “[o] eu do homem social não se reconhece mais em si
mesmo, mas se busca no exterior, entre as coisas; seus meios se tornam seu fim. O
homem inteiro se torna coisa, ou escravo das coisas (...)” (STAROBINSKI, 1991, p.
36).
Deve ser lembrado que Rousseau procura avaliar as causas e os efeitos dos fatos
para poder determinar as alterações ocorridas conforme uma ordem necessária de
acontecimentos. O ponto de partida da decadência será o estado de natureza histórico,
marcado pela perturbação do estado de equilíbrio. Novos obstáculos obrigarão os
homens a arranjar novas ferramentas e meios para superar as dificuldades impostas, por
isso será possível observar o desenvolvimento de uma espécie de reflexão maquinal,
bem como o início das primeiras associações livres tendo em vista a necessidade de
sobrevivência.
É a partir dos primeiros avanços do fazer instrumental e da reflexão que se
inicia, de maneira incipiente, um processo de individuação do sujeito. Rousseau indica
que a progressão acumulativa possibilitou uma série de revoluções técnicas
fundamentais que definiram para sempre o curso da humanidade.
A primeira revolução destacada na obra é a construção da cabana, marcada pela
instauração da célula familiar, sedentarização e o surgimento dos doces sentimentos e
das primeiras produções de subsistência de uma economia rudimentar. O próximo
movimento retratado é o momento de integração de tais bandos, a chamada juventude
do mundo – trata-se do momento caracterizado pela integração da vizinhança, unido por
costume e pelas primeiras regras de civilidade5.
Esse momento também marca o início da apreciação mútua entre os sujeitos. É a
comparação com os outros que reforçará a tese da transformação para a preferência por
4
si mesmo, ou seja, o processo de individuação se intensifica. É dizer, o primeiro olhar
para fora de si anunciava o processo de divisão entre o eu e outro, a partir desse
momento o homem social sempre viverá fora de si baseado na opinião externa. O
homem civilizado somente conseguirá chegar ao sentimento de sua própria existência
por meio do reconhecimento pelo outro, logo começam a surgir os primeiros indícios de
diferenciações – não atrelados propriamente às questões de desigualdade6, mas
relacionados às opiniões alheias.
O momento decisivo nessa obra de Rousseau, que configura por completo o
início da desigualdade entre os homens, será a instituição da propriedade a partir do
desenvolvimento do fazer técnico, respectivamente à agricultura (trigo) e à metalurgia
(ferro): “(...)[f]oram o ferro e o trigo que civilizaram os homens e perderam o gênero
humano” (ROUSSEAU, 1999, p. 213).
A partir desse estágio, a sociedade se deturpa, surge a divisão do trabalho e,
consequentemente, se instaura propriamente a diferença entre ricos e pobres. É o triunfo
da civilização que ao mesmo tempo estabelece a total dependência e a total repugnância
entre seus membros. Todos são subordinados aos seus semelhantes e, no entanto,
buscam a todo instante conquistar a glória ilusória, a satisfação do amor-próprio7. O
filósofo Ernst Cassirer (1999), comenta acerca do desvirtuamento da natureza humana:
[e]m toda parte apenas a ambição por uma felicidade que existe
simplesmente na aparência. Ninguém se importa mais com a
realidade, todos colocam a sua essência na aparência. Vivem
como escravos e bufões de seu amor-próprio não para viver, mas
para fazer os outros acreditarem que eles vivem (CASSIER, 1999,
p. 52).
É o começo da usurpação dos ricos contra os pobres, ou do banditismo dos
pobres contra os ricos, enfim, do desfreamento de todas as paixões. É essa a
combinação de todo o complexo de desigualdades naturais e morais que determinará a
vida na civilização. As regras habituais de justiça não conseguem mais organizar e
estabelecer a concórdia, ao contrário, acabam afirmando o poder do dominador sobre o
dominado. A situação é da dependência universal, um estado de guerra próximo da
descrição hobbesiana: a desconfiança se generaliza, concorrência e rivalidade.
De um lado, disputa de interesses e, do outro, a realização de desejos a qualquer
custo. A necessidade de um pacto como princípio da conservação de forças seria a
5
solução? O pacto de associação e, conseqüentemente, a custódia de uma autoridade
pública (pacto de governo) instituindo a sociedade civil seria suficiente?
A instituição de um governo legítimo sob a égide de um discurso fraudulento
cria a possibilidade da constituição de uma ordem social corrompida. Ao mesmo tempo,
legitima a manutenção da propriedade privada, transpõe o estado de guerra para outro
plano das relações entre os corpos políticos, fornece elementos para a intensificação das
desigualdades entre fortes e fracos e, sobretudo, cria a possibilidade da imposição do
poder arbitrário, instaurando uma relação de senhor e escravo. De tal forma que a
desigualdade se concretiza em todas as suas esferas de atuação na vida humana. Seria o
fim da história?
Ninguém é capaz de ser livre na sociedade civil, todos estão presos a um meio,
submetidos à dependência do próximo, bem como ao seu julgamento. O ser humano não
consegue mais viver a experiência do real, apenas aparenta viver. E, nesse sentido, o
percurso da degradação do conteúdo moral simultâneo ao progresso técnico da
civilização descrita por Rousseau chega ao seu ponto máximo.
II.
Da desordem à ordem: a relação entre força e direito
Diante do exposto, assegurar a ordem será o primeiro passo para a reconquista.
Rousseau já enuncia no início do primeiro capítulo do Contrato social: “... a ordem
social é um direito, que serve de base para todos os demais. Tal direito, entretanto, não
advém da natureza; funda-se, pois, em convenções” (ROUSSEAU, 2000, p. 09). A
preocupação inicial do filósofo nessa obra está delimitada: o direito instituído existe de
fato. Resta-nos saber em que medida compreender essa afirmação, bem como entender
qual seria o seu alcance no interior do desenvolvimento do primeiro livro. Para tanto,
necessário abordar a crítica rousseauísta ao fundamento da ordem civil nas obras de
Hugo Grotius e Thomas Hobbes, formulada no segundo capítulo, e, em um momento
posterior, compreender a relação da força a partir de dentro do direito, à luz do
problema da eficácia da norma jurídica8.
Antes de desenvolver a crítica de Rousseau em relação às filosofias baseadas na
legitimidade da força, é preciso esclarecer alguns pontos do Contrato social para a
melhor compreensão do tema. Afirmar que o direito instituído existe de fato significa
sustentar que o fundamento do direito em Rousseau está na força do pacto, capacidade
de obrigar os contraentes a cumprir o pactuado9.
6
Apenas quando um pacto é celebrado existirá espaço para a discussão do justo e
do injusto10. A natureza da justiça em do Contrato social reside em observar
integralmente o conteúdo consignado no pacto, no entanto, a validade dos pactos só tem
sua origem a partir da constituição de um poder civil suficiente para obrigar os
indivíduos a respeitá-los.
Todo o debate que Rousseau estabelece contrário às doutrinas que fundamentam
a ordem civil por meio da imposição de forças encontra sua limitação na convenção
entre os homens. Trata-se de negar a instituição do direito político a partir da força e
definir uma forma de associação que equilibre obediência e liberdade ou, em outros
termos, “defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada
associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e
permaneça tão livre quanto antes” (ROUSSEAU, 2000, p. 21).
A crítica de Rousseau se delineia especificamente em relação a Grotius e
Hobbes11. Para introduzir o alcance da discussão, Rousseau menciona o exemplo do
poder da paternidade como uma possibilidade do fundamento natural do poder político:
“(...) é a família, pois, o primeiro modelo das sociedades políticas, o chefe é a imagem
do pai, o povo a dos filhos, e todos, tendo nascido iguais e livres, só alienam sua
liberdade em proveito próprio” (ROUSSEAU, 2000, p. 10). É necessário ter cautela
para perceber a diferença entre o fundamento do poder familiar no âmbito privado das
relações de poder entre os integrantes da família e o poder político fruto de uma
convenção entre os indivíduos participantes da vida pública.
As regras de conduta de cada poder não coincidem entre si; a primeira diz
respeito ao domínio privado enquanto a segunda pertence ao domínio público.
Conforme Rousseau sustenta, uma possível confusão entre ambas é o resultado de
estabelecer o direito pelo fato e, desta forma, configura-se a oportunidade do poder de
mando do soberano corresponder à arbitrariedade do mais forte. Assim, o poder político
não precisa se identificar aos interesses da comunidade e, neste caso, conduz a uma
situação de poder sem direito, afinal a lei sempre será nessa hipótese o capricho do mais
forte12.
Rousseau retoma essas considerações no terceiro capítulo do Contrato social,
acerca do exame do direito do mais forte. É possível perceber que para o filósofo a força
é o resultado do ato de necessidade, trazendo consigo a obediência. Em contrapartida, o
direito é o resultado do ato de vontade de poderes legítimos, implicando em deveres. A
possibilidade da força se transformar em direito é totalmente afastada no interior do
7
Contrato social afinal, como anteriormente afirmado, trata-se de planos distintos: o
direito pertence ao plano moral-jurídico, operando efeitos jurídicos e a força é
pertencente tão somente ao plano natural. Isso não significa que o direito prevaleça
perante a força, ao contrário, Rousseau indica que em situações de prudência e ameaça a
força é suprema, porém mesmo diante de tais circunstâncias: “(...) a força não faz o
direito, e que só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos” (ROUSSEAU, 2000,
p.13).
A força não constitui direito, porque não lhe pertence e, por sua vez, não o
legitima. Porém, em que medida o direito necessita da força? Percebe-se até agora o
esforço de Rousseau em conciliar a difícil relação entre força e direito, obediência e
liberdade por meio do pacto social. No entanto, não pode perder de vista um outro
problema acerca da relação da força a partir do próprio direito (e não mais como a
relação anterior entre força e direito), a saber, o problema da eficácia do direito.
A dificuldade se encontra na própria aplicação da norma, trata-se do problema
da lei ser ou não ser socialmente observada pelos seus destinatários e, dessa forma, a
força é elemento indispensável para a norma jurídica. Será a sanção como meio
coercitivo que assegurará o cumprimento do mandamento expresso na lei. E, nesse
sentido, pode-se citar Salinas (1976):
[u]m povo deixa de ser disciplinável a partir do momento em que
a força do amor-próprio sobrepuja a força da consciência, a partir
do momento em que os homens já não amam senão a si mesmos.
As leis só podem ser eficazes fazendo-se respeitar pelo povo cujas
condições de vida elas regulam, se os indivíduos forem capazes
de amá-las (SALINAS, 1976, p. 115).
É possível constatar que determinadas leis já são seguidas pela totalidade dos
indivíduos – independente do direito – por pertencerem à força de consciência,
conforme mencionado, como o caso do amor dos indivíduos à ordem, aproximando do
amor de si no estado de natureza que conduzia o homem à conservação de sua espécie.
Contundo, não é possível excluir a outra possibilidade, aquelas situações que não são
seguidas exceto quando são executadas de maneira forçada (coação) – trata-se das
situações em que o triunfo do amor-próprio conduz à corrupção dos costumes do povo,
sendo necessária a medida da força da lei.
8
Nesse momento a investigação de Rousseau ganha considerável importância
uma vez que o controle social do poder passa a ser essência do direito, isso significa a
necessidade de haver controle social da produção normativa – a lei deve ser expressão
da sociedade para que um regime se caracterize como “de direito”.
Na perspectiva rousseauísta, nada será eficaz no direito se não captar a voz da
sociedade. O direito obrigatoriamente se encaminha para a satisfação das verdadeiras
demandas da sociedade em detrimento das vontades particulares. Mais uma vez vale
mencionar Salinas (1976):
[e]m uma palavra, para julgarmos da saúde de um povo não basta
referirmos-nos às leis que o organizam de uma determinada
forma, ao conteúdo particular da ordem estabelecida, mas à
eficácia ou não destas leis na sua relação com os costumes do
povo, à sua maior ou menor capacidade de se fazerem respeitadas,
ao vigor do laço social (SALINAS, 1976, p. 25).
III.
Poder soberano e trama institucional
A preocupação do debate político, após o estabelecimento de uma ordem, em
Rousseau, é saber como conservar a liberdade originária do homem compreendido
como um ser social e moral, ou seja, civilizado13. É sabido que não é possível retomar a
liberdade natural para estabelecer novos modelos. A força do indivíduo por si só
(equivalente ao do homem no estado de natureza) já não é mais um parâmetro seguro
para a sua construção teórica.
O triunfo do contratualismo rousseauísta se deve em grande medida à resolução
a partir de uma operação complexa (e antitética) de um dos grandes problemas da
filosofia política: associar a máxima liberdade com a máxima obediência. Ao afirmar
que “[c]ada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema
direção da vontade geral; e recebemos; coletivamente, cada membro como parte
indivisível do todo“ (ROUSSEAU, 2000, p.22), Rousseau inaugura uma teoria da
liberdade política a partir da sustentação de uma obrigação14.
Em que medida a questão da liberdade civil aparece na própria discussão da
legitimidade do poder político, tendo em vista seu caráter prescritivo? Ao se esclarecer
que a legitimidade do poder se resolve com a preservação da liberdade civil a partir do
pacto, é possível compreender com clareza a reflexão de Rousseau acerca da distinção
9
entre soberania e governo, bem como é possível visualizar a intricada relação entre
ambos ao determinar o sentido da ação política institucional no interior do Contrato
social.
Como visto, o contrato social só possibilita a constituição de um legítimo corpo
político detentor de poder na medida em que consegue preservar uma dupla exigência:
liberdade e obediência. A exigência apresentada se justifica porque mantém intacta uma
relação fundamental para a constituição do poder político, a saber, a relação entre o
particular e o coletivo com todas as garantias. Isso se revela na obra nos seguintes
termos: na qualidade de súdito, o indivíduo conserva a obediência às leis do Estado, e
enquanto cidadão garante a liberdade como partícipe da autoridade soberana.
É possível perceber que o conceito de liberdade mobilizado pelo filósofo não se
aproxima mais do livre impedimento para agir15, transporta-a para além da livre
constituição do indivíduo. O homem social é também livre na própria experiência
coletiva como partícipe do corpo político, assegurando uma vez por todas a própria
legitimidade do pacto.
Poderia ser questionado se, nesse momento, quando o indivíduo se entrega
totalmente ao corpo constituído, também se desfaz de sua liberdade ao se submeter a
uma ordem alheia. Para Rousseau essa questão é problematizada a partir do coletivo (e
não da perspectiva individual): ao se sujeitarem a um mesmo pacto todos podem
permanecer em iguais condições e alcançarem uma mesma liberdade?
O raciocínio antitético se destaca, pois ao se entregar ao todo do corpo político,
o indivíduo também se entrega a si mesmo. É uma questão de reconhecimento efetivada
com a reciprocidade das relações dos seus semelhantes do corpo social, possibilitando a
preservação da liberdade ao mesmo tempo em que o pacto se concretiza.
Trata-se de uma transformação muito bem destacada por Sérgio Cardoso (1975):
“[n]esse momento, o indivíduo se apresenta como que universalizado; sua própria
vontade particular assume a forma da vontade geral, pois, sua deliberação, ao visar
agora seu interesse, visa também o interesse da totalidade” (CARDOSO, 1975, p. 46). A
base do raciocínio está concentrada no conceito de vontade geral.
Não é possível considerar o pacto social e nem tampouco a entrega total de cada
um a todos sem a existência de um substrato comum a todas as vontades de cada
contratante capaz de uni-los. Conforme apresentado por Cardoso (1975) o
contratualismo rousseauniano tem por objeto necessariamente um interesse coletivo que
garante a associação entre os contratantes. Por isso a ambição do Contrato social não é
10
retomar a perspectiva particular do homem natural do Discurso, mas a reconquista por
meio da vida pública do homem civil.
De fato, Rousseau parte da vontade particular de cada indivíduo, atomizado na
vida pública para alcançar a generalidade da vontade. O ponto nodal da compreensão é
perceber a vontade geral como um fator unificador, possibilitando o reconhecimento de
todos: obrigo-me comigo mesmo e, ao mesmo tempo, com todos. Reitere-se, a situação
é reciprocidade e semelhança entre os contratantes.
O fundamento de toda essa articulação está na aproximação conduzida por
Rousseau entre a moralidade e os princípios políticos, como aponta Natália Maruyama
(2001): “[e]sses princípios (direito político), dados pela consciência moral, tornam-se
condição para que os indivíduos, não obstante seus interesses particulares, ajam de
acordo com valores comuns” (MARUYAMA, 2001, p. 37). Como é possível falar em
valores comuns? Ora, o ser originariamente isolado é agora o ser social.
Com efeito, o cidadão é dependente (e não mais auto-suficiente). Isso significa
que o sujeito não se desfez dos seus interesses particulares, mas tão somente os
direcionam para uma consciência moral pública comum suficiente para assegurá-lo num
equilíbrio razoável entre autonomia e dependência na sua vida social.
É determinante na leitura do Contrato social perceber o aspecto emocional
presente na esfera política. Trata-se de um laço comum pertencente à consciência moral
que possibilita verificar uma união dos indivíduos, como Salinas esclarece: “[a] união,
diferente do simples agregado, é de ordem afetiva pois nós queremos sempre aquilo que
querem aqueles que nós amamos” (SALINAS, 1975, p. 90). Com Rousseau, a discussão
política passa definitivamente pela dramaticidade do homem social. Toda a tentativa de
deliberação política se transforma também num translado emotivo de uma consciência
pública verdadeira.
Assim, o conceito de soberania em Rousseau deverá se depositar na própria
vontade do povo. O momento da associação instaura a autoridade soberana, contudo, é
apenas um momento de consubstanciação. A verdadeira significação da soberania
repousa na ideia de uma vontade geral entre os contratantes, conseqüência lógica do
próprio desenvolvimento dos desejos e necessidades do homem moral no desenrolar de
sua vida social, como Cardoso (1975) complementa: “O pacto social traz a marca da
necessidade, é o ato necessário do sujeito a fazer-se social” (CARDOSO, 1975, p. 90).
Postas tais considerações, Rousseau consegue caracterizar a soberania como
sendo inalienável, indivisível, inefável (se a vontade geral pode errar) e ilimitada
11
(absoluta). Tais caracterizações vão possibilitar que a doutrina rousseauniana ganhe
destaque, visto que proporcionam algumas revisões da tradição contratualista, por
exemplo,
ao
afirmar
inalienabilidade,
o
filósofo
afasta
o
princípio
da
representatividade16, ou quando o mesmo defende a soberania como indivisível também
afirma não haver espaço para uma teoria da separação dos poderes17. Ademais, ao
garantir a retidão da vontade geral percebe-se que não é possível cogitar que o povo
delibere contra si mesmo e, por sua vez, a vontade geral não pode se equivaler a uma
vontade da maioria, uma vez que não existe confusão entre conjunto de interesses
privados contrários e um genuíno interesse comum18.
Até o presente momento, constata-se que é o consentimento daqueles, afirmado
no pacto, que torna legitima a autoridade do soberano. As reflexões aqui se voltaram
tão somente na constituição de um poder político justificável com a passagem do fato
pelo direito. Contudo, será apenas no capítulo VI do Livro II que Rousseau se
preocupará em dar as bases para uma ação política do soberano.
A letra da lei é que fixará a expressão da vontade geral, com uma ressalva: o
corpo político necessita de um guia capaz de esclarecê-lo. Dessa forma, destaca a figura
do legislador e a própria função legislativa, como Milton Meira do Nascimento (1987)
explica: “(o legislador) deve ser então o interprete das aspirações de seus membros, isto
é, através dele e nas leis que elaborou, o povo poderá reconhecer-se enquanto uma
comunidade política” (NASCIMENTO, 1987, p. 371).
O legislativo não se confunde com a soberania, nem com o executivo. Cumpre
um papel muito específico dar movimento a vida do pacto. O que está em questão é o
estabelecimento de um sistema de leis suficientemente capaz de corporificar o Estado,
destacam-se leis políticas, civis, penais, os usos, costumes e opiniões os quais captam as
demandas do corpo social e revelam o traço peculiar de cada nação. Diz no Contrato
Social:
[v]imos que o poder legislativo pertence ao povo, e só a ele pode
pertencer. É fácil perceber, ao contrário, pelos princípios
anteriormente estabelecidos, que o poder executivo não pode
pertencer ao conjunto de cidadãos como legislador ou soberano,
pois que esse poder consiste apenas em atos particulares que não
são, em absoluto, da alçada da lei, nem, por conseguinte, da do
soberano, cujos atos só podem ser leis (ROUSSEAU, 2006, p.
72).
12
O trecho referido enaltece a diferença entre o exercício da soberania, as funções
legislativas e executivas. O ponto a ser destacado é justamente o fato de o executivo não
poder ser considerado como expressão da vontade geral, apesar de executar funções em
conformidade a tal interesse por determinação legal. A nítida diferença entre o soberano
e o governo está estabelecida a partir da relação com o Estado: o governo é como um
corpo no Estado, dotado de certa personalidade, mas destituído totalmente de uma
autonomia. Assim, o Estado existe por si só e o governo só existe pelo Estado19.
O governo realiza a ligação entre Estado (passivo) e soberano (ativo), a
intermediação necessária para a passagem ativa do súdito como cidadão. De sorte que o
governo se estrutura a partir de termos instrumentais, é um poder subalterno e
mandatário que concretiza as vontades que lhe são superiores. Nesse entendimento os
atos de governo são práticas de atos de particulares que visam um conteúdo legalmente
determinado.
A extensão da sua ação do governo se limita ao momento da aplicação da lei, em
outras palavras, a discussão não pertence ao campo da legitimidade, mas ao espaço da
legalidade. Por tais razões função legislativa e executiva não se confundem. Ainda mais
longe, verifica-se um forte vínculo hierárquico entre elas, posto que a administração
depende do conteúdo consignado no processo legislativo e, por assim dizer, deve se
reportar à função legislativa com extremo cuidado para não extrapolar e impor a
vontade do governante ao povo soberano.
Em função dessas perspectivas, ponto merecedor de destaque e que talvez revele
um traço muito significante da vida institucional diz respeito à tendência de
degeneração do governo. Aqui reside um problema constante em todo o funcionamento
institucional da política, a saber, o governante reserva potencialmente uma força capaz
de extrapolar a autoridade soberana. Rousseau explica: “[a]ssim como a vontade
particular atua incessantemente contra a vontade geral, assim o governo se esforça
contra a soberania” (ROUSSEAU, 2006, p. 103).
O que está sendo discutido é um risco inerente em toda forma de governo. Tratase antes de uma busca para adequar a relação entre soberania e governo, uma intricada
trama institucional. Razão pela qual a vida da instituição política nunca deverá repousar
numa tranqüilidade absoluta, mas se encaminhar num processo incessante de renovação
e manutenção da ordem pública. Isso significa a obrigação do soberano zelar pela sua
própria prerrogativa, por conseguinte, considerar a participação efetiva dos cidadãos
13
como momento para reafirmar o poder. São esses momentos entre a autorização e a
prestação de contas, que verificamos a manutenção de uma relação saudável entre
soberania e governo.
Toda a dificuldade dessa relação é registrada por Salinas ao afirmar: “[o]
importante, porém, é perceber na sua natureza de mecanismo efetivo da captação da
vontade coletiva, ou seja, da vontade de todos os cidadãos. E para isso se verifique, é
necessário que, de alguma forma o cidadão se faça presente” (SALINAS, 1987, p. 34).
Ora, quando Rousseau afirma: “[c]hamo, pois, República a todo Estado regido por leis,
qualquer que seja a sua forma de administração, porque só então o interesse público
governa e a coisa pública significa algo. Todo governo legítimo é republicano”
(ROUSSEAU, 2006, p. 48), parece-nos que para além da definição20, o filósofo está nos
advertindo para a seguinte compreensão: todos dentro do domínio do debate público
têm responsabilidades e desempenham funções tanto como cidadãos ou como
autoridades. Com efeito, o importante é saber quais os papéis que cada um, na suas
respectivas posições, deverá cumprir para que seja possível constatar um regime
republicano de fato.
IV.
Considerações finais
As saídas para as dificuldades aqui abordadas por Rousseau não se limitam à sua
época. É sabido que nem tudo no Contrato social resistiu do mesmo modo desde o
momento de sua publicação. Contundo, é injusto partir para um total anacronismo e
limitar-se a uma interpretação fechada da obra.
É preciso acuidade para verificar o quanto a obra de Rousseau repercute no
pensamento e na vida política contemporânea, fazendo desse exercício a oportuna
revisão crítica da nossa vida institucional. O que se destaca é a reconquista do homem,
por meio da ação política – o status que esse conceito opera na filosofia de Rousseau é
central, haja vista que possibilita ao homem civilizado a aproximação da vida boa
daquele homem no estado de natureza, agora na sociedade civil.
Política é entendida aqui como a experiência genuína produzida de um corpo
coletivo. Como visto, o homem social não é mais solitário, ao contrário, possui uma
vida pública com uma série de deveres, depende de outros de maneira recíproca para
atender suas necessidades – não é possível cogitar em individualidades, mas agir
conforme valores comuns.
14
Não obstante, para Rousseau política também pode ser identificada como
liberdade, reconhecimento, felicidade e bondade21, contudo a exigência é pelo respeito e
observância dos interesses em comum, havendo aqui a obrigação do controle das
paixões e dos desejos na vida pública. Isso significa que para a autoridade pública, a
necessidade é atentar-se para as demandas sociais.
Não é gratuito que a leitura da passagem das obras entre o Discurso e o Contrato
social é recorrente em cursos de filosofia política e ciências sociais. Rousseau é o
primeiro a dignificar o espaço para a ação política como locus por excelência para as
realizações sociais.
Talvez seja esse o sinal de não ir tão longe às considerações finais, basta-nos por
ora consultar o preâmbulo de Constituição de 1988, inspirados em certa medida pelos
ensinamentos de Rousseau e verificar qual é a ausência de comprometimento de
algumas autoridades com a nossa atual política institucional na exata proporção que se
concorda com Marilena Chauí ao afirmar: “[a]s contradições imputadas a Rousseau não
eram do filósofo, mas do mundo social e político que buscava compreender”
(SALINAS, 1988, p. 05).
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15
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de Jean-Jacques Rousseau”. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, v. 7, p.
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de sete ensaios sobre Rousseau; tradução: Maria Lúcia Machado – São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
STRAUSS, Leo. Natural right and history. Chicago: The University of Chicago Press,
1965.
1
Nesse sentido Maria das Graças de Souza (2001) já explicita a duplicidade do progresso em Ilustração e
história: o pensamento sobre a história no Iluminismo francês: “[c]ontudo, o que chama a atenção é que
a análise do declínio em rousseau integra a noção de progresso e ao mesmo tempo efetua uma avaliação
de conteúdo deste conceito, na contracorrente de sua época (...) é evidente que esta concepção da
16
continuidade do processo histórico, no caso de rousseau, não serve para afirmar a idéia de progresso, mas
para criticá-la (p.77)”.
2
Sobre o ponto Levi Strauss (1989) afirmou: “[Rousseau] havia concebido, querido e enunciado a
etnologia um século inteiro antes que ela fizesse a sua aparição, colocando-a, de pronto, entre as ciências
naturais e humanas já constituídas (...) Rousseau não se limitou a prever a etnologia: ele a fundou.
Inicialmente de modo prático, escrevendo o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens. Nele se pode ver o primeiro tratado de etnologia geral, onde se coloca o problema das
relações entre natureza e cultura” (LEVI STRAUSS, 1989, pp. 41-42).
3
Leo Strauss in Natural right and history: “(...) life in the state of nature is solitary,i.e., that is
characterized by the absence not only of society but even of sociability. (p.266)”
4
A partir de tal movimento Rousseau consegue distinguir a espécie humana com as demais espécies. Para
o autor não se trata de uma diferença nos termos da racionalidade ou, nem mesmo pelo principio da
liberdade, mas a diferença entre o homem e o animal é a perfectibilidade.
5
Rousseau buscará retratar tal etapa como uma época feliz e duradoura da humanidade, afinal como
Salinas (1989) sustenta, situa-se em um justo meio termo entre a indolência do estado primitivo e a
petulante atividade de nosso amor-próprio.
6
Não se pode atribuir às diferenciações na juventude do mundo como pertencentes ao plano das
desigualdades morais, afinal, não está em questão disputas de interesses entre os homens. Trata-se de
diferenciações relativas à idéia de consideração, opiniões proporcionais a relações sociais.
7
Nesse sentido é a colocação de Starobinski (1991): “De fato, Rousseau liga profundamente o problema
moral e o problema econômico. O homem social, cuja existência já não é autônoma mas relativa, inventa
sem cessar novos desejos que não pode satisfazer por si mesmo. Precisa de riquezas e do prestigio: quer
possuir objetos e dominar consciências (p.40)”.
8
Antecipando o estudo, a discussão da eficácia da norma jurídica referida deve ser compreendida em
conformidade ao direito já instituído, isto é, em relação ao direito positivo. Portanto, a segunda parte
desse artigo abandonará o campo da discussão entre força e direito para encaminhar de maneira breve a
questão da própria aplicação da lei posta tendo em vista a sanção (força) a partir das considerações de
Luiz R. Salinas em “A medida da força das leis” (cap. IV) in Rousseau: da Teoria à Prática.
9
Apresenta-se algumas considerações do capítulo VI Do Contrato Social, sobretudo a partir do conceito
de alienação total: “ em primeiro lugar, cada qual dando-se por inteiro, a condição á igual para todos, e,
sendo a condição igual para todos, ninguém tem interesse em torná-la onerosa para os demais (pg. 21)”.
10
Recorde-se que na obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
Rousseau sustenta o direito fundamental como a capacidade que os homens possuem no estado de
natureza de decidir, cada um segundo seus interesses, e enquanto perdurar o estado de natureza não existe
nenhum critério para distinguir o justo do injusto, exceto o arbítrio de cada indivíduo.
11
Não se pode interpretar essa crítica propriamente à tradição jusnaturalista de pensamento uma vez que
a corrente de pensamento reúne diversos teóricos, cada qual com sua abordagem sobre o tema do direito
natural possuindo, portanto, posições diversas e até mesmo antagônicas entre si. Assim, Rousseau não
busca desqualificar o direito natural como fundamento prévio da norma positiva, mas apenas questionar
uma visão da instituição do direito pela força.
12
Esse é o caso quando Rousseau quando cita Grotius tendo em vista a afirmação do gênero humano
como pertencente a uma centena de homens. Para o filósofo em Do Direito de Guerra e de Paz seria
possível estabelecer um governo contrário aos interesses dos cidadãos ou, por exemplo, sustentar o direito
de escravidão na medida em que seria legítimo um sujeito reduzir-se voluntariamente à escravidão frente
ao poder de um déspota. Nessa mesma perspectiva encaminha a crítica de Rousseau a Hobbes afinal, o
filósofo inglês se aproxima da posição de Grotius ao sustentar que o soberano poderá adquirir seu poder
político através da força na hipótese da república por aquisição. No capitulo XVII em Leviatã, Hobbes
distingue duas maneiras de aquisição do poder soberano a partir da força natural ou pelo consentimento
entre os homens. A primeira chama-se uma república por aquisição e, a segunda uma república por
instituição. No que diz respeito a república por aquisição se reduz as seguintes hipóteses: quando o
homem obriga seus filhos a submeterem-se à sua autoridade ou quando um homem sujeita através da
guerra os seus inimigos à sua vontade.
Para ambas as posições Rousseau refere-se ao exemplo ilustrativo do imperador Calígula ao julgar-se
superior aos demais habitantes do seu império ou da imagem do povo como um rebanho nas mãos de um
pastor afinal, ninguém pode medir forças com o detentor absoluto do poder físico.
13
Não se trata mais da investigação acerca do homem natural conforme trabalhado no Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. A tentativa agora é compreender o homem
inserido na sociedade e, nesse sentido, Paulo Bonavides (1962) comenta: “O homem criou a sociedade,
17
mas criou a sociedade para reaver a liberdade que ele tinha no estado de natureza” (BONAVIDES, 1962,
pg. 163).
14
Luiz Roberto Salinas Fortes afirma: “Determinar o fundamento da sociedade é, assim, procurar
justificar a pretensão própria do fato legal: a de valer necessariamente e em caráter obrigatório.”
(SALINAS, 1976, p. 80).
15
Nesse ponto percebe-se a importante divergência de Rousseau com a tradição liberal. Para o filósofo a
liberdade não significa ausência de elemento externo e estranho que impediria a plena realização humana.
16
Rousseau defende a todo custo a participação direta do poder, não é partidário de um sistema
representativo justamente porque apenas o corpo político será capaz de revelar a vontade geral.
17
É possível indicar a alusão encoberta a Montesquieu por Rousseau ao afirmar: “mas, não podendo
dividir a soberania em seu principio, nossos políticos a dividem em seu objeto, eles a dividem em força e
vontade, em poder legislativo e poder executivo (...), ora confundem todas essas partes, ora as separam”.
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O comum não se confunde com a maioria em Rousseau. A discussão política não se resolve em termos
quantificáveis como a soma numérica de votos, mas nos elementos comuns identificáveis no interior do
corpo social aproximando. Nessa leitura, é imprescindível que existam divergências para a constituição da
vontade geral, caso contrário; estaríamos encaminhando para uma regra da maioria, orientada por
consensos e não se firmando através de deliberações.
19
Salinas acrescenta: “Não é essencial para o Estado que o povo se encarregue em pessoa da
administração: se é bom ou não que isso ocorra, eis uma questão técnica política a ser decidida em função
de variáveis sócio-históricas. O essencial é que somente ao povo cabe determinar a forma de governo e
escolher os seus governantes” (SALINAS, 1978, p. 124).
20
Cabe ressaltar que em função dessa definição depreende-se que a escolha da forma de governo a ser
adotado (democracia, aristocracia ou monarquia) é apresentada como uma questão contingencial. O
importante é observar prioritariamente a legitimidade em cada forma de governo possível para preservar o
pacto social, então; num segundo momento, deverá ser conduzido um exame circunstancial para decidir o
melhor governo.
21
Nesse sentido deve ser destacado que ao longo do Contrato Social, Rousseau se apresenta como um
entusiasta da participação direta do poder, pois apenas o corpo político pode revelar a vontade geral.
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