INTRODUÇÃO A endometriose é uma doença inflamatória crônica, estrógeno-dependente e de etiologia desconhecida, que afeta, aproximadamente, 10% a 15% das mulheres em idade reprodutiva. Os principais sintomas da endometriose são representados por infertilidade e por dor pélvica crônica, além de queixas menos frequentes, como dispareunia de profundidade, sintomas intestinais e urinários cíclicos, dependendo da localização da doença. Cerca de 40% a 50% das mulheres inférteis e de 30% a 40% das mulheres que se submetem à laparoscopia, por dor pélvica, têm endometriose.1 A dor pélvica provoca, na mulher, incapacidade e sofrimento, com um impacto econômico muito elevado. Nas últimas décadas, muitos estudos foram realizados a fim de introduzir novos fármacos à prática clínica para o tratamento de dor pélvica associada à endometriose, apesar de, muitas vezes, a combinação do tratamento cirúrgico, seguido do tratamento medicamentoso, ser a melhor opção. Além disso, garantir a boa adesão da paciente a esse trata- 2 mento clínico se faz necessário, já que, infelizmente, na maioria das mulheres, sintomas de dor tendem a reaparecer entre seis meses e 12 meses quando o tratamento é interrompido, em geral devido aos efeitos colaterais das medicações. A escolha do tratamento deve ser baseada em preferências do paciente, efeitos colaterais, eficácia, custos e disponibilidade. Os contraceptivos orais combinados tendem a ser os medicamentos com mais benefícios, pois exercem proteção contraceptiva, segurança em longo prazo e controle do ciclo menstrual. 2 Progestógenos isolados também podem ser utilizados, mas, em geral, apresentam mais efeitos colaterais, como inchaço, irregularidade menstrual e cefaleia durante sua utilização. 3 Outras classes de medicamentos também podem ser prescritas, quando os demais tratamentos se revelam ineficazes. Para os fármacos anti-inflamatórios não esteroides, efeitos secundários significativos, incluindo o risco de úlcera péptica e doença cardiovascular, devem ser considerados. No caso dos análo- gos do GnRH, seu uso se torna bastante restrito devido à grande quantidade de efeitos colaterais, tais como a perda óssea e sintomas de hipoestrogenismo. Para o danazol e a gestrinona, há efeitos secundários graves, como trombose e hiperandrogenismo.4 Assim, o uso contínuo de contraceptivos orais, sem pausa, tem sido considerado um tratamento seguro e eficaz na suspensão da menstruação, com consequente melhora de sintomas de dor em mulheres com endometriose. Este texto tem como objetivo a revisão da farmacologia dos contraceptivos orais e, principalmente, a análise de estudos que avaliaram a segurança, a eficácia e a satisfação do paciente com endometriose em uso de pílulas contraceptivas orais em regime contínuo. OS ANTICONCEPCIONAIS ORAIS Os contraceptivos hormonais orais foram desenvolvidos há cerca de 50 anos. Durante esse tempo, as doses de estrogênio e de progesterona diminuíram, reduzindo, assim, os riscos, porém mantendo sua eficácia. Mais recentemente, os contraceptivos têm sido modificados na tentativa de se diminuírem ou de se eliminarem os comprimidos placebo a fim de reduzir os sintomas menstruais. A presença de sangramento cíclico não é essencial para a ação contraceptiva dos anticoncepcionais orais, e os estudos indicam que muitas mulheres estão cada vez mais interessadas em reduzir a frequência de menstruações.5 Apesar das primeiras pesquisas indicando que o uso dos contraceptivos hormonais orais poderia ser contínuo, até recentemente, a pílula foi comercializada exclusivamente no formato de 21 dias de ciclo e sete dias de placebo ativo.6 Estudos randomizados já comprovaram a segurança e a eficácia do tratamento estendido (24 ativos + 4 placebo ou 84 ativos + 7 placebo) ou com dosagem hormonal contínua.7 FARMACOLOGIA O estradiol é o principal estrogênio produzido pelo ovário, mas o seu uso é limitado devido à pobre absorção quando tomado em uma forma não micronizada. A adição de um grupo etinil na posição 17 torna a espécie ativa por via oral e, portanto, o etinilestradiol é o estrogênio mais comum, disponível em contraceptivos orais mais modernos que contêm, em geral, 20-35 µg desta substância e oferecem segurança e eficácia comparáveis com redução da incidência de eventos adversos.8 Os progestógenos foram criados por meio da remoção do carbono 19 da etisterona, um derivado da testosterona. Os derivados da 19-nortestosterona utilizados nos contraceptivos orais são de dois tipos principais, os estranos e os gonanos. Gonanos têm maior atividade progestacional por unidade de peso do que os estranos, requerendo uma dosagem inferior dos gonanos para a eficácia em formulações de contraceptivos hormonais orais. Os estranos correspondem aos progestógenos de primeira geração e incluem noretisterona, noretindrona, diacetato de etinodiol, linestrenol e noretinodrel. Os progestógenos ciclopentanoperidrofenantreno são divididos em duas categorias: o norgestrel e levonorgestrel, que são os progestógenos de segunda geração. Já os de terceira geração incluem o desogestrel, o gestodeno e o norgestimato. A diferença global entre as famílias de progestógenos em formulações de contraceptivos orais mais modernos é mínima e todos são formulados para conter uma dose eficaz e mais baixa.8 3 Os efeitos colaterais relacionados tendem a variar um pouco, dependendo do tipo de progestógeno. Um menor índice de descontinuidade, além de menor risco de sangramento intermenstrual, tem sido observado com os progestógenos de segunda geração quando comparados aos de primeira geração.9 A PÍLULA COMBINADA O mecanismo primário da combinação dos contraceptivos orais de estrógeno e de progesterona consiste em impedir a ovulação pela inibição da secreção de gonadotrofina pela hipófise e do hipotálamo. O componente estrogênico da pílula inibe a secreção do Hormônio Folículo-Estimulante (FSH) e, assim, limita o desenvolvimento do folículo dominante ovulatório. O componente progestogênico suprime a secreção do Hormônio Luteinizante (LH) e, assim, evita que o pico de LH desencadeie a ovulação.10 Em uma mulher sem uso de contraceptivo hormonal, a progesterona está presente apenas em quantidades pequenas na fase lútea do ciclo menstrual. No entanto, quando são administrados contraceptivos combinados, o efeito progestacional tem predominância sobre o componente estrogênico no trato reprodutivo, sendo tal ação refletida diretamente sobre o endométrio. O resultado deste processo é um endométrio fino, decidualizado, com glândulas atrofiadas e que não é receptivo à implantação do embrião. Além disso, o muco cervical torna-se espesso, impermeável, impedindo o esperma de alcançar a cavidade uterina, e diminui a mobilidade das trompas, alterando o movimento dos espermatozoides e dos ovócitos através da tuba uterina.11 4 Apesar do progestógeno isolado ser um método contraceptivo eficaz, há benefícios quando estrogênio e progesterona são combinados em um contraceptivo oral. Por inibição direta do FSH, o estrogênio contribui para a eficácia contraceptiva do contraceptivo oral, limitando o desenvolvimento folicular. No endométrio, a estimulação de estrogênio proporciona estabilidade e pode diminuir o sangramento irregular, sintoma típico dos contraceptivos com progesterona isolada. O estrogênio também potencializa a ação de agentes progestacionais, aumentando a concentração de receptores de progesterona intracelulares. Este último efeito pode diminuir a dose necessária de progesterona usada nos contraceptivos orais combinados. FORMULAÇÕES UTILIZADAS O contraceptivo original foi projetado para permitir um sangramento mensal. Presume-se que a hemorragia de privação foi fundamental para aumentar a aceitação dos anticoncepcionais orais. No entanto, este não é um sangramento menstrual fisiológico. Menstruação fisiológica ocorre devido ao crescimento do endométrio induzido pelo estradiol, seguido por decidualização do endométrio induzida por progesterona, e sangramento com a retirada de progesterona e de estradiol. Com os contraceptivos combinados orais, a única porção do ciclo, com estrogênio sem oposição da progesterona, ocorre durante a semana de pausa (ou placebo) quando o FSH não é suprimido e o ovário produz estradiol. Os comprimidos ativos fornecem a progesterona e, assim, previnem o crescimento do endométrio. Ao limitar ou eliminar os comprimidos placebo, o endométrio não vai desenvolver, e hemorragia de privação não ocorrerá. Apesar de o sangramento poder ocorrer com medicamentos utilizados de forma contínua, devido a alterações atróficas do endométrio, não há endométrio típico para ser eliminado. O conceito de uso de contraceptivos hormonais prolongados e contínuos não é novidade. A primeira investigação de um regime de combinação prolongado foi realizada na década de 1970.12 Esse ensaio não randomizado avaliou o efeito de um ciclo de regime prolongado de 84 dias de combinação contendo linoestrenol 2,5 mg e etinilestradiol 50 µg em 196 mulheres. Nenhuma gravidez ocorreu durante o período de estudo de um ano, e 82% das mulheres que completaram o estudo relataram benefícios com a redução da menstruação. O primeiro estudo randomizado avaliando um regime contínuo foi realizado em 1993, com 150 µg de desogestrel e 30 µg de etinilestradiol, comparando um regime cíclico ou contínuo. Houve significativamente mais escapes no grupo de regime contínuo, mas que diminuiu ao longo do ano de avaliação. Significativamente mais mulheres suspenderam o uso do medicamento devido à cefaleia no grupo de uso cíclico. Nenhuma diferença significativa foi encontrada em relação a alterações no peso corporal, a nível de hemoglobina, ou a pressão arterial entre os dois grupos.13 Depois de testes para confirmar a eficácia e a segurança do uso contínuo destes medicamentos, seu uso foi disponibilizado a partir de 2003.14 O primeiro estudo randomizado de anticoncepcionais orais combinados contínuos foi publi- cado em 1995.15 Este estudo multicêntrico avaliou a aceitabilidade, a eficácia e a segurança de levonorgestrel 250 mg e de etinilestradiol 50 µg administrados por via vaginal, de forma cíclica ou contínua. Os indivíduos foram randomizados para administração cíclica tradicional ou contínua durante um ano. Curiosamente, quatro gestações indesejadas ocorreram no grupo de administração cíclica e nenhuma ocorreu no grupo de administração contínua, sendo esta diferença estatisticamente significativa (p = 0,0486). Um outro estudo multicêntrico, avaliou a segurança e a eficácia da administração contínua de levonorgestrel 90 mg e etinilestradiol 20 µg em 2134 mulheres e, por fim, levou à aprovação do FDA de um contraceptivo oral combinado contínuo em 2007. Quinze gestações foram atribuídos à falha do método, com um índice de Pearl de 1,26.7 USO NAS MULHERES COM ENDOMETRIOSE A menstruação retrógrada parece ser um dos mecanismos etiopatogênicos para o desenvolvimento da endometriose. Se isso for verdade, a possibilidade de implantação deste endométrio pode ser influenciada pelo maior aumento recente do número de menstruações. Com efeito, o risco de endometriose parece aumentar com o tempo de vida e com consequente maior número de ciclos ovulatórios.16 Além disso, o papel da ovulação na gênese da endometriose de ovário foi confirmado, demonstrando que os endometriomas podem se desenvolver a partir de folículos, imediatamente 5 após a ovulação, e por hemorragia dos corpos lúteos.17 como uma medida preventiva primária em grupos de alto risco (por exemplo, parentes de primeiro grau de mulheres com endometriose).20,21 Os contraceptivos orais combinados suprimem a ovulação e reduzem a quantidade de fluxo menstrual mensal. Os progestógenos podem impedir a implantação e o crescimento de endométrio retrógrado, inibindo a expressão da matriz de metaloproteinases e a angiogênese local. Além disso, ainda há várias ações anti-inflamatórias in vitro e efeitos in vivo que podem diminuir o efeito inflamatório gerado pela atividade metabólica do endométrio ectópico e a consequente resposta imune. Ainda, o uso dos contraceptivos hormonais, anormalmente, baixa a atividade apoptótica do endométrio das mulheres com endometriose.18 Apesar das evidências de eficácia limitada, os contraceptivos orais são considerados os medicamentos de primeira linha de tratamento médico para a dor pélvica associada à endometriose. Sua utilização baseia-se na evidência de uma melhora clínica da doença, semelhante àquela que ocorre durante a gravidez. Há uma inibição da produção de estrogênio gonadal, por meio de um mecanismo de feedback negativo. Além disso, ao suprimir a atividade ovariana, eles também ocasionam uma redução na produção induzida por estrogênio de prostaglandinas, diminuindo consequentemente o processo inflamatório causador de dor nas mulheres com endometriose. Tais medicamentos podem ser utilizados rotineiramente, como adjuvante da cirurgia, seja antes ou após o procedimento cirúrgico.22 A possibilidade de reduzir o risco de endometriose por meio da prescrição de contraceptivos hormonais já foi amplamente relatada. No entanto, não há consenso sobre o papel de proteção dos contraceptivos.19 Dada a alta frequência de uso de contraceptivos orais especialmente em mulheres jovens que necessitam de contracepção, bem como a prevalência cada vez maior de endometriose nesta população, uma relação entre estes dois fatores, tanto no sentido de uma redução ou um aumento no risco, teria grandes consequências. Além disso, em geral, os contraceptivos hormonais são utilizados como um tratamento para a endometriose sintomática. Finalmente, se for demonstrado um efeito protetor dos contraceptivos hormonais orais, seu uso tornar-se-á interessante 6 Um recente estudo randomizado, controlado, demonstrou que a pílula contraceptiva oral, com baixa dose hormonal, usada de forma contínua, tende a ser mais eficaz do que o placebo no controle da dismenorreia e na diminuição do tamanho do endometrioma ovariano. Além disso, já foi amplamente demonstrado que o uso ininterrupto de pílula contraceptiva oral parece estar associado a uma redução maior na pontuação na escala de dor. Dessa forma, a administração contínua representa uma proposta terapêutica válida, segura e econômica que pode ser usada em pacientes que se submeteram à cirurgia conservadora para endometriose. 23,24 Em termos de efeitos colaterais, doses mais baixas de etinilestradiol podem levar a um aumen- to de hemorragia intermenstrual, especialmente nos primeiros meses de tratamento, mas não afeta nem a sua eficácia contraceptiva ou o seu efeito protetor no endométrio. Algumas limitações no uso de contraceptivos orais contínuos ocorrem em casos de recidiva em curto espaço de tempo da doença, após a interrupção do tratamento ou aumento do risco de eventos tromboembólicos que podem afetar as mulheres fumantes com idade acima de 35 anos de idade. 25 Eles também podem ser usados em conjunto com os análogos de GnRH na terapia de “add-back” em casos selecionados a fim de equilibrar os sintomas de hipoestrogenismo causados por essas medicações.26 CONCLUSÕES O tratamento clínico com contraceptivos orais contínuos combinados auxilia na redução dos sintomas de dismenorreia nas mulheres com endometriose. Pode ser utilizado rotineiramente, como adjuvante à cirurgia, seja antes ou após o procedimento cirúrgico. Além disso, seu uso representa uma estratégia de tratamento clínico em longo prazo para prevenção da recorrência da doença. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Giudice LC. Clinical practice: endometriosis. N Engl J Med 2010; 362:2389-2398. 2. Adamson GD. 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