china-eua? - Clube Mundo

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ANO 17
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TIRAGEM:
Nº 3
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MAIO/2009
■
23 000 EXEMPLARES
CRISE DA GLOBALIZAÇÃO
IMPLODIRÁ EIXO CHINA-EUA?
O
● Dois belos filmes abordam o
drama da Primeira Guerra
Mundial em terras muçulmanas
do antigo Império Otomano.
Pág. 2
● Editorial – A corrupção e o
abuso da coisa pública tornaram-se marcas registradas do
Congresso. As práticas são um
reflexo de nossa história.
Pág. 3
● Os ex-guerrilheiros da FMLN
chegaram ao poder em El Salvador, mas ao lado da direita
conservadora e de ex-líderes de
grupos para-militares.
Pág. 3
● Há 90 anos, o Tratado de
Versalhes redesenhou o mapa
político da Europa e criou o
conceito de segurança coletiva (a Liga das Nações). O fracasso do arranjo de 1919 desaguou na 2a. Guerra.
Págs. 4 e 5
● Diário de Viagem – Na Cidade do Cabo, começou a colonização bôer da África austral
e, mais tarde, o domínio britânico sobre a África do Sul.
A cidade reflete a diversidade
sul-africana.
Pág. 10
● O Meio e o Homem – No
Subcontinente Indiano, Índia,
Paquistão e Bangladesh convivem em meio a tensões geopolíticas. Mas os turbulentos
vizinhos acharam caminhos de
concórdia no uso das águas de
três grandes rios.
Pág. 11
colapso financeiro que deflagrou a crise econômica mundial tem como foco os Estados Unidos, mas
atinge brutalmente a China. Há três décadas, desde o
encerramento do maoísmo, Pequim definiu sua estratégia geopolítica pela decisão de incorporar-se à globalização. As suas taxas extraordinárias de crescimento evidenciam o sucesso da estratégia, ao menos sob o
ponto de vista da elite dirigente chinesa. Agora, tudo
que parecia sólido desmancha-se no ar.
O modelo do “socialismo de mercado” chinês precisa de mercados – especialmente do mercado americano. O protecionismo ameaça as bases do modelo,
bem como a provável redução estrutural das importações americanas. Os chineses, ironicamente, convertem-se em
arautos do liberalismo econômico.
A China investe seus superávits enormes nos mercados financeiros do Ocidente, denominando sua riqueza em
dólares. O espectro de uma desvalorização acentuada da moeda americana, que é o “dinheiro do mundo”, assusta os
chineses. Pequim explicitou, oficialmente, uma proposta de substituir o dólar por uma nova moeda mundial, emitida
e controlada pelo FMI. É só chantagem ou é a expressão genuína da política chinesa?
Na China, duas correntes de análise oferecem respostas diferentes para os dilemas da crise global. De um lado, há os que
pregam uma estreita cooperação com Washington, para restaurar o sistema de expansão especulativa anterior ao colapso. De
outro, há os que cerram os dentes e pregam a ruptura das pontes. Eles sabem que a China sofreria muito com uma reforma
profunda das finanças globais. Mas acham que não existe outro caminho rumo à almejada posição de número um.
Vejas as matérias às págs. 6 a 9
A nova guerra civil americana
B
arack Obama prometeu mais concórdia e consenso, menos guerrilha partidária, na política interna americana. Mas intenções, apenas, não mudam o mundo. Nos Estados Unidos, as “guerras culturais” inauguradas há um quarto de
século, na “era Reagan”, prolongam-se na “era Obama”.
Qual é o lugar de Deus e da religião na ordem política americana? É o aborto
uma questão de opção pessoal? Pesquisa com células-tronco é assassinato? O
direito de ter e portar armas pode ser limitado pelo Estado? Os imigrantes hispânicos representam uma ameaça à identidade nacional americana? Uniões gays
devem ser admitidas como casamentos e protegidas pela lei? A pena de morte é
a justa aplicação do preceito bíblico do “olho por olho, dente por dente”? São
esses os temas das amargas “guerras culturais” que opõem conservadores a liberais nos Estados Unidos.
Pág. 12
EUROCETICISMO
© Stephane de Sakutin/AFP
E mais...
© AFP
■
140 CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO
MUNDO E H&C - 2009
Consulte o tema, o regulamento e participe !!!
Dez vencedores serão premiados
Em todo o Brasil, escolas assinantes de Mundo já estão realizando seleções internas para escolher as cinco melhores redações a serem enviadas para o nosso 14º Concurso Nacional de Redação. Para sua escola participar, basta ser
assinante de Mundo e consultar o tema proposto, à página 2 da edição de março, e o regulamento, que se encontra à
página 2 da edição de abril.
A redação vencedora será publicada e comentada na última edição deste ano, em outubro. Os autores dos dez
melhores trabalhos serão premiados. O 1º colocado receberá um aparelho de som no valor de R$ 800,00. Do 2º ao
5º, todos receberão CD-players no valor de R$ 200,00. Do 6º ao 10º colocado, serão ofertados prêmios em livros.
As redações escolares são, sempre, obras coletivas. Os “co-autores” são os professores do presente e do passado,
que contribuíram para desenvolver em seus alunos a capacidade de interpretar e escrever. O “co-autor” oculto mais
próximo é o atual professor de Comunicação e Expressão. Por isso, o concurso também o premia. Os professoERRATA
res de Comunicação e Expressão dos dez alunos que tivePor uma falha de revisão o regulamento do XIV Concurso
rem seus trabalhos premiados receberão livros.
Nacional de Redação Mundo – H&C 2009 que está preInformamos que, em meados de maio, enviaremos as
sente na página 2 de Mundo da edição de abril está com
cinco folhas pautadas e numeradas para as quais deverão
indicações de 2008 ao invés de 2009.
O dia e o mês da data final da entrega das redações estão
ser transcritas as redações selecionadas na sua escola. Salicorretos, isto é 10 de julho, obviamente, de 2009.
entamos também que o prazo para o envio das redações
encerra-se, impreterivelmente, no dia 10 de julho de 2009.
E X P E D I E N T E
PANGEA - Edição e Comercialização de
Material Didático LTDA.
Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,
Nelson Bacic Olic (Cartografia).
Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
Revisão: Maria Eugênia Lemos
Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
Endereço: Rua Romeu Ferro, 501, São Paulo - SP.
CEP 05591-000. Fones: (0XX11) 3726.4069 / 3726.2564
Fax: (0XX11) 3726.4069 – E-mail: [email protected]
Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos
assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser
obtidos no seguinte endereço, em São Paulo:
• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900
Fone: (0XX11) 3283.0340.
www.clubemundo.com.br
"Infelizmente não foi possível localizar os autores
de todas as imagens utilizadas nesta edição.
Teremos prazer em creditar os fotógrafos,
caso se manifestem"
A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, NA VISÃO DOS CINEASTAS
E
m novembro de 2008 completaram-se os 90 anos do
fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), um conflito
que, para os europeus, é conhecido como a “Grande Guerra”. Do ponto de vista cinematográfico, a Grande Guerra
acabou sendo ofuscada pela atenção que se deu à Segunda
Guerra Mundial. Assim, enquanto há um incontável número de filmes e documentários sobre a tragédia inigualável
deflagrada em 1939, o primeiro grande conflito do século
XX ficou relegado a um plano secundário.
As batalhas mais importantes daquele conflito aconteceram em território europeu, mas também ocorreram importantes confrontos bélicos em outras partes do mundo,
como no Oriente Médio. Há dois interessantes filmes que
retratam os eventos do teatro militar do Oriente Médio.
O primeiro é o célebre Lawrence da Arábia (David Lean,
Grã-Bretanha, 1962). Neste filme, o personagem central é
o polêmico oficial do exército britânico, T. E. Lawrence,
um agente incumbido de tentar unir várias tribos árabes
rivais com o intuito de combater as forças do Império Otomano, que tinham o domínio sobre amplas áreas do Oriente Médio. Britânicos e otomanos estavam em lados opostos
na Grande Guerra e o controle das fontes do petróleo no
que seria o Iraque era um objetivo estratégico de Londres.
O filme foi parcialmente inspirado na obra Os sete pilares
da sabedoria, de autoria do próprio Lawrence. As cenas tendo
a imensidão dos desertos do Oriente Médio como pano de
fundo, junto com aquelas da conquista da atual cidade
jordaniana de Aqaba pelos árabes comandados por Lawrence,
estão entre as mais belas, numa obra que abocanhou sete
Oscars, incluindo os de melhor filme e diretor.
Galipoli,
Peter Weir,
1981
Lawrence da
Arábia,
David Lean,
1962
Um filme muito menos conhecido é Galipoli (Peter
Weir, Austrália, 1981), que teve Mel Gibson como ator
principal, numa de suas primeiras aparições no cinema,
bem antes de se tornar um fundamentalista cristão. O
enredo articula-se ao redor de um grupo de jovens australianos que, em 1915, embalados pelo sonho de se con-
verterem em heróis de guerra, se alistam no Corpo de
Exército da Austrália e Nova Zelândia para, ao lado de
soldados britânicos, lutar contra os otomanos na estratégica península de Galipoli.
Situada nas proximidades do Estreito de Dardanelos,
a península de Galipoli domina, juntamente com o Estreito de Bósforo, a ligação entre os mares Egeu e Negro,
permitindo o acesso à cidade de Istambul, à época capital do Império Otomano. Dezenas de milhares de jovens
australianos morreram na batalha, vencida pelas forças
otomanas sob a liderança de Mustafá Kemal Ataturk. Foi
a primeira vitória militar otomana contra um exército
europeu, em mais de três séculos.
Logo após o final da Primeira Guerra Mundial, com a
derrota otomana, Ataturk foi o responsável por uma verdadeira revolução que pôs fim ao Império Otomano e levou à criação da República da Turquia, tal como conhecemos atualmente. Mesmo tendo morrido em 1938, Ataturk
é objeto de veneração até hoje. Como prova, todas as cédulas e moedas da libra turca têm a efígie do líder histórico, que ganhou a alcunha de “Pai dos Turcos”.
Os principais combates em Galipoli ocorreram em
abril de 1915. Em abril, todos os anos, australianos e
neozelandeses visitam a península, na qual se encontram
memoriais e cemitérios dedicados aos combatentes da
terrível batalha. Galipoli assemelhou-se bastante às grandes batalhas de trincheiras que se verificaram em território europeu, como as do Somme e de Verdun (França),
marcas registradas da Primeira Guerra Mundial.
2009 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
2
E
D
I
T
O
R
I
A
L
CORRUPÇÃO É O PREÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL
TORNOU-SE RECORRENTE, NO BRASIL, A ASSOCIA-
RECÉM-FINADA “ERA BUSH”, NOS ESTADOS UNIDOS. MAS,
ASSUMIDAS NA ESFERA PÚBLICA. O ALHEAMENTO DA MAI-
ÇÃO ENTRE O MUNDO DA POLÍTICA INSTITUCIONAL (QUE
EM NOSSO PAÍS, ELA ADQUIRE PROPORÇÕES ALARMANTES,
ORIA PROLONGOU-SE NA
AGREGA OS TRÊS PODERES DA REPÚBLICA) E A PRÁTICA DA
ATÉ O PERIGOSO PONTO DE CAUSAR A DESMORALIZAÇÃO
VOTO ERA CENSITÁRIO E EXERCIDO APENAS PELOS GRAN-
CORRUPÇÃO. NINGUÉM MAIS SE ESPANTA COM AS REVELA-
DAS PRÓPRIAS INSTITUIÇÕES, E, POR EXTENSÃO, DO REGI-
DES PROPRIETÁRIOS.
ÇÕES SOBRE AS “TROCA DE FAVORES” ENTRE POLÍTICOS E
ME REPUBLICANO. NÃO É DIFÍCIL ENCONTRAR AQUELES QUE,
DE VOTOS ENTRE BANCADAS, NÃO RARO TRAINDO COM-
POR MEIO DE UM RACIOCÍNIO TORTUOSO, CULPAM A PRÓ-
PROMISSOS PROGRAMÁTICOS, EM NOME DE INTERESSES
PRIA DEMOCRACIA PELO DESCALABRO E SUGEREM UM “GO-
PRIVADOS; OU SOBRE A PRÁTICA DO NEPOTISMO (O EM-
VERNO FORTE” COMO SUPOSTA SOLUÇÃO.
O
SENADOR
PREGO DE PARENTES SEM QUALIFICAÇÃO EM CARGOS PÚ-
CRISTÓVÃO BUARQUE, NUM GESTO PELO QUAL DEPOIS SE
BLICOS); OU, AINDA, SOBRE
ENVOLVENDO
PENITENCIOU, CHEGOU A FLERTAR COM A IDÉIA DE UM PLE-
EMPRESAS E AQUELES QUE DEVERIAM REPRESENTAR OS IN-
CONGRESSO.
IRONICAMENTE, A RAIZ DA CORRUPÇÃO RESIDE, PRECISAMENTE NA TRADIÇÃO AUTORITÁRIA. AO LONGO DOS PRIMEIROS QUATRO SÉCULOS DE NOSSA HISTÓRIA, PRIMEIRO COMO
COLÔNIA E DEPOIS COMO IMPÉRIO, A ESCRAVIDÃO MOLDOU A
FORMA DE FAZER POLÍTICA: AS ELITES VIAM O ESTADO COMO
MERA EXTENSÃO DE SUAS PROPRIEDADES. A GRANDE MAIORIA
TERESSES DA SOCIEDADE.
DO
O
“ESQUEMAS”
MAIS RECENTE ESCÂNDALO
SENADO, INCLUINDO O USO PRIVADO DE TELEFONES
CELULARES E DE PASSAGENS AÉREAS PAGOS PELO ERÁRIO, É
APENAS MAIS UM ELO DESSA LONGA CADEIA.
CLARO
QUE A CORRUPÇÃO, TANTO NA ESFERA
PÚBLICA QUANTO NA PRIVADA, NÃO É PRIVILÉGIO DO
BRASIL. BASTA LEMBRAR OS GRANDES ESCÂNDALOS DA
BISCITO SOBRE O FECHAMENTO DO
DOS BRASILEIROS NUNCA FOI CONSULTADA SOBRE AS DECISÕES
REPÚBLICA VELHA, QUANDO O
E AS PROMESSAS MODERNISTAS DA
REVOLUÇÃO DE 1930, LIDERADA POR GETÚLIO VARGAS,
DISSIPARAM-SE, AO MENOS NO PLANO INSTITUCIONAL, COM
O ESTADO NOVO (1937-1945).
COM ALGUMA BOA VONTADE, PODEMOS FALAR
NA ESTABILIZAÇÃO DE UMA VIDA RELATIVAMENTE DEMOCRÁTICA ENTRE 1956 E 1964, INTERROMPIDA PELO
GOLPE MILITAR. E VIVEMOS, AGORA, UMA FASE FORMALMENTE DEMOCRÁTICA, INICIADA COM A CAMPANHA DAS
“DIRETAS JÁ!”, EM 1984. EM 500 ANOS DE HISTÓRIA,
TIVEMOS, NO MÁXIMO, QUATRO DÉCADAS DE VIDA DEMOCRÁTICA, MAS AINDA ASSIM MARCADA POR UMA PROFUNDA E ABSURDA DESIGUALDADE SOCIAL. A CORRUPÇÃO
NA ESFERA PÚBLICA É RESULTADO DESSA HISTÓRIA. É, EM
ÚLTIMA INSTÂNCIA, UM LEGADO DA ESCRAVIDÃO.
EL SALVADOR ENCERRA O CICLO DA
POLARIZAÇÃO POLÍTICA
O
© Wilson Dias/ABr
perfil e as atividades dos chamados
“Amigos de Maurício Funes” talvez sejam
o melhor retrato do que se passa em El Salvador. Funes fez seu discurso de vencedor
das eleições presidenciais cercado de comandantes dos ex-guerrilheiros da Frente
Farabundo Marti de Libertação Nacional
(FMLN), sob cuja legenda foi às urnas, e
reiterou a promessa de dar prioridade ao
combate à pobreza inclusive como um meio
de ”despolarizar” a política. Dedicou sua
vitória ao bispo Oscar Romero, assassinado em 1980 por considerar justas as insurreições, desde que os meios pacíficos não
consigam acabar com injustiças.
Mas Funes vestia a tradicional guaiabera, não as camisas vermelhas de seus companheiros de palanque. Embora pouco destacado, esse detalhe se entrosaria com outros numa definição antecipada do que
possivelmente acontecerá em El Salvador.
Foram os “amigos”, segundo a agência Latin
News, que “venderam” a mensagem vitoriosa de que Funes, com seus carisma, conseguiria mudar a maneira de fazer política
“num pais onde as divergências ideológicas significam de fato alguma coisa”. Os
salvadorenhos estariam cansados de tanta
violência e vêem Funes como alguém capaz de mudar as coisas pacificamente.
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
Funes: com apoio da guerrilha
chega à presidência
Os “amigos” se dizem “independentes,
pluralistas e não partidários”, nem sempre se entendem bem com a FMLN, formam um arco político que vai da esquerda à direita, foram decisivos na arrecadação de recursos de campanha e são um
manancial de assessores próximos de
Funes. O braço direito do presidente-eleito por exemplo, Hato Hasbún, foi membro das Forças Populares de Libertação,
primeira guerrilha de El Salvador. Hasbún
é frequentemente citado como elo de ligação entre Funes e a “ortodoxia” da
FMLN. Junto com ele, nos “amigos”, há
figuras com atividades bancárias cobrindo a América Central e um coronel da re-
serva do Exército, ex-comandante de operações de contra-insurgência e hoje espécie de assessor militar da FMLN.
Também figura no grupo Luis Angel
Lagos, criador em tempos passados do
“Ordem”, um esquadrão da morte de paramilitares. O mais influente dos “Amigos
de Mauricío Funes” junto ao presidente
eleito seria Alex Segóvia. Trata de questões econômicas e insiste em que qualquer
plano deve deve ter como meta a abolição
das causas da guerra civil: exclusão, pobreza e desigualdades. A empresa privada
não teria o que temer e tampouco estariam sendo arquitetados antagonismos aos
Estados Unidos. Mesmo assim, é uma ruptura com o conservadorismo, sustentado
durante vinte anos de governo da Aliança
Nacional Republicana (ARENA).
O reinado do partido criado pelo major Roberto D’Aubuisson, íntimo da CIA,
ex-aluno da Escola das Américas, do Comando Sul dos Estados Unidos, e comandante de esquadrões da morte, começou
depois de uma guerra civil que matou mais
de 70 mil, entre 1980 e 1997. Ainda recentemente foram encontrados restos
mortais de pessoas enterradas clandestinamente em valas comuns. Dom Oscar
Romero foi a vítima de maior projeção:
sua morte a tiros comoveu a América Latina e chamou mais atenção para o que se
passava em El Salvador. Ficou claro que a
política do então presidente americano
Ronald Reagan, de “contenção do comunismo” no continente, somou forças com
interesses oligárquicos em EL Salvador.
Uma exaustão sangrenta ajudou o trabalho da ONU na intermediação de um
acordo de paz. A FMLN, que carrega o nome
de Farabundo Marti, biografado como um
“centro-americanista revolucionário”, fundador de um fantasmagórico partido comunista da América Central, enfrenta agora,
afinal, os desafios do poder político. Funes,
um jornalista popular sem vinculações com
a guerra civil, filiou-se ao FMLN com o
único propósito de ser candidato. A FMLN,
num gesto de pragmatismo, aceitou-o depois de uma sucessão de derrotas com candidatos ex-guerrilheiros. Mas não se fala em
socialismo e muito menos no “socialismo do
século XXI” de Hugo Chávez. Há quem
aposte que Funes terá maior dificuldade de
convivência com seu próprio partido. A
FMLN “ortodoxa” é majoritária no parlamento. Quanto à ARENA, ainda tem o recurso de juntar-se a partidos menores e ficar
com maioria legislativa.
MAIO 2009
3
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
TRATADO DE VERSALHES
Arquivo pessoal
o dia 28 de junho de 1919, cinco anos
exatos após o atentado que matou o
arquiduque Francisco Ferdinando, ato
inaugural da Primeira Guerra Mundial, era
assinado o Tratado de Versalhes. As negociações do tratado prolongaram-se por seis
meses, na Conferência de Paz de Paris, que
envolveu mais de 30 países. O Tratado
redesenhou o mapa político europeu, recortando impérios e desenhando as fronteiras de novas nações.
Luiz de Alencar Araripe, coronel reformado de Artilharia e de Estado-Maior do
Exército, titular do Instituto de História
Militar e Geografia do Exército, é um especialista no tema. Ele escreveu o capítulo
sobre o Tratado de Versalhes para a obra
História da Paz (Contexto, 2008). Na entrevista seguinte, Araripe aborda a certidão
de nascimento da “Europa das nações”.
Coleção particular
N
HÁ 90 ANOS, EM PARIS, NASCIA A
EUROPA DAS NAÇÕES
Mundo – Por que foi escolhido o Palácio de Versalhes
como local de assinatura do tratado de paz negociado na Conferência de Paris, que encerrou a Primeira Guerra Mundial?
Luiz de Alencar Araripe – A escolha foi do presidente da Conferência, primeiro-ministro da França Georges
Clemenceau – “o Tigre”, como era chamado. O apelido
explica boa parte da decisão, tomada sob o impulso de
dois sentimentos sempre agudos na alma de Clemenceau:
amor à França e ódio à Alemanha. Os Aliados aprovaram
facilmente a opção pela amável capital francesa em detrimento da então severa Genebra de Calvino. Tudo no Palácio de Versalhes transmite ao visitante a imagem da glória da França e do soberano que o mandou construir,
Luis XIV, o “rei sol”. A Galeria dos Espelhos fora a escolha do chanceler Bismarck para proclamar a fundação do
Império Alemão, após a vitória na Guerra FrancoPrussiana de 1870. Escolha brutal, que Clemenceau, à
época jovem e fogoso deputado socialista à Assembléia
Nacional Francesa, guardaria na memória por quase meio
século. O Palácio, evocador de glórias e de humilhações
da França, foi o cenário perfeito escolhido pelo “Tigre”
para a celebração da vitória e a culminação da vingança.
Mundo – Quais foram os principais personagens da
Conferência? Qual era o interesse básico representado por
cada um?
LAA – Reuniram-se na capital francesa mais de um
milhar de estadistas, diplomatas, juristas, economistas,
jornalistas, parlamentares, homens de negócio, secretárias, enfermeiras e muitos curiosos. Nesse universo variado e colorido avultavam os chefes das delegações dos chamados Quatro Grandes: França, Grã-Bretanha, Itália e
Estados Unidos. Clemenceau, a cada momento, justificava o apelido de Tigre, ganho pela ferocidade com que
fez a guerra. Usou de ferocidade semelhante ao perseguir
A histórica assinatura do Tratado de Versalhes. Para o
coronel Luiz de Alencar Araripe (foto ao lado), o
acordo refletia o apoio dos aliados vencedores ao amor
nutrido por Georges Clemenceau à França e o ódio
à Alemanha
o grande objetivo de impor à Alemanha castigo tão forte
que ela nunca mais pudesse ameaçar a segurança da França. O primeiro-ministro Lloyd George, um simpático
inglês de olhos azuis, combinava habilidade de político
com o gosto pelas boas coisas da vida, a começar por
mulheres. Ele teve sempre em vista o estabelecimento de
um novo equilíbrio do poder na Europa, condição necessária para a segurança britânica. Peça essencial do equilíbrio seria uma Alemanha não tão forte que voltasse a
desafiar o poderio naval britânico e nem tão fraca que
não se pudesse opor a pretensões de hegemonia da França e à ameaça do bolchevismo russo. O primeiro-ministro Vittorio Emanuele Orlando, um siciliano
temperamental de bela cabeleira branca, pretendeu fazer
cumprir a promessa da França e da Grã-Bretanha de restituir à Itália as chamadas “terras irridentas” territórios
histórica e etnicamente italianos, mas sob a soberania de
outros Estados (Trentino, Trieste, Istria, Dalmácia).
Mundo – E o americano Woodrow Wilson?
LAA – Ele foi à grande estrela da Conferência, e não
somente por ser o presidente dos Estados Unidos. Chegou a Paris precedido por revolucionárias idéias sobre a
paz e as relações entre Estados. Um ano antes, falando
no Senado, havia apresentado seus famosos e controversos Catorze Pontos. O presidente pretendia que esses pontos constituíssem o paradigma para uma “paz justa e duradoura”. Wilson aceitou que seus Catorze Pontos fossem repetidamente desconsiderados nas negociações de
Paris, na crença de que a Liga das Nações corrigiria o que
considerava falhas do Tratado de Versalhes. Presidiu o
comitê elaborador do estatuto da Liga, e cuidou que seus
30 artigos fossem os primeiros do Tratado. No fim, o
Senado americano não aprovou o Tratado, mas Wilson
deixou na política internacional a forte marca de suas
idéias, resumidas na palavra “wilsonismo”, termo não raro
usado no sentido de utopismo.
Mundo – O Tratado de Versalhes e os outros tratados
que encerraram a Primeira Guerra Mundial redesenharam
o mapa político europeu. Quais foram as principais mudanças de fronteiras que eles provocaram?
LAA – O Tratado de Versalhes, acordo-quadro de
cinco outros tratados, eliminou do mapa-mundi três
vastos impérios: o da Alemanha, o Austro-Húngaro, e
o Turco-Otomano; extinguiu-os e retalhou-lhes o território, criando novos Estados, ampliando a superfície
de Estados aliados e fazendo encolher a dos que haviam
se alinhado com os Impérios Centrais. Não signatário
de Versalhes, um quarto império, o Russo, desapareceu
em consequência da grande guerra, surgindo em seu
lugar a União Soviética. O Império Alemão, amputado
de 13% o território, forneceu territórios que, juntamente
com outros, russos, permitiram a reconstituição da
Polônia. Do Império Austro-Húngaro foram extraídas
a Tchecoslováquia e parte da Iugoslávia. A Turquia, com
pequena parte de seu território na Europa, incluindo
minorias curdas e armênias, foi o que restou do Império Turco-Otomano.
2009 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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TRATADO DE VERSALHES
enhuma das principais potências triunfou de fato no
Tratado de Versalhes. A França humilhou a Alemanha,
mas não obteve uma paz duradoura. A Grã-Bretanha não
alcançou o equilíbrio de poder que almejava. Com o fracasso da Liga das Nações, os Estados Unidos de Wilson
não conseguiram mudar as regras da política internacional, impondo o princípio da segurança coletiva. Uma nova
e mais devastadora guerra enterrou de vez a obra imperfeita da Conferência de Paris. A seguir, a segunda parte
da entrevista de Luiz de Alencar Araripe.
Mundo – Os novos Estados Nacionais foram criados, a
partir da Conferência de Paris com base no princípio das
nacionalidades, de Woodrow Wilson, pelo qual as nações se
definem por critérios étnicos e linguísticos. Além de Estados,
os tratados acabaram criando, involuntariamente, minorias nacionais.
Luiz de Alencar Araripe – A Tchecoslováquia e a Iugoslávia foram criadas para responder aos anseios de independência de minorias étnicas; mas eles, por sua vez,
incluíram minorias étnicas. Tais minorias, sob o impulso
do nacionalismo, levaram à crise da Sudetolândia e ao
fim do Estado tchecoslovaco, esmagado pelo nacionalismo hitlerista. O nacionalismo étnico também respondeu pelo esfacelamento da Iugoslávia. A finada União
Soviética fez-se a paladina das minorias por todo o mundo, obscurecendo o fato de ser chamada “a prisão das
nações”. Com o fim do Estado soviético, eclodiram movimentos de libertação de minorias, ainda não encerrados. Na Turquia, as minorias curda e armênia continuam a lutar pela liberdade.
Mundo – Alguns analistas enxergaram nas guerras que
desmantelaram a Iugoslávia, a partir de 1992, uma retomada dos nacionalismos e do princípio das nacionalidades
do início do século XX. Seria isso mesmo?
LAA – O Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos,
depois Iugoslávia, foi uma união instável desde o início,
ameaçada pelas forças centrífugas dos nacionalismos. Em
1980, o presidente Josip Broz Tito morreu e as frágeis
costuras da Iugoslávia começaram a estourar. Em 1989 o
ex-comunista e ultranacionalista Slobodan Milosevic se
elege presidente da República da Sérvia. Pretendendo
consolidar a hegemonia sérvia, Milosevic desencadeou o
processo de violência, pontilhado de tumultos e que culminaram com guerra e a “limpeza étnica”, erigida em
doutrina para resolver diferenças étnicas, religiosas ou
políticas. Em 1991, as proclamações de independência
das repúblicas iugoslavas se sucedem. Em 1992, a BósniaHerzegóvina declara independência da República Federativa da Iugoslávia, e é atacada pelo o Exército iugoslavo.
Mundo – O “utopismo americano” na Conferência de
Paris manifestou-se, principalmente, sob a forma do projeto
da Liga das Nações. A que se deve o posterior fracasso da
Liga das Nações?
LAA – A simples enunciação de princípios nos Catorze Pontos mostra seu forte traço de utopia e explica o
ceticismo com que os líderes europeus os receberam: ética na política exterior e, em particular, no futuro tratado
de paz, fim da diplomacia secreta, liberdade dos mares,
desarmamento geral, abolição de restrições ao comércio
internacional. Finalmente, o projeto do coração de Wilson: a Liga das Nações, capaz de fazer com que a negociação substituísse a guerra na solução das controvérsias
internacionais. Era o conceito de segurança coletiva,
diametralmente oposto ao de alianças, base do equilíbrio
do poder, caro aos europeus e abominado por Wilson. A
Liga foi a mais forte razão para que o Senado rejeitasse
todo o Tratado. É difícil pensar que os senadores aprovassem um instrumento legal que opunha limitações à
soberania dos Estados Unidos no cenário internacional.
E Wilson quase conseguiu isso. Quase. Sem a participação americana, e com o apoio morno das grandes potências, a Liga foi perdendo substância.
Mundo – O Tratado de Versalhes é geralmente interpretado como fonte da crise econômica alemã e do revanchismo
político que conduziu Hitler ao poder. É correto fazer uma
© Museu Imperial da Guerra, Londres
N
“WILSON QUASE APROVOU A LIGA
NO SENADO. QUASE”
Clemenceau escolheu a Sala dos Espelhos (no
Palácio de Versalhes) para impor simbolicamente
a superioridade francesa à derrotada Alemanha
associação direta entre Versalhes, o nazismo e a Segunda
Guerra Mundial?
LAA – A associação direta entre Versalhes, o nazismo
e a Segunda Guerra Mundial tem sido objeto de muitas
discussões entre historiadores. Certamente que existe uma
relação de causa e efeito entre esses eventos, mas não há
unanimidade sobre o grau da influência direta da crise e
do revanchismo no desencadeamento da Segunda Guerra Mundial. A guerra de 1939 tem muitas e variadas causas. Versalhes é uma delas. O Tratado indignou toda a
Alemanha, antes mesmo de ser assinado. Indignou e forneceu a políticos e militares material fértil que, competentemente processado por Hitler, facilitou a ascensão
do nazismo e, consequentemente, levou à guerra. A Segunda Guerra Mundial é, acima de tudo, obra de Adolf
Hitler, não se deve esquecer. Obra facilitada pela omissão de franceses e ingleses em aproveitar as janelas de
oportunidade abertas pelo próprio ditador para detê-lo.
Mundo – Pouco se fala disso, mas o Brasil participou da
Conferência de Paz de Paris com uma delegação que acompanhou a delegação dos EUA.
LAA – O Brasil postulou ter um lugar na conferência
de paz com a credencial de único país latino-americano a participar efetivamente da guerra.
Navios mercantes torpedeados,
oficiais brasileiros combatendo
em terra e pilotos lutando no ar;
a Divisão Naval enviada para o
teatro de operações; a missão
médica trabalhando em hospital franco-brasileiro, mantido
por brasileiros residentes em Paris. Nada disso valeu para assegurar participação nas negociações de paz. Tivemos que recorrer ao apoio de Wilson para que
a França e a Grã-Bretanha aceitassem a presença de três representantes do Brasil na Conferência de Paris. Rui Barbosa seria o
chefe natural da delegação brasileira, com seus antecedentes na
Conferência de Haia, mas recusou chefiar a delegação, a fim de
preparar-se para disputar as eleições para presidente da República. Epitácio Pessoa assumiu a
chefia da missão, foi para a Europa, e derrotou facilmente Rui.
Voltou num navio de guerra
americano, tornando-se o 12º
presidente da República. Assim
era o Brasil.
MAIO 2009
5
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
Gilson Schwartz
Especial para Mundo
Q
uanto mais profunda a crise global,
mais os governos tentam salvar bancos,
empresas e empregos nacionais. Esse refúgio dos Estados nos seus territórios
desconsidera que o principal problema da
economia internacional é de natureza simbólica e afeta uma “coisa” que há muito
deixou de ser nacional: a moeda. É como
tratar uma infecção receitando doses cavalares de vitaminas. Em tese, o reforço
dá mais condições ao corpo de resistir à
doença. Na prática, o inimigo invisível
apenas se alimenta dos nutrientes despejados sobre o organismo desnorteado.
O erro é conveniente para o governo
que orquestrou a globalização e, desde o
fim da Segunda Guerra Mundial, define o
ritmo dessa dança: os Estados Unidos. Afinal, nada melhor para um governo nacional que emite a moeda de curso internacional: a injeção maciça de estímulos fiscais
e financeiros em todos os mercados do
mundo, se não resolve o problema da recessão, prolonga essa anomalia. Uma moeda nacional continua orientando as bússolas usadas pelos principais atores do jogo
econômico internacional: instituições financeiras, empresas e investidores privados.
Ao focar as agendas no medo de uma
Grande Depressão, os Estados Unidos deixam em segundo plano a questão da reforma monetária internacional, dos
desequilíbrios de poder entre países ricos e
destes com o resto do mundo. Se o problema é a recessão, tome estímulos fiscais (mais
gastos públicos, menos impostos), financeiros (taxas de juros próximas de zero ou
mesmo negativas, quando descontado o
efeito da inflação) e protecionismo (barrar
importações, estimular exportações).
Em tese, mais cedo ou mais tarde o
estímulos devem fazer efeito. É o chamado “keynesianismo”, receita que se consagrou depois da Crise de 29. Diante de um
colapso da demanda provocado por desequilíbrios financeiros, tudo soa como uma
gigantesca operação de socorro ao “lado
real” da economia. Mas, se o “lado simbólico” continua sob a égide do Fed (o
banco central americano), os desequilíbrios continuam. Ou seja, mesmo que afinal
aconteça uma recuperação do nível de atividade, dos investimentos e do emprego,
o ciclo recomeçaria sob a batuta do mesmo maestro que, em última análise, jogou todo o sistema numa rota de acumulação de lucros especulativos, até o colapso do castelo de cartas. E nenhuma palavra sobre políticas cambiais e reforma do
NINHO
DA IMPLOSÃO CAMBI
A ECLOSÃO DA ATUAL CRISE E A SUA DIFUSÃO PELO MUNDO CONFRONTARAM-NOS COM UMA ANTIGA MAS AINDA NÃO RESPONDIDA
QUESTÃO, ISTO É, QUE TIPO DE MOEDA INTERNACIONAL DE RESERVA NECESSITAMOS PARA ASSEGURAR A ESTABILIDADE FINANCEIRA
GLOBAL E FACILITAR O CRESCIMENTO ECONÔMICO MUNDIAL (...)? EXISTIRAM VÁRIOS ARRANJOS INSTITUCIONAIS COM A FINALIDADE
DE ENCONTRAR UMA SOLUÇÃO, INCLUINDO O PADRÃO PRATA, O PADRÃO OURO, O PADRÃO DE CÂMBIO OURO E O SISTEMA DE
BRETTON WOODS. (...) A CRISE, NOVAMENTE, SOLICITA A REFORMA CRIATIVA DO SISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL EXISTENTE,
NA DIREÇÃO DE UMA MOEDA INTERNACIONAL DE RESERVA COM VALOR ESTÁVEL, COM EMISSÃO AMPARADA EM REGRAS E OFERTA
ADMINISTRÁVEL, A FIM DE (...) RESGUARDAR A ESTABILIDADE ECONÔMICA E FINANCEIRA GLOBAL.
(“REFORMAR O SISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL”, ZHOU XIAOCHUAN, PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL DA CHINA, 23 DE MARÇO DE 2009)
© ImageChina/AFP
CHINA
sistema financeiro internacional (instituições como FMI, Banco Mundial e OMC,
que se tornaram inúteis seja para prever,
seja para remediar a crise).
Uma voz dissonante, no entanto, veio
do verdadeiro irmão siamês dos Estados
Unidos na promoção da globalização das
últimas duas décadas. A era do dólar estaria chegando ao fim, na opinião do presidente do banco central chinês, Zhou
Xiaochuan. Para a China, é urgente adotar uma nova moeda internacional em
substituição ao dólar.
A interdependência entre China e Estados Unidos é uma das características mais
importantes do ciclo mais recente de globalização. O consumidor americano transferiu dólares para as reservas do banco central chinês e boa parte desse dinheiro foi
investido pela China em Wall Street e em
títulos de dívida pública do Tesouro americano. Assim, quando a cúpula chinesa
ameaça abandonar o dólar, o risco é o de
uma tremenda crise de financiamento ao
governo e à economia americana. Uma fuga
de capitais chineses obrigaria o Fed a promover uma brutal elevação de juros para
continuar atraindo a poupança do resto do
mundo. Isso aprofundaria a recessão nos
Estados Unidos, mas ao mesmo tempo provocaria o colapso completo do modelo exportador chinês (veja a matéria à pág. 9).
Ora, se o sucesso chinês é indissociável
do desempenho dos Estados Unidos, qual
a lógica do banco central chinês quando
propõe o fim do dólar como referência
para o funcionamento dos mercados globais? Há pelo menos três hipóteses para o
movimento supreendente do governo chinês: catástrofe, chantagem e mutação.
Num cenário catastrófico, a liderança
chinesa – habituada a longas marchas
movidas pelo sangue, suor e lágrimas de
uma população gigantesca – pode estar
trabalhando com a hipótese de que o desarranjo social, político e econômico nos
Estados Unidos seria maior que o chinês.
Ou seja, valeria apostar na linha do quanto pior, melhor. No final, a China assumiria o papel dos Estados Unidos no comando de uma nova era de expansão global (veja a matéria à pág. 7).
Uma hipótese mais pragmática e viável é
a da pura chantagem. Antes da posse, Barack
Obama e seu secretário do Tesouro, Timothy
Geithner, fizeram duras acusações à “manipulação cambial” patrocinada pela China. Ou
seja, apesar dos volumosos saldos no comércio exterior, o governo chinês sempre evitou
a valorização de sua moeda (que tornaria suas
exportações menos competitivas, evitando o
desequilíbrio comercial global). Mas algo
mudou: em abril, o Tesouro americano manifestou-se solidário com o governo chinês e
simplesmente apagou da agenda as críticas à
manipulação cambial dos chineses.
2009 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
6
BIAL MUNDIAL ?
V
TRÊS PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO
© AFP
amos todos aprender chinês, no lugar do inglês? No plano do senso comum, há
décadas, circula a idéia de uma substituição de hegemonia global. Nos anos 80, até
mesmo alguns especialistas garantiam que os Estados Unidos estavam prestes a ceder a posição de número um para o então ascendente Japão. Na última década, a
Cenas “brasileiras”: crianças chinesas trabalham numa fábrica de
brinquedos em Donguan, ao sul do país, e um trabalhador sem teto
cozinha o seu almoço sob um viaduto em Hefei, a leste; o “milagre
econômico” beneficia apenas uma minoria dos 1,3 bilhão de chineses
Entre os discursos de campanha e as
manifestações recentes, houve o discurso do
presidente do banco central chinês pedindo um novo “Bretton Woods”. A chantagem, portanto, funcionou. As duas potências estão abertamente unidas no combate
à “depressão”, desde que nos bastidores seja
preservada a aliança informal entre estímulo
ao consumo nos Estados Unidos e recuperação das exportações na China.
O terceiro cenário é o de uma liderança chinesa efetivamente empenhada num
esforço internacional pela correção dos
desequilíbrios estruturais entre os países e
não apenas comprometida com gastos
públicos contra a depressão (o pacote chinês de US$ 586 bilhões só perde para os
gastos anunciados nos EUA, de US$ 787
bilhões, fora os trilhões injetados em bancos e instituições financeiras).
O estímulo dos gastos públicos chineses (6% do PIB) equivale ao triplo da que-
da de exportações ocorrida em 2009. Esse
esforço poderia ser complementado por
uma grande desvalorização cambial na
China, jogando a Ásia e o resto do mundo numa guerra comercial. Lembrem-se:
no final de 1993, a China desvalorizou a
moeda em 33%, gesto que muitos apontam como causa dos colapsos da Tailândia,
Rússia e Brasil entre 1997 e 1999.
Resumo da ópera chinesa: enquanto o
mundo e a mídia orientam os holofotes
para as medidas de estímulo fiscal e financeiro, Pequim e Washington protagonizam
um arriscado roteiro de ameaças e chantagens que pode ser a semente de uma inédita implosão cambial global.
Gilson Schwartz, economista e
professor da USP, foi economistachefe do BankBoston no Brasil e
assessor da presidência do BNDES.
Lidera o grupo de pesquisa Cidade do
Conhecimento (www.cidade.usp.br).
China emergiu como candidato aparentemente óbvio a tomar o posto ocupado
pelos Estados Unidos há um século. A crise econômica global, com epicentro no
colapso das altas finanças americanas, atiçou a chama das especulações geopolíticas.
Começou, enfim, o declínio definitivo da hiperpotência e a paralela ascensão da
potência asiática rumo à condição de número um?
Nada é tão simples, se levamos em conta que a plataforma de ascensão chinesa é
justamente o poderio econômico americano, expresso na dimensão de seu mercado
interno e na dinâmica das suas finanças (veja a matéria à pág. 6). Mas, além disso,
há obstáculos bem definidos na estrada triunfal que conduziria a China até o paraíso. Os nomes deles: demografia, economia, democracia.
A China, por paradoxal que pareça, enfrentará logo o desafio posto por um
lento crescimento populacional. O país, hoje com 1,340 bilhão de habitantes, pratica há décadas uma rigorosa política anti-natalista. A ditadura de partido único,
impondo penalidades tributárias brutais, assegurou um relativo sucesso dessa política. Estima-se que a taxa de natalidade gire em torno de 13,71 por mil e a de
mortalidade, em torno de 7,03 por mil. O crescimento vegetativo resultante, de
0,67%, está entre os mais baixos fora do mundo desenvolvido. A idade média da
população já ultrapassou 34 anos. No Brasil, é de 28,6 anos. A tendência é de um
acelerado envelhecimento da população, com repercussões sociais explosivas.
Nos países desenvolvidos, o envelhecimento da população foi um fenômeno
posterior à ampliação da riqueza nacional, que permitiu erguer abrangentes sistemas de seguridade social. Na China, o envelhecimento precede o enriquecimento.
Como fechar a equação sem ameaçar a estabilidade política?
A expansão econômica a taxas médias em torno de 10%, ao longo de um quarto
de século, deriva da transferência em massa da população camponesa para as cidades. Substituindo o trabalho agrícola rudimentar pelo trabalho industrial moderno, a China experimenta saltos sucessivos de produtividade, cujo reflexo aparece no
crescimento do PIB (veja a matéria à pág. 8). Mas a continuidade da expansão, em
taxas tão elevadas, exige um ambiente econômico global favorável.
A indústria implantada em território chinês precisa de consumidores nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, nos Tigres Asiáticos, na América Latina.
Até quando ela terá mercados amplos, abertos e crescentes? A crise atual confere uma ênfase maior à pergunta. Uma coisa é certa: a China não tem a opção
de crescer devagar. Um rumo desse tipo implicaria fechar as portas das cidades
às massas que deixam o campo e negar um emprego decente aos milhões de
jovens que, anualmente, brotam com diplomas do interior das universidades.
Ninguém segura uma panela de pressão social de dimensões chinesas...
Nas democracias, sistemas políticos flexíveis absorvem as crises e oferecem
saídas para o descontentamento social. Os americanos que perderam suas casas e suas poupanças de décadas nos últimos meses não empunharam armas
contra Wall Street: elegeram Barack Obama. Na China, um sistema político
inflexível, autoritário e fechado, é o alvo evidente das tensões sociais.
Há duas décadas, enquanto ruía a União Soviética, a China conheceu o
maior movimento popular recente pela democracia. A multidão de jovens
reunida na Praça da Paz Celestial, em 1989, foi dizimada a tiros. De lá para cá,
a expansão econômica contínua e acelerada amortizou a tensão latente. Mesmo assim, milhares de protestos isolados pipocam todos os meses nas províncias do imenso “continente chinês”. Não é fácil, em tempos normais, negar
direitos políticos elementares a uma população que emerge acima da miséria.
Será possível negá-los por anos a fio, pontilhados de crises e tempos de vacas
magras? Será possível fazê-lo na “era da informação”, uma época em que quase
tudo pode ser lido no éter da internet?
O futuro não está escrito. Ninguém tem respostas a tais perguntas. Ninguém sabe se a China um dia tomará o posto de número um. Mas não acredite
no senso comum: ele quase sempre está errado.
MAIO 2009
7
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
CHINA
OS RATOS DE DENG XIAOPING
ão importa a cor do gato, desde que ele cace o rato”:
na boca de uma pessoa qualquer, a frase seria interpretada como um simples provérbio popular, auto-evidente;
proferida, no final dos anos 70 do século passado, por
Deng Xiaoping (1904-1997), ela sinalizou uma gigantesca “virada” na história da República Popular da China. Deng, o todo-poderoso sucessor do dirigente comunista chinês Mao Tsetung (1893-1976), sinalizava a adoção do “pragmatismo”: o Estado chinês deveria, a partir
de então, “flexibilizar” o processo deflagrado em 1949
por Mao, quando os comunistas tomaram o poder, e iniciar um processo de “modernização” econômica. Isso significava, concretamente, abandonar o conceito de uma
economia totalmente coletivizada e controlada pelo Estado, para abrir espaço para a iniciativa privada. Hoje,
esse modelo é mundialmente conhecido como “socialismo de mercado”. Como entendê-lo?
Ao tomar o poder na China, Mao iniciou um processo
espelhado na revolução soviética de outubro de 1917: toda
a economia passou a ser controlada pelo Estado que, por
sua vez, foi submetido à ditadura do Partido Comunista
Chinês (PCC), o único com existência legal permitida. E
o PCC era dominado pelo “Grande Timoneiro” Mao (assim como, na União Soviética o partido único era controlado pelo “Genial Pai dos Povos” Josef Stalin). As terras
foram expropriadas e transformadas em sistemas de cooperativas coletivas controladas por funcionários do Estado
(isto é, por membros do partido), e o mesmo aconteceu
com a indústria e com o setor financeiro.
O período maoísta conduziu o país a um absoluto
desastre. País de tradição agrícola, com uma população
que, em 1949, beirava os 600 milhões de habitantes, a
China nem chegou perto do processo de industrialização
acelerada desejado por Mao, e o sistema econômico estatal acabou desarticulando o processo produtivo que, bem
ou mal, existia no campo. O resultado foi o desemprego
em massa nas cidades e a fome em regiões inteiras da
China. Só as indústrias bélica e de infraestrutura apresentaram resultados um pouco menos desastrosos, mas
elas tinham um objetivo preciso: exponenciar a capacidade de repressão e controle social por parte de Mao e
dos burocratas encastelados no PCC.
Com a morte de Mao, Deng Xiaoping iniciou um processo de reformas, cujo objetivo era estimular a economia.
Não por acaso, começou pelo campo: permitiu que os camponeses cultivassem pequenas áreas em benefício próprio,
assim gerando um excedente alimentar capaz de atenuar a
situação catastrófica de desabastecimento. Foi quando surgiram as primeiras cooperativas privadas de camponeses (embora a terra ainda pertencesse ao Estado), e o surgimento de
uma nova classe de camponeses ricos. A partir de 1982, após
o XII Congresso do PCC, Deng iniciou a “abertura” no
setor industrial. O governo estimulou a competição entre as
empresas (todas Estatais), premiando as que atingissem
melhores índices de qualidade e de produtividade, tendo
como referência os padrões internacionais.
© AFP
N
“
© AFP
O experimento do “socialismo de mercado” integrou a China aos fluxos mundiais das finanças e do comércio, incorporando 200
milhões de pessoas à economia da globalização. Sem desmontar a ditadura de partido único
Março - abril de 1989: na Praça da Paz Celestial (Pequim), milhares de jovens exigem a
democratização do país, muitos apoiando-se em antigos escritos do histórico líder Mao Tsetung (no
detalhe, ao apertar a mão de Deng Xiaoping, à dir.); o movimento foi liquidado com o massacre de 2
mil estudantes pelo exército, em 4 de abril
Mas o “grande salto adiante” (lema muito utilizado,
com sentido bem diferente, por Mao para estimular a
produção, nos anos 50) veio com a criação das Zonas
Econômicas Especiais (ZEE), nas províncias litorâneas,
destinadas a atrair investimentos estrangeiros. Elas funcionavam como verdadeiros “paraísos” para as empresas
capitalistas: mão-de-obra barata (salários que ainda hoje
beiram os US$ 30 mensais, por uma jornada diária de 12
horas de trabalho), quase total isenção de impostos, total
liberdade de ação. Em troca, as empresas deveriam estabelecer joint-ventures (associações) com empresas estatais
chinesas, que queriam modernizar suas “técnicas de
gerenciamento”, além de promover uma certa transferência de tecnologia. As primeiras ZEEs foram implantadas em Shenzen, Zhuhai e Xiamen.
O novo modelo permitiu à China crescer a taxas superiores a 9% ao ano, em média, durante os anos 90.
Mas, diferentemente do que fez Mikhail Gorbatchev na
União Soviética, que tentou conciliar abertura econômica (perestroika) e política (glasnost), o governo chinês acentuou a repressão. O grande emblema disso foi o massacre
de 2 mil jovens, trabalhadores e estudantes que protestavam na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em abril de
1989, há quase exatas duas décadas. Não por acaso, eles
aclamavam Gorbatchev (que visitou Pequim, em março
daquele ano) e pediam uma glasnost na China.
A incorporação de Hong Kong à China, em julho de
1997, graças a um acordo com a Grã-Bretanha, que detinha o controle do território, acentuou ainda mais o caráter capitalista da integração do país ao mercado mundial, consagrado pela sua inclusão à Organização Mundial do Comércio, em 2001 (veja a matéria à pág. 9).
Hong Kong é, ao lado de Cingapura, o centro nervoso
do capital financeiro da Ásia, por onde passam investimentos e capitais especulativos e industriais de toda a
região, incluindo Japão e Tigres Asiáticos.
O chamado “socialismo de mercado”, portanto, serve para descrever (ou ocultar?) um sistema algo bizarro,
que mantém uma armadura política e retórica herdada
da revolução de 1949 (a ditadura do partido único, os
louvores ao “Grande Timoneiro” Mao), mas com uma
economia estruturada segundo as normas do capital.
Hoje, cerca de 200 milhões de chineses constituem uma
classe média que consegue, de alguma forma, participar
dos bilhões de dólares que circulam na economia, ao passo
que mais de um bilhão vivem entre a pobreza e a miséria
absoluta, contidos por uma feroz polícia política.
Deng acertou: o gato é bom se caça ratos. Mas faltou
explicar melhor quem são os ratos.
2009 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
8
CHINA
PEQUIM TEME PROTECIONISMO
Crise global ameaça os mercados que consomem produtos chineses e a estabilidade
da moeda na qual estão expressos os investimentos da China. Hoje, a potência
asiática tornou-se um baluarte da ortodoxia econômica
Gráfico 1
Balança comercial da China (2005)
US$ bilhões
900
800
Exportações
700
600
500
Importações
400
300
200
100
0
Mundo
Ásia*
Am. Norte
Europa**
* Inclui Oceania e exclui Oriente Médio - ** Exclui CEI
FONTE: OMC, 2009
Gráfico 2
Distribuição das exportações da China (2005)
300
US$ bilhões
250
200
150
100
50
0
Japão
EUA
UE
CEI
Ásia*
Am. Norte
Europa**
Outros
* Inclui Oceania e exclui Oriente Médio - ** Exclui CEI
FONTE: OMC, 2009
Gráfico 3
Distribuição das importações da China (2005)
350
300
US$ bilhões
China é contra qualquer forma de protecionismo e nós
propomos a cooperação e a negociação para solucionar todas as questões concernentes ao comércio internacional”,
declarou Yao Jian, o porta-voz do Ministério do Comércio
chinês, em fevereiro. Yao prometeu apoio integral aos esforços da Organização Mundial de Comércio (OMC) para
evitar a disseminação do protecionismo e pediu à OMC
que conclame “todos os países membros a se comprometerem com a sua estratégia de livre comércio”. Na mesma entrevista coletiva, mirando nos Estados Unidos, cujo Congresso acabara de aprovar um pacote de estímulo fiscal que
contém uma cláusula de incentivo à compra de produtos
nacionais, o vice-ministro do Comércio Jiang Zengwei
garantiu: “Nós não praticaremos o Buy China. Trataremos
igualmente os produtos domésticos e estrangeiros.”
Na esfera comercial, o século XXI inicia-se com essa
pequena aula de liberalismo econômico ministrada por
uma ditadura de partido único, que ainda cultua Mao
Tsetung, à maior potência mundial, uma nação que só
cultua os deuses da liberdade econômica. O paradoxo,
uma fina ironia da história, decorre tanto dos efeitos políticos do colapso financeiro nos Estados Unidos quanto
dos interesses nacionais objetivos chineses.
A China, uma “economia socialista de mercado”, na
curiosa e internamente contraditória definição oficial, precisa conservar um ritmo acelerado de crescimento econômico, para assegurar um mínimo de estabilidade política interna (veja a matéria à pág. 7). Mas o crescimento
acelerado depende, crucialmente, da manutenção de
mercados abertos e, em particular, do livre acesso de bens
chineses aos consumidores americanos.
Na globalização, o comércio oscila mais que o PIB,
tanto para cima quanto para baixo. No ciclo de expansão
econômica mundial, entre 2000 e 2007, o PIB global
cresceu 3%, enquanto o comércio cresceu 5,5%. A China é um caso à parte: no período, suas exportações aumentaram em espantosos 22,5% (contra 6% dos Estados Unidos e do Japão e 12% da União Européia) e suas
importações em 18% (contra 7% dos Estados Unidos e
do Japão e 12% da União Européia). Como resultado,
em 2007, a China tornara-se o segundo exportador mundial, com 8,9% do total, atrás apenas da Alemanha (9,7%)
e à frente dos Estados Unidos (8,5%), e o terceiro importador mundial, com 6,8% do total, atrás dos insaciáveis Estados Unidos (14,5%) e da Alemanha (7,6%).
A irresistível ascensão comercial da China revolucionou toda a matriz de intercâmbios globais. O comércio
intra-regional asiático, que era relativamente pouco expressivo, passou a corresponder a quase metade do total
dos intercâmbios da Ásia em 2007. É que a China transformou-se no grande elo das cadeias de produção e consumo que conectam a Ásia ao Ocidente e, em especial,
ao mercado americano. Os imensos saldos positivos na
balança comercial chinesa devem-se, sobretudo, aos intercâmbios bilaterais com a América do Norte e a Europa. Mas o vasto intercâmbio da China com o restante da
Ásia gera saldos negativos (veja o Gráfico 1).
250
200
150
100
50
0
Japão
EUA
UE
CEI
Ásia*
Am. Norte
Europa**
Outros
* Inclui Oceania e exclui Oriente Médio - ** Exclui CEI
FONTE: OMC, 2009
Gráfico 4
Saldo em conta corrente
US$ bilhões
A
“
E DESVALORIZAÇÃO DO DÓLAR
450
300
150
0
-150
-300
-450
-600
-750
-900
China
EUA
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
China 2000-08 (Saldo de conta corrente)
20.519 17.405 35.422 45.875 68.659 160.818 249.866 371.833 399.325
EUA 2000-08 (Saldo de conta corrente)
-417.429 -382.370 -461.271 -523.413 -624.999 -728.994 -788.115 -731.214 -664.125
FONTE: FMI, 2009
A China exporta produtos manufaturados finais para os
Estados Unidos e a União Européia, seus dois principais
clientes (veja o Gráfico 2). As estruturas produtivas implantadas na China, que têm como estrato mais dinâmico e
moderno as empresas estrangeiras, utilizam sobretudo bens
de produção e componentes fabricados no Japão e nos Tigres Asiáticos. Por esse motivo, a Ásia é, de longe, a principal fonte das importações chinesas (veja o Gráfico 3).
Isso significa que a China é a ponte vital entre as tecnologias elaboradas no Japão e nos Tigres Asiáticos e o
mercado consumidor dos Estados Unidos. A parcela de
maior conteúdo tecnológico e de maior valor das exportações chinesas é produzida por empresas japonesas, americanas, coreanas, européias, operando em território chinês, empregando a abundante mão-de-obra barata chinesa e sob as regras políticas e sociais estabelecidas pela
ditadura do partido único. O pleno funcionamento desse sistema produtivo integrado à globalização assegurou
as invejáveis taxas de expansão do PIB chinês registradas
há quase três décadas. A China não pode admitir que
uma descontrolada onda protecionista, deflagrada pela
crise econômica global, destrua as engrenagens que a converteram em potências mundial.
A dinâmica do sistema produtivo da globalização assenta-se sobre o desequilíbrio estrutural entre o excesso de
consumo no Ocidente, de um lado, e o excesso de produção (e, portanto, de poupança) na China. A expressão do
desequilíbrio encontra-se na conta corrente do balanço de
pagamentos dos Estados Unidos e da China. A conta corrente é a diferença entre os ingressos e as saídas de capital
das economias nacionais. A conta de capital dos Estados
Unidos gera saldos positivos, em virtude dos lucros obtidos pelas empresas americanas que operam no exterior,
mas tais saldos estão longe de cobrir os déficits comerciais.
O resultado são saldos negativos em conta corrente que
atingiram mais de US$ 650 bilhões em 2008. Na China,
pelo contrário, a adição dos saldos positivos na conta de
capital aos amplos superávits comerciais resulta em saldos
positivos em conta corrente que atingiram cerca de US$
400 bilhões em 2008 (veja o Gráfico 4).
O déficit americano e o superávit chinês formam dois
lados de uma mesma gangorra. No fim, a equação fecha
apenas porque as imensas somas de capital em mãos da
China são investidas nos mercados financeiros do Ocidente
e, em particular, em títulos emitidos pelo Tesouro dos Estados Unidos. Por essa via, a China financia o déficit (e o
consumo) americano, assegurando a continuidade de um
sistema que promove o seu próprio crescimento.
Mas tudo se torna dramático se o dólar ingressa numa
espiral de desvalorização. A perda de valor da moeda americana, que é a moeda do mundo, dissolve ativos chineses
investidos no mercado financeiro ocidental. Os chineses tremem de pavor diante da perspectiva de que os formidáveis
pacotes fiscais de Barack Obama se traduzam, mais adiante,
por uma onda de inflação nos Estados Unidos. Não por
acaso, já começam a sugerir nada menos que a substituição
do dólar por alguma outra moeda mundial.
MAIO 2009
9
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
Nelson Bacic Olic
Da Redação de Mundo
Cidade do Cabo é a expressão concreta de uma convergência peculiar entre
a geografia e a história. Localizada numa
pequena península no extremo sul do continente africano, Capetown é o segundo
maior núcleo urbano (3,3 milhões de habitantes), da República Sul Africana (veja
o Mapa 1). Quem chega à cidade, logo
vislumbra seu mais importante acidente
natural, a Table Mountain (Montanha da
Mesa). Este bloco de relevo tabular, de
1.087 metros, pode ser avistado de todos
os pontos da cidade. A vista da cidade a
partir da Table Mountain é lindíssima.
A cidade e regiões próximas guardam
uma singular mescla cultural e
populacional, resultado da superposição e
miscigenação de diferentes culturas ao longo do tempo. Aos hotentotes, grupo ancestral que habitava a região, juntaramse, há cerca de mil anos, povos bantos que
se expandiam para o sul. No século XVII
chegaram os colonizadores europeus, primeiramente holandeses, que fundaram a
cidade e criaram a Colônia do Cabo, em
1652 [veja o Box). Calvinistas, esses colonos fugiam às perseguições religiosas
movidas a eles na Europa. Em seguida,
chegaram outros colonos protestantes, de
origens francesa, inglesa e alemã. Nesse
Península e
Cidade do Cabo
período houve expressiva mestiçagem entre os colonizadores e grupos africanos.
Ato contínuo foram trazidos escravos,
assim como trabalhadores livres, da
Malásia, da Indonésia, da África Oriental
e do Subcontinente Indiano. Houve também mestiçagem entre esses grupos e os
que ali já se encontravam. Do século XIX,
quando a Colônia do Cabo passou ao domínio britânico, até os dias atuais, juntaram-se a esse caldeirão étnico-cultural
imigrantes europeus de várias nacionalidades e imigrantes vindos de países vizinhos como Angola, Moçambique e
Zimbábue. Vez por outra, estes últimos
têm sido vítimas de atos de xenofobia.
Dessa evolução demográfica resultou
uma composição populacional bem diversa do resto da África do Sul. Segundo o
censo de 2001, os coloreds (mestiços, na
classificação criada pelo apartheid e conservada até hoje) perfaziam 48,2% da po-
Namíbia
Botsuana
República
Sul
Africana
Ilha de
Robben
Cidade
do Cabo
OCEANO ÍNDICO
Área
central
da
Cidade
do Cabo
Reserva
natural
do Cabo
OCEANO
Cabo
da
ÍNDICO
Boa
Esperança
OCEANO
ATLÂNTICO
Mapa 1
Cape Point
pulação, seguidos pelos “negros” (31,7%)
e “brancos” (18,7%). Capetown pode se
orgulhar de ser a mais cosmopolita e liberal cidade do país. Um cartão de visita da
cidade é o Victória & Alfred Waterfront,
antigo cais construído no século XIX e que
A saga bôer, o apartheid e a nova África do Sul
© Andres de Vet
A
CAPETOWN, A CIDADE-MÃE
DA ÁFRICA DO SUL
hoje abriga, além de um grande shopping
e dezenas de restaurantes, o surpreendente Aquário dos Dois Oceanos.
Os habitantes de Capetown estão cada
vez mais empolgados com a Copa do Mundo, que o país sediará em 2010. Já são encontradas nas lojas as camisetas da torcida
bafanabafana, nome carinhoso da seleção
local. Ela divide as vitrines com outra, de
cor verde, na qual está escrito Springboks,
que identifica a seleção de rúgbi, esporte
no qual o país sagrou-se campeão mundial
em 1995 e 2007. Nelson Mandela é objeto
de veneração pela maioria da população,
onipresente em estátuas, fotos e camisetas.
Frases e citações do líder da luta contra o
apartheid estão impressos em cartazes e
pôsteres nas lojas para turistas.
Nos arredores de Capetown há duas outras atrações; a primeira é o Cabo da Boa
Esperança, cerca de 100 quilômetros ao sul.
Foi uma emoção especial visitar o Cape Point
e imaginar, erroneamente como os navegadores portugueses do passado, que ali se dava
o encontro das águas do Atlântico e do
Índico. Na verdade, a famosa passagem de
Bartolomeu Dias e Vasco da Gama encontra-se cerca de 200 quilômetros a sudeste,
no Cabo das Agulhas.
A segunda atração é a rota dos vinhedos
do Cabo. Nesta área está Stellenbosh, a primeira cidade vinícola edificada por holandeses em 1679. Mais tarde, huguenotes franceses fundaram Franshoek e, em seguida,
Paarl. A qualidade dos vinhos sul africanos é
reconhecida mundialmente.
OCEANO ATLÂNTICO
MOÇAMBIQUE
A origem da atual República Sul Africana (RSA) encontra-se na colonização da região do Cabo, iniciada em 1652 por protestantes
holandeses (bôeres). A colônia passou ao controle britânico em 1814, por decisão do Congresso de Viena. A nova administração declarou
o fim da escravidão em 1833, ato que desencadeou o Grand Trek (Grande Jornada), a migração de milhares de bôeres em direção aos
planaltos interiores da África austral (veja o Mapa 2). Entre 1834 e 1838, os trekers lutaram contra tribos africanas e fundaram as
repúblicas do Orange e do Transvaal. Essas repúblicas interiores, apoiadas na escravidão e num
exacerbado radicalismo religioso, lançaram as bases do que mais tarde seria o apartheid.
África do Sul ao final do século XIX
No final do século XIX, a descoberta de diamantes e ouro nas repúblicas bôeres atiçou a
BECHUANALÂNDIA
cobiça britânica e desencadeou uma guerra entre a maior potências mundial e os colonos conser(Botsuana)
vadores da África austral. A Guerra dos Bôeres (1899-1902) terminou com a derrota do Orange
SUDOESTE
TRANSVAAL
e do Transvaal. Oito anos depois, uma Constituição negociada entre os antigos adversários criou
AFRICANO
a União da África do Sul, composta pelos territórios britânicos do Cabo e do Natal, mais as
(Namíbia)
antigas repúblicas bôeres.
Por cerca de quatro décadas, o poder ficou nas mãos de políticos brancos mais moderados.
Deve-se lembrar que, até 1994, a majoritária população negra não tinha direitos políticos. A
ESTADO
LIVRE
evolução econômica do país, o mais rico da África, criou um expressivo mercado de trabalho
NATAL
DO
urbano. Essa situação gerou conflitos entre os africânderes (os descendentes dos bôeres, que falam
ORANGE
a língua africâner) e a maioria negra. A defesa da exclusão dos negros e do monopólio dos postos
de trabalho pelos brancos levou à criação do Partido Nacional, constituída por africânderes radiOCEANO
cais. Influenciado por idéias nazistas, o partido chegou ao poder em 1948.
ÍNDICO
A partir daí se criou o regime do apartheid, baseado em todo um arcabouço jurídico de leis
Cabo
racistas e mantido a ferro e fogo por quase meio século. O sistema de discriminação oficial só
desapareceu pela combinação de pressões internas e internacionais, especialmente após o fim da
Guerra Fria. Em 1994 foram realizadas as primeiras eleições multirraciais na RSA, que deram a
vitória a Nelson Mandela.
Territórios britânicos
Estados BÔERES
Protetorados britânicos
Colônia do Cabo em 1.800
Colônia do Cabo em 1.700
GRAND TREK
Mapa 2
2009 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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Nelson Bacic Olic
Da Redação de Mundo
Jason Nelson/Stock.xcng
Série Geopolítica da Água
DISCÓRDIA
INDOSTÃO
NAS ÁGUAS DO
Mapa 1
Rios do Subcontinente Indiano
A
AFEGANISTÃO
C H I N A
Rio TIBETE
Ind
o
PAQUISTÃO do
Rio Bramaputra
In
Ri
o
NEPAL
Ga
BUTÃO
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Mapa 2
ra
oB
Ri
BANGLADESH
O Alto Vale do Rio Indo
OCEANO
ÍNDICO
C H I N
AFEGANISTÃO
Í N D I A
A
do
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o
GOLFO DE
BENGALA
Mapa 3
As águas de Bangladesh
H
I
BUTÃO
NEPAL
M
ÍNDIA
A
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BANGLADESH
do
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PAQUISTÃO Ri
L
putra
rama
Rio B
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Rio
A
TIBETE
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a
utr
p
ma
es
MIANMAR
o
Ri
Ri
fixação de povos nômades em regiões próximas de grandes rios remonta ao
período Neolítico (6000-2500 a.C.). Nessas áreas surgiram as chamadas civilizações hidráulicas, cuja existência só pode
ser entendida em função dos rios que as
alimentavam. Entre as mais conhecidas
estão aquelas que se ergueram ao longo
do vale do rio Nilo e na Mesopotâmia,
drenada pelos rios Tigre e Eufrates.
A civilização hindu, também se desenvolveu nas proximidades de importantes
cursos fluviais como o Ganges, Indo e
Bramaputra, os principais rios que drenam o Subcontinente Indiano, ou
Indostão. Junto às margens e deltas desses rios ainda hoje são encontrados alguns
dos maiores adensamentos de população
rural, os “formigueiros humanos” da Ásia
meridional. Tais áreas correspondem também a alguns dos principais bolsões de
pobreza do mundo atual.
A base produtiva dessas regiões está
assentada há séculos na agricultura, por
meio de sistemas de cultivo intensivos que
se caracterizam pela ampla utilização de
mão-de-obra. A dinâmica climática dita
o ritmo do trabalho agrícola. Durante o
inverno existe pouca atividade mas, no
verão, toda a força de trabalho disponível
é utilizada nas culturas agrícolas.
O Indostão compreende basicamente três países – Índia, Paquistão e
Bangladesh – que possuem uma população conjunta de aproximadamente 1,5
bilhão de pessoas, um pouco mais de um
quinto do total mundial. Ainda dominantemente rural, a população do
Subcontinente Indiano apresenta alto
crescimento vegetativo. Com quase 1,2
bilhão de habitantes, a Índia é o segundo país mais populoso do mundo.
Bangladesh e Paquistão possuem, cada
um, mais de 150 milhões de habitantes.
Três grandes rios, o Ganges, o Indo e
o Bramaputra, cortam a região e têm em
comum o fato de serem rios internacionais – isto é, drenam o território de dois
ou mais países. Cada um deles possui
E COOPERAÇÃO
(CHINA)
Daca
Gan
ges
ÍNDIA
Calcutá
Í N D I A
Cachemira Indiana
A Afluentes do
Cachemira Paquistanesa B Indo que nascem
ou cruzam o
Cachemira Chinesa
C território da Índia
mais de 2.500 quilômetros de extensão e
seus regimes são pluvionivais, visto suas
nascentes localizarem-se no Himalaia, caso
do Ganges, ou nos altos planaltos do
Tibete chinês (Indo e Bramaputra). Na
parte de jusante, esses rios recebem as
diluvianas chuvas da monção de verão. A
parcela de água renovável vinda de fora
nos três países é bem diferente. Na Índia,
esse índice é de 34%; no Paquistão, de
76% e, em Bangladesh, de 91%.
Por conta do traçado de fronteiras políticas surgido após a descolonização, e
também por possuir uma superfície bem
maior que a dos seus vizinhos, o território
da Índia é cortado pelos três rios. Já o
Paquistão tem no Indo seu principal curso fluvial, enquanto Bangladesh controla
o curso inferior dos rios Ganges e
Bramaputra (veja o Mapa 1).
As questões hidroconflitivas entre Índia e Paquistão concentram-se sobre a par-
GOLFO DE BENGALA
Áreas constantemente afetadas
por inundações
A Usina indiana de FARAKKA
tilha das águas da bacia do Indo. Quando
Índia e Paquistão se tornaram independentes, em 1947, a bacia fluvial foi dividida entre ambos. O Paquistão ficou com
a maior parte dos canais e terras irrigadas
que já eram utilizadas e a Índia teve a vantagem de controlar as águas do Indo que
fluem rumo ao país vizinho.
O Indo atravessa um trecho da Cachemira indiana e alguns dos seus afluentes da
margem esquerda têm parte considerável de
seus cursos em território indiano. Nessa região, considerada como o maior perímetro
irrigado do mundo, a questão da utilização
conjunta das águas fluviais encontrou uma
solução satisfatória, o que não se verificou
em relação a outras questões geopolíticas nas
quais os países vizinhos estão envolvidos. Em
1960, o Banco Mundial intermediou um
tratado repartindo os recursos hídricos do
Indo entre os dois países. Assim, afluentes
da margem direita ficaram sob o controle
da Índia, enquanto o próprio Indo e seus
afluentes da margem esquerda ficaram
para o uso do Paquistão (veja o Mapa 2).
Já a utilização das águas do Ganges e
do Bramaputra gera tensões entre Índia
e Bangladesh. O primeiro, um rio sagrado para o hinduísmo, corre quase integralmente no território da Índia. Em seu
percurso, o Ganges afeta a vida de pelo
menos meio bilhão de pessoas, que dependem dessas águas para sua subsistência. A Índia não exerce soberania sobre o
curso inferior dos dois rios que, após se
juntarem, formam um grande delta. É
sobre este delta que está parte considerável do território de Bangladesh.
Os vales do Ganges e do Bramaputra estão sujeitos a constantes inundações. Bangladesh, um dos países
mais pobres do mundo, é especialmente vulnerável às inundações, algumas
delas catastróficas. Na grande cheia de
1988, que fez cerca de 300 mil vítimas, mais da metade do país ficou
submerso (veja o Mapa 3). O controle das águas dos dois rios tem sido motivo de atritos, que incidem sobre a
construção de barragens e a partilha
das águas.
No caso do Ganges, as discórdias
estão focadas na barragem indiana de
Farakka, concluída em 1974 e cujo objetivo era reter a maior quantidade de
água possível para o uso da Índia. Em
1997, depois de décadas de tentativas
infrutíferas, chegou-se a um acordo para
o uso compartilhado das águas. Pelo tratado, fica garantida a Bangladesh uma
quantidade mínima de água durante o
período mais crítico da monção de inverno, entre os meses de março e maio.
É surpreendente o fato de que o Subcontinente Indiano, uma região
marcada por conflitos entre países e no
interior de cada um deles, tenha encontrado soluções de uso compartilhado das
águas, fonte essencial para a vida de mais
de um bilhão de seres humanos.
MAIO 2009
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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
ESTADOS UNIDOS
GUERRAS CULTURAIS ATORMENTAM A “ERA OBAMA”
B
“
arack Obama venceu por
causa de uma economia aos
pedaços, mas a guerra cultural
continua “e seremos nós os
vencedores”, desabafou um
conservador americano diante do resultado nas urnas. Embora tenha sido reação de um
desconhecido, o registro
jornalístico foi feito porque a
explosão verbal aconteceu
numa da seções eleitorais da
Califórnia, onde os liberais tiveram de engolir o triunfo da
chamada Proposta Número
Oito, proibindo casamentos
gays. Alguns de seus autores,
como os do Protect Marriage,
insistem em que não se trata
de discriminação, mas de “tentativa de defender a definição
tradicional de casamento”. A
constatação, no entanto, é a de
que está em curso uma guerra, no campo cultural. Isto ficou claro com a ampla
mobilização religiosa, inclusive de igrejas
afro-americanas, em favor da “Prop 8”.
Há outros indicadores. Guerreiros. O
argumento é o de que é preciso proteger
“valores familiares”. Não estão em jogo só
os casamentos gays, mas toda uma gama
de “valores”, a partir de um conjunto de
questões que continuam em pauta, com
um e outro lado cavando trincheiras. O
que aconteceu na Califórnia foi um golpe
a mais nos liberais – e dado com punhos
de aço. Não surpreendeu o voto favorável
de grande maioria de eleitores brancos. Foi
significante o apoio à proposta de um em
cada dois negros. Além disso, 30 estados
americanos já baniram esse tipo de casamento. Mas a seqüência de embates vai
em frente. Na Dakota do Sul, foi banido
por 69% dos eleitores o direito de escolha
em abortos. Proteção legal, só em casos
de incesto, estupro ou risco à vida das gestantes. No lado oposto da trincheira, Washington passou a permitir o suicídio em
casos de doentes terminais e Michigan legalizou pesquisas com células-tronco.
O caso da “Prop 8”, na Califórnia, tornou-se emblemático porque coincidiu
com a eleição de Obama, chamado de “socialista” por um dos mais ouvidos apre-
Casamento gay, aborto, células-tronco, tradições religiosas,
pena de morte, porte de armas. São os temas explosivos da
guerra sem fim que opõem conservadores a liberais nos
Estados Unidos
Culture warrior (“Guerreiro cultural”), de
Bill O’Reilly, que se apresenta orgulhosamente como o personagem do título.
Está em curso, reitera Reilly, uma guerra
entre tradicionalistas,
como ele próprio, e forças
de um progressismo secular que almeja mudar os
Estados Unidos “dramaticamente”, tendo como
exemplo – que horror! – a
Europa Ocidental. Para
O’Reilly, a BBC, de Londres, é de esquerda. Ele
metralha o aborto, drogas,
casamentos gays, não comemorar o Natal e assim
por diante, nessa guerra
radicalizada pela presença
de um “negro liberal” na
Casa Branca.
Em suas alucinações
guerreiras, O’Reilly antevê
uma Glória Hernandez sucedendo a Barack Obama.
Além de hispânica, mulher!
Os Estados Unidos seriam
assaltados pelos de fala espanhola, ainda por cima
mais dispostos à procriação.
Na seqüência – quem sabe? – um asiático,
o primeiro de olhos espichados na Casa
Branca. O jeito, talvez, na visão de O’ Reilly,
seria adotar a linha de Ronald Reagan em
relação à “contenção do comunismo” nas
guerrilhas centro-americanas dos anos 80.
O grito do “guerreiro cultural” é “Não passarão!” – ironicamente lançado nos anos 30,
durante a Revolução Espanhola, por uma
mulher republicana, logo anti-franquista,
logo de esquerda.
Dois outros assuntos emergem nesse
campo de batalha: a pena de morte e o porte
de armas de fogo. Há uma campanha mundial, com origem na ONU, contra a pena
de morte, proibida nos países da União
Européia (UE), cujo way of life horroriza
os guerreiros culturais dos Estados Unidos.
A pena de morte, por exemplo, é um dos
dispositivos que dificultam a admissão da
Turquia na UE. Em porte de armas de fogo,
os liberais sofreram duro revés com decisão recente da Corte Suprema de ressuscitar velhíssimos dispositivos, datados da época do faroeste. Uma revisão só será possível
se Obama conseguir alterar a composição
do mais alto tribunal dos Estados Unidos,
hoje com maioria conservadora.
© Tim Boyle/Getty Images/AFP
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
Cena comum em Chicago e outras grandes cidades dos Estados Unidos:
em meio à crise, a forte presença hispânica e de outras minorias étnicas
provoca crescentes tensões sociais
sentadores de rádio dos Estados Unidos.
Obama, já empossado e com alto capital
político, deu o troco. Acabou com restrições aos financiamentos federais de estudos com células-tronco, introduzidas por
Bush com o argumento de que seria matança de vidas embrionárias. O New York
Times, que contabiliza um bom número
de defesa de causas liberais, saiu em defesa de Obama com editorial incisivo.
De acordo com o editorial, a medida
“encerra um período obscuro, no qual objeções morais de conservadores religiosos
constrangeram avanços de grande importância para as ciências médicas”. O Washington Post, por sua vez, considerou Bush o
verdadeiro chefe da direita religiosa dos
Estados Unidos, a tropa de choque com
maior poder de fogo nessa guerra cultural.
Os tiroteios, em alguns momentos, se
abrem num leque matizado. O New York
Times não ficou totalmente satisfeito com
a canetada de Obama, embora não hesite
em defini-la como “instância luminosa”.
Dólares federais continuam bloqueados
para alguns tipos de pesquisas. Cabe ao
Congresso dar um jeito, pediu o jornal.
Em cada três brancos evangélicos, só
um votou por Obama. Pat Buchanan, um
dos “marechais” da direita religiosa, usou
a Convenção Nacional do Partido Republicano para classificar Sarah Palin, a
combativa vice de John McCain, como a
“nossa Katyusha”. Katyusha é o célebre
fuzil-metralhadora de fabricação russa
muito usado por guerrilheiros. “Há uma
guerra religiosa em nosso país e a disputa
se trava visando à conquista da alma dos
americanos”, disse Buchanan, para uma
platéia de entusiastas republicanos. A
“Bósnia” dessa guerra, ainda segundo
Buchanan, “é o aborto”. Na Bósnia se trucidaram, entre si, sérvios, muçulmanos e
bósnios.
Liberais, subversivos, imigrantes e infiéis de modo geral (negros escapam com
seus evangelismos) são os alvos da
“Katyusha” Palin. Há um livro, intitulado
2009 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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