ANO 17 ■ TIRAGEM: Nº 3 ■ MAIO/2009 ■ 23 000 EXEMPLARES CRISE DA GLOBALIZAÇÃO IMPLODIRÁ EIXO CHINA-EUA? O ● Dois belos filmes abordam o drama da Primeira Guerra Mundial em terras muçulmanas do antigo Império Otomano. Pág. 2 ● Editorial – A corrupção e o abuso da coisa pública tornaram-se marcas registradas do Congresso. As práticas são um reflexo de nossa história. Pág. 3 ● Os ex-guerrilheiros da FMLN chegaram ao poder em El Salvador, mas ao lado da direita conservadora e de ex-líderes de grupos para-militares. Pág. 3 ● Há 90 anos, o Tratado de Versalhes redesenhou o mapa político da Europa e criou o conceito de segurança coletiva (a Liga das Nações). O fracasso do arranjo de 1919 desaguou na 2a. Guerra. Págs. 4 e 5 ● Diário de Viagem – Na Cidade do Cabo, começou a colonização bôer da África austral e, mais tarde, o domínio britânico sobre a África do Sul. A cidade reflete a diversidade sul-africana. Pág. 10 ● O Meio e o Homem – No Subcontinente Indiano, Índia, Paquistão e Bangladesh convivem em meio a tensões geopolíticas. Mas os turbulentos vizinhos acharam caminhos de concórdia no uso das águas de três grandes rios. Pág. 11 colapso financeiro que deflagrou a crise econômica mundial tem como foco os Estados Unidos, mas atinge brutalmente a China. Há três décadas, desde o encerramento do maoísmo, Pequim definiu sua estratégia geopolítica pela decisão de incorporar-se à globalização. As suas taxas extraordinárias de crescimento evidenciam o sucesso da estratégia, ao menos sob o ponto de vista da elite dirigente chinesa. Agora, tudo que parecia sólido desmancha-se no ar. O modelo do “socialismo de mercado” chinês precisa de mercados – especialmente do mercado americano. O protecionismo ameaça as bases do modelo, bem como a provável redução estrutural das importações americanas. Os chineses, ironicamente, convertem-se em arautos do liberalismo econômico. A China investe seus superávits enormes nos mercados financeiros do Ocidente, denominando sua riqueza em dólares. O espectro de uma desvalorização acentuada da moeda americana, que é o “dinheiro do mundo”, assusta os chineses. Pequim explicitou, oficialmente, uma proposta de substituir o dólar por uma nova moeda mundial, emitida e controlada pelo FMI. É só chantagem ou é a expressão genuína da política chinesa? Na China, duas correntes de análise oferecem respostas diferentes para os dilemas da crise global. De um lado, há os que pregam uma estreita cooperação com Washington, para restaurar o sistema de expansão especulativa anterior ao colapso. De outro, há os que cerram os dentes e pregam a ruptura das pontes. Eles sabem que a China sofreria muito com uma reforma profunda das finanças globais. Mas acham que não existe outro caminho rumo à almejada posição de número um. Vejas as matérias às págs. 6 a 9 A nova guerra civil americana B arack Obama prometeu mais concórdia e consenso, menos guerrilha partidária, na política interna americana. Mas intenções, apenas, não mudam o mundo. Nos Estados Unidos, as “guerras culturais” inauguradas há um quarto de século, na “era Reagan”, prolongam-se na “era Obama”. Qual é o lugar de Deus e da religião na ordem política americana? É o aborto uma questão de opção pessoal? Pesquisa com células-tronco é assassinato? O direito de ter e portar armas pode ser limitado pelo Estado? Os imigrantes hispânicos representam uma ameaça à identidade nacional americana? Uniões gays devem ser admitidas como casamentos e protegidas pela lei? A pena de morte é a justa aplicação do preceito bíblico do “olho por olho, dente por dente”? São esses os temas das amargas “guerras culturais” que opõem conservadores a liberais nos Estados Unidos. Pág. 12 EUROCETICISMO © Stephane de Sakutin/AFP E mais... © AFP ■ 140 CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO MUNDO E H&C - 2009 Consulte o tema, o regulamento e participe !!! Dez vencedores serão premiados Em todo o Brasil, escolas assinantes de Mundo já estão realizando seleções internas para escolher as cinco melhores redações a serem enviadas para o nosso 14º Concurso Nacional de Redação. Para sua escola participar, basta ser assinante de Mundo e consultar o tema proposto, à página 2 da edição de março, e o regulamento, que se encontra à página 2 da edição de abril. A redação vencedora será publicada e comentada na última edição deste ano, em outubro. Os autores dos dez melhores trabalhos serão premiados. O 1º colocado receberá um aparelho de som no valor de R$ 800,00. Do 2º ao 5º, todos receberão CD-players no valor de R$ 200,00. Do 6º ao 10º colocado, serão ofertados prêmios em livros. As redações escolares são, sempre, obras coletivas. Os “co-autores” são os professores do presente e do passado, que contribuíram para desenvolver em seus alunos a capacidade de interpretar e escrever. O “co-autor” oculto mais próximo é o atual professor de Comunicação e Expressão. Por isso, o concurso também o premia. Os professoERRATA res de Comunicação e Expressão dos dez alunos que tivePor uma falha de revisão o regulamento do XIV Concurso rem seus trabalhos premiados receberão livros. Nacional de Redação Mundo – H&C 2009 que está preInformamos que, em meados de maio, enviaremos as sente na página 2 de Mundo da edição de abril está com cinco folhas pautadas e numeradas para as quais deverão indicações de 2008 ao invés de 2009. O dia e o mês da data final da entrega das redações estão ser transcritas as redações selecionadas na sua escola. Salicorretos, isto é 10 de julho, obviamente, de 2009. entamos também que o prazo para o envio das redações encerra-se, impreterivelmente, no dia 10 de julho de 2009. E X P E D I E N T E PANGEA - Edição e Comercialização de Material Didático LTDA. Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia). Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779) Revisão: Maria Eugênia Lemos Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise Endereço: Rua Romeu Ferro, 501, São Paulo - SP. CEP 05591-000. Fones: (0XX11) 3726.4069 / 3726.2564 Fax: (0XX11) 3726.4069 – E-mail: [email protected] Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos no seguinte endereço, em São Paulo: • Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900 Fone: (0XX11) 3283.0340. www.clubemundo.com.br "Infelizmente não foi possível localizar os autores de todas as imagens utilizadas nesta edição. Teremos prazer em creditar os fotógrafos, caso se manifestem" A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, NA VISÃO DOS CINEASTAS E m novembro de 2008 completaram-se os 90 anos do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), um conflito que, para os europeus, é conhecido como a “Grande Guerra”. Do ponto de vista cinematográfico, a Grande Guerra acabou sendo ofuscada pela atenção que se deu à Segunda Guerra Mundial. Assim, enquanto há um incontável número de filmes e documentários sobre a tragédia inigualável deflagrada em 1939, o primeiro grande conflito do século XX ficou relegado a um plano secundário. As batalhas mais importantes daquele conflito aconteceram em território europeu, mas também ocorreram importantes confrontos bélicos em outras partes do mundo, como no Oriente Médio. Há dois interessantes filmes que retratam os eventos do teatro militar do Oriente Médio. O primeiro é o célebre Lawrence da Arábia (David Lean, Grã-Bretanha, 1962). Neste filme, o personagem central é o polêmico oficial do exército britânico, T. E. Lawrence, um agente incumbido de tentar unir várias tribos árabes rivais com o intuito de combater as forças do Império Otomano, que tinham o domínio sobre amplas áreas do Oriente Médio. Britânicos e otomanos estavam em lados opostos na Grande Guerra e o controle das fontes do petróleo no que seria o Iraque era um objetivo estratégico de Londres. O filme foi parcialmente inspirado na obra Os sete pilares da sabedoria, de autoria do próprio Lawrence. As cenas tendo a imensidão dos desertos do Oriente Médio como pano de fundo, junto com aquelas da conquista da atual cidade jordaniana de Aqaba pelos árabes comandados por Lawrence, estão entre as mais belas, numa obra que abocanhou sete Oscars, incluindo os de melhor filme e diretor. Galipoli, Peter Weir, 1981 Lawrence da Arábia, David Lean, 1962 Um filme muito menos conhecido é Galipoli (Peter Weir, Austrália, 1981), que teve Mel Gibson como ator principal, numa de suas primeiras aparições no cinema, bem antes de se tornar um fundamentalista cristão. O enredo articula-se ao redor de um grupo de jovens australianos que, em 1915, embalados pelo sonho de se con- verterem em heróis de guerra, se alistam no Corpo de Exército da Austrália e Nova Zelândia para, ao lado de soldados britânicos, lutar contra os otomanos na estratégica península de Galipoli. Situada nas proximidades do Estreito de Dardanelos, a península de Galipoli domina, juntamente com o Estreito de Bósforo, a ligação entre os mares Egeu e Negro, permitindo o acesso à cidade de Istambul, à época capital do Império Otomano. Dezenas de milhares de jovens australianos morreram na batalha, vencida pelas forças otomanas sob a liderança de Mustafá Kemal Ataturk. Foi a primeira vitória militar otomana contra um exército europeu, em mais de três séculos. Logo após o final da Primeira Guerra Mundial, com a derrota otomana, Ataturk foi o responsável por uma verdadeira revolução que pôs fim ao Império Otomano e levou à criação da República da Turquia, tal como conhecemos atualmente. Mesmo tendo morrido em 1938, Ataturk é objeto de veneração até hoje. Como prova, todas as cédulas e moedas da libra turca têm a efígie do líder histórico, que ganhou a alcunha de “Pai dos Turcos”. Os principais combates em Galipoli ocorreram em abril de 1915. Em abril, todos os anos, australianos e neozelandeses visitam a península, na qual se encontram memoriais e cemitérios dedicados aos combatentes da terrível batalha. Galipoli assemelhou-se bastante às grandes batalhas de trincheiras que se verificaram em território europeu, como as do Somme e de Verdun (França), marcas registradas da Primeira Guerra Mundial. 2009 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 2 E D I T O R I A L CORRUPÇÃO É O PREÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL TORNOU-SE RECORRENTE, NO BRASIL, A ASSOCIA- RECÉM-FINADA “ERA BUSH”, NOS ESTADOS UNIDOS. MAS, ASSUMIDAS NA ESFERA PÚBLICA. O ALHEAMENTO DA MAI- ÇÃO ENTRE O MUNDO DA POLÍTICA INSTITUCIONAL (QUE EM NOSSO PAÍS, ELA ADQUIRE PROPORÇÕES ALARMANTES, ORIA PROLONGOU-SE NA AGREGA OS TRÊS PODERES DA REPÚBLICA) E A PRÁTICA DA ATÉ O PERIGOSO PONTO DE CAUSAR A DESMORALIZAÇÃO VOTO ERA CENSITÁRIO E EXERCIDO APENAS PELOS GRAN- CORRUPÇÃO. NINGUÉM MAIS SE ESPANTA COM AS REVELA- DAS PRÓPRIAS INSTITUIÇÕES, E, POR EXTENSÃO, DO REGI- DES PROPRIETÁRIOS. ÇÕES SOBRE AS “TROCA DE FAVORES” ENTRE POLÍTICOS E ME REPUBLICANO. NÃO É DIFÍCIL ENCONTRAR AQUELES QUE, DE VOTOS ENTRE BANCADAS, NÃO RARO TRAINDO COM- POR MEIO DE UM RACIOCÍNIO TORTUOSO, CULPAM A PRÓ- PROMISSOS PROGRAMÁTICOS, EM NOME DE INTERESSES PRIA DEMOCRACIA PELO DESCALABRO E SUGEREM UM “GO- PRIVADOS; OU SOBRE A PRÁTICA DO NEPOTISMO (O EM- VERNO FORTE” COMO SUPOSTA SOLUÇÃO. O SENADOR PREGO DE PARENTES SEM QUALIFICAÇÃO EM CARGOS PÚ- CRISTÓVÃO BUARQUE, NUM GESTO PELO QUAL DEPOIS SE BLICOS); OU, AINDA, SOBRE ENVOLVENDO PENITENCIOU, CHEGOU A FLERTAR COM A IDÉIA DE UM PLE- EMPRESAS E AQUELES QUE DEVERIAM REPRESENTAR OS IN- CONGRESSO. IRONICAMENTE, A RAIZ DA CORRUPÇÃO RESIDE, PRECISAMENTE NA TRADIÇÃO AUTORITÁRIA. AO LONGO DOS PRIMEIROS QUATRO SÉCULOS DE NOSSA HISTÓRIA, PRIMEIRO COMO COLÔNIA E DEPOIS COMO IMPÉRIO, A ESCRAVIDÃO MOLDOU A FORMA DE FAZER POLÍTICA: AS ELITES VIAM O ESTADO COMO MERA EXTENSÃO DE SUAS PROPRIEDADES. A GRANDE MAIORIA TERESSES DA SOCIEDADE. DO O “ESQUEMAS” MAIS RECENTE ESCÂNDALO SENADO, INCLUINDO O USO PRIVADO DE TELEFONES CELULARES E DE PASSAGENS AÉREAS PAGOS PELO ERÁRIO, É APENAS MAIS UM ELO DESSA LONGA CADEIA. CLARO QUE A CORRUPÇÃO, TANTO NA ESFERA PÚBLICA QUANTO NA PRIVADA, NÃO É PRIVILÉGIO DO BRASIL. BASTA LEMBRAR OS GRANDES ESCÂNDALOS DA BISCITO SOBRE O FECHAMENTO DO DOS BRASILEIROS NUNCA FOI CONSULTADA SOBRE AS DECISÕES REPÚBLICA VELHA, QUANDO O E AS PROMESSAS MODERNISTAS DA REVOLUÇÃO DE 1930, LIDERADA POR GETÚLIO VARGAS, DISSIPARAM-SE, AO MENOS NO PLANO INSTITUCIONAL, COM O ESTADO NOVO (1937-1945). COM ALGUMA BOA VONTADE, PODEMOS FALAR NA ESTABILIZAÇÃO DE UMA VIDA RELATIVAMENTE DEMOCRÁTICA ENTRE 1956 E 1964, INTERROMPIDA PELO GOLPE MILITAR. E VIVEMOS, AGORA, UMA FASE FORMALMENTE DEMOCRÁTICA, INICIADA COM A CAMPANHA DAS “DIRETAS JÁ!”, EM 1984. EM 500 ANOS DE HISTÓRIA, TIVEMOS, NO MÁXIMO, QUATRO DÉCADAS DE VIDA DEMOCRÁTICA, MAS AINDA ASSIM MARCADA POR UMA PROFUNDA E ABSURDA DESIGUALDADE SOCIAL. A CORRUPÇÃO NA ESFERA PÚBLICA É RESULTADO DESSA HISTÓRIA. É, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, UM LEGADO DA ESCRAVIDÃO. EL SALVADOR ENCERRA O CICLO DA POLARIZAÇÃO POLÍTICA O © Wilson Dias/ABr perfil e as atividades dos chamados “Amigos de Maurício Funes” talvez sejam o melhor retrato do que se passa em El Salvador. Funes fez seu discurso de vencedor das eleições presidenciais cercado de comandantes dos ex-guerrilheiros da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN), sob cuja legenda foi às urnas, e reiterou a promessa de dar prioridade ao combate à pobreza inclusive como um meio de ”despolarizar” a política. Dedicou sua vitória ao bispo Oscar Romero, assassinado em 1980 por considerar justas as insurreições, desde que os meios pacíficos não consigam acabar com injustiças. Mas Funes vestia a tradicional guaiabera, não as camisas vermelhas de seus companheiros de palanque. Embora pouco destacado, esse detalhe se entrosaria com outros numa definição antecipada do que possivelmente acontecerá em El Salvador. Foram os “amigos”, segundo a agência Latin News, que “venderam” a mensagem vitoriosa de que Funes, com seus carisma, conseguiria mudar a maneira de fazer política “num pais onde as divergências ideológicas significam de fato alguma coisa”. Os salvadorenhos estariam cansados de tanta violência e vêem Funes como alguém capaz de mudar as coisas pacificamente. Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores Funes: com apoio da guerrilha chega à presidência Os “amigos” se dizem “independentes, pluralistas e não partidários”, nem sempre se entendem bem com a FMLN, formam um arco político que vai da esquerda à direita, foram decisivos na arrecadação de recursos de campanha e são um manancial de assessores próximos de Funes. O braço direito do presidente-eleito por exemplo, Hato Hasbún, foi membro das Forças Populares de Libertação, primeira guerrilha de El Salvador. Hasbún é frequentemente citado como elo de ligação entre Funes e a “ortodoxia” da FMLN. Junto com ele, nos “amigos”, há figuras com atividades bancárias cobrindo a América Central e um coronel da re- serva do Exército, ex-comandante de operações de contra-insurgência e hoje espécie de assessor militar da FMLN. Também figura no grupo Luis Angel Lagos, criador em tempos passados do “Ordem”, um esquadrão da morte de paramilitares. O mais influente dos “Amigos de Mauricío Funes” junto ao presidente eleito seria Alex Segóvia. Trata de questões econômicas e insiste em que qualquer plano deve deve ter como meta a abolição das causas da guerra civil: exclusão, pobreza e desigualdades. A empresa privada não teria o que temer e tampouco estariam sendo arquitetados antagonismos aos Estados Unidos. Mesmo assim, é uma ruptura com o conservadorismo, sustentado durante vinte anos de governo da Aliança Nacional Republicana (ARENA). O reinado do partido criado pelo major Roberto D’Aubuisson, íntimo da CIA, ex-aluno da Escola das Américas, do Comando Sul dos Estados Unidos, e comandante de esquadrões da morte, começou depois de uma guerra civil que matou mais de 70 mil, entre 1980 e 1997. Ainda recentemente foram encontrados restos mortais de pessoas enterradas clandestinamente em valas comuns. Dom Oscar Romero foi a vítima de maior projeção: sua morte a tiros comoveu a América Latina e chamou mais atenção para o que se passava em El Salvador. Ficou claro que a política do então presidente americano Ronald Reagan, de “contenção do comunismo” no continente, somou forças com interesses oligárquicos em EL Salvador. Uma exaustão sangrenta ajudou o trabalho da ONU na intermediação de um acordo de paz. A FMLN, que carrega o nome de Farabundo Marti, biografado como um “centro-americanista revolucionário”, fundador de um fantasmagórico partido comunista da América Central, enfrenta agora, afinal, os desafios do poder político. Funes, um jornalista popular sem vinculações com a guerra civil, filiou-se ao FMLN com o único propósito de ser candidato. A FMLN, num gesto de pragmatismo, aceitou-o depois de uma sucessão de derrotas com candidatos ex-guerrilheiros. Mas não se fala em socialismo e muito menos no “socialismo do século XXI” de Hugo Chávez. Há quem aposte que Funes terá maior dificuldade de convivência com seu próprio partido. A FMLN “ortodoxa” é majoritária no parlamento. Quanto à ARENA, ainda tem o recurso de juntar-se a partidos menores e ficar com maioria legislativa. MAIO 2009 3 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O TRATADO DE VERSALHES Arquivo pessoal o dia 28 de junho de 1919, cinco anos exatos após o atentado que matou o arquiduque Francisco Ferdinando, ato inaugural da Primeira Guerra Mundial, era assinado o Tratado de Versalhes. As negociações do tratado prolongaram-se por seis meses, na Conferência de Paz de Paris, que envolveu mais de 30 países. O Tratado redesenhou o mapa político europeu, recortando impérios e desenhando as fronteiras de novas nações. Luiz de Alencar Araripe, coronel reformado de Artilharia e de Estado-Maior do Exército, titular do Instituto de História Militar e Geografia do Exército, é um especialista no tema. Ele escreveu o capítulo sobre o Tratado de Versalhes para a obra História da Paz (Contexto, 2008). Na entrevista seguinte, Araripe aborda a certidão de nascimento da “Europa das nações”. Coleção particular N HÁ 90 ANOS, EM PARIS, NASCIA A EUROPA DAS NAÇÕES Mundo – Por que foi escolhido o Palácio de Versalhes como local de assinatura do tratado de paz negociado na Conferência de Paris, que encerrou a Primeira Guerra Mundial? Luiz de Alencar Araripe – A escolha foi do presidente da Conferência, primeiro-ministro da França Georges Clemenceau – “o Tigre”, como era chamado. O apelido explica boa parte da decisão, tomada sob o impulso de dois sentimentos sempre agudos na alma de Clemenceau: amor à França e ódio à Alemanha. Os Aliados aprovaram facilmente a opção pela amável capital francesa em detrimento da então severa Genebra de Calvino. Tudo no Palácio de Versalhes transmite ao visitante a imagem da glória da França e do soberano que o mandou construir, Luis XIV, o “rei sol”. A Galeria dos Espelhos fora a escolha do chanceler Bismarck para proclamar a fundação do Império Alemão, após a vitória na Guerra FrancoPrussiana de 1870. Escolha brutal, que Clemenceau, à época jovem e fogoso deputado socialista à Assembléia Nacional Francesa, guardaria na memória por quase meio século. O Palácio, evocador de glórias e de humilhações da França, foi o cenário perfeito escolhido pelo “Tigre” para a celebração da vitória e a culminação da vingança. Mundo – Quais foram os principais personagens da Conferência? Qual era o interesse básico representado por cada um? LAA – Reuniram-se na capital francesa mais de um milhar de estadistas, diplomatas, juristas, economistas, jornalistas, parlamentares, homens de negócio, secretárias, enfermeiras e muitos curiosos. Nesse universo variado e colorido avultavam os chefes das delegações dos chamados Quatro Grandes: França, Grã-Bretanha, Itália e Estados Unidos. Clemenceau, a cada momento, justificava o apelido de Tigre, ganho pela ferocidade com que fez a guerra. Usou de ferocidade semelhante ao perseguir A histórica assinatura do Tratado de Versalhes. Para o coronel Luiz de Alencar Araripe (foto ao lado), o acordo refletia o apoio dos aliados vencedores ao amor nutrido por Georges Clemenceau à França e o ódio à Alemanha o grande objetivo de impor à Alemanha castigo tão forte que ela nunca mais pudesse ameaçar a segurança da França. O primeiro-ministro Lloyd George, um simpático inglês de olhos azuis, combinava habilidade de político com o gosto pelas boas coisas da vida, a começar por mulheres. Ele teve sempre em vista o estabelecimento de um novo equilíbrio do poder na Europa, condição necessária para a segurança britânica. Peça essencial do equilíbrio seria uma Alemanha não tão forte que voltasse a desafiar o poderio naval britânico e nem tão fraca que não se pudesse opor a pretensões de hegemonia da França e à ameaça do bolchevismo russo. O primeiro-ministro Vittorio Emanuele Orlando, um siciliano temperamental de bela cabeleira branca, pretendeu fazer cumprir a promessa da França e da Grã-Bretanha de restituir à Itália as chamadas “terras irridentas” territórios histórica e etnicamente italianos, mas sob a soberania de outros Estados (Trentino, Trieste, Istria, Dalmácia). Mundo – E o americano Woodrow Wilson? LAA – Ele foi à grande estrela da Conferência, e não somente por ser o presidente dos Estados Unidos. Chegou a Paris precedido por revolucionárias idéias sobre a paz e as relações entre Estados. Um ano antes, falando no Senado, havia apresentado seus famosos e controversos Catorze Pontos. O presidente pretendia que esses pontos constituíssem o paradigma para uma “paz justa e duradoura”. Wilson aceitou que seus Catorze Pontos fossem repetidamente desconsiderados nas negociações de Paris, na crença de que a Liga das Nações corrigiria o que considerava falhas do Tratado de Versalhes. Presidiu o comitê elaborador do estatuto da Liga, e cuidou que seus 30 artigos fossem os primeiros do Tratado. No fim, o Senado americano não aprovou o Tratado, mas Wilson deixou na política internacional a forte marca de suas idéias, resumidas na palavra “wilsonismo”, termo não raro usado no sentido de utopismo. Mundo – O Tratado de Versalhes e os outros tratados que encerraram a Primeira Guerra Mundial redesenharam o mapa político europeu. Quais foram as principais mudanças de fronteiras que eles provocaram? LAA – O Tratado de Versalhes, acordo-quadro de cinco outros tratados, eliminou do mapa-mundi três vastos impérios: o da Alemanha, o Austro-Húngaro, e o Turco-Otomano; extinguiu-os e retalhou-lhes o território, criando novos Estados, ampliando a superfície de Estados aliados e fazendo encolher a dos que haviam se alinhado com os Impérios Centrais. Não signatário de Versalhes, um quarto império, o Russo, desapareceu em consequência da grande guerra, surgindo em seu lugar a União Soviética. O Império Alemão, amputado de 13% o território, forneceu territórios que, juntamente com outros, russos, permitiram a reconstituição da Polônia. Do Império Austro-Húngaro foram extraídas a Tchecoslováquia e parte da Iugoslávia. A Turquia, com pequena parte de seu território na Europa, incluindo minorias curdas e armênias, foi o que restou do Império Turco-Otomano. 2009 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 4 TRATADO DE VERSALHES enhuma das principais potências triunfou de fato no Tratado de Versalhes. A França humilhou a Alemanha, mas não obteve uma paz duradoura. A Grã-Bretanha não alcançou o equilíbrio de poder que almejava. Com o fracasso da Liga das Nações, os Estados Unidos de Wilson não conseguiram mudar as regras da política internacional, impondo o princípio da segurança coletiva. Uma nova e mais devastadora guerra enterrou de vez a obra imperfeita da Conferência de Paris. A seguir, a segunda parte da entrevista de Luiz de Alencar Araripe. Mundo – Os novos Estados Nacionais foram criados, a partir da Conferência de Paris com base no princípio das nacionalidades, de Woodrow Wilson, pelo qual as nações se definem por critérios étnicos e linguísticos. Além de Estados, os tratados acabaram criando, involuntariamente, minorias nacionais. Luiz de Alencar Araripe – A Tchecoslováquia e a Iugoslávia foram criadas para responder aos anseios de independência de minorias étnicas; mas eles, por sua vez, incluíram minorias étnicas. Tais minorias, sob o impulso do nacionalismo, levaram à crise da Sudetolândia e ao fim do Estado tchecoslovaco, esmagado pelo nacionalismo hitlerista. O nacionalismo étnico também respondeu pelo esfacelamento da Iugoslávia. A finada União Soviética fez-se a paladina das minorias por todo o mundo, obscurecendo o fato de ser chamada “a prisão das nações”. Com o fim do Estado soviético, eclodiram movimentos de libertação de minorias, ainda não encerrados. Na Turquia, as minorias curda e armênia continuam a lutar pela liberdade. Mundo – Alguns analistas enxergaram nas guerras que desmantelaram a Iugoslávia, a partir de 1992, uma retomada dos nacionalismos e do princípio das nacionalidades do início do século XX. Seria isso mesmo? LAA – O Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, depois Iugoslávia, foi uma união instável desde o início, ameaçada pelas forças centrífugas dos nacionalismos. Em 1980, o presidente Josip Broz Tito morreu e as frágeis costuras da Iugoslávia começaram a estourar. Em 1989 o ex-comunista e ultranacionalista Slobodan Milosevic se elege presidente da República da Sérvia. Pretendendo consolidar a hegemonia sérvia, Milosevic desencadeou o processo de violência, pontilhado de tumultos e que culminaram com guerra e a “limpeza étnica”, erigida em doutrina para resolver diferenças étnicas, religiosas ou políticas. Em 1991, as proclamações de independência das repúblicas iugoslavas se sucedem. Em 1992, a BósniaHerzegóvina declara independência da República Federativa da Iugoslávia, e é atacada pelo o Exército iugoslavo. Mundo – O “utopismo americano” na Conferência de Paris manifestou-se, principalmente, sob a forma do projeto da Liga das Nações. A que se deve o posterior fracasso da Liga das Nações? LAA – A simples enunciação de princípios nos Catorze Pontos mostra seu forte traço de utopia e explica o ceticismo com que os líderes europeus os receberam: ética na política exterior e, em particular, no futuro tratado de paz, fim da diplomacia secreta, liberdade dos mares, desarmamento geral, abolição de restrições ao comércio internacional. Finalmente, o projeto do coração de Wilson: a Liga das Nações, capaz de fazer com que a negociação substituísse a guerra na solução das controvérsias internacionais. Era o conceito de segurança coletiva, diametralmente oposto ao de alianças, base do equilíbrio do poder, caro aos europeus e abominado por Wilson. A Liga foi a mais forte razão para que o Senado rejeitasse todo o Tratado. É difícil pensar que os senadores aprovassem um instrumento legal que opunha limitações à soberania dos Estados Unidos no cenário internacional. E Wilson quase conseguiu isso. Quase. Sem a participação americana, e com o apoio morno das grandes potências, a Liga foi perdendo substância. Mundo – O Tratado de Versalhes é geralmente interpretado como fonte da crise econômica alemã e do revanchismo político que conduziu Hitler ao poder. É correto fazer uma © Museu Imperial da Guerra, Londres N “WILSON QUASE APROVOU A LIGA NO SENADO. QUASE” Clemenceau escolheu a Sala dos Espelhos (no Palácio de Versalhes) para impor simbolicamente a superioridade francesa à derrotada Alemanha associação direta entre Versalhes, o nazismo e a Segunda Guerra Mundial? LAA – A associação direta entre Versalhes, o nazismo e a Segunda Guerra Mundial tem sido objeto de muitas discussões entre historiadores. Certamente que existe uma relação de causa e efeito entre esses eventos, mas não há unanimidade sobre o grau da influência direta da crise e do revanchismo no desencadeamento da Segunda Guerra Mundial. A guerra de 1939 tem muitas e variadas causas. Versalhes é uma delas. O Tratado indignou toda a Alemanha, antes mesmo de ser assinado. Indignou e forneceu a políticos e militares material fértil que, competentemente processado por Hitler, facilitou a ascensão do nazismo e, consequentemente, levou à guerra. A Segunda Guerra Mundial é, acima de tudo, obra de Adolf Hitler, não se deve esquecer. Obra facilitada pela omissão de franceses e ingleses em aproveitar as janelas de oportunidade abertas pelo próprio ditador para detê-lo. Mundo – Pouco se fala disso, mas o Brasil participou da Conferência de Paz de Paris com uma delegação que acompanhou a delegação dos EUA. LAA – O Brasil postulou ter um lugar na conferência de paz com a credencial de único país latino-americano a participar efetivamente da guerra. Navios mercantes torpedeados, oficiais brasileiros combatendo em terra e pilotos lutando no ar; a Divisão Naval enviada para o teatro de operações; a missão médica trabalhando em hospital franco-brasileiro, mantido por brasileiros residentes em Paris. Nada disso valeu para assegurar participação nas negociações de paz. Tivemos que recorrer ao apoio de Wilson para que a França e a Grã-Bretanha aceitassem a presença de três representantes do Brasil na Conferência de Paris. Rui Barbosa seria o chefe natural da delegação brasileira, com seus antecedentes na Conferência de Haia, mas recusou chefiar a delegação, a fim de preparar-se para disputar as eleições para presidente da República. Epitácio Pessoa assumiu a chefia da missão, foi para a Europa, e derrotou facilmente Rui. Voltou num navio de guerra americano, tornando-se o 12º presidente da República. Assim era o Brasil. MAIO 2009 5 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O Gilson Schwartz Especial para Mundo Q uanto mais profunda a crise global, mais os governos tentam salvar bancos, empresas e empregos nacionais. Esse refúgio dos Estados nos seus territórios desconsidera que o principal problema da economia internacional é de natureza simbólica e afeta uma “coisa” que há muito deixou de ser nacional: a moeda. É como tratar uma infecção receitando doses cavalares de vitaminas. Em tese, o reforço dá mais condições ao corpo de resistir à doença. Na prática, o inimigo invisível apenas se alimenta dos nutrientes despejados sobre o organismo desnorteado. O erro é conveniente para o governo que orquestrou a globalização e, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, define o ritmo dessa dança: os Estados Unidos. Afinal, nada melhor para um governo nacional que emite a moeda de curso internacional: a injeção maciça de estímulos fiscais e financeiros em todos os mercados do mundo, se não resolve o problema da recessão, prolonga essa anomalia. Uma moeda nacional continua orientando as bússolas usadas pelos principais atores do jogo econômico internacional: instituições financeiras, empresas e investidores privados. Ao focar as agendas no medo de uma Grande Depressão, os Estados Unidos deixam em segundo plano a questão da reforma monetária internacional, dos desequilíbrios de poder entre países ricos e destes com o resto do mundo. Se o problema é a recessão, tome estímulos fiscais (mais gastos públicos, menos impostos), financeiros (taxas de juros próximas de zero ou mesmo negativas, quando descontado o efeito da inflação) e protecionismo (barrar importações, estimular exportações). Em tese, mais cedo ou mais tarde o estímulos devem fazer efeito. É o chamado “keynesianismo”, receita que se consagrou depois da Crise de 29. Diante de um colapso da demanda provocado por desequilíbrios financeiros, tudo soa como uma gigantesca operação de socorro ao “lado real” da economia. Mas, se o “lado simbólico” continua sob a égide do Fed (o banco central americano), os desequilíbrios continuam. Ou seja, mesmo que afinal aconteça uma recuperação do nível de atividade, dos investimentos e do emprego, o ciclo recomeçaria sob a batuta do mesmo maestro que, em última análise, jogou todo o sistema numa rota de acumulação de lucros especulativos, até o colapso do castelo de cartas. E nenhuma palavra sobre políticas cambiais e reforma do NINHO DA IMPLOSÃO CAMBI A ECLOSÃO DA ATUAL CRISE E A SUA DIFUSÃO PELO MUNDO CONFRONTARAM-NOS COM UMA ANTIGA MAS AINDA NÃO RESPONDIDA QUESTÃO, ISTO É, QUE TIPO DE MOEDA INTERNACIONAL DE RESERVA NECESSITAMOS PARA ASSEGURAR A ESTABILIDADE FINANCEIRA GLOBAL E FACILITAR O CRESCIMENTO ECONÔMICO MUNDIAL (...)? EXISTIRAM VÁRIOS ARRANJOS INSTITUCIONAIS COM A FINALIDADE DE ENCONTRAR UMA SOLUÇÃO, INCLUINDO O PADRÃO PRATA, O PADRÃO OURO, O PADRÃO DE CÂMBIO OURO E O SISTEMA DE BRETTON WOODS. (...) A CRISE, NOVAMENTE, SOLICITA A REFORMA CRIATIVA DO SISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL EXISTENTE, NA DIREÇÃO DE UMA MOEDA INTERNACIONAL DE RESERVA COM VALOR ESTÁVEL, COM EMISSÃO AMPARADA EM REGRAS E OFERTA ADMINISTRÁVEL, A FIM DE (...) RESGUARDAR A ESTABILIDADE ECONÔMICA E FINANCEIRA GLOBAL. (“REFORMAR O SISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL”, ZHOU XIAOCHUAN, PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL DA CHINA, 23 DE MARÇO DE 2009) © ImageChina/AFP CHINA sistema financeiro internacional (instituições como FMI, Banco Mundial e OMC, que se tornaram inúteis seja para prever, seja para remediar a crise). Uma voz dissonante, no entanto, veio do verdadeiro irmão siamês dos Estados Unidos na promoção da globalização das últimas duas décadas. A era do dólar estaria chegando ao fim, na opinião do presidente do banco central chinês, Zhou Xiaochuan. Para a China, é urgente adotar uma nova moeda internacional em substituição ao dólar. A interdependência entre China e Estados Unidos é uma das características mais importantes do ciclo mais recente de globalização. O consumidor americano transferiu dólares para as reservas do banco central chinês e boa parte desse dinheiro foi investido pela China em Wall Street e em títulos de dívida pública do Tesouro americano. Assim, quando a cúpula chinesa ameaça abandonar o dólar, o risco é o de uma tremenda crise de financiamento ao governo e à economia americana. Uma fuga de capitais chineses obrigaria o Fed a promover uma brutal elevação de juros para continuar atraindo a poupança do resto do mundo. Isso aprofundaria a recessão nos Estados Unidos, mas ao mesmo tempo provocaria o colapso completo do modelo exportador chinês (veja a matéria à pág. 9). Ora, se o sucesso chinês é indissociável do desempenho dos Estados Unidos, qual a lógica do banco central chinês quando propõe o fim do dólar como referência para o funcionamento dos mercados globais? Há pelo menos três hipóteses para o movimento supreendente do governo chinês: catástrofe, chantagem e mutação. Num cenário catastrófico, a liderança chinesa – habituada a longas marchas movidas pelo sangue, suor e lágrimas de uma população gigantesca – pode estar trabalhando com a hipótese de que o desarranjo social, político e econômico nos Estados Unidos seria maior que o chinês. Ou seja, valeria apostar na linha do quanto pior, melhor. No final, a China assumiria o papel dos Estados Unidos no comando de uma nova era de expansão global (veja a matéria à pág. 7). Uma hipótese mais pragmática e viável é a da pura chantagem. Antes da posse, Barack Obama e seu secretário do Tesouro, Timothy Geithner, fizeram duras acusações à “manipulação cambial” patrocinada pela China. Ou seja, apesar dos volumosos saldos no comércio exterior, o governo chinês sempre evitou a valorização de sua moeda (que tornaria suas exportações menos competitivas, evitando o desequilíbrio comercial global). Mas algo mudou: em abril, o Tesouro americano manifestou-se solidário com o governo chinês e simplesmente apagou da agenda as críticas à manipulação cambial dos chineses. 2009 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 6 BIAL MUNDIAL ? V TRÊS PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO © AFP amos todos aprender chinês, no lugar do inglês? No plano do senso comum, há décadas, circula a idéia de uma substituição de hegemonia global. Nos anos 80, até mesmo alguns especialistas garantiam que os Estados Unidos estavam prestes a ceder a posição de número um para o então ascendente Japão. Na última década, a Cenas “brasileiras”: crianças chinesas trabalham numa fábrica de brinquedos em Donguan, ao sul do país, e um trabalhador sem teto cozinha o seu almoço sob um viaduto em Hefei, a leste; o “milagre econômico” beneficia apenas uma minoria dos 1,3 bilhão de chineses Entre os discursos de campanha e as manifestações recentes, houve o discurso do presidente do banco central chinês pedindo um novo “Bretton Woods”. A chantagem, portanto, funcionou. As duas potências estão abertamente unidas no combate à “depressão”, desde que nos bastidores seja preservada a aliança informal entre estímulo ao consumo nos Estados Unidos e recuperação das exportações na China. O terceiro cenário é o de uma liderança chinesa efetivamente empenhada num esforço internacional pela correção dos desequilíbrios estruturais entre os países e não apenas comprometida com gastos públicos contra a depressão (o pacote chinês de US$ 586 bilhões só perde para os gastos anunciados nos EUA, de US$ 787 bilhões, fora os trilhões injetados em bancos e instituições financeiras). O estímulo dos gastos públicos chineses (6% do PIB) equivale ao triplo da que- da de exportações ocorrida em 2009. Esse esforço poderia ser complementado por uma grande desvalorização cambial na China, jogando a Ásia e o resto do mundo numa guerra comercial. Lembrem-se: no final de 1993, a China desvalorizou a moeda em 33%, gesto que muitos apontam como causa dos colapsos da Tailândia, Rússia e Brasil entre 1997 e 1999. Resumo da ópera chinesa: enquanto o mundo e a mídia orientam os holofotes para as medidas de estímulo fiscal e financeiro, Pequim e Washington protagonizam um arriscado roteiro de ameaças e chantagens que pode ser a semente de uma inédita implosão cambial global. Gilson Schwartz, economista e professor da USP, foi economistachefe do BankBoston no Brasil e assessor da presidência do BNDES. Lidera o grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento (www.cidade.usp.br). China emergiu como candidato aparentemente óbvio a tomar o posto ocupado pelos Estados Unidos há um século. A crise econômica global, com epicentro no colapso das altas finanças americanas, atiçou a chama das especulações geopolíticas. Começou, enfim, o declínio definitivo da hiperpotência e a paralela ascensão da potência asiática rumo à condição de número um? Nada é tão simples, se levamos em conta que a plataforma de ascensão chinesa é justamente o poderio econômico americano, expresso na dimensão de seu mercado interno e na dinâmica das suas finanças (veja a matéria à pág. 6). Mas, além disso, há obstáculos bem definidos na estrada triunfal que conduziria a China até o paraíso. Os nomes deles: demografia, economia, democracia. A China, por paradoxal que pareça, enfrentará logo o desafio posto por um lento crescimento populacional. O país, hoje com 1,340 bilhão de habitantes, pratica há décadas uma rigorosa política anti-natalista. A ditadura de partido único, impondo penalidades tributárias brutais, assegurou um relativo sucesso dessa política. Estima-se que a taxa de natalidade gire em torno de 13,71 por mil e a de mortalidade, em torno de 7,03 por mil. O crescimento vegetativo resultante, de 0,67%, está entre os mais baixos fora do mundo desenvolvido. A idade média da população já ultrapassou 34 anos. No Brasil, é de 28,6 anos. A tendência é de um acelerado envelhecimento da população, com repercussões sociais explosivas. Nos países desenvolvidos, o envelhecimento da população foi um fenômeno posterior à ampliação da riqueza nacional, que permitiu erguer abrangentes sistemas de seguridade social. Na China, o envelhecimento precede o enriquecimento. Como fechar a equação sem ameaçar a estabilidade política? A expansão econômica a taxas médias em torno de 10%, ao longo de um quarto de século, deriva da transferência em massa da população camponesa para as cidades. Substituindo o trabalho agrícola rudimentar pelo trabalho industrial moderno, a China experimenta saltos sucessivos de produtividade, cujo reflexo aparece no crescimento do PIB (veja a matéria à pág. 8). Mas a continuidade da expansão, em taxas tão elevadas, exige um ambiente econômico global favorável. A indústria implantada em território chinês precisa de consumidores nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, nos Tigres Asiáticos, na América Latina. Até quando ela terá mercados amplos, abertos e crescentes? A crise atual confere uma ênfase maior à pergunta. Uma coisa é certa: a China não tem a opção de crescer devagar. Um rumo desse tipo implicaria fechar as portas das cidades às massas que deixam o campo e negar um emprego decente aos milhões de jovens que, anualmente, brotam com diplomas do interior das universidades. Ninguém segura uma panela de pressão social de dimensões chinesas... Nas democracias, sistemas políticos flexíveis absorvem as crises e oferecem saídas para o descontentamento social. Os americanos que perderam suas casas e suas poupanças de décadas nos últimos meses não empunharam armas contra Wall Street: elegeram Barack Obama. Na China, um sistema político inflexível, autoritário e fechado, é o alvo evidente das tensões sociais. Há duas décadas, enquanto ruía a União Soviética, a China conheceu o maior movimento popular recente pela democracia. A multidão de jovens reunida na Praça da Paz Celestial, em 1989, foi dizimada a tiros. De lá para cá, a expansão econômica contínua e acelerada amortizou a tensão latente. Mesmo assim, milhares de protestos isolados pipocam todos os meses nas províncias do imenso “continente chinês”. Não é fácil, em tempos normais, negar direitos políticos elementares a uma população que emerge acima da miséria. Será possível negá-los por anos a fio, pontilhados de crises e tempos de vacas magras? Será possível fazê-lo na “era da informação”, uma época em que quase tudo pode ser lido no éter da internet? O futuro não está escrito. Ninguém tem respostas a tais perguntas. Ninguém sabe se a China um dia tomará o posto de número um. Mas não acredite no senso comum: ele quase sempre está errado. MAIO 2009 7 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O CHINA OS RATOS DE DENG XIAOPING ão importa a cor do gato, desde que ele cace o rato”: na boca de uma pessoa qualquer, a frase seria interpretada como um simples provérbio popular, auto-evidente; proferida, no final dos anos 70 do século passado, por Deng Xiaoping (1904-1997), ela sinalizou uma gigantesca “virada” na história da República Popular da China. Deng, o todo-poderoso sucessor do dirigente comunista chinês Mao Tsetung (1893-1976), sinalizava a adoção do “pragmatismo”: o Estado chinês deveria, a partir de então, “flexibilizar” o processo deflagrado em 1949 por Mao, quando os comunistas tomaram o poder, e iniciar um processo de “modernização” econômica. Isso significava, concretamente, abandonar o conceito de uma economia totalmente coletivizada e controlada pelo Estado, para abrir espaço para a iniciativa privada. Hoje, esse modelo é mundialmente conhecido como “socialismo de mercado”. Como entendê-lo? Ao tomar o poder na China, Mao iniciou um processo espelhado na revolução soviética de outubro de 1917: toda a economia passou a ser controlada pelo Estado que, por sua vez, foi submetido à ditadura do Partido Comunista Chinês (PCC), o único com existência legal permitida. E o PCC era dominado pelo “Grande Timoneiro” Mao (assim como, na União Soviética o partido único era controlado pelo “Genial Pai dos Povos” Josef Stalin). As terras foram expropriadas e transformadas em sistemas de cooperativas coletivas controladas por funcionários do Estado (isto é, por membros do partido), e o mesmo aconteceu com a indústria e com o setor financeiro. O período maoísta conduziu o país a um absoluto desastre. País de tradição agrícola, com uma população que, em 1949, beirava os 600 milhões de habitantes, a China nem chegou perto do processo de industrialização acelerada desejado por Mao, e o sistema econômico estatal acabou desarticulando o processo produtivo que, bem ou mal, existia no campo. O resultado foi o desemprego em massa nas cidades e a fome em regiões inteiras da China. Só as indústrias bélica e de infraestrutura apresentaram resultados um pouco menos desastrosos, mas elas tinham um objetivo preciso: exponenciar a capacidade de repressão e controle social por parte de Mao e dos burocratas encastelados no PCC. Com a morte de Mao, Deng Xiaoping iniciou um processo de reformas, cujo objetivo era estimular a economia. Não por acaso, começou pelo campo: permitiu que os camponeses cultivassem pequenas áreas em benefício próprio, assim gerando um excedente alimentar capaz de atenuar a situação catastrófica de desabastecimento. Foi quando surgiram as primeiras cooperativas privadas de camponeses (embora a terra ainda pertencesse ao Estado), e o surgimento de uma nova classe de camponeses ricos. A partir de 1982, após o XII Congresso do PCC, Deng iniciou a “abertura” no setor industrial. O governo estimulou a competição entre as empresas (todas Estatais), premiando as que atingissem melhores índices de qualidade e de produtividade, tendo como referência os padrões internacionais. © AFP N “ © AFP O experimento do “socialismo de mercado” integrou a China aos fluxos mundiais das finanças e do comércio, incorporando 200 milhões de pessoas à economia da globalização. Sem desmontar a ditadura de partido único Março - abril de 1989: na Praça da Paz Celestial (Pequim), milhares de jovens exigem a democratização do país, muitos apoiando-se em antigos escritos do histórico líder Mao Tsetung (no detalhe, ao apertar a mão de Deng Xiaoping, à dir.); o movimento foi liquidado com o massacre de 2 mil estudantes pelo exército, em 4 de abril Mas o “grande salto adiante” (lema muito utilizado, com sentido bem diferente, por Mao para estimular a produção, nos anos 50) veio com a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZEE), nas províncias litorâneas, destinadas a atrair investimentos estrangeiros. Elas funcionavam como verdadeiros “paraísos” para as empresas capitalistas: mão-de-obra barata (salários que ainda hoje beiram os US$ 30 mensais, por uma jornada diária de 12 horas de trabalho), quase total isenção de impostos, total liberdade de ação. Em troca, as empresas deveriam estabelecer joint-ventures (associações) com empresas estatais chinesas, que queriam modernizar suas “técnicas de gerenciamento”, além de promover uma certa transferência de tecnologia. As primeiras ZEEs foram implantadas em Shenzen, Zhuhai e Xiamen. O novo modelo permitiu à China crescer a taxas superiores a 9% ao ano, em média, durante os anos 90. Mas, diferentemente do que fez Mikhail Gorbatchev na União Soviética, que tentou conciliar abertura econômica (perestroika) e política (glasnost), o governo chinês acentuou a repressão. O grande emblema disso foi o massacre de 2 mil jovens, trabalhadores e estudantes que protestavam na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em abril de 1989, há quase exatas duas décadas. Não por acaso, eles aclamavam Gorbatchev (que visitou Pequim, em março daquele ano) e pediam uma glasnost na China. A incorporação de Hong Kong à China, em julho de 1997, graças a um acordo com a Grã-Bretanha, que detinha o controle do território, acentuou ainda mais o caráter capitalista da integração do país ao mercado mundial, consagrado pela sua inclusão à Organização Mundial do Comércio, em 2001 (veja a matéria à pág. 9). Hong Kong é, ao lado de Cingapura, o centro nervoso do capital financeiro da Ásia, por onde passam investimentos e capitais especulativos e industriais de toda a região, incluindo Japão e Tigres Asiáticos. O chamado “socialismo de mercado”, portanto, serve para descrever (ou ocultar?) um sistema algo bizarro, que mantém uma armadura política e retórica herdada da revolução de 1949 (a ditadura do partido único, os louvores ao “Grande Timoneiro” Mao), mas com uma economia estruturada segundo as normas do capital. Hoje, cerca de 200 milhões de chineses constituem uma classe média que consegue, de alguma forma, participar dos bilhões de dólares que circulam na economia, ao passo que mais de um bilhão vivem entre a pobreza e a miséria absoluta, contidos por uma feroz polícia política. Deng acertou: o gato é bom se caça ratos. Mas faltou explicar melhor quem são os ratos. 2009 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 8 CHINA PEQUIM TEME PROTECIONISMO Crise global ameaça os mercados que consomem produtos chineses e a estabilidade da moeda na qual estão expressos os investimentos da China. Hoje, a potência asiática tornou-se um baluarte da ortodoxia econômica Gráfico 1 Balança comercial da China (2005) US$ bilhões 900 800 Exportações 700 600 500 Importações 400 300 200 100 0 Mundo Ásia* Am. Norte Europa** * Inclui Oceania e exclui Oriente Médio - ** Exclui CEI FONTE: OMC, 2009 Gráfico 2 Distribuição das exportações da China (2005) 300 US$ bilhões 250 200 150 100 50 0 Japão EUA UE CEI Ásia* Am. Norte Europa** Outros * Inclui Oceania e exclui Oriente Médio - ** Exclui CEI FONTE: OMC, 2009 Gráfico 3 Distribuição das importações da China (2005) 350 300 US$ bilhões China é contra qualquer forma de protecionismo e nós propomos a cooperação e a negociação para solucionar todas as questões concernentes ao comércio internacional”, declarou Yao Jian, o porta-voz do Ministério do Comércio chinês, em fevereiro. Yao prometeu apoio integral aos esforços da Organização Mundial de Comércio (OMC) para evitar a disseminação do protecionismo e pediu à OMC que conclame “todos os países membros a se comprometerem com a sua estratégia de livre comércio”. Na mesma entrevista coletiva, mirando nos Estados Unidos, cujo Congresso acabara de aprovar um pacote de estímulo fiscal que contém uma cláusula de incentivo à compra de produtos nacionais, o vice-ministro do Comércio Jiang Zengwei garantiu: “Nós não praticaremos o Buy China. Trataremos igualmente os produtos domésticos e estrangeiros.” Na esfera comercial, o século XXI inicia-se com essa pequena aula de liberalismo econômico ministrada por uma ditadura de partido único, que ainda cultua Mao Tsetung, à maior potência mundial, uma nação que só cultua os deuses da liberdade econômica. O paradoxo, uma fina ironia da história, decorre tanto dos efeitos políticos do colapso financeiro nos Estados Unidos quanto dos interesses nacionais objetivos chineses. A China, uma “economia socialista de mercado”, na curiosa e internamente contraditória definição oficial, precisa conservar um ritmo acelerado de crescimento econômico, para assegurar um mínimo de estabilidade política interna (veja a matéria à pág. 7). Mas o crescimento acelerado depende, crucialmente, da manutenção de mercados abertos e, em particular, do livre acesso de bens chineses aos consumidores americanos. Na globalização, o comércio oscila mais que o PIB, tanto para cima quanto para baixo. No ciclo de expansão econômica mundial, entre 2000 e 2007, o PIB global cresceu 3%, enquanto o comércio cresceu 5,5%. A China é um caso à parte: no período, suas exportações aumentaram em espantosos 22,5% (contra 6% dos Estados Unidos e do Japão e 12% da União Européia) e suas importações em 18% (contra 7% dos Estados Unidos e do Japão e 12% da União Européia). Como resultado, em 2007, a China tornara-se o segundo exportador mundial, com 8,9% do total, atrás apenas da Alemanha (9,7%) e à frente dos Estados Unidos (8,5%), e o terceiro importador mundial, com 6,8% do total, atrás dos insaciáveis Estados Unidos (14,5%) e da Alemanha (7,6%). A irresistível ascensão comercial da China revolucionou toda a matriz de intercâmbios globais. O comércio intra-regional asiático, que era relativamente pouco expressivo, passou a corresponder a quase metade do total dos intercâmbios da Ásia em 2007. É que a China transformou-se no grande elo das cadeias de produção e consumo que conectam a Ásia ao Ocidente e, em especial, ao mercado americano. Os imensos saldos positivos na balança comercial chinesa devem-se, sobretudo, aos intercâmbios bilaterais com a América do Norte e a Europa. Mas o vasto intercâmbio da China com o restante da Ásia gera saldos negativos (veja o Gráfico 1). 250 200 150 100 50 0 Japão EUA UE CEI Ásia* Am. Norte Europa** Outros * Inclui Oceania e exclui Oriente Médio - ** Exclui CEI FONTE: OMC, 2009 Gráfico 4 Saldo em conta corrente US$ bilhões A “ E DESVALORIZAÇÃO DO DÓLAR 450 300 150 0 -150 -300 -450 -600 -750 -900 China EUA 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 China 2000-08 (Saldo de conta corrente) 20.519 17.405 35.422 45.875 68.659 160.818 249.866 371.833 399.325 EUA 2000-08 (Saldo de conta corrente) -417.429 -382.370 -461.271 -523.413 -624.999 -728.994 -788.115 -731.214 -664.125 FONTE: FMI, 2009 A China exporta produtos manufaturados finais para os Estados Unidos e a União Européia, seus dois principais clientes (veja o Gráfico 2). As estruturas produtivas implantadas na China, que têm como estrato mais dinâmico e moderno as empresas estrangeiras, utilizam sobretudo bens de produção e componentes fabricados no Japão e nos Tigres Asiáticos. Por esse motivo, a Ásia é, de longe, a principal fonte das importações chinesas (veja o Gráfico 3). Isso significa que a China é a ponte vital entre as tecnologias elaboradas no Japão e nos Tigres Asiáticos e o mercado consumidor dos Estados Unidos. A parcela de maior conteúdo tecnológico e de maior valor das exportações chinesas é produzida por empresas japonesas, americanas, coreanas, européias, operando em território chinês, empregando a abundante mão-de-obra barata chinesa e sob as regras políticas e sociais estabelecidas pela ditadura do partido único. O pleno funcionamento desse sistema produtivo integrado à globalização assegurou as invejáveis taxas de expansão do PIB chinês registradas há quase três décadas. A China não pode admitir que uma descontrolada onda protecionista, deflagrada pela crise econômica global, destrua as engrenagens que a converteram em potências mundial. A dinâmica do sistema produtivo da globalização assenta-se sobre o desequilíbrio estrutural entre o excesso de consumo no Ocidente, de um lado, e o excesso de produção (e, portanto, de poupança) na China. A expressão do desequilíbrio encontra-se na conta corrente do balanço de pagamentos dos Estados Unidos e da China. A conta corrente é a diferença entre os ingressos e as saídas de capital das economias nacionais. A conta de capital dos Estados Unidos gera saldos positivos, em virtude dos lucros obtidos pelas empresas americanas que operam no exterior, mas tais saldos estão longe de cobrir os déficits comerciais. O resultado são saldos negativos em conta corrente que atingiram mais de US$ 650 bilhões em 2008. Na China, pelo contrário, a adição dos saldos positivos na conta de capital aos amplos superávits comerciais resulta em saldos positivos em conta corrente que atingiram cerca de US$ 400 bilhões em 2008 (veja o Gráfico 4). O déficit americano e o superávit chinês formam dois lados de uma mesma gangorra. No fim, a equação fecha apenas porque as imensas somas de capital em mãos da China são investidas nos mercados financeiros do Ocidente e, em particular, em títulos emitidos pelo Tesouro dos Estados Unidos. Por essa via, a China financia o déficit (e o consumo) americano, assegurando a continuidade de um sistema que promove o seu próprio crescimento. Mas tudo se torna dramático se o dólar ingressa numa espiral de desvalorização. A perda de valor da moeda americana, que é a moeda do mundo, dissolve ativos chineses investidos no mercado financeiro ocidental. Os chineses tremem de pavor diante da perspectiva de que os formidáveis pacotes fiscais de Barack Obama se traduzam, mais adiante, por uma onda de inflação nos Estados Unidos. Não por acaso, já começam a sugerir nada menos que a substituição do dólar por alguma outra moeda mundial. MAIO 2009 9 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O Nelson Bacic Olic Da Redação de Mundo Cidade do Cabo é a expressão concreta de uma convergência peculiar entre a geografia e a história. Localizada numa pequena península no extremo sul do continente africano, Capetown é o segundo maior núcleo urbano (3,3 milhões de habitantes), da República Sul Africana (veja o Mapa 1). Quem chega à cidade, logo vislumbra seu mais importante acidente natural, a Table Mountain (Montanha da Mesa). Este bloco de relevo tabular, de 1.087 metros, pode ser avistado de todos os pontos da cidade. A vista da cidade a partir da Table Mountain é lindíssima. A cidade e regiões próximas guardam uma singular mescla cultural e populacional, resultado da superposição e miscigenação de diferentes culturas ao longo do tempo. Aos hotentotes, grupo ancestral que habitava a região, juntaramse, há cerca de mil anos, povos bantos que se expandiam para o sul. No século XVII chegaram os colonizadores europeus, primeiramente holandeses, que fundaram a cidade e criaram a Colônia do Cabo, em 1652 [veja o Box). Calvinistas, esses colonos fugiam às perseguições religiosas movidas a eles na Europa. Em seguida, chegaram outros colonos protestantes, de origens francesa, inglesa e alemã. Nesse Península e Cidade do Cabo período houve expressiva mestiçagem entre os colonizadores e grupos africanos. Ato contínuo foram trazidos escravos, assim como trabalhadores livres, da Malásia, da Indonésia, da África Oriental e do Subcontinente Indiano. Houve também mestiçagem entre esses grupos e os que ali já se encontravam. Do século XIX, quando a Colônia do Cabo passou ao domínio britânico, até os dias atuais, juntaram-se a esse caldeirão étnico-cultural imigrantes europeus de várias nacionalidades e imigrantes vindos de países vizinhos como Angola, Moçambique e Zimbábue. Vez por outra, estes últimos têm sido vítimas de atos de xenofobia. Dessa evolução demográfica resultou uma composição populacional bem diversa do resto da África do Sul. Segundo o censo de 2001, os coloreds (mestiços, na classificação criada pelo apartheid e conservada até hoje) perfaziam 48,2% da po- Namíbia Botsuana República Sul Africana Ilha de Robben Cidade do Cabo OCEANO ÍNDICO Área central da Cidade do Cabo Reserva natural do Cabo OCEANO Cabo da ÍNDICO Boa Esperança OCEANO ATLÂNTICO Mapa 1 Cape Point pulação, seguidos pelos “negros” (31,7%) e “brancos” (18,7%). Capetown pode se orgulhar de ser a mais cosmopolita e liberal cidade do país. Um cartão de visita da cidade é o Victória & Alfred Waterfront, antigo cais construído no século XIX e que A saga bôer, o apartheid e a nova África do Sul © Andres de Vet A CAPETOWN, A CIDADE-MÃE DA ÁFRICA DO SUL hoje abriga, além de um grande shopping e dezenas de restaurantes, o surpreendente Aquário dos Dois Oceanos. Os habitantes de Capetown estão cada vez mais empolgados com a Copa do Mundo, que o país sediará em 2010. Já são encontradas nas lojas as camisetas da torcida bafanabafana, nome carinhoso da seleção local. Ela divide as vitrines com outra, de cor verde, na qual está escrito Springboks, que identifica a seleção de rúgbi, esporte no qual o país sagrou-se campeão mundial em 1995 e 2007. Nelson Mandela é objeto de veneração pela maioria da população, onipresente em estátuas, fotos e camisetas. Frases e citações do líder da luta contra o apartheid estão impressos em cartazes e pôsteres nas lojas para turistas. Nos arredores de Capetown há duas outras atrações; a primeira é o Cabo da Boa Esperança, cerca de 100 quilômetros ao sul. Foi uma emoção especial visitar o Cape Point e imaginar, erroneamente como os navegadores portugueses do passado, que ali se dava o encontro das águas do Atlântico e do Índico. Na verdade, a famosa passagem de Bartolomeu Dias e Vasco da Gama encontra-se cerca de 200 quilômetros a sudeste, no Cabo das Agulhas. A segunda atração é a rota dos vinhedos do Cabo. Nesta área está Stellenbosh, a primeira cidade vinícola edificada por holandeses em 1679. Mais tarde, huguenotes franceses fundaram Franshoek e, em seguida, Paarl. A qualidade dos vinhos sul africanos é reconhecida mundialmente. OCEANO ATLÂNTICO MOÇAMBIQUE A origem da atual República Sul Africana (RSA) encontra-se na colonização da região do Cabo, iniciada em 1652 por protestantes holandeses (bôeres). A colônia passou ao controle britânico em 1814, por decisão do Congresso de Viena. A nova administração declarou o fim da escravidão em 1833, ato que desencadeou o Grand Trek (Grande Jornada), a migração de milhares de bôeres em direção aos planaltos interiores da África austral (veja o Mapa 2). Entre 1834 e 1838, os trekers lutaram contra tribos africanas e fundaram as repúblicas do Orange e do Transvaal. Essas repúblicas interiores, apoiadas na escravidão e num exacerbado radicalismo religioso, lançaram as bases do que mais tarde seria o apartheid. África do Sul ao final do século XIX No final do século XIX, a descoberta de diamantes e ouro nas repúblicas bôeres atiçou a BECHUANALÂNDIA cobiça britânica e desencadeou uma guerra entre a maior potências mundial e os colonos conser(Botsuana) vadores da África austral. A Guerra dos Bôeres (1899-1902) terminou com a derrota do Orange SUDOESTE TRANSVAAL e do Transvaal. Oito anos depois, uma Constituição negociada entre os antigos adversários criou AFRICANO a União da África do Sul, composta pelos territórios britânicos do Cabo e do Natal, mais as (Namíbia) antigas repúblicas bôeres. Por cerca de quatro décadas, o poder ficou nas mãos de políticos brancos mais moderados. Deve-se lembrar que, até 1994, a majoritária população negra não tinha direitos políticos. A ESTADO LIVRE evolução econômica do país, o mais rico da África, criou um expressivo mercado de trabalho NATAL DO urbano. Essa situação gerou conflitos entre os africânderes (os descendentes dos bôeres, que falam ORANGE a língua africâner) e a maioria negra. A defesa da exclusão dos negros e do monopólio dos postos de trabalho pelos brancos levou à criação do Partido Nacional, constituída por africânderes radiOCEANO cais. Influenciado por idéias nazistas, o partido chegou ao poder em 1948. ÍNDICO A partir daí se criou o regime do apartheid, baseado em todo um arcabouço jurídico de leis Cabo racistas e mantido a ferro e fogo por quase meio século. O sistema de discriminação oficial só desapareceu pela combinação de pressões internas e internacionais, especialmente após o fim da Guerra Fria. Em 1994 foram realizadas as primeiras eleições multirraciais na RSA, que deram a vitória a Nelson Mandela. Territórios britânicos Estados BÔERES Protetorados britânicos Colônia do Cabo em 1.800 Colônia do Cabo em 1.700 GRAND TREK Mapa 2 2009 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 10 Nelson Bacic Olic Da Redação de Mundo Jason Nelson/Stock.xcng Série Geopolítica da Água DISCÓRDIA INDOSTÃO NAS ÁGUAS DO Mapa 1 Rios do Subcontinente Indiano A AFEGANISTÃO C H I N A Rio TIBETE Ind o PAQUISTÃO do Rio Bramaputra In Ri o NEPAL Ga BUTÃO ng Mapa 2 ra oB Ri BANGLADESH O Alto Vale do Rio Indo OCEANO ÍNDICO C H I N AFEGANISTÃO Í N D I A A do In o GOLFO DE BENGALA Mapa 3 As águas de Bangladesh H I BUTÃO NEPAL M ÍNDIA A A o BANGLADESH do I In PAQUISTÃO Ri L putra rama Rio B A A Rio A TIBETE B C a utr p ma es MIANMAR o Ri Ri fixação de povos nômades em regiões próximas de grandes rios remonta ao período Neolítico (6000-2500 a.C.). Nessas áreas surgiram as chamadas civilizações hidráulicas, cuja existência só pode ser entendida em função dos rios que as alimentavam. Entre as mais conhecidas estão aquelas que se ergueram ao longo do vale do rio Nilo e na Mesopotâmia, drenada pelos rios Tigre e Eufrates. A civilização hindu, também se desenvolveu nas proximidades de importantes cursos fluviais como o Ganges, Indo e Bramaputra, os principais rios que drenam o Subcontinente Indiano, ou Indostão. Junto às margens e deltas desses rios ainda hoje são encontrados alguns dos maiores adensamentos de população rural, os “formigueiros humanos” da Ásia meridional. Tais áreas correspondem também a alguns dos principais bolsões de pobreza do mundo atual. A base produtiva dessas regiões está assentada há séculos na agricultura, por meio de sistemas de cultivo intensivos que se caracterizam pela ampla utilização de mão-de-obra. A dinâmica climática dita o ritmo do trabalho agrícola. Durante o inverno existe pouca atividade mas, no verão, toda a força de trabalho disponível é utilizada nas culturas agrícolas. O Indostão compreende basicamente três países – Índia, Paquistão e Bangladesh – que possuem uma população conjunta de aproximadamente 1,5 bilhão de pessoas, um pouco mais de um quinto do total mundial. Ainda dominantemente rural, a população do Subcontinente Indiano apresenta alto crescimento vegetativo. Com quase 1,2 bilhão de habitantes, a Índia é o segundo país mais populoso do mundo. Bangladesh e Paquistão possuem, cada um, mais de 150 milhões de habitantes. Três grandes rios, o Ganges, o Indo e o Bramaputra, cortam a região e têm em comum o fato de serem rios internacionais – isto é, drenam o território de dois ou mais países. Cada um deles possui E COOPERAÇÃO (CHINA) Daca Gan ges ÍNDIA Calcutá Í N D I A Cachemira Indiana A Afluentes do Cachemira Paquistanesa B Indo que nascem ou cruzam o Cachemira Chinesa C território da Índia mais de 2.500 quilômetros de extensão e seus regimes são pluvionivais, visto suas nascentes localizarem-se no Himalaia, caso do Ganges, ou nos altos planaltos do Tibete chinês (Indo e Bramaputra). Na parte de jusante, esses rios recebem as diluvianas chuvas da monção de verão. A parcela de água renovável vinda de fora nos três países é bem diferente. Na Índia, esse índice é de 34%; no Paquistão, de 76% e, em Bangladesh, de 91%. Por conta do traçado de fronteiras políticas surgido após a descolonização, e também por possuir uma superfície bem maior que a dos seus vizinhos, o território da Índia é cortado pelos três rios. Já o Paquistão tem no Indo seu principal curso fluvial, enquanto Bangladesh controla o curso inferior dos rios Ganges e Bramaputra (veja o Mapa 1). As questões hidroconflitivas entre Índia e Paquistão concentram-se sobre a par- GOLFO DE BENGALA Áreas constantemente afetadas por inundações A Usina indiana de FARAKKA tilha das águas da bacia do Indo. Quando Índia e Paquistão se tornaram independentes, em 1947, a bacia fluvial foi dividida entre ambos. O Paquistão ficou com a maior parte dos canais e terras irrigadas que já eram utilizadas e a Índia teve a vantagem de controlar as águas do Indo que fluem rumo ao país vizinho. O Indo atravessa um trecho da Cachemira indiana e alguns dos seus afluentes da margem esquerda têm parte considerável de seus cursos em território indiano. Nessa região, considerada como o maior perímetro irrigado do mundo, a questão da utilização conjunta das águas fluviais encontrou uma solução satisfatória, o que não se verificou em relação a outras questões geopolíticas nas quais os países vizinhos estão envolvidos. Em 1960, o Banco Mundial intermediou um tratado repartindo os recursos hídricos do Indo entre os dois países. Assim, afluentes da margem direita ficaram sob o controle da Índia, enquanto o próprio Indo e seus afluentes da margem esquerda ficaram para o uso do Paquistão (veja o Mapa 2). Já a utilização das águas do Ganges e do Bramaputra gera tensões entre Índia e Bangladesh. O primeiro, um rio sagrado para o hinduísmo, corre quase integralmente no território da Índia. Em seu percurso, o Ganges afeta a vida de pelo menos meio bilhão de pessoas, que dependem dessas águas para sua subsistência. A Índia não exerce soberania sobre o curso inferior dos dois rios que, após se juntarem, formam um grande delta. É sobre este delta que está parte considerável do território de Bangladesh. Os vales do Ganges e do Bramaputra estão sujeitos a constantes inundações. Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo, é especialmente vulnerável às inundações, algumas delas catastróficas. Na grande cheia de 1988, que fez cerca de 300 mil vítimas, mais da metade do país ficou submerso (veja o Mapa 3). O controle das águas dos dois rios tem sido motivo de atritos, que incidem sobre a construção de barragens e a partilha das águas. No caso do Ganges, as discórdias estão focadas na barragem indiana de Farakka, concluída em 1974 e cujo objetivo era reter a maior quantidade de água possível para o uso da Índia. Em 1997, depois de décadas de tentativas infrutíferas, chegou-se a um acordo para o uso compartilhado das águas. Pelo tratado, fica garantida a Bangladesh uma quantidade mínima de água durante o período mais crítico da monção de inverno, entre os meses de março e maio. É surpreendente o fato de que o Subcontinente Indiano, uma região marcada por conflitos entre países e no interior de cada um deles, tenha encontrado soluções de uso compartilhado das águas, fonte essencial para a vida de mais de um bilhão de seres humanos. MAIO 2009 11 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O ESTADOS UNIDOS GUERRAS CULTURAIS ATORMENTAM A “ERA OBAMA” B “ arack Obama venceu por causa de uma economia aos pedaços, mas a guerra cultural continua “e seremos nós os vencedores”, desabafou um conservador americano diante do resultado nas urnas. Embora tenha sido reação de um desconhecido, o registro jornalístico foi feito porque a explosão verbal aconteceu numa da seções eleitorais da Califórnia, onde os liberais tiveram de engolir o triunfo da chamada Proposta Número Oito, proibindo casamentos gays. Alguns de seus autores, como os do Protect Marriage, insistem em que não se trata de discriminação, mas de “tentativa de defender a definição tradicional de casamento”. A constatação, no entanto, é a de que está em curso uma guerra, no campo cultural. Isto ficou claro com a ampla mobilização religiosa, inclusive de igrejas afro-americanas, em favor da “Prop 8”. Há outros indicadores. Guerreiros. O argumento é o de que é preciso proteger “valores familiares”. Não estão em jogo só os casamentos gays, mas toda uma gama de “valores”, a partir de um conjunto de questões que continuam em pauta, com um e outro lado cavando trincheiras. O que aconteceu na Califórnia foi um golpe a mais nos liberais – e dado com punhos de aço. Não surpreendeu o voto favorável de grande maioria de eleitores brancos. Foi significante o apoio à proposta de um em cada dois negros. Além disso, 30 estados americanos já baniram esse tipo de casamento. Mas a seqüência de embates vai em frente. Na Dakota do Sul, foi banido por 69% dos eleitores o direito de escolha em abortos. Proteção legal, só em casos de incesto, estupro ou risco à vida das gestantes. No lado oposto da trincheira, Washington passou a permitir o suicídio em casos de doentes terminais e Michigan legalizou pesquisas com células-tronco. O caso da “Prop 8”, na Califórnia, tornou-se emblemático porque coincidiu com a eleição de Obama, chamado de “socialista” por um dos mais ouvidos apre- Casamento gay, aborto, células-tronco, tradições religiosas, pena de morte, porte de armas. São os temas explosivos da guerra sem fim que opõem conservadores a liberais nos Estados Unidos Culture warrior (“Guerreiro cultural”), de Bill O’Reilly, que se apresenta orgulhosamente como o personagem do título. Está em curso, reitera Reilly, uma guerra entre tradicionalistas, como ele próprio, e forças de um progressismo secular que almeja mudar os Estados Unidos “dramaticamente”, tendo como exemplo – que horror! – a Europa Ocidental. Para O’Reilly, a BBC, de Londres, é de esquerda. Ele metralha o aborto, drogas, casamentos gays, não comemorar o Natal e assim por diante, nessa guerra radicalizada pela presença de um “negro liberal” na Casa Branca. Em suas alucinações guerreiras, O’Reilly antevê uma Glória Hernandez sucedendo a Barack Obama. Além de hispânica, mulher! Os Estados Unidos seriam assaltados pelos de fala espanhola, ainda por cima mais dispostos à procriação. Na seqüência – quem sabe? – um asiático, o primeiro de olhos espichados na Casa Branca. O jeito, talvez, na visão de O’ Reilly, seria adotar a linha de Ronald Reagan em relação à “contenção do comunismo” nas guerrilhas centro-americanas dos anos 80. O grito do “guerreiro cultural” é “Não passarão!” – ironicamente lançado nos anos 30, durante a Revolução Espanhola, por uma mulher republicana, logo anti-franquista, logo de esquerda. Dois outros assuntos emergem nesse campo de batalha: a pena de morte e o porte de armas de fogo. Há uma campanha mundial, com origem na ONU, contra a pena de morte, proibida nos países da União Européia (UE), cujo way of life horroriza os guerreiros culturais dos Estados Unidos. A pena de morte, por exemplo, é um dos dispositivos que dificultam a admissão da Turquia na UE. Em porte de armas de fogo, os liberais sofreram duro revés com decisão recente da Corte Suprema de ressuscitar velhíssimos dispositivos, datados da época do faroeste. Uma revisão só será possível se Obama conseguir alterar a composição do mais alto tribunal dos Estados Unidos, hoje com maioria conservadora. © Tim Boyle/Getty Images/AFP Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores Cena comum em Chicago e outras grandes cidades dos Estados Unidos: em meio à crise, a forte presença hispânica e de outras minorias étnicas provoca crescentes tensões sociais sentadores de rádio dos Estados Unidos. Obama, já empossado e com alto capital político, deu o troco. Acabou com restrições aos financiamentos federais de estudos com células-tronco, introduzidas por Bush com o argumento de que seria matança de vidas embrionárias. O New York Times, que contabiliza um bom número de defesa de causas liberais, saiu em defesa de Obama com editorial incisivo. De acordo com o editorial, a medida “encerra um período obscuro, no qual objeções morais de conservadores religiosos constrangeram avanços de grande importância para as ciências médicas”. O Washington Post, por sua vez, considerou Bush o verdadeiro chefe da direita religiosa dos Estados Unidos, a tropa de choque com maior poder de fogo nessa guerra cultural. Os tiroteios, em alguns momentos, se abrem num leque matizado. O New York Times não ficou totalmente satisfeito com a canetada de Obama, embora não hesite em defini-la como “instância luminosa”. Dólares federais continuam bloqueados para alguns tipos de pesquisas. Cabe ao Congresso dar um jeito, pediu o jornal. Em cada três brancos evangélicos, só um votou por Obama. Pat Buchanan, um dos “marechais” da direita religiosa, usou a Convenção Nacional do Partido Republicano para classificar Sarah Palin, a combativa vice de John McCain, como a “nossa Katyusha”. Katyusha é o célebre fuzil-metralhadora de fabricação russa muito usado por guerrilheiros. “Há uma guerra religiosa em nosso país e a disputa se trava visando à conquista da alma dos americanos”, disse Buchanan, para uma platéia de entusiastas republicanos. A “Bósnia” dessa guerra, ainda segundo Buchanan, “é o aborto”. Na Bósnia se trucidaram, entre si, sérvios, muçulmanos e bósnios. Liberais, subversivos, imigrantes e infiéis de modo geral (negros escapam com seus evangelismos) são os alvos da “Katyusha” Palin. Há um livro, intitulado 2009 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 12