NOTAS SOBRE A CRISE SISTÊMICA DO CAPITALISMO, LIMITES E DESMANTELAMENTO DO ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL E A QUESTÃO BRASIL Francisco José Soares Teixeira1 Palestra realizada por ocasião do 80 ENCONTRO NACIONAL DO SETOR das IEES-IMES do ANDES-SN, Rio de Janeiro, 21 DE OUTUBRO DE 2011. PARTE PRIMEIRA 1. IMPASSES E CONTRADIÇÕES DO SISTEMA PÚBLICO DE EMPREGO: A EXPERIÊNCIA DAS ECONOMIAS CENTRAIS Com o fim da segunda guerra mundial, abre-se um período de expansão e prosperidade econômica em quase todo o mundo capitalista. As economias dos assim chamados países centrais ou industrializados entram num longo ciclo de crescimento, sustentado por uma produtividade crescente, que possibilitou ganhos reais de salários, concomitantemente com aumento dos lucros. Essa congruência entre salário e lucro permitiu ao sistema gozar de relativa estabilidade econômica e de certa harmonia social. É neste contexto de estabilidade econômica e de pleno emprego que foram organizados e consolidados os mecanismos para a criação dos programas públicos de geração de emprego e renda, de maneira sistêmica, organicamente articulados com um conjunto de políticas macroeconômicas, comprometidas com o crescimento econômico. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) instituiu o sistema público de emprego pela Convenção Nº 88, de julho de 1948, ainda que muitos países centrais o adotassem, pelo menos em parte, já a partir dos anos 20 do século passado e, por isto, a ele aderiram rapidamente, em especial em toda a Europa, salvo aquela sob controle soviético. A partir da década de 70, as economias centrais começam a enfrentar grandes dificuldades. Com a crise dessas economias, as taxas de crescimento econômico começam a declinar. Essa crise, que se prolonga até hoje, é marcada por uma singularidade, que a distingue das crises anteriores. Diferentemente do que foi no passado, parece bastante improvável que ela seja seguida de uma nova fase prolongada de crescimento acelerado, pelo menos num horizonte próximo de tempo. Alega-se que um novo "boom" de crescimento e prosperidade econômicos, semelhante àquele verificado no período que vai do final da segunda guerra mundial até meados da década de 70, não seja mais possível. Esse prognóstico pessimista apóia-se no fato de que a crise não pode mais provocar uma desvalorização massiva dos capitais existentes, precondição necessária para a retomada da taxa média de lucros2. Dentre os fatores apontados, que vêm dificultando a 1 Professor da Universidade Regional do Cariri (URCA-CE). E-mail: [email protected] 2 Mandel, Ernest. A Crise do Capital: os fatos e sua interpretação marxista. - São Paulo: Ensaio, 1990. recuperação da taxa de lucro, é ressaltada a intervenção estatal. O argumento usado é mais ou menos o seguinte: o Estado, ao impedir a falência dos capitais não competitivos, bloqueia o desenvolvimento das forças produtivas e, assim, estorva a possibilidade de retomada de um crescimento a taxas próximas àquelas verificadas nos anos 50 e 60. Neste novo contexto, as políticas de emprego se transformam em ações voltadas, preferencialmente, para o funcionamento do mercado de trabalho. Prova disto é a mudança na composição dos gastos públicos com o trabalho. Realmente, até meados da década de 70, as despesas com as políticas ativas, voltadas para a criação de empregos, respondiam em grande parte pelos gastos públicos. Daí em diante, as despesas passivas ou compensatórias, caracterizadas muito mais pelo caráter defensivo do que ativo, passam a consumir parcela crescente do orçamento, como revelam as estatísticas abaixo: EVOLUÇÃO NA COMPOSIÇÃO DAS DESPESAS COM O TRABALHO3 POLÍTICAS ANO ATIVAS PASSIVAS 1973 63% 37% 1992 33% 67% Na verdade, essa mudança é produto de uma transformação mais profunda, expressa na perda da centralidade do trabalho, tanto como categoria analítica para entender os processos sociais, assim também como elemento central na organização do processo produtivo. Essa perda da centralidade do trabalho, de acordo com Azeredo, trouxe como conseqüência uma brutal economia de trabalho, como também a substituição de empregos qualificados na indústria por empregos pouco exigentes em qualificação - e por isso pior remunerados - nos serviços; trabalho em tempo parcial e trabalho temporário; precarização dos empregos de forma geral; aumento da informalização no mercado de trabalho; subemprego; desemprego estrutural.4 Para responder a essa crise do mercado de trabalho, os países desenvolvidos reestruturam seus sistemas públicos de emprego. No caso dos países escandinavos (Suécia, Noruega, Islândia e Dinamarca), eles reagiram expandindo o emprego no setor público. Além disso, adotaram outras políticas para o mercado de trabalho, mediante programas de oferta de treinamento, subsídios para a contratação no setor privado e auxílio para os que se estabelecem por conta própria (...). Os programas de requalificação para adultos e de aprendizagem por toda a vida, os incentivos à mobilidade geográfica e de emprego e, ainda, a proteção de novos tipos de famílias, como aquelas com um só responsável, são alguns exemplos associados a essa nova tendência5. Pochmann, Márcio. As Políticas de Geração de Emprego e Renda: experiências internacionais, in Reforma do Estado e Políticas de Emprego no Brasil/Marco Antônio de Oliveira (org). - Campinas (SP): Unicamp.IE, 1998. 3 Azeredo, Beatriz. Políticas Públicas de Emprego: a experiência brasileira/ Organização de Cláudio Salvadori Deddeca - São Paulo: Associação de Estudos do Trabalho - ABET, 1998; P. 5. 4 5 Idem, ibidem, p. 9. Outro grupo de países preferiu adotar a linha neoliberal, como os Estados Unidos, a Grã-Bretânia e a Nova Zelândia. Nestes países, a rede de seguridade social foi enfraquecida, mais acentuadamente nos Estados Unidos. Diferente é o caso dos países europeus. Estes passaram a usar a aposentadoria precoce como instrumento de políticas para reduzir a oferta de mão-de-obra. Mas, para tanto, foram obrigados a rever o sistema de contribuição, penalizando, assim, a classe trabalhadora. Em razão de tudo isso, Azeredo tem razão ao defender a tese de que o Estado social não foi desmontado, principalmente nos países social-democratas. Mesmo assim, é obrigada a reconhecer que a tendência de crescimento do gasto anterior, associada ao período de montagem dos sistemas no pós-guerra e mesmo de resposta à crise no início dos anos 70, encerra-se. De fato, desde a metade dessa década registra-se, principalmente na Europa, uma redução do ritmo de crescimento dos gastos sociais, redução essa que acelera ainda mais durante a década de 80, num contexto de adoção de políticas fiscais e monetárias rígidas6. Infelizmente, não se pode deixar de reconhecer que todos os países têm adotado políticas na direção de flexibilizar as relações de trabalho. A justificativa é a mesma: reduzir o custo do trabalho, com vistas a tornar o país mais competitivo no cenário imposto pela globalização. Para tanto, os governos dos países desenvolvidos passaram a adotar medidas para (1) enfraquecer o poder de negociação sindical, ao mesmo tempo em que buscam reduzir o grau de indexação salarial, (2) facilitar a contratação por tempo parcial ou determinado, (3) flexibilizar o uso do tempo de trabalho7. O Estado acaba, assim, agravando a crise do mundo do trabalho. Para garantir um mínimo de bem-estar material à classe trabalhadora, a intervenção estatal é obrigada a tomar medidas de flexibilização, enfraquecendo ainda mais o poder de negociação do trabalho. Além disso, num mundo de desemprego estrutural crônico, o Estado é obrigado a rever seus gastos com o seguro-desemprego e outras políticas sociais, voltadas para proteger o trabalhador dos efeitos da retração do crescimento econômico. O aumento do contingente de inativos, comprometendo mais ainda a sua capacidade de financiamento das políticas ativas de geração de emprego. 2. CRISE DO ESTADO SOCIAL Diante dessa realidade contraditória, cabe perguntar se a reestruturação do das políticas de emprego não poderia ter tomado outra direção. Vale dizer, o Estado não teria poder suficiente para assegurar uma política de trabalho comprometida com o pleno emprego? Para responder essa questão, ninguém melhor do que Jürgen Habermas, pois é de dentro do coração da social-democracia que ele fala. Sua tese defende a idéia de que o Estado social é estruturalmente incapaz de construir novas formas de vida coletivas e melhores8. De um ponto de vista mais concreto, o Estado é incapaz de quebrar, de 6 Idem, ibidem, p. 14. 7 Pochmann, Márcio. Op. cit. 8 Habermas, Jürgen. Legitimation Crisis. - Boston: Beacon Press, 1975. forma absoluta, a racionalidade que rege a economia de mercado. Pois a ação estatal só acontece mediante intervenções ajustadas ao sistema; são atividades de contorno. Por isso, o Estado social: [1] tem de deixar intacto o modo de funcionamento do sistema econômico; não lhe é possível exercer influência sobre a atividade privada de investimentos, senão mediante ações ajustadas ao sistema; [2] não pode impedir a racionalização crescente do processo de trabalho torna a força de trabalho cada vez mais ociosa; vale dizer, o programa social não pode assegurar uma política de pleno emprego; [3] é obrigado a limitar sua política de redistribuição da renda a um realinhamento horizontal dentro do grupo de trabalhadores dependente, pois não pode tocar na estrutura específica do poder de classe, especialmente na propriedade dos meios de produção; [4] como também não pode assegurar lugar ao trabalho como um direito civil. 3. NOTAS SOBRE A CRISE DO SISTEMA CAPITALISTA Essa incapacidade estrutural do Estado é agravada pela crise do sistema. Tudo indica que o capitalismo entrou numa fase de desenvolvimento que se aproxima dos limites de sua capacidade histórica de expansão. Prova disto é o fato de que, hoje, o "crescimento econômico" se faz muito mais por meio da centralização dos capitais existentes, do que pela criação ou expansão de novas unidades de capitais. De acordo com Chesnais9, mais de 60% dos investimentos se dão sob a forma de fusão de capitais. Além disto, o crescimento da produção de descartáveis revela que a valorização do capital não se dá mais através da criação de novos mercados. Ao invés de ampliar o número de consumidores, o capital reduz o período de vida útil das mercadorias, obrigando os consumidores a repô-las em prazos cada vez menores. A crescente financeirização da economia passa a dispensar cada vez mais a produção de valores de uso, como suporte para valorização do valor. Nesse contexto, a correlação de forças entre capital e trabalho se torna extremamente assimétrica, de tal sorte que não só é difícil manter as conquistas históricas da classe trabalhadora, como também avançar com elas, no sentido de criar novos empregos, relações estáveis de trabalho. Noutras palavras, o capital entrou numa fase de acumulação sem desenvolvimento10. Como diria Marx, sua missão histórica chegou ao fim. Era justamente isso que Lenine tinha em mente, quando publicou seu Imperialismo: fase superior do capitalismo11. Uma brochura que tinha como objetivo central uma crítica ao oportunismo da social-democracia. Essa crítica estava ancorada no fato de que o capitalismo havia atingido uma mundialização sem precedente na história e, que, por isso, a luta pelo socialismo perdera seu caráter nacional, para se transformar numa luta pela libertação da humanidade do domínio do capital. Nessa fase, diz Lenine, o que está em jogo não é mais a luta contra a exploração das burguesias 9 Chesnais, François. A Mundialização do Capital - São Paulo: Xamã, 1996. 10 A esse respeito ver Teixeira, Francisco & Frederico Celso. Marx no Século XXI. São Paulo: Editora Cortez, 2004. 11 Lênin, V. O Imperialismo: fase superior do capitalismo. – São Paulo: global editora distribuidora ltda, 1982. nacionais, mas, sim, contra a burguesia mundial, que partilhou o mundo entre seus pares, de tal sorte que não havendo mais o que conquistar restava apenas redistribuir entre eles o que já se encontrava sob seu domínio. Críticas ao vento! Os oportunistas social-democratas fizeram vista grossa às censuras de Lênin. Com seus discursos do tipo “dêem-nos 50,1% dos votos e realizaremos vossos objetivos”, ganharam a confiança da classe trabalhadora e conquistaram não poucas vitórias políticas e econômicas. Conseguiram transformar o voto censitário num direito universal; em muitos países europeus, reduziram a semana de trabalho de 72 para 35 horas; ampliaram o sistema de proteção social e, hoje, os inválidos e doentes contam com serviços de assistência médica e aposentadoria; criaram o seguro-desemprego; universalizaram a educação; além de outros direitos sociais e políticos. Mas é preciso considerar o reverso da medalha. Não se pode esquecer que todas essas conquistas foram realizadas a um preço muito alto, cujas cifras estão registradas na História com números indeléveis de sangue e fogo. O balanço é de Mandel12, para quem a social-democracia internacional, com honrosas exceções, justificou e facilitou a carnificina de dez milhões de seres humanos durante a Primeira Guerra Mundial, em nome de pretensas razões de defesa nacional. Os governos social-democratas, ou com a participação da social democracia, organizaram ou defenderam guerras na Indochina, Malásia, Indonésia e Argélia. Foram mais longe ainda. Defenderam práticas de torturas e limitaram as liberdades democráticas na Índia, Indonésia, Egito, Iraque e Singapura. Protegeram o regime do apartheid na África do Sul. Participaram da Guerra Fria, além de se tornarem cúmplices das políticas imperialistas. Em nome do grande capital, apoiaram e organizaram as políticas de austeridade monetárias e fiscais, que tiveram como consequência o desmantelamento do Estado Social, que ajudaram a construir. Não é de admirar que a direita ocupa cada vez mais “cadeiras” nos parlamentos europeus e no resto do mundo. Caso emblemático desse avanço da direita é a recente vitória das forças conservadoras nas eleições para o Parlamento Europeu, no dia 7 de junho de 2009. As razões dessa vitória vêm de longe, bem antes do início da crise atual. Como apropriadamente esclarece Fiori, a derrota dos social-democratas e o declínio da esquerda, já vinha de antes (sic), e não reverteu nestas últimas eleições por uma razão muito simples: os social-democratas são parte essencial da própria crise. Relembrando uma história conhecida: a social-democracia européia abandonou a “utopia” socialista, depois da II Guerra Mundial, e só se converteu às teses e políticas keynesianas, no final da década de 50. Mas em seguida, a partir dos anos 70, aderiu às novas teses e políticas neoliberais hegemônicas até o início do século XXI. E até hoje, na burocracia de Bruxelas, e dentro do Banco Central Europeu, são os social-democratas e os socialistas que em geral defendem com mais entusiasmo a ortodoxia macroeconômica e liberal. Neste momento, por exemplo, o ministro das Finanças alemão, o social-democrata Peer Steinbruech, é considerado por todos como a autoridade financeira mais ortodoxa e radical, nos governos das grandes potencias capitalistas. Além disto, os social-democratas e socialistas europeus não participaram da origem do projeto de integração européia, e nunca conseguiram formular uma visão consensual do projeto de unificação. Portanto, nestas últimas eleições parlamentares, os social-democratas e socialistas europeus não podiam ser vistos como uma alternativa frente à crise do modelo neoliberal, porque eles são de fato uma parte essencial da própria 12 Mandel, Ernest. Situação e Futuro do Socialismo. In O Socialismo do Futuro: revista de debate político. – Lisboa: Publicações Dom Quixote Ltda. Vol. I, Nº 1, 1990., pp. 84/86. crise, e além disto, não dispõem de nenhuma proposta específica para os impasses atuais da União Européia13. Nessa conjuntura, os donos do capital passam a rejeitar abertamente qualquer compromisso de classe, que implique alguma influência política sobre os investimentos privados e a distribuição de renda. É o que faz notar Przeworsky14, ao reconhecer que, pela primeira vez em muitas décadas, a direita possui um projeto histórico próprio: libertar a acumulação de todas as cadeias impostas pela democracia. PARTE SEGUNDA 4.A QUESTÃO BRASIL E AS LIÇÕES DE CAIO PRADO JÚNIOR No Brasil, as coisas não são diferentes; pelo contrário, são até piores. Razões para isto é que não faltam. O processo histórico de formação da sociedade brasileira deixou um enorme passivo social. Ninguém melhor para falar dessa dívida social, de suas determinações histórico-sociais, que Caio Prado Júnior de “Formação do Brasil Contemporâneo”, um clássico que veio a público no ano de 1942, quando seu autor contava com 35 anos de idade. De lá para cá, já são transcorridas mais de seis décadas. Durante esse longo transcurso de tempo, a sociedade brasileira evoluiu e se modernizou. O País industrializou-se e transformou-se numa das maiores economia do mundo; em 2010, de acordo com os economistas especialistas no assunto, o Brasil já ocupava 7% posição no ranquing das maiores economias do mundo. Teria o Brasil mudando tanto assim, a ponto de apagar todo e qualquer vestígio da herança colonial? Ninguém melhor do que o próprio Caio Prado para responder essa questão. Trinta e cinco anos depois da publicação de “Formação do Brasil contemporâneo”, em 1977, no adendo de seu “A Revolução Brasileira”, ele escrevia que o Brasil é um país que no contexto do mundo moderno (...) não representa mais do que um setor periférico e dependente do sistema econômico internacional sob cuja égide se instalou e originalmente organizou como colônia a serviço dos centros dominantes do sistema. E em função dessa situação se estruturou econômica e socialmente. É certo que deixamos de ser, em nossos dias, o engenho e a “casa grande e senzala” do passado, para nos tornamos a empresa, a usina, o palacete e o arranha-céu; mas também o cortiço, a favela, o mocambo, o pau-a-pique, mal disfarçados, aqui e acolá, por aquele moderno em que minorias dominantes e seus auxiliares mais graduados se esforçam com maior ou menos sucesso por acompanhar aproximadamente, com o teor de suas atividades e trem da vida, a civilização de nossos dias. E prossegue com seu exame da perspectivação do Brasil. Afirma que, apesar das 13 Fiori, José Luis. Entre Berlim e o Vaticano. – Carta Maior, 16 de junho de 2009. Przeworsky, Adam. Capitalismo e Social-Democracia. - São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 14 adaptações necessárias determinadas pelas contingências de nosso tempo, somos o mesmo passado. Se não quantitativamente, na qualidade. Na “substância”, diria a metafísica de Aristóteles. Embora em mais complexa forma, o sistema colonial brasileiro se perpetuou e continua muito semelhante. Isto é, na base, uma economia fundada na produção de matérias-primas e gêneros alimentares demandados nos mercados internacionais. Se vivo fosse, hoje, Caio Prado certamente não mudaria muita coisa do que escreveu em 1977; pelo menos, qualitativamente. A economia brasileira é a maior exportadora mundial de oito commodities agrícolas, tais como açúcar, café, suco de laranja, soja, carne bovina, carne de frango, fumo e etanol. É o maior produtor mundial de minério de ferro e de castanha-do-pará. Hoje, quase 2/3 de suas exportações são do commodities (agrícolas, minerais e metálicos), oriundas de setores em recursos naturais. Os restantes 35% representam a participação de manufaturas; mesmo assim, com poucos itens de alta tecnologia, aptos a competirem em mercados internacionais mais dinâmicos. Com efeito, em 1989, 45,28% de sua pauta de exportação era de commodities primárias. De alta tecnologia, o país exportava apenas 10,88%. Quase quinze anos depois, em 2006, a participação dos produtos agrícolas subiu para 48,40% e a participação de produtos de alta tecnologia permaneceu baixa: subiu de 10,88%, em 1989, para 12,15%. Comparada com a China, cuja pauta de exportação é composta por 93% de produtos manufaturados, o Brasil está longe de ingressar no rol das economias exportadoras de mercadorias intensivas em tecnologia. Na Índia, o percentual de manufaturados responde por oitenta por cento de suas exportações. Como se pode perceber, o Brasil caminha a passos largos em direção a uma reprimarização de sua pauta de exportações. Em razão disso, perde qualquer controle sobre os preços de suas mercadorias exportadas, uma vez que dependem das cotações das bolsas internacionais de mercadorias. Mas o Brasil não é mais uma economia agrário-exportadora como fora durante a fase colonial e até princípios dos anos 30 do século passado. É verdade! A partir daqueles anos, instaura-se um modelo de acumulação “qualitativo e quantitativamente distinto” do que fora no passado e que passará a depender de uma realização interna crescente, para falar de acordo com Francisco de Oliveira15. Com efeito, hoje, o Brasil é uma economia relativamente fechada, que exporta apenas um pouco mais de treze por cento do seu Produto Interno Bruto (PIB), se comparado com outras economias, como a Coréia do Sul, que exporta cerca de cinquenta por cento do seu PIB; o México, quarenta por cento. Apesar de a economia brasileira, hoje, depender substancialmente do mercado interno para a realização de sua produção, continua subordinada a decisões que são tomadas fora de sua esfera doméstica. Dependência reforçada durante o período Kubitscheck, com o seu “Programa cinquenta anos em cinco”, durante o qual a economia brasileira é elevada a um novo padrão de relações centro-periferia, num patamar mais alto de divisão internacional do trabalho. Como assim? No seu governo, Kubitschek promoveu um processo de industrialização voltado ao mercado interno, porém financiado ou controlado pelo capital internacional, que passou a exigir, a partir de então, um maior volume de meios de pagamentos para fazer voltar à circulação internacional de capitais a parte do excedente que pertence ao capital estrangeiro. 15 Oliveira de, Francisco. A Economia Brasileira: crítica à razão dualista. - Petrópolis: Editora Vozes: 1987 Novamente, é Caio Prado quem ajuda a entender esse processo. Em seu livro A Revolução Brasileira, critica a esquerda brasileira, que sempre lutou contra a dominação imperialista, por não ter se dado conta de que o senhor Kubitschek, na campanha eleitoral de 1955, apresentava-se como o promotor do grande capital brasileiro e internacional. Particularmente, este último, pois, diz aquele autor, é na base do apelo aos grandes trustes internacionais e estímulo às iniciativas deles no Brasil que, fundamentalmente, se assentava o programa desenvolvimentista endossado pelo candidato. O que se comprovaria quando o presidente eleito viajara pela Europa, antes da posse, entendo-se com grandes grupos internacionais aos quais oferecia com promessas formais de largo favorecimento por parte do seu próximo governo, generosa participação nas atividades econômicas brasileiras. E depois de inaugurado o governo, foi o que se viu e em que não precisamos aqui insistir. Nunca se vira, nem mesmo imaginara tamanha orgia imperialista no Brasil e tão considerável penetração do imperialismo na vida econômica brasileira. O resultado daquela orgia imperialista não poderia ser diferente do que previa Caio Prado: atualmente, as multinacionais respondem por 25% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e por quase metade das exportações brasileiras. E com uma agravante: a desnacionalização da economia e a sua consequente dependência de decisões de investimentos tomadas fora de suas fronteiras domésticas. Dependência que também afeta a política econômica, na medida em que o capital externo, investido no país, precisa ser remunerado. Por isso, o Estado é obrigado a concentrar esforços para promover as exportações e assim gerar divisas necessárias para o pagamento de lucros, dividendos, royalties (direito de patentes) juros, etc., às empresas estrangeiras. Tais condições explicam por que, hoje, a economia brasileira é marcada por profundas desigualdades sociais. A concentração de renda e de riqueza no Brasil é chocante. De acordo com Pochmann, hoje, somente 5 mil clãs apropriam-se de 45% de toda a riqueza e renda nacional, embora o país tenha mais de 51 milhões de famílias. Se considerar somente a parcela da população que se concentra nos 10% mais ricos, verifica-se que 75% de toda a riqueza contabilizada são por ela absorvida. Em outras palavras, restam para 90% da população brasileira somente 25% da riqueza e da renda nacional. Essa concentração de renda não é uma consequência das políticas neoliberais, que tomaram conta do país nos últimos 20 anos. Muito pelo contrário. Ainda de acordo com Pochmann, já no período da colônia portuguesa durante o século 18 havia 10% da população responsável pela absorção de cerca de 2/3 da riqueza. Mesmo com o abandono da condição colonial, passando para a situação de Independência nacional e pelo regime imperial, o país continuou a registrar uma incrível estabilidade no padrão excludente de repartição de renda e riqueza. A ironia desse processo secular de concentração de renda reside no fato de que graças a essa apropriação extremamente desigual da riqueza, mais de 30% das ocupações no Brasil dependem do trabalho prestado às famílias ricas. Valendo-se mais uma vez de Pochmann, este constata que 20,5 milhões de famílias no Brasil possuem pelo menos um membro desenvolvendo atividades de prestação de serviços às famílias. Há o caso, por exemplo, de 4,3 milhões de famílias (7,3% do total) que possuem dois ou mais membros ocupados no trabalho para famílias. No ano de 1996, o universo de unidades familiares com a presença de um ou mais membros exercendo atividades de prestação de serviços às famílias era de 13,1 milhões, o que equivaleu a 30,6% do total. Em dez anos, a quantidade de famílias dependentes da prestação para famílias aumentou 56,5%. Um verdadeiro retrato do Brasil dos barões do café e do açúcar, que dependiam de uma enorme criadagem para servir a si e a sua família. Fenômeno que se reproduz no Brasil do século XXI. Atualmente, há famílias que contam até com 20 empregados, que vão desde o jardineiro, esteticista, passando pelo motorista, piloto de helicóptero, caseiros, personal trainers, guarda-costas, etc. Mas por que regressar a um passado tão longínquo? Porque é nele que se encontram as raízes históricas da formação da classe trabalhadora brasileira, que já nasce deserdada da produção e consumo, além de excessivamente abundante com relação às necessidades imediatas da demanda do capital por força de trabalho. É nas páginas de Formação do Brasil Contemporâneo que essa gênese é investigada. Vale a pena conferir. Durante o período colonial e na fase imperial, quem não fosse escravo nem senhor era obrigado a viver como gente pobre, composta de indivíduos sem eira nem beira. No último quartel do século XIX, de uma população estimada de doze milhões de habitantes, metade era constituída de gente que vivia ao deus-dará. Segundo Caio Prado, estes deserdados eram formados sobretudo de pretos e mulatos forros ou fugidos da escravidão; índios destacados de seu habitat nativo, mas ainda mal ajustados na nova sociedade em que os englobaram; mestiços de todos os matizes e categorias, que, não sendo escravos e não podem ser senhores, se vêem repelidos de qualquer situação estável, ou pelo preconceito ou pela falta de posições disponíveis; até brancos, brancos puros (...), arrastando-se na indigência; os nossos poor whites, detrito humano segregado pela colonização escravocrata e rígida que os vitimou. Essa massa de desclassificados do sistema colonial já nascera deserdada, uma vez que não tinha lugar dentro sistema de produção colonial. Parte desses desclassificados vem da população amazônica. Como explica Caio Prado, são os tapuias que deixaram de ser silvícolas, e não chegaram a ser colonos; os caboclos, índios puros ou quase puros de outras partes da colônia, em situação mais ou menos idêntica, isolados do mundo civilizado que os cerca e rejeita, e reconcentrados numa miserável economia naturalista que não vai além da satisfação de suas imperiosas necessidades vitais. A eles se equiparam negros e pardos que, excluídos da sociedade ativa, procuram imitar a vida daqueles filhos do continente. Quando fugidos da escravidão, são os quilombolas, que às vezes se agrupam e constituem concentrações perigosas para a ordem social, e são a preocupação constante das autoridades: os temíveis “quilombos”. Numa tal situação arredada da civilização encontramos também brancos mais ou menos puros, que expelidos os fugidos dela aproveitam a vastidão do território para se abrigarem no deserto. O mosaico social desses excluídos pelo sistema colonial ainda não está completo. Noutro ladrilho, encontram-se os chamados agregados, formados, segundo Caio Prado, por aqueles indivíduos que, nas cidades, mas sobretudo no campo, se encostam a algum senhor poderoso, em troca de pequenos serviços, às vezes até unicamente de sua simples presença, própria a aumentar a clientela do chefe e inflar-lhe a vaidade, adquirem o direito de viver à sua sombra e receber dele proteção e auxílio. São então os chamados agregados, os moradores dos engenhos, cujo dever de vassalos será mais tarde proclamado e justificado, em Pernambuco, num momento difícil e de aguda crise política. Finalmente, para completar esse quadro tosco, feito de reboco de gente imprestável para a sociedade ativa, assenta-se o último ladrilho, feito com as sobras dessa gente desclassificada pela colônia. Na pena de Caio Prado, são os desocupados permanentes, vagando de léu em léu à cata do que se manter e que, apresentando-se a ocasião, enveredam francamente pelo crime. É a casta numerosa dos “vadios”, que nas cidades e no campo é tão numerosa, e de tal forma caracterizada por sua ociosidade e turbulência, que se torna umas das preocupações constantes das autoridades e o leimotive de seus relatórios (...). Essa massa de desclassificados, que crescerá com o tempo, são os candidatos que irão, no futuro, quando o país ingressar na era da industrialização tardia, compor a chamada superpopulação relativa (SPR) do capital industrial, no sentido de que toda a produção do valor passa a ser submetida a relações capitalista de produção. Um imenso reservatório de força de trabalho, que transborda, em muito, a camada daqueles que Marx denomina de aptos para o trabalho, isto é: o chamado exército industrial de reserva. Uma reserva superabundante, que deixa de ser um “exército industrial”, pois não interfere nas leis da acumulação do capital industrial, que se expande vigorosamente depois dos anos trinta do século passado. Fato que hoje não há como negar! É verdade! Mesmo a economia crescendo a uma taxa de quatro a cinco por cento ao ano, como aconteceu em 2007 e 2008, mal consegue gerar um número suficiente de postos de trabalho, para empregar a mão de obra que chega ao mercado de trabalho pela primeira vez. E com uma agravante. Além das elevadas taxas de desemprego, no Brasil, cerca de dois milhões de pessoas, crianças com menos de 14 anos, que deveriam estar na escola, estão trabalhando ou procurando trabalho. Não só este contingente deveria estar fora do mercado de trabalho, como também seis milhões de aposentados e pensionistas que continuam trabalhando. Para piorar a situação, mais de três milhões de pessoas têm mais de um emprego, o que reduz as oportunidades de trabalho para aqueles que chegam ao mercado de trabalho a procura do primeiro trabalho. Esse retrato de extrema exclusão social não parece ser muito diferente daquele registrado e analisado nas páginas de Formação do Brasil Contemporâneo e de A Revolução Brasileira. Neste último livro, Caio Prado, acusado pela crítica de não ter olhado para o mercado interno, enxergou muito bem que o padrão de acumulação que se instaurou no país foi o de um crescimento econômico sem desenvolvimento. Com razão, afirma que as atividades econômicas expressivas (...) permanecerão restritas a reduzidos setores que constituem o pequeno núcleo significativo da economia brasileira (...). O surto relativamente vigoroso observado nos pós-guerra, gerador de tantas ilusões “desenvolvimentistas”, e que se alimentou sobretudo da industrialização na base da produção substitutiva de artigos antes importados, alcançou seu limite muito cedo (...). E não poderia ser diferente, como diz em seguida, pois o progresso conseguido, na perspectiva do mundo moderno e dos padrões de uma economia realmente desenvolvida, é mínimo. Tanto mais que o sentido que assume esse progresso, é o mais precário e insatisfatório. O que efetivamente se encontra na sua base e essência é uma produção orientada para o atendimento de um consumo que, nas condições do Brasil, se pode dizer suntuário e conspícuo, de reduzidas parcelas da população. Caio Prado tem razões de sobra, quando destaca as disparidades desse modelo de acumulação sem desenvolvimento. “Para não falar em coisa muito pior”, diz ele, considere-se por exemplo o caso da maior, mais opulenta e industrializada cidade brasileira, São Paulo, onde alguns reduzidos setores ostentam seus modernos arranha-céus de arrojadas linhas arquitetônicas, e seus luxuosos bairros residenciais, em tão violento contraste com o restante da cidade, e sobretudo seus bairros periféricos onde se concentra a massa da população, e que nem mesmo se podem dizer propriamente urbanizados, com suas rudimentares construções servidas com água de poço em comunicação com as fossas que fazem as vezes de esgoto, e plantadas ao longo de pseudo-ruas, ou antes “passagens” desniveladas onde ao sabor do tempo uma poeira sufocante alterna com lodaçais intransponíveis. É isso a maior parte de São Paulo, e não como estágio inicial e momentâneo com perspectivas de modificações em prazos previsíveis, e sim como situação que considera mais ou menos definitiva. Que dizer então do Rio de Janeiro com suas favelas, Recife e seus mocambos, Salvador com seus aglomerados de casebres dispersos por morros e brejos, e outras capitais de quase todo Brasil com suas multidões andrajosas e depauperadas que rondam luxuosos palacetes e clubes de piscinas ultramodernas de água filtrada... Para concluir, cabe ainda observar o que dizia Caio Prado, em 1977. A lição que ele deixou permanece tão atual que parece estar a escrever nos dias de hoje. Com efeito, como negar, como assim escrevia naquele ano, que nos encontramos em fase de nossa história na qual se fazem profundamente e cada vez mais sentir as contradições entre uma nação e nacionalidade que procura se libertar de seu passado, e esse passado que lhe pesa ainda consideravelmente nos ombros. Por mais que um atroador neo-ufanismo, misto de publicidades comerciais e de ingenuidade desprevenida e mal-informada a respeito da realidade desse mundo em que vivemos, procure impingir idéias de que somos um país em desenvolvimento e prestes a alcançar os latos níveis de progresso e civilização contemporâneas, o fato é que infelizmente estamos bem longe disso (...). Temos uma fachada, não há dúvida, que apresenta certo brilhantismo. Mas é uma tênue fachada apenas, que disfarça muito mal, para quem procura verdadeiramente enxergar e não tenta iludir-se, o que vai por detrás dela neste imenso país de desnutridos, doentes e analfabetos onde se dispersam ilhados alguns medíocres arremedos da civilização do nosso tempo. Para ir além dessa fachada, o Brasil precisa, dizia Caio Prado,e em seguida, de uma sólida base sobre que assentar a nossa nacionalidade, e que vem a ser uma população liberta da miséria física e cultural, e capacitada, no seu conjunto, para usufruir alguma coisa do conforto, bem-estar e elevação do espírito que a ciência moderna proporciona. 5. A NOVA ESQUERDA BRASILEIRA Infelizmente, não é assim que pensam os atuais militantes da esquerda brasileira. Fazendo um contraponto com a primeira parte desta fala, aqueles, diferentemente dos históricos da antiga social-democracia, que apostaram na possibilidade de construção de um novo mundo, aqueles não estão mais preocupados em buscar novas formas de vida, mas, sim, em se agarrarem aos valores e representações existentes como evidências inquestionáveis de um mundo que não tem mais futuro. São pragmáticos empedernidos, que se agarram à faticidade do presente existente, para elevá-la à condição única de toda e qualquer práxis humana. Assim pensam e agem os sindicatos, ao transformarem suas entidades em agências de empregos e de auxílio aos seus filiados, com serviços médicos, odontológicos, jurídicos empréstimos consignados, dentre outras coisas. Não é diferente do que acontece com os partidos políticos de esquerda. Trocaram os projetos ideológicos de outrora pela administração do sistema, já que aceitam os fatos do dia a dia como medida do seu agir e pensar. Mais uma vez procuram iludir as contradições do sistema, ao invés de procurar desvendá-las em toda a sua profundidade, como advertia Lênin em seu Imperialismo: fase superior do capitalismo. Da forma mais desavergonhada e desonesta, enveredam pelo caminho da solidariedade; elegem a urgência como principio motor de suas ações. Noutras palavras, trocaram a militância política de outrora pela ação humanitária, pois acreditam que salvar uma vida humana, lidar com o imediato para enfrentar situações particulares é muito mais importante do que lutar pelo socialismo ... tão distante do presente! Assim, fazem do pragmatismo humanitário uma opção ideológica. Quanta hipocrisia! Nisso nada há de opção ideológica, mas, sim, de puro conformismo. Nem poderia, pois o capitalismo entrou numa fase de acumulação em que não é mais possível conjugar crescimento econômico com desenvolvimento social. Noutras palavras, o capitalismo já deu o que tinha de dar. Não é possível combater a miséria e o desemprego com políticas oportunistas de estratégia de sobrevivência, como é o caso da economia solidária, que prefere atuar nas franjas e brechas do sistema sem romper com a sua lógica perversa. Política oportunista, na medida em que q tenta produzir valores de uso por meio da compra de mercadorias, para transformá-los em valor de troca no mercado. Seu voluntarismo oportunista salta aos olhos quando faz uso do Estado, como se esta instituição fosse um ente público impessoal, portanto, imune aos interesses de classes. O mesmo acontece com as políticas afirmativas de gênero e de distribuição de cotas de acordo com o pigmento da pele da pessoa. Ora, no Brasil, a exclusão social não é um problema de raça, de etnia, mas, sim, de classes. Se se pode falar de etnia, de raças excluídas, isto vale para um país como a Bolívia, onde quase setenta por cento da população é composta de índios, que não participam do mercado nem têm direitos sociais. Mesmo assim, por trás dessa exclusão étnica, bate latente um problema de classes, cujas raízes vêm desde os remotos tempos, para falar como Eduardo Galeano, em que os europeus se lançaram mar adentro e fincaram seus dentes na garganta dessa comarca, que hoje se chama América Latina. Esses oportunistas negam-se a encarar a realidade de frente. Esta, como foi obrigado a reconhecer Celso Furtado, no apagar das luzes de sua existência, não pode mais ser enfrentada com políticas do tipo de assistência à pobreza, como o faz o programa Bolsa Família do PT. O mundo mudou, dizia Furtado, e hoje, mesmo na Europa, não se vê horizonte para uma relativa harmonia baseada no pleno emprego. Para manter o nível de agressividade das economias capitalistas tornou-se necessário abandonar as políticas de emprego. O aumento de produtividade se desassociou de efeitos sociais benéficos. Esta é a maior mutação que vejo nas economias capitalistas contemporâneas (Entrevista concedida ao CORECON de São Paulo). Furtado não é uma voz isolada. Juan Somavia, diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não acredita que o crescimento econômico possa gerar postos de trabalho suficientes para acabar com o desemprego. Segundo ele, em 2004, a taxa de crescimento da economia mundial, que foi da ordem de 5,1%, resultou apenas num aumento de 1,8% no número de pessoas ocupadas. Mas isso ainda não traduz toda a questão. Até 2015, argumenta Somavia, cerca de 400 milhões de pessoas se incorporarão à força de trabalho. Isto quer dizer que mesmo que se consiga um crescimento acelerado do emprego para produzir 40 milhões de postos por ano, a taxa de desemprego baixaria apenas 1% em 10 anos”. No Brasil, as perspectivas para o trabalho são igualmente desanimadoras. Estudos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o mercado de trabalho no Brasil está encolhendo. Uma pesquisa realizada por essa instituição, na indústria automotiva, revela que, nos anos 80, para uma capacidade de produção de um milhão e quinhentos mil veículos, este setor empregava 140 mil trabalhadores. Hoje, para uma capacidade de produção de três milhões de veículos, as montadoras empregam apenas noventa mil trabalhadores. Nesse contexto, os famigerados programas de requalificação profissional pouco ou quase nenhum impacto têm sobre as taxas de desemprego. Com efeito, tais programas, como assim reconhece Azeredo, dependem diretamente do desempenho da economia. Além disso, em um contexto de taxas de desemprego significativas, "a eficiência dos programas tende a reduzir-se pela disputa de um maior número de desempregados pelas vagas existentes". Essa é também a opinião de Kapstein, que afirma que "as políticas microeconômicas, como a expansão do ensino e do treinamento, são necessárias para equipar os trabalhadores com as qualificações que lhes permitem reingressar no mercado de trabalho ou encontrar melhores perspectivas de carreira. Mas essas políticas e programas são de pouco valor se a economia não estiver produzindo bons empregos"16. Além de tais limitações, os programas de qualificação aparecem como um verdadeiro contra-senso histórico; contra-senso por querer fazer do trabalhador um instrumento 16 Azeredo, Beatriz. Op., cit.,p. 38-39. de produção estratégico, justamente numa época em que o processo de trabalho já se transformou em processo de produção, no sentido de que o trabalho deixa de ser a sua unidade dominante. Mais do que isto, esses programas se movem na direção oposta à lógica de crescimento da acumulação de capital, cuja tendência é reduzir os custos salariais na composição das despesas do capital. Ora, a qualificação generalizada da força de trabalho teria como efeito imediato encarecer o preço desta mercadoria para o capital, fazendo com que os salários consumissem uma proporção relativamente crescente do preço de custo do capital. Um absurdo, considerando que a lei geral da acumulação17 capitalista mostra precisamente o contrário: as despesas com capital constante (máquinas, equipamentos, matéria-prima etc) crescem relativamente mais do que os gastos realizados com sua parte variável, isto é: com o pagamento da força de trabalho. PARTE TERCEIRA 6. CONCLUSÃO: QUE FAZER? Essa é uma questão para qual o autor desta fala não tem uma resposta pronta e acabada. Mas deixa como reflexão o que Marx dizia em seu artigo, de agosto de 1844, Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social”. De um Prussiano. Nele afirmava que “O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. Mais ainda, frente à conseqüências que brotam da natureza a-social desta vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a estas conseqüências, a impotência é a lei natural da administração. Com efeito, esta dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil, é o fundamento natural onde se apóia o Estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis. “Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no atual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão ativa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais”. Dessas duas passagens fica a lição de que a questão da miséria, da fome, do desemprego não é uma questão política; mas, sim, social. Noutras palavras, não é na esfera da política, da boa administração, que se devem buscar as causas dos males sociais; pelo contrário, estes residem na ordem social. Como tais, não podem ser erradicados com “políticas” humanitárias de solidariedade do tipo “amigos da escola”, “criança esperança”, “bolsa família”, ou, com “reformas político-eleitorais”, “administrativas” etc. Marx, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. – São Paulo: Nova Cultural, 1985, Liv I. 17